fevereiro 2010 659 problemas nacionais filesobre o brasil, porque o brasil não ... como todos sabem...

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São de responsabilidade de seus autores os conceitos emitidos nas conferências aqui publicadas. Fevereiro 2010 659 v. 55 Sumário Relações Brasil-Estados Unidos no governo Barak Obama ........................................ 3 Luiz Felipe Lampreia A contrarrevolução de 1964 ..................................... 27 Gilberto Paim Lebret: profeta ou visionário? ................................. 46 José Arthur Rios Síntese da Conjuntura O Brasil e a crise mundial ........................................ 78 Ernane Galvêas Problemas Nacionais Conferências pronunciadas nas reuniões semanais do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo

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São de responsabilidade de seus autores os conceitos emitidos nas conferências aqui publicadas.

Fevereiro2010

659v. 55

Sumário

Relações Brasil-Estados Unidos no governo Barak Obama ........................................ 3Luiz Felipe Lampreia

A contrarrevolução de 1964 ..................................... 27Gilberto Paim

Lebret: profeta ou visionário? ................................. 46José Arthur Rios

Síntese da ConjunturaO Brasil e a crise mundial ........................................ 78Ernane Galvêas

Problemas NacionaisConferências pronunciadas nas reuniões semanais do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo

Solicita-se aos assinantes comunicarem qualquer alteração de endereço.

As matérias podem ser livremente reproduzidas integral ou parcialmente, desde que citada a fonte.

A íntegra das duas últimas edições desta publicação estão disponíveis no endereço www. portaldocomercio. org. br, no link Produtos e Serviços – Publicações – Periódicos.

Publicação MensalEditor-Responsável: Gilberto PaimProjeto Gráfico: Assessoria de Comunicação/Programação VisualImpressão: Gráfica Ultraset

Carta Mensal |Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo – v. 1, n. 1 (1955) – Rio de Janeiro: CNC, 1955-

100 p. MensalISSN 0101-4315

1. Problemas Brasileiros – Periódicos. I. Confederação Nacional do Co-mércio de Bens, Serviços e Turismo. Conselho Técnico.

Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo

v. 55, n. 659, Fevereiro 2010

BrasíliaSBN Quadra 01 Bloco B no 14, 15o ao 18o andarEdifício Confederação Nacional do ComércioCEP 70041-902PABX (61) 3329-9500 | 3329-9501E-mail: cncdf@cnc. com. br

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3Car ta Mensa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 659, p. 3-26, fev. 2010

Relações Brasil-Estados Unidos no governo Barak Obama

Luiz Felipe LampreiaEmbaixador, ex-Ministro das Relações Exteriores

E u venho pensando muito no Ministro Galvêas, porque eu estava em Washington em 1982, quando do Setembro Negro,

e o Carlos Langoni, Galvêas e também Delfim Neto, frequentavam Washington em circunstâncias duríssimas, muito piores para o Brasil do que as atuais, muito mais difíceis e com muito menos munição porque o Brasil estava simplesmente quebrado. Então, eu imagino a diferença que há entre esses quase 30 anos, que passaram desde então, e a posição do Brasil como é mais robusta.

Nessa nossa conversa aqui, achei que falar sobre a relação Brasil - Es-tados Unidos no Governo Obama não ia dar para encher uma hora e por uma razão muito simples: porque o Obama não disse nada ainda sobre o Brasil, porque o Brasil não é uma prioridade para os Estados Unidos nesse momento. Como todos sabem as prioridades são as coisas que estão doendo; ou seja, o Iraque, o Afeganistão, a crise em

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si, as relações no Oriente Médio, a China. Basta ver o programa da Hillary Clinton, Secretária de Estado, para a pessoa perceber qual é a prioridade.

Então o que vou procurar fazer é uma breve digressão, talvez uns 15/20 minutos, sobre a história das relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos, para depois entrar em matéria propriamente.

Por favor, o primeiro slide.

A gente não pensa nisso, mas as relações do Brasil com os Estados Unidos começaram antes da independência na verdade, quando hou-ve o interesse em procurar sensibilizar, por parte dos inconfidentes mineiros, o governo americano para apoiar a causa da independência. Isso não prosperou naquele momento, mas, enfim, teve o seu valor. Um pouco da pedra fundamental.

Já, em 1808, quando o Brasil se torna um País com os portos aber-tos, pela chegada de Dom João VI, os Estados Unidos rapidamente ocupam o espaço. A gente sempre tem a percepção de que os in-gleses, os navios da Marinha Inglesa é que herdaram o monopólio português. Mas não é bem assim. Os Estados Unidos, já oito anos depois, em 1816, ocupava o terceiro lugar no comércio brasileiro. E a independência brasileira interessava aos Estados Unidos, porque a visão geopolítica dos Estados Unidos era uma visão anticolonial. Eles tinham saído de uma guerra contra a potência colonial, que era a Grã-Bretanha e, portanto, a independência dos países do continen-te, das suas metrópoles ou ex-metrópoles, interessava aos Estados Unidos.

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Em 1824, houve essa proposta, um tanto prematura, mas de qualquer modo reveladora também de um interesse, de uma aliança ofensiva e defensiva, feita pelo primeiro representante brasileiro nos Estados Unidos, Silvestre Rebelo. Ninguém sabe se ele fez isso da cabeça dele; talvez tenha feito, em uma empolgação lá de estar em Washington. Mas, de qualquer modo, também é um gesto significativo.

Passam-se muitos anos e em 87 já há uma proposta de uma união aduaneira entre Brasil e os Estados Unidos, que foi feita pelo pre-sidente americano Grover Cleveland, ao cônsul do Brasil em Nova York que era Salvador de Mendonça.

Outro slide, por favor.

Em meados do século XIX começa um processo que até hoje é um grande componente da visão brasileira em relação aos Estados Unidos. A visão de que os Estados Unidos tem uma cobiça sobre a Amazônia, e há, na verdade inclusive, uma coisa que a mim sempre me surpreende profundamente, que é uma preocupação educacional, militar, no Brasil, quanto à defesa da Amazônia contra uma cobiça americana. Não sei bem o que o Exército americano viria fazer inva-dindo a Amazônia; me parece uma coisa absolutamente fantasiosa. Mas há preparativos objetivos para isso de todos os lados.

E essa preocupação toda tem raiz em um fato muito concreto, que é uma proposta de ocupação, apresentada por um Tenente da Ma-rinha americana, que tinha uma função dentro do governo, não era um amador, nem um individualista, preocupação da Amazônia com apoio do governo em Washington e o apoio do seu representante no Rio que era o Ministro Trousdale. Eles fizeram, inclusive, uma

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tentativa de cooptar os governos do Peru, da Colômbia, do Equador e da Venezuela. Estávamos naquela época no início do surgimento da borracha, como um insumo industrial de grande importância, a Amazônia era considerada uma fonte de matérias-primas que não podia ser um monopólio de um só país, tinha de ser objeto de uma exploração internacional. Nesse sentido há, então, um arrendamento do Acre, por um sindicato de investidores, basicamente americanos, de Nova York, que formam o chamado Bolivian Syndicate, com ca-pitais britânicos também, ligados sempre à indústria da borracha que visavam justamente a ter uma espécie de uma reserva de produção, que fosse, na verdade, extraterritorial; que não estivesse sujeita à juris-dição soberana de ninguém e que, portanto, a Bolívia tinha aceitado alienar uma parte do seu território mediante, evidentemente, de uma compensação financeira.

Próximo slide.

Então surge aí a questão do Acre. Havia grande interesse europeu e americano no comércio de produtos de borracha e isso leva, de certo modo, à exacerbação da questão da Bolívia. Creio que todos conhe-cem isso, mas só para rememorar, um grupo importante de nordes-tinos, tangidos por uma seca particularmente severa em 1887/1888, parte para a Amazônia e, sobretudo, para o Acre, em busca de uma vida melhor e se estabelece nesse território. É um território eviden-temente remoto para a Bolívia, de difícil controle territorial. E lá se estabelece, e a partir de um certo momento já é numeroso nesse sentido. O caso vai-se deteriorando, até que Rio Branco chega ao Rio de Janeiro, para tomar posse como Ministro de Relações Exteriores, em 1902, ele encontra uma situação extremamente tensa, em que havia, inclusive, movimentação de tropas por parte da Bolívia e ele diz

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que se a Bolívia mobilizar tropas o Brasil também mobilizará. Aliás, curiosamente, uma pequena nota de pé de página: Getúlio Vargas integrava um contingente do Exército brasileiro que marchou em direção ao Acre, como uma manobra de Rio Branco, para criar uma pressão sobre a Bolívia.

Mas o Barão, que era um homem de muitos talentos e de grande visão, sabia muito bem que não interessava ir à guerra, não interessava ter o conflito, porque o conflito sempre deixaria cicatrizes fundas. Então, em primeiro lugar, comprou do Bolivian Syndicate os seus direitos. Pagou aos investidores e tirou os investidores do circuito. Com isso a Bolívia ficou sozinha na questão e o Barão pode, então, iniciar um processo de negociação, que entre endurecimento, propostas de com-pensação, oferecimento de compensações financeiras e territoriais, acabou resultando no Tratado de Petrópolis, que, pouco depois da sua posse, definiu a propriedade brasileira sobre essa área de 200 mil quilômetros quadrados, que é maior do que o Estado do Rio e vários outros estados importantes do Brasil.

A partir desse momento, Rio Branco, tendo limpado essa última questão, aqui de fronteira, do nosso entorno geográfico, inicia uma aproximação política com os Estados Unidos. Por quê? Rio Bran-co tinha passado 30 anos como Cônsul em Liverpool, na verdade morando a maior parte do tempo em Paris. Ele dizia, quando algum brasileiro conhecido o encontrava em Paris: Cheguei ontem, já vou partir amanhã para Liverpool. Não era verdade. Na verdade, morava em Paris praticamente o tempo todo, tinha lá família e tudo.

Liverpool era uma boa base, porque permitia a ele uma boa renda, era o emprego mais bem pago da República e também permitia con-dições para fazer seus estudos, de pesquisas históricas e geográficas.

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Ele, malgrado essa formação completamente europeia, sobretudo francesa e inglesa, no entanto, achou que era mais importante, do pon-to de vista do interesse brasileiro, geopolítico, ter uma aproximação com a potência emergente do mundo. Os Estados Unidos estavam, naquele momento, em um processo de crescimento e de enriqueci-mento acelerado, que viria a fazer com que o século XX fosse todo ele um século americano. Rio Branco percebeu isso muito antes dos outros e fez com os Estados Unidos uma relação de amizade forte. Visava, na realidade, muito mais a representar uma relação especial, mas, também, de certo modo um seguro contra intrigas ou dificul-dades dos vizinhos. É preciso lembrar que a Argentina era muito mais poderosa e rica do que o Brasil e que a aliança com os Estados Unidos de certo modo vacinava o Brasil contra manobras dos seus vizinhos, para criar algum tipo de desequilíbrio geopolítico contra nós.

Os americanos tinham uma política de forte intervenção, não na nossa área, mas em toda América Central, no Caribe, na própria costa norte da América do Sul, e isso era uma realidade com a qual era preciso ter em conta. Na verdade, Rio Branco abriu, então, a primeira embaixa-da no Brasil em Washington e colocou lá Joaquim Nabuco, que era muito mais, digamos, abertamente pró-americano ou alinhado com as posições americanas do que o próprio Rio Branco.

Durante a República Velha o Brasil evoluiu da posição de Rio Branco para uma posição depois de Lauro Müller e de seus sucessores. Evo-luiu de que maneira? A posição de Rio Branco não era uma posição de apoio incondicional ou de aceitação incondicional de tudo que os americanos dissessem ou quisessem. Ele dizia que a amizade com os Estados Unidos devia levar a uma marcha conjunta, sempre que possível. Era a qualificação que ele fazia. E Lauro Muller, que foi o

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seu sucessor, que era muito menor e muito menos importante do que o Barão do Rio Branco, transformou isso em um alinhamento automático. Eu acho que o Azeredo da Silveira tinha em mente o Lauro Muller quando ele falou. Não tinha só Lauro Muller, tinha Juracy Magalhães e outras figuras por aí, mais recentes. Mas, criou-se em Lauro Muller a ideia de que o Brasil devia sempre marchar com os Estados Unidos. Devia ser sempre uma espécie de procurador dos Estados Unidos na América do Sul; uma espécie de subxerife dos Estados Unidos. E a tal ponto foi, que mandou uma vez um telegrama à Embaixada em Washington para consultar o governo americano sobre uma questão, que não envolvia o Brasil, mas que era uma questão importante sul-americana, para que o Brasil pudesse tomar uma posição paralela a dos Estados Unidos. E Domício da Gama, que era o embaixador, um grande embaixador em Washington, respondeu com um telegrama lapidar em que ele diz: Julgo que não devemos pedir mais conselhos sobre a posição que devemos adotar, porque isso já vai se tornando um hábito nocivo e isso não convém aos interesses do Brasil porque pode levar a situações intoleráveis. Que eu saiba, o Lauro Müller botou a viola no saco nesse momento. Mas é um dos pontos de grande alteração. Eu diria que a relação do Brasil com os Estados Unidos, ao longo de dois séculos de vida ativa na sua diplomacia, é uma relação um tanto, como se diz hoje, bipolar. É uma relação de grande atração ou de grande repúdio. Os Estados Unidos são sempre uma espécie de um parâmetro, um norte, e o Brasil se posiciona ou muito pró-Estados Unidos ou muito contra os Estados Unidos. Até que eu diria, recentemente, nos últimos 20 anos, essa polarização se atenuou, e a relação passa a ser uma relação mais madura na medida inclusive em que o Brasil se tornou um País de inserção mais madura na realidade internacional.

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Com o período de Vargas, com a Revolução de 30, Afrânio de Melo Franco dá um enfoque maior nas relações comerciais, porque esse era o problema. Naquele momento a crise, que começou em 1929, passa a ser transcendente e não há espaço para relações de tipo político.

