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FICÇÃO URBANA CONTEMPORÂNEA (DE 1970 A NOSSOS DIAS) - Tópicos para um estudo acadêmico - César Giusti - A partir da década de 70, a ficção brasileira de temática urbana foi condicionada por uma série de novos fatores econômicos, políticos e sociais, a saber: 1 - A ditadura militar prolongou-se por muito mais tempo que os oposicionistas imaginavam. O que era visto apenas como um golpe, condenado a curto prazo ao fracasso, consolidou-se como um longo regime com significativo apoio popular. Contudo, a crise do petróleo de 1973, os altos custos de empreendimentos estatais e as graves dificuldades do capitalismo internacional em fins dos anos 70 e início dos 80, fizeram com que a inflação se tornasse incontrolável. Só então a ditadura conheceu a impopularidade. 2 - Obrigados a entregar o poder à oposição confiável (Tancredo Neves - 1985), os militares retiraram-se discretamente da política brasileira para não mais voltar. Uma democracia ampla e bastante liberal estabeleceu-se no país. A censura foi abolida, o

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  • FICO URBANA CONTEMPORNEA (DE 1970 A

    NOSSOS DIAS)

    - Tpicos para um estudo acadmico -

    Csar Giusti

    - A partir da dcada de 70, a fico

    brasileira de temtica urbana foi

    condicionada por uma srie de novos

    fatores econmicos, polticos e

    sociais, a saber:

    1 - A ditadura militar prolongou-se

    por muito mais tempo que os

    oposicionistas imaginavam. O que era

    visto apenas como um golpe, condenado a

    curto prazo ao fracasso, consolidou-se

    como um longo regime com significativo

    apoio popular. Contudo, a crise do

    petrleo de 1973, os altos custos de

    empreendimentos estatais e as graves

    dificuldades do capitalismo

    internacional em fins dos anos 70 e

    incio dos 80, fizeram com que a

    inflao se tornasse incontrolvel. S

    ento a ditadura conheceu a

    impopularidade.

    2 - Obrigados a entregar o poder

    oposio confivel (Tancredo Neves -

    1985), os militares retiraram-se

    discretamente da poltica brasileira

    para no mais voltar. Uma democracia

    ampla e bastante liberal estabeleceu-se

    no pas. A censura foi abolida, o

  • habeas-corpus restabelecido e as

    diversas formas de controle social

    foram completamente abrandadas. No

    entanto, a redemocratizao no trouxe

    nem o controle da espiral inflacionria

    nem o retorno ao desenvolvimento. A

    derrubada da inflao viria ocorrer

    apenas com o Plano Real, em 1993.

    3 - Os ideais esquerdistas-

    autoritrios que imperavam entre a

    intelectualidade brasileira foram

    golpeados pelo desmantelamento da

    guerrilha (1969-1972) e, mais tarde,

    pelas repercusses da queda do Muro de

    Berlim e, conseqentemente, pelo

    colapso geral do socialismo. Muitos

    artistas e escritores viraram ento

    "rfos da utopia". Tambm, o chamado

    "radicalismo democrtico" da esquerda

    mais recente tem sido bastante abalado

    com a tendncia centrista do governo

    Lula, o primeiro presidente a ser

    eleito por foras progressistas no

    pas. Por isso, a intelligentzia parece

    ter perdido todos os seus referenciais

    utpicos, o que ajuda explicar um certo

    ceticismo generalizado que percorre a

    produo cultural contempornea.

    4 - Por outro lado, de 1970 para c

    o Brasil configurou-se definitivamente

    como uma nao capitalista e moderna,

    ainda que cheia de desigualdades

    sociais. O espetacular crescimento

    econmico da dcada de 1970 (em mdia

  • quase 10% ao ano) atraiu milhes de

    trabalhadores rurais para as cidades.

    Muitos se integraram satisfatoriamente

    vida urbana; outros foram sobreviver

    em favelas que brotaram aos magotes.

    Hoje elas circundam as principais

    metrpoles do pas. Nas dcadas de 1980

    e 1990, as taxas de crescimento da

    economia baixaram significativamente,

    no permitindo uma efetiva integrao

    das camadas pobres ao establishement

    nacional.

    5 - Ainda que o xodo rural e o

    pfio desenvolvimento econmico dos

    ltimos anos expliquem a ampliao do

    nmero de miserveis, outra

    circunstncia tem peso decisivo neste

    processo. A ilimitada liberao sexual,

    que estimulou, sobremaneira, a gravidez

    entre adolescentes, fez com que, entre

    a populao marginal (ao contrrio de

    outros setores) o aumento da natalidade

    tivesse uma progresso geomtrica,

    criando um problema praticamente

    insolvel: como integrar ao sistema

    econmico os mais de cem milhes de

    brasileiros gerados nas ltimas

    dcadas?