Mas, logo depois, à medida que foi-se firmando o regime nazista na Alemanha, o regime fascista na Itália, começam a surgir necessida-des, inclusive de política interna, para o posicionamento do governo frente a uma ou outra dessas tendências, desses blocos. O Integra-lismo, naturalmente, não era do agrado de Getúlio. Mas a ideia de um apoio econômico alemão na área militar, na área, eventualmente, de siderurgia, e, sobretudo, na área de comércio, era uma coisa que tinha a sua atração.

Quando do Estado Novo, em novembro de 1937, a decisão de Var-gas ou de Dutra foi saudada por Goebbels, em Berlim, como um fato muito importante, um grande desenvolvimento, e porque era o Ministro das Relações Exteriores da Itália, também saudou e colocou a colônia italiana à disposição de Vargas para consolidar o Estado Novo. Getúlio fez essa política. Eu não creio que Getúlio em nenhum momento tenha realmente pensado em aderir ao eixo, porque seria estapafúrdio. Não havia base para isso. O Brasil tinha uma inserção econômica, financeira, cultural, de investimento, de tecnologia, toda ela muito ocidental. Quer dizer, ocidental no sentido americano e britânico. A ideia de substituir isso por uma relação com a Alemanha e a Itália era um pouco estapafúrdia. Eu creio que Getúlio, na sua grande esperteza, agudeza de visão, imaginou, em 1940, quando Hitler invadiu a França e derrotou a França esmagadoramente, quando a Alemanha triunfava em toda a Europa Ocidental e a Inglaterra parecia que ia naufragar, não ia conseguir se manter Na guerra, e se não fosse

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por Churchill provavelmente não teria conseguido resistir, o fato é que o Getúlio foi ao couraçado São Paulo e fez o famoso discurso, saudando os povos jovens e fortes que necessitam de espaço para se expandir e se afirmar. Fez uma ode ao nazismo e fascismo, que provocou, naturalmente, grande ansiedade em Washington, mas que depois levou a um desforço entre os pró-aliados e os pró-nazistas e os pró-fascistas. Eu preciso lembrar que os pró-nazistas incluíam um ministro da Guerra e um chefe do Estado Maior do Exército. Não era pouca coisa; o General Dutra e o General Góis Monteiro eram abertamente pró-nazistas. E se conseguiu evitar isso porque, Aranha, sobretudo, que era um gigante. Eu tenho grande admiração por Osvaldo Aranha. Aranha imprimiu sempre um sentido de realis-mo, um sentido de clareza na posição, que acabou levando, inclusive, à concretização do projeto de Volta Redonda, que foi uma âncora muito importante desse posicionamento e depois a entrada brasileira na guerra como parte inclusive do V Exército Americano no teatro de operações da Itália.

Depois dessa virada e da vitória, tinha havido um enorme interesse americano tanto no chamado Trampolim da vitória, no posiciona-mento geográfico, quanto nas matérias-primas estratégicas que o Brasil tinha. Aí tem um episódio curioso que vou contar a título de anedota, praticamente, que é um episódio do Hugo Gouthier. Um diplomata sui generis digamos, que era no momento secretário; muito jovem secretário na embaixada em Washington. E havia um deter-minado pleito do governo brasileiro que os americanos não queriam atender. Não sei exatamente qual era. Tinha havido gestões, carta do ministro, carta do Aranha, carta do embaixador, gestões, ninguém conseguia atender. E o Gouthier, então, disse: Já que ninguém con-segue, eu vou tentar; me deixem ir lá. Foi lá ao Departamento de

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Estado. Chegou no Departamento de Estado e voltou triunfante e disse: Olha, eu consegui. Está resolvido. Os americanos vão apoiar essa posição que o Brasil quer. Perguntaram: o que você fez? Não, eu disse o seguinte. Que eu garantia que se os americanos não apro-vassem ia ser suspenso o fornecimento das areias monazíticas que os Estados Unidos precisam. Ele fez isso da cabeça dele mesmo, completamente. Mas era uma sensibilidade tão grande, que mesmo um fichinha de um jovem diplomata tinha que preocupar porque tinha resolvido sozinho a concessão.

O fato é que depois da guerra o Brasil tinha a convicção de que, tendo desempenhado um papel importante, tendo sido um aliado fiel dos Estados Unidos e dos Aliados em geral, que poderia ter um status especial, em termos internacionais, e em recompensa ele poderia, eventualmente, beneficiar-se aqui no nosso País de um plano de aju-da, de um plano equivalente ao Plano Marshall, que fosse um plano muito significativo de investimento, infraestrutura, industrial. Nós sabemos que houve uma chamada comissão mista, houve uma série de projetos, uma série de estudos. Mas o fato é que passado a guerra a importância do Brasil despencou para os Estados Unidos. Despencou e a importância passou a ser a confrontação com a União Soviética, que era rival na Guerra Fria, que tinha desde 1949 explodido as suas bombas atômicas, e para a Europa Ocidental, que estava completa-mente depauperada e arrasada, que precisava ser recuperada até para resistir ao avanço dos comunistas, dos soviéticos, sobre essa base.

Então, desenvolveu-se, acho, que a partir daí, aí que situo realmente o nacionalismo como uma força mais atuante, mais clara, inclusive dentro do Exército, a ideia de que o Brasil pudesse tomar uma po-sição independente dos Estados Unidos; tomar uma posição que

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fosse, inclusive, de certo modo antiamericano; em certo aspecto. Nas Forças Armadas havia, naturalmente, o grupo do Castelo, o grupo do Cordeiro de Faria, que tinha participado da Campanha na Itália, mas havia todo um outro grupo, no qual inclusive incluiria Ernesto Geisel, que tinha uma visão diferente; uma visão de pouca confian-ça e de pouca satisfação com a posição americana. Sentiram que os Estados Unidos nos relegara um plano secundário.

Década 1950. JK promove a abertura da economia. Muitos aqui vi-veram isso, participaram diretamente, e vimos como o apoio externo se tornou importante para acelerar o desenvolvimento, até que há o rompimento com o FMI que, de certo modo era para Juscelino um obstáculo ao seu programa de investimento, que era um programa na-turalmente inflacionário; o programa de Brasília também, um progra-ma inflacionário, que gerava déficits públicos importantes e, portanto, inflação em alta, e houve um enfrentamento com o Fundo Monetário que levou à ruptura. Claro que Juscelino não era um antiamericano e assim que pode, sob a inspiração de Augusto Schimidt, mas, também, de vários diplomatas como Sette Câmara, como Celso Souza e Silva e outros, lançaram, então, essa ideia da Operação Pan-Americana, que foi uma ideia brilhante. Uma ideia de que o Brasil pudesse tomar uma posição vanguardista na América Latina, para apresentar aos Estados Unidos ao pleito de novas ideias contra o relegamento da América Latina na posição secundária. Tudo isso era apresentado com essas palavras que estão aí: Luta do novo mundo, para rever suas ideias, contra ameaça do imperialismo, porque naturalmente isso fazia parte do discurso. Mas a finalidade básica era uma afinidade de alerta e de inclusão na América Latina e essa carta, esse discurso, da Operação Pan-Americana caiu muito bem e a OEA se mobilizou, os americanos acabaram também se mobilizando, embora tenham tido inicialmente

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uma reação um tanto cética, e daí houve, então, um upgrade da relação dos Estados Unidos com a América Latina, inclusive com a criação do Banco Interamericano, que foi originalmente presidido por Felipe Herrera, um grande estadista chileno, que fez um belo trabalho.

Depois surge um pouco na esteira desse movimento nacionalista, no início dos anos 1950, Jânio Quadros com a sua aproximação com os países socialistas, estabelecendo relações com a União Soviética, condecoração de Che Guevara, Iuri Gagarin, visita de Fidel Castro. Tudo isso, na época, o nosso histriônico Jânio Quadros tinha sempre esse sentido de mise en scène. Fernando Henrique conta que uma vez viu o Jânio Quadros visitando um bairro japonês, o bairro da Liberdade, em São Paulo, e que o Jânio Quadros chegou lá vestido de quimono, com um chapéu de japonês, de sacerdotes japoneses, trocando as pernas. Aquilo para todo mundo era ridículo, mas não era para os japoneses. Os japoneses acharam ótimo; ficaram encantados e vota-ram todos nele. Mas o Jânio Quadros tinha essa coisa. Ele conduziu essa política com muita intensidade. Tem uma aproximação com a Ásia e a África. Eu acho que ele se via um pouco, digamos, como o D’Artagnan dos Três Mosqueteiros, que eram os três mosqueteiros do não alinhamento, e ele se via como um quarto. Uma coisa com-pletamente fantasiosa e irreal, porque ele não tinha nenhum título para isso. A Índia, o Egito e a Iugoslávia tinham razões muito claras, geopolíticas, históricas e de todo tipo, para ter um não alinhamento. Mas ele não tinha nenhuma. Mas se inseriu aí. Isso causou um sucesso enorme, inclusive a mim mesmo. Eu tinha 18 anos de idade, era um jovem estudante, fiquei empolgadíssimo no momento, porque a mise en scène era interessante.

Depois tivemos Santiago Dantas que deu uma densidade mais nítida

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intelectualmente à política externa independente. Santiago foi um cometa que passou na história diplomática do Brasil, mas que foi um homem de grande peso, porque ele tinha uma capacidade de verba-lização, de colocação, com tanta clareza e tanta inteligência, que era capaz de dar forma a paradoxos. Ele era realmente um extraordinário homem de filosofia e de conceitualização.

Mas aí surgiram já os primeiros elementos do que viria a ser depois todo o drama do Jango Goulart, que começou com Brizola desapro-priando a famosa filial da ITT, no Rio Grande do Sul. Aí iniciou-se todo um processo de contencioso.

A partir daí, no Governo Jango Goulart, a deterioração se aprofunda e se avoluma, até que com essa polarização, em 1962, houve, clara-mente, hoje em dia é perfeitamente documentado, apoio indireto americano, e financeiramente, a candidatos anticomunistas e apoio político também.

Isso levou a 31 de março de 1964, com todas as suas implicações, que todos conhecem aqui melhor do que eu, mas o fato é que o governo americano saudou o Governo Castelo Branco com um entusiasmo muito evidente, muito claro. Era um ponto final na política externa independente.

Castelo, tendo sido camarada de armas dos americanos no teatro da guerra, sentia que era preciso vincular muito fortemente o Brasil aos Estados Unidos. Eu acho que houve aí, com Roberto Campos, com Juracy Magalhães, com o próprio Castelo, a ideia de que quanto mais amarrado o Brasil fosse aos Estados Unidos melhor seria, em termos de dívida externa, em termos de prestígio, em termos de comércio, em termos de apoio.

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E aí houve a questão da República Dominicana, em que um coronel obscuro e muito ignorante, chamado Coronel Caamaño, assumiu lá o poder, com um discurso mesmo de esquerda, nacionalista, que hoje seria considerado banal, mas que na época era uma novidade muito forte. E se organizou, então, na OEA, que era controlada comple-tamente pelos Estados Unidos, uma força de intervenção, que foi comandada pelo general brasileiro; o General Panasco Alvim. Não era uma coisa tópica; era visto como o início de um processo e se propunha, porque o anticomunismo e a questão da Guerra Fria era o pano de fundo essencial nesse momento, que houvesse uma força permanente de intervenção, chamada FIP – Força Interamericana de Paz, que era uma força de stand by, que fosse capaz de intervir nos países sempre que houvesse uma ameaça comunista. O Presidente da República e o Ministro do Exterior; o Embaixador Juracy Magalhães tinha uma posição muito favorável a isso. Seria um desastre comple-to. Teria causado uma mancha na imagem do Brasil provavelmente irreparável. Teria levado um século para... Silveira dizia sempre: Os Estados Unidos podem se dar ao luxo de errar porque eles recompram o seu erro facilmente. Tem tanto dinheiro que eles recompram. Mas se o Brasil errar muito, o Brasil está perdido. O Brasil vai demorar muito a se recuperar desse erro grave.

E, finalmente, a ideia acabou morrendo, em grande parte, porque houve uma forte resistência de países que tinham uma experiência de ser objeto de intervenções americanas, o México, por exemplo, a Colômbia, a Argentina, o Chile do Eduardo Freire, e vários outros países e o segmento brasileiro também, que era chefiado pelo Silveira, que também se opunha a isso e acabou não dando em nada.

Próximo slide.

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A partir de Costa e Silva começa a haver uma mudança clara na orientação do regime militar e da diplomacia brasileira, porque já não estavam no poder os homens que tinham combatido na Itália, já não estavam no poder nem Juracy Magalhães, nem Pio Corrêa, já não estavam no poder os homens do alinhamento automático da-quele momento e, então, iniciou-se uma nova corrente, que era uma corrente muito afirmativa e na qual o Tratado de Não Proliferação Nuclear desempenhou um papel muito importante. Houve essa articulação; era um tratado muito desequilibrado porque os países nucleares praticamente não assumiam senão intenções vagas e pie-dosas de reduzir os seus arsenais, mas os países não nucleares eram taxativamente proibidos de se tornarem nucleares a partir de um certo ponto e submetidos a uma série de salvaguardas e de condições extremamente fortes.

Isso foi, de certo modo, o ponto de inflexão da relação Brasil-Estados Unidos.

Depois teve uma série de outros atritos. Tivemos um atrito sobre o café solúvel, um atrito comercial importante. Quando o Brasil come-çou a fazer o café solúvel, exportar o café não mais em grão, mas o solúvel; houve um contingenciamento de têxteis brasileiros; houve uma reação americana à maior participação da Marinha Mercante brasileira nos fretes bilaterais e houve todo um conflito em torno da cota que caberia ao Brasil na redistribuição daquilo que era cota cubana antes do embargo.

Portanto, a partir de fins da década de 1960 e início da década de 1970, começa a se avolumar todo um contencioso que acaba, inclusive, desembocando na questão do mar territorial das 200 milhas, que foi

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um ponto também muito importante. Os Estados Unidos fizeram tudo para impedir que o Brasil adotasse essa linha, mas o Brasil, assim como o Uruguai e a Argentina antes já tinham feito, acabou adotando o mar territorial de 200 milhas e isso representou uma espécie de dobrar a parada em relação ao TNP e as condições anteriores.

O Presidente Geisel, de certo modo, tinha uma postura no íntimo antiamericana; ele, naturalmente, não colocava isso explicitamente, mas se sentia que tinha uma resistência a uma relação mais forte com os Estados Unidos e via muito mais a Europa como um parceiro privilegiado do Brasil. Isso acabou levando, especialmente durante o Governo Carter, ao período talvez de maior tensão, quando depois do acordo nuclear com a Alemanha, de 1975, os Estados Unidos fizeram fortíssimas pressões para que o Brasil abandonasse o acordo nuclear e também fizeram pressões a respeito de direitos humanos, que eram frontalmente contrários à plataforma de Carter. O Memorando do Entendimento tinha sido assinado por Kissinger e Silveira, em 1974, era um tapa na cara do povo americano, por ser o Brasil uma dita-dura, que violava os direitos humanos e que estava optando por um caminho nuclear. Mas, essa confrontação, na verdade, acabou não durando muito, porque já em meados de 1978, na verdade em fins de 1978, os americanos começam a se dar conta que o próximo governo brasileiro, que ia começar meses após, o Governo Figueiredo, já não tinha a mesma orientação e ia promover uma abertura significativa, uma abertura política, então eles não insistiram. Na verdade o período de tensão Brasil-Estados Unidos, a tensão mais aguda que houve nos últimos 50 anos talvez, foi justamente superada um pouco mais de um ano depois de ter iniciado o Governo Carter.

Na década de 1980, a nossa famosa década perdida, os Estados Unidos tiveram, em relação ao Brasil, uma postura que o Presidente

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Sarney se ressentia muito, porque o Presidente Sarney achava que o Brasil não tinha merecido nenhum apoio americano, nenhuma sim-patia americana, nos seus tormentos da dívida externa. Não sei se o Ministro Ernesto Galvêas confirma essa avaliação, mas o Sarney dizia muito isso. E dizia também que, na verdade, os Estados Unidos tinham sido muito severos com o Brasil quando houve a questão da Lei da Informática. A Lei da Informática representou reserva de mercado, que os Estados Unidos consideraram inaceitável e acabou levando a uma retaliação pelo tri-deck para os produtos de papel, que foram retaliados com tarifas muito elevadas, no valor total de cerca de US$ 200 milhões.

Com Collor inicia-se uma fase diferente, porque ele faz a abertura comercial, fecha o buraco da Serra do Cachimbo, enfim, toma uma série de atitudes em relação ao meio ambiente, como, por exemplo, a Conferência do Rio, Eco/92, e o próprio presidente, o velho, o pai, George Bush, me disse uma vez que tinha ficado muito impressionado com o Collor no começo, quando o Collor pela primeira vez tinha ido a Washington e tinha achado que o Collor era o Indiana Jones. Disse, depois eu mudei de ideia, achei que não era tão Indiana Jones assim.

Depois o governo Collor perdeu muita credibilidade pelas razões que todos sabemos.

Fernando Henrique. A nossa preocupação básica era acabar com al-gumas ambiguidades que existiam, que não tinham, na verdade, nem maior relevância, nem maior interesse para o Brasil. Eram rivalidades, eram questões, que derivavam muito mais de um projeto do regime militar, que era um projeto que se dotasse de uma capacidade nuclear e de uma capacidade em termos de mísseis. Ora, a Constituição de

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1988, as Constituições do Brasil em relação aos acordos regionais de nuclearização, os entendimentos com a Argentina, todos esses tinham tornado essas posições um tanto caducas. De maneira que nós evoluímos para terminar com os rabos que haviam, os conten-ciosos que ainda existiam, e o principal deles era na área de mísseis. O Brasil tinha um programa espacial, conduzido por alguns colegas do Brigadeiro Gandra, que não vou citar aqui os nomes, mas que ele certamente conhece, que tinha uma postura, digamos, ambígua, em relação à tecnologia de mísseis e essa situação não só se refletia sobre a área militar, mas também sobre toda a área em geral, porque prejudicava a compra pela Petrobras de supercomputadores, transfe-rência de tecnologia em outras áreas e tudo mais. Tudo isso é muito interligado, tecnologicamente difícil de entender. O fato é que, nos primeiros seis meses o Brasil aderiu a um regime internacional de controle e tecnologia de mísseis, que é o padrão internacional de comportamento nessa área. O Brasil não tem nenhum motivo, isso tem sido um ponto central da minha carreira, do meu pensamento, da minha luta inclusive, não tem nenhum motivo para se tornar uma potência militar nuclear, nem com bomba atômica, nem com mísseis para projetar essa bomba atômica sobre os outros. Nós não temos rivais, não temos casos bélicos na nossa região, não temos nada que nos ameace, não tem nenhum imperativo de segurança e não temos necessidade e temos muitas outras prioridades aonde gastar o nosso dinheiro do que em projetos desse tipo.

Mas o fato é que assinamos também o Tratado de Não Proliferação e a relação com os Estados Unidos acabou sendo uma relação muito positiva porque Clinton tinha uma visão muito construtiva do Brasil. Ele sabia, perfeitamente, que o Brasil não podia ser um aliado con-dicional dos Estados Unidos e nem os Estados Unidos nunca nos

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pediram, durante os oito anos de Fernando Henrique, nada que fosse constrangedor para nós, ao contrário.

Mas, houve um momento em que essa boa relação com os Estados Unidos foi decisiva, que foi no momento da grande crise, da desva-lorização do real, em que o Brasil esteve certamente a perigo. Tinha reservas muito pequenas, em princípios de 1999, estava em uma situação muito complicada e o Tesouro americano, por instrução do Clinton e com participação forte do Secretário do Tesouro Robert Rubin e Larry Summers, emprestaram ao Brasil naquele momen-to US$ 70 bilhões, que foi o que fez a diferença e permitiu que o Brasil atravessasse sem um percalço maior aquele momento muito complexo.

Com George Bush segundo, houve, inicialmente, um discurso de muito interesse pela América Latina, que acabou não dando em nada, porque a partir do “11 de Setembro” houve uma reviravolta com-pleta nas prioridades americanas e a América Latina ficou chupando o dedo, em bom português. Todas as promessas que tinham sido feitas e apoio ao México para o combate contra a droga, de acordo comercial com a Colômbia, de abertura para o etanol brasileiro; todas as possibilidades acabaram sendo defraudadas e o governo Bush foi particularmente estéril.

Felizmente, e eu digo isso sem nenhuma dificuldade, o Presidente Lula não permitiu que alguns de seus colaboradores, talvez mais ideológicos do que ele, botassem veneno na relação com os Estados Unidos e essa relação manteve-se em um plano razoável, em um plano positivo, construtivo, de modo geral, malgrado, talvez, à vontade de algumas pessoas do círculo decisório da política externa.

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Eu não creio que se possa ainda, nesse momento, fazer uma espe-culação inteligente ou válida sobre as relações, a não ser no plano geral, no plano perfeitamente conhecido, de que vão se manter boas relações, precisa haver boa comunicação e bom diálogo, mas no que vai consistir, efetivamente, esse novo relacionamento, ainda não se sabe. E não se sabe basicamente porque há duas circunstâncias que são decisivas e dramáticas para Barack Obama, que, em primeiro lugar, a questão da crise, o equacionamento da crise, que é a crise mais séria, como todo mundo sabe, que os Estados Unidos já estão vivendo desde a década de 1930; talvez no Brasil não se tenha a noção, a não ser lendo os jornais, vendo os números, mas a noção humana, a visão pessoal, dramática da crise, talvez não se tenha, mas ela é muito profunda; milhões de pessoas perdendo suas casas, milhões de pessoas insolventes, perdendo seus empregos; milhões, não é uma pequena quantidade, em todos os lugares; milhões de em-presas fechando; enfim, sistema bancário americano completamente fragilizado, sempre à beira de um colapso e vários de seus principais bancos, inclusive o Citibank e o Bank of América, e isso naturalmente constitui uma prioridade, que tem sido evidenciada na atuação do presidente Obama. É claro que do êxito ou não do seu programa, da sua tentativa de reerguer os Estados Unidos, dependerá a política externa americana. Mas há um segundo componente, que não pode esperar, que é o componente, já em curso no momento, do Iraque, do Afeganistão e do Oriente Médio e também da China, da Ásia e de um modo geral. São os desafios prementes. América Latina não entra nesse radar. Talvez o México esteja entrando. Sempre para entrar no radar americano tem de ser por uma má razão. Geralmente é melhor ficar fora do radar americano, porque para entrar nesse radar, é o que uma vez o Mickey Cantury(??) me disse: Você entra no nosso radar quando a roda do automóvel é que está girando solto, porque está

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fazendo barulho. A roda que está fazendo barulho é que eu tenho que dar atenção no momento. E na medida em que nós não estamos fazendo barulho, creio que o problema é menos agudo. Há o caso do México, que a meu ver é o único sério nesse momento. Ele já começa a ser descrito por alguns, nos Estados Unidos, como o caso de um estado, failed state, um “estado fracassado”, porque a guerra contra o narcotráfico, que o Presidente Calderón resolveu declarar, com toda intensidade, está correndo mal, como dizem os portugueses. Já morreram mais de mil pessoas e há zonas no norte, sobretudo, que são praticamente zonas em que o estado mexicano, através de suas forças militares e policiais, tem dificuldade de atuar. Então há uma proposta já, e o próprio Secretário da Defesa já falou sobre esse assunto, de uma retomada do apoio ao México nessa área, porque a Iniciativa de Mérida, assim chamada, tinha sido um grande plano de dois bilhões de dólares de apoio, que os Estados Unidos iam dar, e que na verdade acabou virando um programa de poucas centenas de milhões de dólares e mesmo assim cheio de condicionalidades e de nós e de dúvidas sobre a capacidade do governo mexicano de agir conforme os padrões que o Congresso americano impôs, embora o governo mexicano tenha se disposto a fazer uma coisa que nunca tinha feito antes, que era aceitar que esse problema fosse objeto de ajuda americana. Nunca o México tinha aceito isso anteriormente.

Quanto ao continente em geral, eu diria que não creio que haja muita substância mais na ideia dos acordos regionais. Eu acho que os acor-dos regionais, acordos bilaterais, como o da Colômbia, do Peru, os da América Central, acho que são um instrumento que já caducou de certo modo; que não tem muito clima mais no Congresso americano, que é dominado pelo Partido Democrata, governo Democrata; não creio que haja mais esse horizonte.

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E o que haverá então? Uma abertura na área agrícola? Obama anunciou, quando fez o seu discurso do Orçamento no dia seguinte, disse que achava que deviam se cortar alguns subsídios à produção agrícola. Mas ele não estava questionando, a coisa foi anunciada de uma maneira um tanto imprecisa, e são assuntos muito técnicos e complicados, mas não estava se referindo ao conjunto da política agrícola americana incorporada no chamado Farm Bill, que é um programa do Congresso americano que a cada quatro anos é votado e que se beneficia de um apoio monumental no Congresso; 95% do Congresso apoia isso, porque é um programa todo cheio de pendu-ricalhos. É como as nossas emendas parlamentares. Tem emenda parlamentar que não acaba mais. É uma árvore de natal. E duvido que haja a menor perspectiva do governo americano revogar o Farm Bill. O que ele estava falando era de alguns excessos, alguns setores específicos, algumas coisas, que vai diminuir, para fazer economia no orçamento e tem de fazer economia mesmo em um momento desses. É claro que vai haver uma pressão para rever os excessos, porque o déficit público americano está se tornando tão gigantesco, que vai ser necessário ter mais racionalidade no uso do dinheiro público nessas questões. Acho que há alguma possibilidade de avanço. Mas ninguém se iluda de que vão abrir as portas do paraíso, de repente nós vamos começar a exportar soja, carne, açúcar e tudo mais para os Estados Unidos, que não vai ser assim. Esse lobby é um lobby feroz e muito grande. Acho que a própria questão da Rodada Doha, que é impor-tante para nós, vai ser, em algum momento, acho que também parte do interesse do governo Obama, mas também não imediatamente, porque no momento não há condições, no meio de uma crise dessa gravidade, com todo mundo quebrando, as empresas quebrando, ninguém quer falar em liberalizar nada. Quer dizer, o máximo que a pessoa diz de positivo é: Está bem. Não vou fazer novas medidas protecionistas. É o limite que se pode esperar.

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Eu creio que, e aí talvez seja a melhor perspectiva, concluiria com isso, se houver um resultado positivo do programa do governo americano e, no final desse ano ou meados do ano que vem, as expectativas começarem a ser revestidas e as tendências começarem a melhorar, para que em algum momento, no final de 2010, que talvez seja pos-sível os Estados Unidos recuperarem o seu vigor econômico e sua autoconfiança e o Brasil passe dessa crise em condições positivas, condições boas, eu acho que assim haverá perspectiva de um upgrade no diálogo bilateral, porque Obama, creio que ao contrário de George Bush, se dá perfeitamente conta de que os Estados Unidos já não podem mais fazer tudo sozinhos; não podem pretender ter uma fatia tão grande do poder mundial, que lhes autorize invadir o Iraque, a mandar missões, a tomar atitudes prepotentes, atitudes desse gênero, e que é necessário atuar em concertação com alguns países. Eu acho que eles vão tentar trabalhar com a ONU. Eu tenho bastante ceticis-mo em relação a ONU, devo confessar. Desde jovem, que servi lá, vi aquilo de bem perto e sei como é que é. Não faço muito fé. Eu acho que a ONU é muito travada e bloqueada pelos conflitos do poder que existem lá dentro e pelos seus vícios estruturais também. Mas acredito que haja novas formas de concertação que possam surgir. No momento está tudo de pernas para o ar. G8 não existe. Nada disso existe. Nessa grande turbulência, nesse grande terremoto, que estamos vivendo hoje, é possível que surja um novo arranjo institu-cional, novas formas de compartilhamento de poder, de atuação, e se o Brasil continuar relativamente bem nesse quadro, creio que o Brasil pode perfeitamente aspirar a uma promoção significativa no concerto internacional e, portanto, a seu interlocutor mais importante, de mais peso, de mais poder de convocatória dos Estados Unidos.