    6 - Ao mesmo tempo, no plano dos

    valores, assistiu-se derrocada final

    dos cdigos de existncia da sociedade

    patriarcal/agrria, substitudos por

    novos comportamentos e novas

    expectativas, todos correspondendo a

  • princpios urbanos e capitalistas. O

    domnio do individualismo, a busca da

    felicidade pessoal, tanto em seus

    aspectos emocionais quanto sexuais, o

    culto ao dinheiro e fruio de bens

    de consumo constituram, a partir de

    ento, os pilares ticos da nova

    sociedade brasileira.

    Face a tais transformaes,

    vertiginosas e radicais, os escritores

    tiveram uma experincia coletiva de

    esfacelamento e pulverizao da

    realidade, quando no de caos. A velha

    ordem desabava e um mundo instvel,

    frentico e aparentemente irracional

    ocupava o seu lugar.

    Todas estas mudanas influenciaram

    decisivamente a prosa de fico de

    temtica urbana das ltimas dcadas.

    Apesar da proximidade histrica do

    perodo, podemos apontar algumas das

    tendncias essenciais que configuram a

    atual produo ficcional brasileira:

    1 - Desintegrao das formas

    realistas tradicionais, que haviam

    predominado (com as excees de Clarice

    Lispector, Murilo Rubio e Joo

    Guimares) at o fim da dcada de 1960.

    A partir dos 70, rompe-se com a

    linearidade narrativa e abandona-se

    toda a pretenso de uma concepo

    totalizante e lgica do mundo. Em

    admirvel ensaio, Jos Hildebrando

  • Dacanal fixou o carter desta

    decomposio do realismo:

    O mundo est destroado e no h

    como remontar seus estilhaos.

    Os personagens padecem de total

    desorientao, sendo incapazes

    de organizar-se a si prprios e,

    muito menos, ordenar o universo

    sua volta. Desesperados,

    buscam uma verdade, sem saber se

    h possibilidades de encontr-

    la. Ou nem mesmo a buscam,

    limitando-se a sofrer ou a

    protagonizar a desordem, a

    violncia fsica e moral e a

    destruio das formas de

    convivncia social. (...)

    desintegrao tica corresponde

    a desintegrao tcnica, com a

    estrutura narrativa revelando-se

    desordenada, fragmentada e

    geralmente sem um foco

    narrativo, ou ponto de vista

    nico ou claramente definido.

    Entre os autores que expressam esta

    tendncia encontramos Rubem Fonseca (O

    caso Morel, Lcia Mcartney); Ivan

    ngelo (A festa); Roberto Drummond

    (D.J. em Paris); Antonio Torres (Os

    homens de ps redondos, Um co uivando

    para a lua e Essa terra); Lygia

    Fagundes Telles (As meninas); Mrcio

    Souza (Galvez, o Imperador do Acre); e

  • Sergio SantAna (Confisses de Ralfo).

    Contudo, quem condensou mais

    radicalmente as inovaes tcnicas e

    expressou mais fielmente a natureza

    catica da poca foi Igncio de Loyola

    Brando com o polmico romance Zero.

    No se pode subestimar tampouco a

    poderosa influncia exercida sobre

    estes autores pelos ficcionistas do

    chamado boom latino-americano: Garca

    Mrquez, Alejo Carpentier, Mario Vargas

    Llosa e Carlos Fuentes, entre outros,

    j tinham equacionado o problema da

    construo de um mundo romanesco,

    valendo-se de procedimentos narrativos

    revolucionrios e ao mesmo tempo sendo

    capazes de apresentar sugestivas

    totalizaes da realidade. Eram,

    portanto, modelos insuperveis da nova

    fico que aqui se procurava fazer.

    Ressalte-se, por fim, que j no

    final da dcada de 1970 e nas dcadas

    seguintes, esta fora de desintegrao,

    que parecia arrastar a prosa brasileira

    para o caos, recuou, dando lugar a uma

    razovel sntese entre ruptura e

    tradio, fragmentao e criao de

    mundo. Esta sntese poderia ser

    designada como uma nova forma de

    realismo. Quem melhor a elaborou nos

    ltimos trinta anos foi Rubem Fonseca,

    especialmente em seus contos. Entre os

    autores recentes cabe papel de destaque

    a Milton Hatoum com os excelentes

  • romances Relato de um certo Oriente e

    Dois Irmos.

    2 - A impossibilidade de uma viso

    totalizante da nova realidade. A busca

    da totalizao uma das

    caractersticas principais do romance e

    pode ser a causa do triunfo do conto,

    que se tornou o gnero mais praticado

    no pas a partir dos anos 70. Lidando

    com o relato breve, o registro de um

    flagrante da existncia, o conto passa

    mais ou menos inclume pela

    desintegrao de sentido de uma poca.