Mas, hoje, infelizmente, afora essas considerações gerais e essas es-

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peculações, que estou aqui fazendo, não há muito que se possa dizer, porque a realidade econômica mundial é de tal modo premente que ela mascara ou impede qualquer consideração séria sobre o futuro. Muito obrigado.

Palestra pronunciada em 31 de março de 2009

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Sr. Presidente: Permita-me esclarecer que a intenção desta palestra consiste em colocar em debate a perda da memória dos aconte-

cimentos que precederam o 31 de março de 1964. Persiste o veto a qualquer referência favorável à derrubada do Governo João Goulart. A circunstância de que os derrotados de 1964 estejam em condições de influenciar tantos atos na área oficial (atletas cubanos expulsos do país em avião de Hugo Chavez e a defesa organizada do criminoso Cesare Battisti) é reveladora de uma pronunciada tendência para o esquerdismo. Na universidade, na imprensa, nas editoras, na publici-dade, na internet e em várias áreas da vida social brasileira exalta-se a importância das “reformas de base” do Governo João Goulart, cuja execução teria sido impedida pelo golpe de Estado. Tais reformas entram na história como uma grande fraude.

Gilberto PaimJornalista

A contrarrevolução de 1964

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Passo ao texto da palestra, intitulada “A Contrarrevolução de 64”.

Inicio citando, textualmente, uma bravata brizolista:

“O Grupo dos Onze representa a vanguarda

avançada do Movimento Revolucionário,

a exemplo da Guarda Vermelha da Revolução Socialista de 1917

na União Soviética”, proclamou Leonel Brizola,

em outubro de 1963, ao criar essa organização revolucionária.

Da população total hoje existente, 110 milhões de brasileiros não respiraram a atmosfera dos anos que precederam o movimento de 31 de março de 1964, quando foi derrubado o Presidente João Goulart. Para essa grande massa de patrícios o acontecimento histórico, um divisor de águas, há de parecer remoto ou inexistente. Não será difícil aos formadores de opinião, esquerdistas, anticapitalistas e antiameri-canos desenvolver esforços para convencer os desprevenidos de que essa data serve apenas de referência a uma quartelada.

A derrubada do Presidente Goulart e de seu grupo de agitadores políticos ofereceu à sociedade a oportunidade de uma descontração, de um alívio profundo, que só pode ser avaliado pelos que viveram aqueles anos tumultuosos. Na área política, predominavam tensões crescentes. Em todas as regiões metropolitanas as greves, distúrbios, arruaças e tumultos faziam parte da vida cotidiana, perturbando a tranquilidade pública de modo incessante. À medida que avançava o ano de 1963, intensificava-se a fuga de capitais. Na onda de de-sespero, muitos vendiam suas propriedades a qualquer preço, pois a

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escalada de teor esquerdista, fomentada pela Presidência da República, conduzia à crença de que parecia fatal a instauração de um governo comunista. Luiz Carlos Prestes dizia que os comunistas estavam no governo, mas ainda não no poder.

Como os derrotados ganharam o prêmio de uma aplicação de alto rendimento, recebido sob a forma de bilhões de reais em indeni-zações, a ascensão do esquerdismo político, nos últimos decênios, criou condições em que se tornou fácil denegrir a contrarrevolução de 1964, como se tivesse sido um golpe de Estado de estilo latino-americano. Mais de cem milhões de brasileiros ignoram que a Nação esteve à beira de uma revolução comunista, à moda de Cuba. Essa grande massa de patrícios não se cansa de ouvir elogios ao Governo João Goulart, “impedido pelo golpe” de executar o seu projeto de reformas de base, que era uma palavra de ordem inteiramente vazia. Tudo o que se imaginava como reforma era contra o desenvolvimento socioeconômico. Propunha-se, por exemplo, que o capital estrangeiro ficasse proibido de operar em energia elétrica, frigoríficos, indústria farmacêutica, refinação de petróleo, telefonia e outros setores. Medida dessa natureza deixaria a economia nacional à margem da comunidade financeira internacional e a colocaria no campo soviético. O Brasil viria a ser mais um satélite de Moscou. Aberração maior foi o decreto do Presidente Goulart desapropriando terras, 20 quilômetros ao lon-go de rodovias, ferrovias, açudes e rios navegáveis, uma precondição das fazendas coletivas. Entre as palavras de ordem do esquerdismo ganhava destaque a que propunha que o proprietário de duas casas ou dois apartamentos deveria ceder um aos sem teto. Providências insensatas eram anunciadas quase diariamente, nos últimos meses do Governo Goulart, inclusive o aluguel de casas e apartamentos fixado pelo governo e o preço uniforme dos remédios em todas as farmácias.

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O carro-chefe era um amplo programa de estatização. A parte política das reformas abrangia o direito de voto para analfabetos, sargentos e patentes inferiores, origem de estremecimento nas Forças Armadas.

A imprensa refletia o clima de desordem. O matutino Correio da Manhã, jornal de grande prestígio na época, proclamava no dia 31 de março: “Basta!” e no dia seguinte declarava “Fora” ao Governo João Goulart, que havia perdido a confiança dos representantes da sociedade organizada. Na verdade, o presidente se tornara joguete das forças radicais de esquerda, as quais se empenharam em fomen-tar um desafio constante às Forças Armadas, alimentando ilusão em um suposto “Dispositivo” do General Assis Brasil, Chefe da Casa Militar e Secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional. Pos-teriormente, o general declarou: “O dispositivo militar, que dizem que eu montei, nunca existiu.” Propagava-se a informação de que o general comandava a parte “progressista” do Exército, a qual seria capaz de neutralizar as Forças Armadas e de facilitar a tomada do poder pelos extremistas de esquerda. Não demoraram os fatos para provar, de forma categórica, que as forças sob o comando de Jango não passavam de agitadores incapazes de enfrentar um simples em-bate. O famoso “dispositivo” era pura invenção.

Em certo momento, houve uma aparente disputa entre Jango e seu cunhado Brizola para ver qual dos dois estava mais à esquerda. As agitações de operários, estudantes e líderes de trabalhadores rurais deixaram o Presidente da República convencido de que as forças de esquerda podiam lhe assegurar a vitória final, no confronto com os adversários liberais e conservadores.

Demonstrando visível prudência, o Governador Magalhães Pinto

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advertia: “Dois grandes males põem em risco a paz e a liberdade de nossa pátria na conjuntura atual. São eles a inflação financeira e o radicalismo político. O medo de perder gera a mesma fúria agressiva que a cobiça de ganhar. Em breve, se não houver possibilidade de uma solução equilibrada, o destino da maioria dos brasileiros estará à mercê dos grupos extremistas minoritários que se atiram à ação direta, para a resolução ou para o golpe de Estado.”

Os fatos se encarregaram de provar que esse receio tinha sério fundamento. Em março de 1963, uma passeata de militares, em São Paulo, demonstrava a escalda do esquerdismo, definindo o conteúdo político do movimento. Consistia o objetivo do desfile na posse de alguns sargentos eleitos no pleito de 3 de outubro de 1962. Militares da Aeronáutica e da Força Pública compareceram fardados à pas-seata, seguida de solenidade, na qual sentaram-se à mesa diretora os comunistas Geraldo Rodrigues dos Santos, Mario Schemberg, Luiz Tenõrio de Lima, Oswaldo Lourenço e o general reformado Gonzaga Leite, um dos organizadores do Congresso Continental de Solidariedade a Cuba.

As manifestações realizadas em defesa dos militares de baixa patente, cujas reivindicações repercutiam em todo o País, ganharam ímpeto quando o Sargento-Deputado Garcia Filho afirmou, em Fortaleza, que, se não houvesse uma decisão favorável à posse dos sargentos eleitos, a Justiça Eleitoral seria “fechada”. Garcia pregou o enfor-camento dos responsáveis pela tirania dos poderes econômicos e rotulou a instituição militar de nazista.

Entre os acontecimentos que tornaram denso o clima político, no ano de 1963, não se pode subestimar o efeito causado pelas comemorações

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do aniversário do General Osvino Ferreira Alves, Comandante do III Exército, em Porto Alegre, onde cerca de 800 subtenentes e sargentos se reuniram, em julho, para homenageá-lo. O ato teve significação particular. O general se distinguira como um dos ardorosos defensores da restauração do presidencialismo, contra o parlamentarismo, vigente no ano de 1962, um fator restritivo à ação do Presidente Goulart. Osvino representava um dos esteios do janguismo.

Em setembro de 1963, Brasília se tornou palco de um fato político de gravidade, quando sargentos da Marinha e da Força Aérea, sob o comando do Sargento da FAB Antonio Prestes de Paula, se apossaram do Ministério da Marinha, da Base Aérea, da Área Alfa (da Companhia de Fuzileiros Navais), do Aeroporto Civil, da Estação Rodoviária e da Rádio Nacional. Os revoltosos prenderam um Ministro do Supremo Tribunal Federal e o Presidente da Câmara Federal. Durante a tarde, o movimento estava dominado com a prisão dos rebelados. Carros blindados do Exército ocuparam pontos estratégicos de Brasília e se dirigiram ao Ministério da Marinha, onde os rebeldes se entregaram. Alguns marinheiros sairam feridos. Houve dois mortos, o soldado fuzileiro Divino Dias dos Anjos, rebelde, e o motorista civil Fran-cisco Moraes.

A imprensa denunciava como insuportável a agitação social que descambava para um estado de desordem, o qual interessava, visivel-mente, à Presidência da República, como exigência da implantação das “reformas de base”. A denúncia da agitação era a tônica dos editoriais dos Diários Associados, do Estado de S. Paulo, do Jornal do Brasil, da Tribuna da Imprensa e do O Globo. Empresários e intelec-tuais se reuniam em associações civis para advertir a sociedade dos perigos que se avolumavam e combater a infiltração comunista, que

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pregava a revolução social e a estatização da economia. Estava em plena atividade o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), ao lado do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), o qual se empenhava no combate aberto à infiltração comunista. A CAMDE reunia as esposas de militares, funcionários públicos e dirigentes sin-dicais contra a desordem. Foi também criado o Movimento Sindical Democrático, para atuar no campo. Era muito ativo em Pernambuco o Serviço de Orientação Rural.

Em oposição ao movimento democrático, eram numerosas as enti-dades que compunham a frente de agitação esquerdista, inclusive o Comando Geral dos Trabalhadores, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria, a Confederação Nacional dos Trabalha-dores na Agricultura, o Comando dos Trabalhadores Intelectuais e a Frente Parlamentar Nacionalista. Ao mesmo tempo desenvolviam intensa atividade a União Nacional de Estudantes, cujo Centro Popular de Cultura agia em todo País; O Movimento de Educação de Base, a Ação Popular e o próprio Ministério da Educação, por intermédio da Comissão de Cultura Popular, que influía na conduta das Secretarias de Educação dos Estados.

Ganhou importância, nessa atmosfera pré-revolucionária, o docu-mento que o General Castelo Branco, Chefe do Estado Maior do Exército, encaminhou ao Ministro da Guerra, salientando a neces-sidade de providências sobre a “ação ilegal, inclusive subversiva, do Comando Geral dos Trabalhadores, a agitação insurrecional pro-movida pelo Deputado Leonel Brizola, e a conexão de atividades de políticos com o motim de Brasília”. Na mesma ocasião o general se manifestou contrário ao Estado de Sítio pleiteado por João Goulart, para implantação das “reformas de base”.

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O encadeamento dos fatos demonstra a marcha acelerada do esquer-dismo para a tomada do poder. Assinalemos algumas datas:

5 de julho de 1961 – Durante a greve geral de 5 de julho foi criado o Comando Geral dos Trabalhadores, (CGT). As lideranças sindicais criaram o Comando Geral de Greves, (CGG), para coordenar o movimento grevista.

25 de Setembro de 1962 – É fundada a Frente de Libertação Nacional, tendo Leonel Brizola como presidente e Mauro Borges, governador de Goiás, como secretário-geral.

2 de julho de 1962 – Auro de Moura Andrade é indicado para primeiro ministro e enfrenta reação das organizações sindicais que decretam greve geral contra sua posse, afetando principalmente o Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre, Santos e Fortaleza.

Agosto de 1962 – Os ministros militares lançam manifesto pedindo antecipação do plebiscito sobre o fim do regime parlamentarista e a restauração do presidencialismo. O primeiro Ministro Brochado da Rocha defende essa posição em discurso na Câmara

15 de outubro de 1962 – O Comando Geral dos Trabalhadores de-flagra greve geral com a finalidade de exigir do Congresso a fixação da data do plebiscito. O Congresso aprova Lei Complementar nº 2 que estabelece a realização do plebiscito em 6 de janeiro de 1963.

6 de janeiro de 1963 – Realização do plebiscito. O presidencialismo venceu por ampla margem: 9,5 milhões contra 2 milhões. João Goulart é o grande vencedor.

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24 de janeiro de 1963 – Tomou posse o primeiro ministério presidencialista.

De 28 a 30 de março, realizou-se em Niterói, na sede do Sindicato dos Operários Navais, um Congresso Continental de Solidariedade a Cuba, com a participação de delegações latino-americanas. Luiz Carlos Prestes foi um dos oradores. Manifestou o desejo de que o Brasil fosse a primeira nação da América do Sul a seguir o exemplo de Cuba.

5 de maio de 1963 – Leonel Brizola discursa em Natal, fazendo acusa-ções ao General Antonio Carlos Muricy, a quem chama de “gorila” e “golpista”. Seguem-se manifestações de militares apoiando o general.

12 de maio de 1963 – Sob o comando do Subtenente Gelci Rodrigues Correia, mais de mil suboficiais, sargentos e cabos se reúnem no au-ditório antigo do IAPC, no Rio, para defender a elegibibilidade dos graduados. Gelci refere-se também à possibilidade de os graduados lançarem mão de “seus instrumentos de trabalho” (as armas) para exigir do Governo Federal as reformas de base.

O Ministro da Guerra, Amauri Kruel, determina a detenção do subtenente Gelci por 30 dias.

15 de junho de 1963 – João Goulart muda pela quarta vez o seu ministério. Os ministros do Exército, da Aeronáutica e da Marinha são substituídos.

23 de setembro de 1963 – A Frente Parlamentar Nacionalista e a União Nacional de Estudantes defendem a elegibilidade dos sargentos e condenam declarações do General Peri Bevilacqua, que criticou a

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revolta dos sargentos e a solidariedade sindical a esse movimento. O general, que havia apoiado a posse de Goulart e a realização do plebiscito, atribuiu ao Comando Geral dos Trabalhadores, ao Pacto de Unidade e Ação e ao Fórum Sindical de Debates a responsabilidade pela insurreição dos sargentos, tachando a cúpula do movimento sindical de “aglomerados de malfeitores sindicais”.

4 de outubro de 1963 – Goulart envia mensagem ao Congresso solici-tando a decretação de Estado de Sítio por 30 dias. Mas sofre derrota.

6 de outubro – Tropas do IV Exército, por ordem do seu comandante, o General Justino Alves Bastos, ocupam Recife para conter 30 mil manifestantes camponeses nas proximidades do palácio do Governo Estadual. O Governador Miguel Arrais apoia a manifestação.

Outubro de 1963 – Brizola organiza o “Grupo dos Onze Compa-nheiros”. Seu objetivo era tomar o poder pela luta armada. Segundo Brizola, o G-11 seria a “vanguarda avançada do Movimento Revolu-cionário, a exemplo da Guarda Vermelha da Revolução Socialista de 1917 na União Soviética”. Brizola chegou a lançar um boletim, inti-tulado O Panfleto, cujo objetivo era literalmente fomentar distúrbios.

A Nação estava na expectativa de uma grande concentração popular anunciada pelas lideranças de esquerda para o dia 13 de março de 1964. Prepararam o grande ato o Comando Geral dos Trabalhadores, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria, a Confe-deração Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, o Comando dos Trabalhadores Intelectuais, a União Nacional de Estudantes, a Frente Parlamentar Nacionalista e conhecidos dirigentes de esquerda. Nos comunicados à opinião pública, declararam essas organizações que o

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objetivo era demonstrar a exigência das reformas, as quais deveriam entrar em vigor ainda no ano de 1964. Outro objetivo era a defesa das liberdades democráticas e sindicais, exigindo-se a extensão do direito de voto aos soldados, marinheiros e cabos, assim como a elegibilidade para todos os eleitores e a necessidade de imediata anistia a todos os civis e militares indiciados e processados por crimes políticos e pelo exercício de atividades sindicais.

Era grande a efervescência no momento em que se realizava o comí-cio de 13 de março de 1964, na Praça da República, vizinhanças do Quartel-General do Exército e da Central do Brasil. Nessa concen-tração, a que compareceram Goulart e sua esposa, Maria Teresa, ao lado de vários ministros de seu governo, deputados e líderes sindicais. Ficou demonstrado que o presidente não era o ponto de equilíbrio, lembrado por Magalhães Pinto, capaz de evitar a destruição das ins-tituições democráticas. Animado pelos aplausos da multidão, Goulart decreta a encampação das refinarias de petróleo privadas e autoriza a expropriação de terras, 20 quilômetros à beira de rodovias, ferrovias, rios navegáveis e açudes.

O matutino O Estado de S. Paulo, no dia 14 de março, um dia depois do grande comício da Central do Brasil, em que o Presidente Goulart fez pronunciamentos tipicamente de esquerda, escreveu: “Depois do que se passou naquela praça, após a leitura dos decretos presidenciais que violam a lei, não tem mais sentido falar-se em legalidade demo-crática, como coisa existente.”

A agitação no comício foi o sinal de que as forças de esquerda mar-chavam para a tomada do poder. Essa concentração não foi um ato isolado, comícios semelhantes foram à mesma hora realizados em

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Porto Alegre, Recife, Belo Horizonte e São Paulo, para veiculação de orações de teor sindical-esquerdista. No Rio, participavam da comissão organizadora do comício o radical Oswaldo Pacheco da Silva, Presidente da Federação Nacional dos Estivadores e represen-tante do Comando Geral dos Trabalhadores e do Pacto de Unidade e Ação; o deputado comunista Hércules Corrêa dos Reis, secretário da Comissão Permanente das Organizações Sindicais, e o Deputado José Talarico, Secretário do PTB na Guanabara e assessor de Goulart nas atividades sindicais.

No dia 19 de março, mulheres paulistas lideraram a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, um movimento que envolveu centenas de milhares de pessoas, traduzindo a inquietação generali-zada dos brasileiros. No dia seguinte, O Globo comentou: “Sirva o acontecimento para mostrar aos que pensam em desviar o Brasil de seu caminho normal, apresentando-lhe soluções contrárias ao ideal democrático e ensejando a tomada do poder pelos comunistas, que o povo brasileiro jamais concordará em perder a liberdade, nem assistirá de braços cruzados ao sacrifício das instituições.”

O grevismo era o principal instrumento de agitação política. Na área de Santos, o ano de 1963 registrou em média de três a quatro greves por mês. Houve durante o ano duas greves gerais. Junho e agosto viveram os meses mais agitados, em uma sucessão de paralisações de trabalhadores do Porto, de hospitais, funcionários públicos e até de juízes de futebol. O clima era de greve onde quer que houvesse trabalho sindicalizado. Houve momentos em que se tornou necessária a presença de tropas federais para assegurar a ordem na faixa portuária e na área da refinaria de petróleo e do oleoduto.

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As greves gerais foram decretadas pelo Fórum Sindical de Debates, que contava com o apoio de 40 sindicatos e associações de traba-lhadores. Durante todo o ano de 1963 e primeiros meses de 1964, a baixada santista viveu momentos de grande tensão, causada pelo grevismo e as agitações de rua. Qualquer pretexto servia para se proclamar uma greve. No dia 24 de fevereiro de 1964, foi declarada greve que parou totalmente o porto de Santos depois de um incidente entre um vigilante das Docas e um Delegado da Polícia Marítima.

Maior e mais intensa foi a inquietação social causada pelo grevismo no Estado da Guanabara, onde, nos anos de 1962 a 1964, foram declaradas 176 greves, abrangendo em grande parte empresas pri-vadas, mas também as governamentais, que eram mais tolerantes com o paredismo. Na capital da República, fonte de informação disseminada a todo o País, a população carioca e da periferia esteve dominada por tensão generalizada e viveu mais de perto a ameaça da implantação do regime comunista. Em 1963 houve 76 greves no Rio e 38 nos primeiros meses de 1964, segundo o pesquisador Mar-celo Badaró Matos, na Revista Brasileira de História, vol. 24/2004, São Paulo. Segundo esse autor, as greves por aumentos salariais estavam sempre impregnadas de motivação política. Greves e mais greves se sucediam. Bancos, escolas, hospitais, serviços públicos, transportes, tudo estava sujeito a paralisação. Os habitantes da metrópole eram quase diariamente vítimas de greves que perturbavam a vida da cidade.

O Rio viveu os momentos mais intensos da desordem. No dia 25 de março de 1964, houve o motim dos marinheiros, precedido de uma assembleia de mais de dois mil militares de baixa patente, realizada no Sindicato dos Metalúrgicos. Esse numeroso grupo, onde predo-minavam marinheiros e taifeiros, exigia melhores condições de exis-

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tência, extensivas aos militares de outras Armas, e declaravam apoio às “reformas de base”, anunciadas por João Goulart. Exigia, também, a suspensão de medidas disciplinares impostas aos diretores da As-sociação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, entidade que funcionava à revelia do regulamento da Marinha. O então Ministro da Marinha, Almirante Silvio Mota, ordenou que fossem presos os líderes dos amotinados, enviando destacamento dos fuzileiros navais, sob o Comando do Almirante Candido Aragão. No entanto, ocorreu a adesão dessa tropa aos amotinados. O Presidente Goulart expediu ordens, no dia 26, proibindo a invasão da sede do Sindicato onde se realizava a assembleia. Coube ao Ministro do Trabalho negociar com os marinheiros a desocupação pacífica do edifício.

Logo em seguida, uma tropa prendeu os líderes dos amotinados, porém João Goulart lhes concedeu imediato perdão, o que exaltou o ânimo da oficialidade. O Ministro Silvio Mota, que ordenara a prisão dos dirigentes da associação, foi demitido e substituído pelo Almirante Paulo Mário da Cunha Rodrigues. A resposta do almiran-tado foi hostil ao governo. No Clube Naval, um grupo de almirantes hasteou a bandeira nacional a meio pau. O Clube Militar se solidari-zou. A decisão do novo Ministro, que concedeu anistia aos rebeldes marinheiros, provocou a coesão militar contra João Goulart. Vinte almirantes subscreveram uma nota de protesto, em que afirmavam: “O grave acontecimento que ora envolve a Marinha, ferindo-a na sua estrutura, abalando a disciplina, não pode ser situado apenas no setor naval. É um acontecimento de repercussão nas Forças Armadas e a ele o Exército e a Aeronáutica não podem ficar indiferentes.”

A Folha de S. Paulo, de 27 de março, indagava: “Até quando as forças responsáveis deste País, as que encarnam os ideais e os princípios

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da democracia, assistirão passivamente ao sistemático, obstinado e agora já claramente declarado empenho capitaneado pelo Presidente de República de destruir as instituições democráticas?”

Pouco depois, no dia 30 de março, véspera da derrubada do governo, estava marcada, no Rio de Janeiro, uma reunião de sargentos das três Forças, mais os da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros, a ser realizada no Automóvel Clube. Diante da notícia, o Comando do Primeiro Exército ordenou que suas unidades retivessem dentro dos quartéis os sargentos, o que impediu a presença destes na reunião. Para presidi-la foi convidado o Presidente da República. Tancredo Neves, político experiente, aconselhou-o a não comparecer. O deputado Tenório Cavalcanti, um ativista das esquerdas, recomendou a Jango que não saísse do Palácio das Laranjeiras. Tudo inútil. Acompanhado do General Assis Brasil, responsável pelo esquema de segurança, o Presidente se dirigiu ao Automóvel Clube, onde foi festivamente recebido pelos sargentos.

O clima, nessa noite, o induziu a deixar de lado o discurso escrito, para falar de improviso, ressaltando a importância do sargento como elemento de ligação entre as Forças Armadas e o povo. Estavam pre-sentes o Almirante Aragão e o “cabo” Anselmo que pronunciaram discursos inflamados e foram aplaudidos com entusiasmo.

Comentando o fato, escreveu o Jornal do Brasil, em 31 de março: “Pois não pode mais ter amparo legal quem, no exercício da Presidência da República, violando o Código Penal Militar, comparece a uma reunião de sargentos para pronunciar discurso altamente demagógico e de incitamento à divisão das Forças Armadas”.

Horas depois da reunião no Automóvel Clube, iniciaram o avanço

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em direção ao Rio de Janeiro as tropas de Minas, sob o Comando dos Generais Mourão e Guedes. As informações que Goulart conseguiu reunir, na manhã do dia 1º de abril, eram confusas. O Presidente decidiu viajar a Brasília, para manter contato com parlamentares e deixou no Rio o General Assis Brasil. Logo a seguir, o General Âncora telefona a Assis para informá-lo de que “o Norte já aderiu à revolução. Minas está toda revoltada. O batalhão que mandei daqui se passou para o lado dos revoltosos, os quais ganharam a adesão do batalhão de Barra do Piraí. As tropas de São Paulo já estão marchando. Colocaram os cadetes da Academia Militar na vanguarda”.

Relatou o General Assis Brasil os últimos momentos do Governo Goulart. Disse que, antes de ir para Brasília, realizou uma reunião com os ministros militares e depois com os civis. O único que queria resistir era o da Marinha, justamente o que não tinha tropa. Assis chegou a Brasília às 20 horas e encontrou Goulart no aeroporto. Havia um avião da Panair do Brasil sendo preparado. Disse o general que, antes de falar com Goulart, mandou que os oficiais da Casa Militar fossem para seus postos e passassem os cargos aos substitutos. Ninguém falou em resistência entre os meus auxiliares. Um deles perguntou: E o senhor?. Respondi: “vou com o presidente, porque esta é a minha função. Não sei para onde ele vai, mas o meu destino, enquanto ele estiver vivo, está ligado ao dele.” Fui ao encontro de Jango, que que-ria saber da situação. Informei que o III Exército perdeu o Paraná e Santa Catarina, mas Porto Alegre está intacta. Militarmente, dá para o senhor descer lá, mas não podemos pensar em resistência.

Prossegue o relato das horas finais:

• Fomos para Porto Alegre. Chegamos pela madrugada. O General

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Ladário, que chefiava as tropas, queria resistir. Jango me disse que também Brizola falava em resistir. Eram quatro horas da manhã. A guerra estava perdida. Durante a manhã, embarcamos e fomos para a estância Rancho Grande, em São Borja, onde se encontravam Maria Teresa e filhos. Jango não sabia o que fazer, estava atordoado. Eu disse: O senhor tem que sair daqui, senão vão lhe prender. Havia três aviões, um dos quais levou a Brasília os oficiais que me acompanhavam.

• De lá fomos para uma das fazendas de Jango, à margem do rio Uruguai. Consegui demover Jango da ideia de ir para o Brasil Cen-tral e ficar em uma de suas fazendas. Quando ele me perguntou qual era a minha sugestão, sugeri o Uruguai. Mandamos um portador a Montevidéu para sondar a posição do governo. O piloto voltou com a notícia de que Jango e família seriam recebidos de braços abertos. Às três e meia da tarde do dia 4 de abril, partimos de uma segunda estância de Jango e logo desembarcamos em Montevidéu, onde Goulart foi muito bem recebido.

Assis Brasil viajou de volta ao Brasil para se apresentar ao Exército. Foi preso. Perdeu os vencimentos. Passou muitas dificuldades. Ganhava a sobrevivência como professor. Até que foi anistiado.

Leonel Brizola não se conformou com a derrota. Pronunciou dis-cursos acalorados em Porto Alegre. Destaquemos um trecho de sua oração proferida em desespero:

“–Sargentos do III Exército! Dessas Unidades que me ouvem neste momento. Atenção, sargentos das Unidades chefiadas por esses militares golpistas. Atenção, oficiais nacionalistas dessas Unidades. O povo, do qual sois uma parte inseparável, vos pede neste instante.