    Da a quantidade de bons contistas que

    surgiram ento. Entre eles destacam-se

    Srgio SantAnna (Confisses de Ralfo);

    Deonsio da Silva (Exposio de

    motivos); Lus Vilela (Tremor de

    terra); Srgio Faraco (Hombre);

    Domingos Pelegrini (O homem vermelho).

    3 - Paradoxalmente, nos mesmos idos

    de 1970, ressurgiu uma espcie de

    realismo social moda antiga,

    traduzido por relatos que representavam

    de maneira direta os dramas das camadas

    subalternas, sem muitas preocupaes

    com a linguagem.

    Era uma resposta censura imposta

    pelo regime militar que proibia a

    imprensa de noticiar os aspectos

    negativos do pas. Era tambm uma forma

    de solapar a idia do "milagre

    econmico", ento dominante nos meios

    de comunicao, atravs do registro dos

  • excludos, das prostitutas, dos

    operrios, dos camponeses, da gente sem

    eira nem beira, todos sonegados da

    viso ufanista do governo. Muitas

    destas obras no passavam de

    reportagens ficcionalizadas, escritas

    por jornalistas que se utilizavam da

    fico para driblar a censura. O

    expoente do grupo, contudo, era um bom

    escritor, Joo Antnio, que tinha

    produzido os seus melhores contos nos

    anos de 1960 e que agora, como um

    cavaleiro andante, lutava para que os

    pobres do Brasil encontrassem seu lugar

    na literatura. No prefcio de Malditos

    escritores, Joo Antnio defende a arte

    como um corpo-a-corpo com a vida:

    Estes escritos cometem

    (intencionalmente) quase todas

    as heresias diante de alguns

    conceitos tradicionais do

    purismo do fazer literrio.

    (...) Desse corpo-a-corpo nasce

    uma escritura descarnada.(...) a

    refletir sem floreio, impostura

    ou retoques, um mundo de suores,

    amordaamentos, pelejas e medos.

    Nesta linhagem do realismo social

    explcito figuram Wander Pirolli,

    Domingos Pellegrini Jr. Mais

    recentemente a obra de Paulo Lins,

    Cidade de Deus poderia ser enquadrada

    na referida tendncia, com a vantagem

  • de apresentar uma "viso de dentro" do

    universo semi-marginal urbano.

    4 - Neste perodo, a fico

    introspectiva, maneira de Clarice

    Lispector, foi reafirmada nas obras de

    Caio Fernando de Abreu, Morangos

    mofados, Joo Gilberto Noll, Hotel

    Atlntico e Lya Luft, As parceiras,

    entre outros. De certa forma, a

    explorao da subjetividade e a procura

    da identidade mais profunda dos seres

    era produto do grau maior de

    complexidade alcanado pela sociedade

    brasileira.

    5 - A partir da dcada de 1980,

    possivelmente como uma reao

    desintegrao das formas tradicionais

    de narrativa, ganhou espao o romance

    histrico, isto , aquele que evoca

    fatos e/ou personagens do passado

    reinterpretados por meio de uma viso

    crtica e desmistificadora. Normalmente

    este tipo de romance mantm-se dentro

    de um cdigo mais ou menos acadmico de

    narrar, contrariado experincias

    similares realizadas por ficcionistas

    do "boom hispano-americano", na mesma

    poca, marcadas por densa inveno

    formal.

    Ana de Miranda, Boca do Inferno, A

    divina quimera e Luiz Antonio de Assis

    Brasil, Videiras de cristal e Concerto

    campestre so os principais

    representantes do romance histrico.

  • Mas observe-se que escritores de outra

    linhagem, a exemplo de Rubem Fonseca, O

    selvagem da pera; de Nlida Pion,

    Repblica dos sonhos; de Deonsio da

    Silva, A cidade dos padres e de Moacyr

    Scliar Sonhos tropicais, tambm se

    aventuraram neste terreno com

    resultados estticos diversos.

    6 - Nos ltimos anos assistiu-se,

    por fim, a uma crescente propenso de

    inmeros escritores fabricao de

    "best sellers", sob encomenda de

    editores ou no. So romances e novelas

    que atendem a presumveis exigncias do

    mercado: temas leves e pitorescos,

    reconstituies histricas

    convencionais, registro superficial dos

    costumes e da psicologia dos

    protagonistas e completa banalidade

    estilstica. Trata-se de uma fico

    descartvel e freqentemente idiota.

    Com muita propriedade o crtico Flvio

    Kothe designou esses relatos como

    integrantes de uma nova categoria

    literria, a da narrativa trivial.