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Pedem a todos vós, pede aos sargentos que se levantem, tomem os quartéis e prendam os gorilas.”

Sem demora, o líder esquerdista também seguiu o caminho do exílio.

A Nação havia escapado de um golpe comunista que esteve baru-lhentamente articulado, deixando a Nação em suspenso diante da possibilidade de se materializar.

O movimento esquerdista não contou com o apoio do General Ma-chado Lopes, aquele que levantou o III Exército para garantir, em 1961, a posse de Goulart na Presidência da Republica. Em livro que publicou em 1981, o general escreveu: “A Nação, estarrecida, assistia aos desmandos do próprio chefe do Governo. E o Sr. Leonel Brizola vibrava no meio da desordem, que parecia levar o País para o caos. O Clero, o povo e principalmente as Forças Armadas puseram em 1964 um paradeiro na situação caótica em que se encontrava o País”.

No dia 1º de abril de 1964, o Diário de Notícias, do Rio, assim definia o governo: “Por mais que o sr. João Goulart negaceie, tergiverse e dissimule, ninguém poderá negar – porque está à vista de todos, por-que é público e ostensivo – que os elementos chamados de ‘formação marxista’, não somente conseguiram infiltrar-se facilmente em todos os postos, mas também são os preferidos pelo governo para esses postos, sobretudo os de comando e direção. Atualmente, no presente governo, que ainda se diz democrata, a ideologia marxista e mesmo a militância comunista indisfarçada constituem recomendação especial os olhos do governo.”

Concluiu o Diário de Notícias: “Era como se já estivéssemos em pleno regime ‘marxista-leninista’, com que sonham os que desejam incluir

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sua pátria no grande império soviético, às ordens do Kremlin.”

O Brasil foi salvo à beira do precipício do retrocesso econômico e do empobrecimento crescente, à moda de Cuba, e a alteração de seu destino colocou a sua economia entre as maiores do mundo, mas não escapou da falsificação da história, simbolizada em dois atos oficiais: João Goulart recebeu o prêmio de anistiado político, enquanto a viúva Maria Teresa, milionária, foi contemplada por indenização de R$643 mil e pensão vitalícia de R$4,5 mil.

O esquerdismo, no domínio de grande parte dos meios de comu-nicação, se esforça por apagar esse agitado período da memória dos brasileiros. É lamentável que, nesse propósito, tenha alcançado grande êxito.

Palestra pronunciada em 18 de agosto de 2009

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José Arthur RiosSociólogo

Lebret: profeta ou visionário?

I

M orria o século XIX, quando Louis-Joseph Lebret veio ao mundo, a 25 de junho de 1897, em uma aldeia, perto de St.

Malo, na Bretanha, terra francesa de marinheiros e pescadores, para os quais o cristianismo sempre foi, desde muito, uma razão de vida. Filho de família humilde, encaminhou-se, como seria de prever, para a carreira do mar, primeiro para a Escola Naval de St. Brieux. Em 1915, se engaja na marinha e completa sua formação prática. Retorna à Escola Naval, em 1916 e, em 1917, sai terceiro lugar na sua turma, passando a servir como oficial de manobra no mar do Norte, depois como Guarda Marinha e Tenente em 1919. Fez assim toda a Primeira Grande Guerra. Desta, guardou na memória o apelo desesperado dos náufragos de um navio alemão torpedeado “na bruma e na noite nos baixios da Flandres”.

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Em 1921, era instrutor em Brest e, no ano seguinte, vai servir como oficial-adjunto, na base de Beirute, na Síria, onde dirige o movimento do porto e moderniza o sistema de sinalização marítima. Só então é promovido a 1º Tenente e recebe a Legião de Honra. Em 1922 é nomeado Juiz no Conselho Marítimo de Brest. Tem 26 anos.

Para o jovem oficial tudo anunciava brilhante carreira na Marinha. Terminaria certamente com distinções e altos postos. A Providência dispôs de outra forma. Ainda em Beirute, 1921, decidiu fazer retiro no Mosteiro de Lalhé. Aí amadureceu vocação que vinha de longe, de 1916, quando pensou ingressar em uma ordem religiosa, mas teve de protelar essa decisão face à oposição da Marinha a seu desligamento. Obediente a um comando maior, decide afinal trocar a farda pelo hábito branco dos Dominicanos.

Dominava a França, por esse tempo, um Governo liberal e anticlerical que expulsara do país as ordens religiosas; e proibira o noviciado. Era a “questão religiosa” idêntica à que viveramos alguns decênios antes no Brasil e que viria a desfechar na separação entre a Igreja e o Es-tado. Por isso, Lebret teve de completar seus estudos em Maëstricht, na Holanda, onde encontrou o mestre que seria a primeira grande influência em sua vida, o pensador e teólogo tomista Sertillanges.

Acontecimentos decisivos abalavam, então, a Igreja. Começava a delinear-se o século XX, suas inquietações e angústias. Fervilhava a “questão social”, marcada por greves e lutas sindicais, enfrentadas na França já castigada pelos episódios da Comuna de Paris sobretudo depois da Revolução Russa, por feroz reação. Os fascismo começavam a surgir - na Itália o fascio dominava desde 1922 – e o comunismo so-viético iniciava pela propaganda sua expansão europeia e a conquista

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fácil de algumas inteligências liberais. Tudo isso cindia os católicos, entre Esquerdas e Direitas, entre partidários de um Socialismo de várias tinturas e os defensores, contra o individualismo liberal, da autoridade e da ordem. Em 1926, Pio XI condenava a Ação Francesa. No mesmo ano fundava-se a Juventude Operária Católica (JOC) que dava prioridade à transformação da sociedade sobre a ação política.

O lema da prestigiosa Ação Francesa, apoiada pelos nomes de Charles Maurras, Psichari, Gheon, Leon Daudet era “Ordem, obediência, autoridade”. A crise da autoridade era o tema dominante. Naquele tempo, temia-se, mais que o comunismo, – a anarquia. Com muito mais razão, em 1922, Jackson de Figueiredo, fundava no Brasil, o Centro Dom Vital sob os mesmos ideais. Sobre eles pairava a grande influência de Jacques Maritain, – o Maritain do Anti-Moderno.

Por isso mesmo a condenação da Ação Francesa, em 1926, por Pio XI repercutiu fortemente em toda essa gente, obrigando-a a uma reflexão e a uma guinada. Lebret, simpatizante do movimento, voltou-se, obediente, para o apostolado marítimo, levado pela dupla vocação de marinheiro e dominicano. Pensou em fundar um movi-mento da Juventude do Mar. Afastava-se do studium, da contemplação e abraçava nitidamente a ação, – leit motiv de sua vida.

Duas correntes disputavam, por então, na França, o meio operário: (a) o sindicalismo de vários matizes buscava organizar o chamado proletariado dos comícios e refletia os principais movimentos socia-listas; e (b) o corporativismo de sentido vertical, tradicionalista, que procurava organizar os operários a partir de um centro de poder e se opunha ao sindicalismo classista. Angustiado com a situação dos pescadores da Bretanha, Lebret, orientava-se para uma corporação de

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tipo comunitário, oposta, portanto, ao sindicalismo de classe como ao corporativismo de Estado proposto pelos regimes fascistas.

A Segunda Guerra Mundial viria tumultuar tudo isso, instaurar o primado e o conflito das ideologias, marcar uma geração, levando-a a novos alinhamentos. Derrotada, a França ocupada e humilhada pelos Nazistas, o Marechal Pétain, o vencedor de Verdun, apareceu a muitos franceses como a única figura capaz de unificar e reerguer a nação.

A derrota francesa foi, para Lebret, acima de tudo, o desfecho de uma crise moral. A ditadura do Marechal Pétain, lhe parecia na época, como a tantos compatriotas, a única saída para o soerguimento da França, até porque Pétain, inspirado no exemplo de Salazar, prometia governar o pais sob a inspiração das Encíclicas Papais.

Satisfeito com essas promessas, Lebret, publicou em Vichy a Mística de um Mundo Novo (1944) obra que concluira após sua desmobiliza-ção. Recebeu, então, na qualidade de tenente da reserva reformado, a missão de reorganizar, em moldes corporativos, a pesca artesanal mediterrânea. Da Córsega, escrevia: “É preciso restaurar o rosto da França ... O pecado da burguesia foi entrar no jogo das forças eco-nômicas, aceitas como fatais, sem considerar, sequer um instante, que sua fatalidade só dependia da complacência e da traição dos homens.”

A época era de enganos e contradições. Entre Fascismo e Comunis-mo, muitos hesitavam. A personalidade de Hitler exercia sobre alguns forte fascínio. Havia quem atribuisse os desmandos da plutocracia ao judaismo e à maçonaria. Tudo isso era comum nos meios católicos dos anos 40. Essas contra-correntes se refletiam no Brasil. Nossos intelectuais reproduziam e sofriam as inquietações e mutações da

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França. Alceu Amoroso Lima, que assumira, com a morte de Jackson de Figueiredo, a direção do Centro Dom Vital, defendia, em seus arti-gos e conferências, uma posição democrática, fortemente temperada de liberalismo e francofilia, oposta às Ditaduras, inclusive a getulista. Era também contrário ao integralismo, – ao qual quase aderira , – e ao chamado “integrismo” católico.

A posição de Lebret não era exceção. No entanto, a marginalizaçáo dos meios católicos tradicionalistas acabou por obrigá-lo a afastar-se de Vichy. Para os chamados “católicos sociais”, a separação do social e do econômico levada a cabo pelo corporatismo estatal era um erro e uma decepção.

Em 1941, Lebret se demite dos cargos e missões que lhe haviam sido confiados. Sua imagem, no entanto, custaria a se refazer das marcas dessa colaboração. O regime da Libertação ignorou-o e, por muito tempo, permaneceu afastado do mundo oficial.

É quando resolve lançar o movimento chamado “Economia e Huma-nismo”. Mais que uma recuperação, a nova ideia vai projetá-lo, como técnico e pensador social, nos meios católicos, na França e depois na América Latina, particularmente no Brasil.

O Manifesto de Economia e Humanismo (1943), indicava, desde logo, uma clara ruptura com Vichy. A proposta essencial é um corporatismo, mas agora as corporações profissionais, fundidas em uma organiza-ção hierárquica e vertical - sempre a ordem e a autoridade, passam a erguer-se sobre as comunidades de base.

A mensagem de Economia e Humanismo era complexa. Pretendia

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ser (1) diagnóstico da realidade sócio-econômica; (2) método de pesquisa e, ao mesmo tempo, (3) uma doutrina e norma de ação. Seu fundamento filosófico era a pessoa humana e o bem comum, no sentido de Jacques Maritain e, por ele, de Santo Tomás. A influência de Sertillanges se manifesta na ideia de uma síntese entre a teologia e as ciências sociais, visando a uma sabedoria que, por sua vez, dita intervenções na sociedade. Não era um movimento político, se defi-nido nos quadros partidários do momento, mas poderia inspirar certa política do bem comum. No primeiro núcleo do movimento, em tor-no de Lebret, alistam-se economistas do porte de François Perroux, filósofos como Gustave Thibon, agrônomos como J.M.Gatheron, empresários como Alexandre Dubois.

Acentuava o Manifesto a importância das comunidades territoriais “enquanto dimensão humana que garante a radicação do homem à terra em uma civilização onde é, essencialmente, um ser sem raizes.” Nessa ordem comunitária, a economia devia subordinar-se a fins humanos superiores, ignorados pelo Capitalismo liberal voltado para o indivíduo, o mercado e a moeda.

As comunidades sobrevivem por certo equilíbrio interno entre bens indispensáveis. Na esteira do economista australiano Colin Clark seriam: (1) bens de sobrevivência (alimento, habitação etc.); (2) de conforto (comunicação, informação, assistência etc.); e (3) de supe-ração (vida espiritual, arte etc.). Ordem significa a definição de uma prioridade na produção e consumo desses bens. Uma indústria auto-mobilística em país com alta taxa de pobreza seria heresia. Um sistema de financiamento da habitação voltado exclusivamente para as classes média e alta, em uma cidade de favelados e sem teto, um escândalo. (4) Essa “utopia comunitária” como foi chamada por muitos, abria

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para a região, a cidade, o país. Traria mais tarde, necessariamente, reflexões sobre uma teoria do desenvolvimento. O Manifesto rejeitava o Capitalismo e o Socialismo, ambos, materialistas, incompatíveis com a doutrina da Igreja.

Aos poucos, a Economia e o Humanismo ganha forças, se expandem, vai se transformando em organização, em “máquina”. O movimento era encabeçado pelos “Companheiros da Verdade”, algo no espírito das antigas ordens da cavalaria. Lideram-no dominicanos e leigos. Funda-se uma revista, que difunde as ideias do movimento. A equipe central multiplica-se em equipes locais que se espalham por toda a França. Em tudo é intensa a colaboração de Lebret. “No fundo, escre-ve, Economia e Humanismo é um compromisso em face da miséria do mundo, um ato político de misericórdia, entendida no sentido evangélico e etimológico da palavra... É uma realidade profunda e altamente exigente: um compromisso do homem inteiro.”

Lebret, leitor de Marx, chegou a pensar primeiro em dar ao movi-mento a forma de um núcleo de análise do Marxismo. Depois receiou interpretações pró ou contra a ideologia, e decidiu-se por um centro de estudos dos complexos sociais, uma escola para a formação de militantes do bem comum. As notas essenciais do Manifesto seriam a recusa à economia de lucro, o questionamento das estruturas sociais vigentes e a necessidade de sua reforma, sem cair no reformismo, caro ao catolicismo social; a afirmação de uma economia e de uma ordem comunitária. Na França liberada era algo novo, uma promessa, uma esperança.

Toda ação devia ser precedida do conhecimento científico da reali-dade. O instrumento preliminar era o método de pesquisa, baseado

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na observação e na descrição do contexto socioeconômico a partir da comunidade, daí subindo para os grandes complexos sociais, tudo expresso em gráficos engenhosos, os famosos diagramas e os “tapetes”, para análise setorial, uma visão de conjunto e uma escala comparativa de graus e notas. Esses gráficos, aliás, foram, depois, copiados sem qualquer referência à origem.

A sede do movimento foi primeiro Marselha, onde o Pe. Loew realizaria sua pesquisa marcante sobre os dockers, os estivadores, publicada e difundida na revista. Em breve o convento dominicano tornou-se insuficiente para abrigar a nova sociedade que depois em La Tourette, perto de Lyon onde permaneceu até 1957, durante 12 anos, extremamente fecundos.

II

Creio que foi em La Tourette, no convento dominicano cercado por campos verdejantes, no seu cenário rural e medieval, que se deram os primeiros contatos entre Economia e Humanismo e o Brasil. Esse centro de pesquisa e debates abrigou encontros e reuniões verdadei-ramente ecumênicos que acolhiam até agnósticos e comunistas. Entre os primeiros brasileiros a frequentá-lo: um sociólogo do Rio, uma visitante nordestina e, sobretudo, alguns dominicanos.

Um deles, Frei Romeu Dale, trouxe o Pe. Lebret pela primeira vez ao Brasil para um curso professado, entre maio e setembro de 1947, na Escola Livre de Ciências Sociais e Políticas de São Paulo e patro-cinado pela Federação das Indústrias. As conferências levantaram grande polêmica, suscitando em torno da figura e da obra de Lebret muitos equívocos que iriam perdurar.

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Graças aos dominicanos, fundou-se, em São Paulo, um centro de estudos e pesquisas. Subvencionado inicialmente pelo Joquei Clube, ou seja, pelo núcleo mais conservador da sociedade paulistana, sua diretoria contava entre seus membros, um engenheiro, Lucas No-gueira Garcez, mais tarde Governador do Estado, e o secretário da Ação Católica paulista, jovem professor na Faculdade de Direito, de futurosa carreira política – Franco Montoro.

Nascia, na época, por iniciativa do Cardeal Jaime Câmara, a Juventude Operária Católica (JOC), ramo da Ação Católica, cujo primeiro se-cretário foi Dom Helder Câmara. No Rio, Frei Romeu Dale, capelão da Juventude Universitária (JUC), contribuía para a difusão dessas ideias nos meios universitários, apesar da resistência, senão hostili-dade do alto clero, sobretudo do Arcebispo de São Paulo, contra os dominicanos e contra Lebret, em particular, tido como marxista e subversivo, apesar de sua declarada filiação intelectual a Santo Tomás e Maritain. Confundia-se o estudioso do Marxismo com o militante. Diga-se a bem da verdade, essa oposição também partia de algumas autoridades dominicanas de Roma.

Uma reviravolta política salvaria Economia e Humanismo do inevitá-vel naufrágio a que a levaria, no Brasil, a reação do clero conservador. A vitória de Vargas nas eleições de 1950 e a eleição de Lucas Garcez para o Governo de São Paulo, dariam inesperadamente novo prestígio ao movimento. Três homens foram instrumentais nessa retomada: o médico Josué de Castro, presidente da Comissão do Bem-Estar Social, criada por Getulio; Dom Helder Câmara e o Governador de São Paulo, Lucas Nogueira Garcez. Cada um, à sua maneira, abriu caminho para uma nova e brilhante fase de Economia e Humanis-mo: O autor de Geografia da Fome, promoveu a adoção do método de

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pesquisa nos trabalhos da sua Comissão; o segundo, nomeado bispo auxiliar do Rio de Janeiro, de proverbial habilidade diplomática, que-brou as resistências do alto clero; e o terceiro, eleito Governador de São Paulo, deu a Economia e Humanismo a oportunidade de aplicar seu método de análise em larga escala ao desenvolvimento regional.

Abre-se, dessa forma, um período promissor para o movimento. De São Paulo, as ideias de Lebret irradiam para o Uruguai, Argentina e Chile. Em todos esses países constituem-se equipes de Economia e Humanismo. É precisamente nesses anos 50 que se realizam, entre nós, grandes pesquisas, em função paradoxalmente de uma postura oficial, de raiz tecnocrática e continuista, que iria dominar o cenário político brasileiro durante muitos anos e na qual se misturavam novas concepções de planejamento e desenvolvimento – gerando aí nova ideologia – o desenvolvimentismo.

Ao se colocar no vetor do desenvolvimento nacional e regional, Economia e Humanismo, conseguiu esquivar das dificuldades que inçavam seu caminho na Europa; logrando apoio de grupos e perso-nalidades de centro e centro-esquerda. No Brasil, nunca se falou em missão operária; nem sequer se acentuou o lado revolucionário do movimento, nem sua concepção de democracia orgânica e comuni-tária. Pesquisou-se os níveis de vida das zonas rurais do Estado do Paraná (1954-55), estudou-se o desenvolvimento e a implantação de indústrias em Pernambuco e no Nordeste (1955), o desenvolvimento do Estado de São Paulo (1954), as necessidades e possibilidades do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul (1955-57), a estrutura urbana da aglomeração paulistana (1958) etc. Enquanto isso na Europa, acumulam-se as resistências ao movimento e até se fala em uma condenação da Igreja à Economia e Humanismo. Muitas das

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críticas provinham agora do próprio meio dominicano, representado, no entanto, majoritariamente na direção e orientação do movimento. Giravam, sobretudo, em torno da dosagem correta de ação e con-templação, lema e razão da Ordem de São Domingos. Acusava -se Lebret de modernismo, de sobrevalorizar a ciência e a técnica, o que ameaçaria as próprias tradições dominicanas. Um comentarista che-gou a escrever: “Transformar o mundo, interpretá-lo, não é o sumo da ativídade cristã: a essência do homem é conhecer e amar a Deus, possui-lo tanto quanto possível e comunicá-lo.”

Temia-se uma secularização da ordem, que viria dos arraiais da ciência e da filosofia contemporânea, – e da prática religiosa, ameaçada pelo convívio cotidiano com os leigos. E receiava-se que essa sabedoria prática – que nada tinha a ver com a virtude teologa1 - viesse a minar as próprias bases da doutrina católica.

O receio maior, no entanto, era a infiltração marxista. O flirt com o Marxismo culminou com a crise causada, em 1959, pelo dominicano Henri Desroches, amigo e colaborador de Lebret, e seu livro Signifi-cation du Marxisme, de grande repercussão. Após debate com Lebret, Desroches, acabou por deixar o movimento e a rutura se concretizou. Mais tarde, se desligaria da própria Ordem e se secularizaria. Tudo isso marcou Lebret, deixou-o sofrido e descontente.

Em O Drama do Século (tradução) (1960) há um capítulo que se intitula “A solução ilusória: o marxismo”. Nele se lê o seguinte trecho: “O humanismo marxista apresenta-se radicalmente viciado por seu ate-ísmo metafísico.” E, uma citação de Maritain colhida em Humanismo Integral: “Estamos às portas de uma autêntica barbarie cuja natureza não pode ser dissimulada nem por sua grande capacidade técnica,

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nem por sua aptidão e sucesso em explorar e utilizar os recursos do solo e do subsolo.” É clara a referência à teoria soviética.

Lebret defendia uma economia participativa de doação e não uma economia estatal opressora do homem. Por isso era humanista. O pensamento conservador desfigurou suas ideias, contribuindo para confundi-las, perante a opinião, com as teses das Esquerdas.

Para ele, Economia e Humanismo, representou uma resposta cristã às insuficiências do Capitalismo e ao Comunismo materialista. Tratava--se de preservar a experiência cristã francesa, no domínio do social, sobretudo a dos padres operários; e rejeitar a colaboração com os comunistas substituindo-a por um engajamento pelos pobres. Seu grande mentor, na verdade, era Leon Bloy, mais que Marx.

Por isso mesmo, seu contato com o Brasil foi decisivo. “Na sua volta a La Tourette, em 1947”, escreve Malley seu amigo e colaborador, “o Pe. Lebret é outro homem. Descobriu o subdesenvolvimento através de suas manifestações humanas mais degradantes: a fome, as favelas, o analfabetismo, a mortalidade infantil, o desemprego. Os países pobres serão daí por diante sua angústia.”

III

Agora, é um homem dos caminhos do mundo. Malogradas as espe-ranças de desclericalizar o movimento, de confiá-lo inteiramente às mãos de leigos, atravessado o período de 1950 a 1956, cortado de crises e ruturas das quais a mais dolorosa foi certamente a que pôs fim à colaboração e amizade de Desroches, Lebret vai agarrar-se, mais e mais, à pesquisa e à análise dos complexos sociais, nos países

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subdesenvolvidos, pugnando por uma intervenção impregnada de humanismo que não era puramente científica, mas se voltava para a ação e a reforma das estruturas.

Esse saber para agir contrariava a neutralidade do modelo positivista de ciência social, o que explica as resistências enfrentadas por Lebret nos meios universitários franceses, que não esqueciam suas reticências políticas à época da Libertação. Só a partir dos anos 50, logra reco-nhecimento nacional e internacional como economista. Em 1953, na sede da ONU em Nova Iorque, participa de uma conferência encarregada de estudar métodos que permitissem definir e avaliar comparativamente os niveis de vida e suas variações nos diversos países. Em 1956, Lebret é reconhecido como diretor de pesquisas do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) e contemplado com a bolsa correspondente. Daí por diante, vão afluir convites e propostas arrastando-o para o mar largo do desenvolvimento internacional, suas correntes e torvelinhos; na mesma medida, afastando da equipe cen-tral de Economia e Humanismo, na França, cujos membros veteranos não deixaram de protestar de várias maneiras, contra esse “desvio” internacional. Em 1956, o afastamento se completa e Lebret deixa oficialmente o cargo de diretor de Economia e Humanismo, sem abrir mão de sua orientação intelectual.

É uma nova fase que se inaugura na vida do dominicano. Momen-to crucial, em tudo isso, foi uma exposição do técnico italiano G. Sebregondi, em La Tourette, sobre a economia das necessidades. Sebregondi dirigia a “Associazione per lo Sviluppo dell’industria nel Mezzogiorno” (SVIMEZ), fundada em 1946 para promover a modernização do Sul da Itália. A entidade tentava uma fusão entre o desenvolvimento econômico e o aménagement, ou seja, o planeja-

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mento, a disposição em vulgar, arrumação - de pessoas e bens em determinado espaço territorial, província ou região. Em reunião em La Tourette, discutiu-se precisamente o desenvolvimento harmôni-co, conceito que se tornaria decisivo para Lebret. Hoje se fala em desenvolvimento sustentável.

Sob esse prisma, desenvolver implica não só planejar as necessidades humanas in abstracto, mas a maneira de pôr a serviço da população, equipamentos comunitários e regionais o que exige uma arbitragem na distribuição especial desses recursos em função do homem que irá utilizá-los. A ideia de espaço, de aménagement, passa a fazer corpo com o desenvolvimento econômico e social.

O espírito de Lebret estava maduro para uma reflexão sobre esses conceitos. Até então suas viagens tinham se limitado à Europa e à América Latina e algumas incursões na África Ocidental francesa e no Marrocos. A partir de 1955, vai à América Latina, conhece os países andinos, dá a volta ao mundo, tomando contato com o Sul e o Sudeste asiáticos, o Médio e o próximo Oriente. Dessas viagens trouxe forte sentimento, - a grande tarefa que se punha à humanidade no século XX devia ser a luta contra a fome e a miséria. A aplicação de recursos, os grossos investimentos não bastavam. Era essencial a formação de técnicos, recrutados em seus próprios paises. Diante de tarefa de tal magnitude, os quadros e recursos de Economia e Hu-manismo ancorada em La Tourette, suas vinculações e articulações na classe média europeia, tornavam-na “provinciana”, ultrapassada. Tratava-se agora de promover o desenvolvimento do Terceiro Mundo, mas em escala mundial.

Essa decisão se torna tanto mais premente quanto mais clara a

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dissolução das equipes veteranas na Europa. É o momento em que declinam os partidos democrata-cristãos, surgem novas formas político-partidárias. Em uma tentativa de recuperação, Economia e Humanismo, lança um manifesto; Au Contact des Forces Vivantes (1951), onde se exploram novos modelos inspirados no trabalhis-mo inglês, nas social-democracias sueca e holandesa, na rejeição ao consumismo e ao materialismo. O manifesto parece filiar-se às teses pós-keynesianas buscando um equilíbrio entre o intervencionismo de Estado e a iniciativa privada, disciplinada esta pelo setor associativo. Nada de progressismo, nada também de “ordem social cristã.”

Entregue Economia e Humanismo a seu destino, Lebret volta-se para a tarefa que lhe parece mais urgente, a criação de instituições que pudessem encarregar-se da formação de técnicos para o desenvolvi-mento, e contratar e receber subvenções de instituições internacionais.

Em 1955, participa da fundação, pelo Abbé Pierre, do Instituto de Pes-quisa e Ação contra a Miséria Mundial (IRAMM) que se articula mais tarde em empreendimento maior, a Associação Mundial contra a Fome (ASCOFAM), iniciativa de Lebret, Josué de Castro e do Abbé Pierre.

A Associação não deu certo. Cada um dos seus criadores alimentava seu projeto particular. O diálogo entre eles era de surdos. Ao Abbé Pierre não interessava canalizar os fundos que recolhia, em proveito de uma instituição de formação de técnicos. Josué de Castro queria imprimir sentido político à entidade, e seu relacionamento com os meios soviéticos preocupava Lebret, antecipando reações negativas de Roma. Em seu Diário, uma frase expressiva sobre o nosso “geógrafo da fome”: “Seu namoro com Moscou me inquieta, e inquieta Roma. Aliás já partiu em busca da glória, sua própria glória.”

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Tudo isso impeliu Lebret a dissociar-se do empreendimento. Assim, a 27 de março de 1958, funda o Instituto Internacional de Pesquisas e Formação para o Desenvolvimento (IRFED). Os locais da instala-ção eram mais exíguos que o nome. Não dispunha de sede própria, utilizava o andar superior da livraria de Economia e Humanismo, no 262, rue St. Honoré, ciosamente guardada pela fiel Mme. Duthuit, mãe carinhosa e fada madrinha dos estagiários brasileiros do IRFED, em Paris. Só mais tarde o Instituto iria se instalar no conjunto de propriedade dos dominicanos, rue de la Glacière.

A fim de se distinguir de outro Instituto, fundado e dirigido pelo economista François Perroux e que se voltava para problemas teó-ricos, o IRFED visava à formação de agentes do desenvolvimento, em três escalões: (a) os práticos, comprometidos em operações de valorização na base; (b) os técnicos, dotados de uma especialização; enfim (c) os especialistas experimentados e qualificados.

O IRFED, entidade leiga, só buscava formar técnicos, não mais militantes. Recrutava seus estagiários por toda parte no Terceiro Mundo. Dos 591 estudantes que por ele passaram, de 1958 a 1963, menos de um terço são franceses e perto da metade (290) vinham da América Latina, da África e da Ásia. O Brasil enviou vários alunos. Desaparece a “utopia comunitária” cresce a ideia do desenvolvimen-to harmônico. O IRFED, secularizado e pragmático, é, em parte, a confissão de uma derrota. Apagara-se a velha chama.

IV

Daí por diante, toda a obra intelectual de Lebret vai se voltar para uma conceituação humanista do desenvolvimento contra o materia-lismo tecnicista.

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Sua obra escrita marca os passos dessa marcha. O Guia Prático da Pes-quisa Social (1952) de sua autoria exclusiva, lança os fundamentos do método. Os volumes seguintes que se destinam ao pesquisador rural e urbano (1951 e 1955) já são firmados também por colaboradores. O volume IV, igualmente de autoria coletiva, traz subtítulo indicativo: “Pesquisa para o planejamento regional” (1958). Seu alvo é estabe-lecer a ponte entre o planejamento regional e uma teoria que vai se desdobrar na Dinâmica Concreta do Desenvolvimento (1961) de demorada gestão. Esses livros, preparados através de várias versões, longamente pensados, nascem muitas vezes de uma ideia germinal lançada ao aca-so de um curso, de uma conferência. Suicídio ou Sobrevivência do Ocidente (1958), por exemplo, é a elaboração de uma palestra pronunciada, em 1956, no Centro Dom Vital, no Rio de Janeiro.

A partir dos aspectos sócio-econômicos, da discussão das teorias mais recentes, – Marx, Schumpeter, Keynes, – a partir do concei-to de crescimento, da leitura de Toynbee, Perroux, Tibor Mende, Lebret chega à ideia dominante de civilização que se sobrepõe por seus valores éticos à própria teoria de desenvolvimento. Dimensões da Caridade (1958) destinado aos militantes católicos é a elaboração de uma quaresma pregada na paróquia romana de São Luiz dos France-ses. Nos últimos anos de sua vida, vai esta igreja ganhar importância para ele como ponto de reunião, reflexão, repouso. Em novembro de 1959, aparece o Manifesto por uma Civilização Solidária e, enfim, O Drama do Século (1960).

Nem se mencionem incontáveis artigos publicados em Economia e Humanismo, em Efficacité, em Valeurs et Civilisations. Sem falar nas missões em diversos países, de que resultam relatórios, ofícios, memorandos e a torrencial correspondência, redigida ao acaso do

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pouso, em hospedagens conventuais, em hotéis, em aeroportos, na letra miúda mas clara, em cadernos de folhas destacáveis que vai passando para a secretária da hora e do lugar, entre duas baforadas do indefectível cachimbo.

Dessa fase, dos anos 50 a 60, resultam ainda os famosos “diagnósti-cos” da Bacia Paraná-Uruguai (1955), da metrópole paulista, baseados em levantamentos de que participavam inúmeros pesquisadores, po-líticos, informantes, consultores, analistas, cartógrafos nos diversos “laboratórios”. Em torno de Lebret enxamearam técnicos e cientistas sociais brasileiros dos mais ilustres – Anibal Vilela, Helio Modesto, Leopoldo Brandão, João Paulo de Almeida Magalhães, Antonio Bezerra Baltar, Eduardo Bastos e tantos outros. Em São Paulo, no Rio, em Buenos Aires, Santiago do Chile, depois Beirute eCaracas. O Diário, ainda inédito, reflete essas andanças aflitas por três continentes, infindáveis conversações, colóquios, exposições.

A época é do desenvolvimento e do planismo. Formigam teorias. Desenganado da possibilidade de uma teoria geral, Lebret, busca o chão firme do dado empírico, apresentando a economia humana como uma etapa provisória. Por isso chamou um dos seus livros – “dinâmica do desenvolvimento”. Na perspectiva da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), que é de 1948, Lebret se alinha muito mais com os administradores e técnicos dos países e das organizações internacionais menos com os acadêmicos e teóricos, sobretudo liberais. Mais com Prebisch, com Jacques Chonchol, com Gunnar. Myrdal, com Albert Hirschman, com François Perroux que, certos ou errados, buscavam, no terreno, soluções práticas e locais, e não teorizações. Das ciências sociais, Lebret colhe elementos em Sauvy, Yves Lacoste, Balandier, Hoselitz, Polanyi - em todos, enfim

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que relativizavam a economia de mercado e apontavam as ruturas trazidas pela penetração do individualismo dissolvente da competição nas sociedades tradicionais.

Dessa discussão resulta um novo perfil de subdesenvolvimento. Não é o mero avesso do processo, sua face negativa, mas um fenômeno social global, resultante do êxodo rural, do crescimento desapoderado das cidades, da desagregação dos sistemas tradicionais de produção e das comunidades. Nessa concepção avulta a ideia de gargalos, de obstáculos, na linha de Arthur Lewis, e de um dualismo econômico que, nos teóricos brasileiros, vem assumindo várias formas desde “os dois Brasis” de Jacques Lambert.

Esboça-se ainda uma nova teoria do imperialismo que se baseia na tese do crescimento das economias ocidentais, à custa da exploração da mão de obra nativa e dos recursos coloniais. Lebret não perde a oportunidade de denunciar o que chama de “imperialismo maqui-lado”, para ele representado pelos Estados Unidos, sempre, por estranho que pareça, sua cabeça de turco.

Os anos 50 e 60 trazem com o debate sobre o desenvolvimento, a era do planismo. Os Governos se afirmam na medida em que organizam um núcleo de tecnocratas, onde predominam os economistas. São eles que elaboram planos nacionais, escalonam prioridades e recursos. Surgem os Ministérios do Planejamento e suas burocracias. Especia-listas batem à porta dos governos, oferecem seus serviços urbe et orbi. Esses planos começam geralmente por um diagnóstico abrangente do país ou da região, dispondo, em uma intenção de racionalidade, suas riquezas e recursos, e identificando os nódulos de estrangulamento. A “Tennessee Valley Authority”, no Governo Roosevelt, fixara o

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primeiro modelo para a equação de problemas regionais em torno de represamento de rios, fornecimento de energia elétrica e irrigação, e recuperação de comunidades. Na França, em 1947, o Plano Monnet, inaugura essa fase e, entre nós, o Plano Salte, de 1949-53, depois reproduzido, emendado em plataformas partidárias de várias cores.

É nessa fase que Lebret passa a ser requisitado por diversos países para traçar planos nacionais que apoiem, justifiquem e legitimem vários governos; ainda que depois venham a dormir nas gavetas dos tecno-cratas. É um fase de viagens, “missões”, negociações complicadas, entendimentos e desentendimentos com políticos e técnicos locais, também decepções e insucessos. Multiplica-se o modismo das siglas, repontam nomes prestigiosos que ganham assento em ministérios, em Presidências, depois caem no olvido.

No meio dessa poeira, circula o homem do hábito branco, com sua boina, seu crucifixo e seu cachimbo, buscando, em tudo, incansável, o equilíbrio dos setores econômicos, a vitória contra a miséria, a perfeição do bem comum. Assim, no Brasil – em Pernambuco, em Belo Horizonte, no Rio, em São Paulo, também na Colômbia, na Venezuela, no Senegal, finalmente, no Líbano, onde quer que surjam planos, elaborem-se essas construções precárias, de racionalidade, às vezes, enganosa, logo destruídas pelo capricho político ou a instabi-lidade das massas.

Tudo isso se reflete no Diário, cujas páginas datilografadas são remetidas regularmente aos colaboradores, “fonte preciosa para a evolução do pensamento do Pe. Lebret”. Exprimem preocupações, projetos, dúvidas, inquietações. Também desenganos, decepções e suspiros. “No silêncio de São Luiz dos Franceses, reflito um pouco

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no meu destino de cristão, em constante desafio com o impossível. A escravidão do imediato com sua carga de exigências, contradições, incompreensões, decisões sem que se tenha um momento para si próprio, para uma retomada, para fazer bem as coisas. A engrenagem é implacável e antihumana. Nada se faz muito bem, sequer bem, no entanto, é preciso fazer. Não há meio de sair disso, sem trair. E, há sempre esse Evangelho imperativo que se escolheu como regra de vida. O abandono do homem comprometido é mais doloroso que o do contemplativo, que não entra em cheio no combate do mundo.”

No fundo de seu pensamento, há a fidelidade a um ideal medieval e cavaleiresco, a ideia de uma Ordem religiosa disponível e desinteres-sada “que seria para as tarefas do desenvolvimento, uma réplica das antigas Ordens para o resgate dos cativos.” Em 1963, em conversa com o Geral dos Dominicanos, defende “a necessidade para a Or-dem de enfrentar o mundo moderno sob todos os aspectos”. No seu espírito, esboça-se uma espécie de Universidade “pela especialização de alguns dominicanos nas diversas ciências”.

Sempre a velha ideia, talvez utópica, de “assumir, na visão cristã, todas as ciências sociais a fim de falar sem inferioridade ou timidez, a políticos, a universitários, a técnicos internacionais.” Em uma frase, afinal, o resumo de sua vida e de seu pensamento: “É enorme graça arcar com a inquietação do mundo.”

Não é de estranhar que a coroação dessa existência venha a ser dedicação sem limites à Igreja. A Encíclica Mater et Magistra (1961) parecia-lhe dar razão afirmando que o desenvolvimento era o pro-blema mais grave do século. Em 1962 é nomeado chefe da delegação da Santa Sé à conferência da ONU sobre a aplicação da ciência e da

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tecnologia aos menos desenvolvidos. Aí pronuncia discurso, um pou-co seu testamento intelectual, sobre o desenvolvimento harmônico.

Começavam os anos 60. O Vaticano abria suas portas ao Concílio tão importante na história da Igreja. Pareciam amortecidas as reservas de Roma. Os Papas João XXIII e Paulo VI manifestavam plena confiança em Lebret. Paulo VI nutria por ele “afetuosa admiração”. Recebeu-o várias vezes em audiência privada. Apesar das preocupações finan-ceiras, Lebret renuncia a seus trabalhos pessoais, às missões, às asses-sorias técnicas, para se dedicar inteiramente ao Concílio, à discussão e redação de seus documentos, à grande tarefa de modernização da ação da Igreja no mundo atormentado do século XX.

Uma de suas últimas missões técnicas, em 1961, trouxe-o ao Rio, a convite do Governador Carlos Lacerda, para um diagnóstico do então Estado da Guanabara e a elaboração de um parecer sobre o planejado porto de Sepetiba. O relatório, os textos daí resultantes nunca foram publicados e se perderam. A pesquisa sobre as favelas do Rio, contratada com o jornal O Estado de S. Paulo, foi feita com sua benção, embora sem sua intervenção direta (1958-60). Não tinha mais tempo para essas tarefas. Ao contrário, amiudaram as viagens a Roma. Em fevereiro de 1965 contribuiu fortemente para a redação do capítulo do Concílio sobre a comunidade internacional e sobre a vida econômica e social. Nas sessões do Concílio, encontra-se e colabora várias vezes com bispos brasileiros e africanos.

Na última sessão já enfrentava doença incurável. “Era a sombra do que fora”, descreve um colaborador. O Papa recebeu-o em audiência e recomendou-lhe que não fosse além de suas forças. Mas o esquema XIII pelo qual tanto lutara, tornara-se a Gaudium et Spes e, Lebret

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ainda trabalhava na criação de um Secretariado pela Justiça. Desse trabalho, resultou a atual Comissão de Justiça e Paz, onde passaram a ter assento alguns eminentes brasileiros. Em junho de 1966, um mês antes de morrer, volta a Roma como membro de uma Comissão Pontifícia da Família, População e Natalidade. “Estava esgotado, sofria muito, mas animava-o o trabalho fraterno das comissões, seu ritmo intenso. Nelas propunha minuciosamente seus pontos de vista sobre esses problemas tão novos e dificeis, após grande esforço de apro-fundamento para lhes dar densidade e coerência.” Encerrava assim sua vida como começara, homem da Igreja, de sua Ordem e do Papa.

Menos de um ano após sua morte aparecia a Encíclica Populorum Progressio. Nela Lebret – honra insigne – é expressamente citado: “Não aceitamos que o econômico se separe do humano; nem o de-senvolvimento se aparte das civilizações em que ele se inclui. O que conta para nós é o homem, cada homem, cada grupo de homens, até se chegar à humanidade inteira.” Mas sua influência vai mais longe, penetra todo o documento. Por isso, Paulo VI, pôde dizer que o Pe. Lebret lhe inspirava “veneração e devoção”, e que a Encíclica era uma “homenagem à sua memória”.

VI

Decorridos 30 anos de sua morte, impõe-se uma avaliação dessa figu-ra, das maiores do século, ao lado do Abbé Pierre, de Madre Teresa de Calcutá, do Papa João Paulo II. Com o tempo diminui o homem de ciência e o técnico, cresce o humanista cristão. Seu método tem o mérito da clareza e da didática. Seus diagramas engenhosos facilitam ao leigo o rápido domínio de uma estrutura, de um complexo social,

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mas não vão muito além do instrumental. O método monográfico, mais descritivo que explicativo, já encontrara sua aplicação e também suas limitações na escola de Le Play. Simples ferramenta, permite uma visão rápida dos problemas para a ação. Era justamente o que visava Lebret, grande intuitivo, voltado para amplas sínteses, mirando o homem e não abstrações.

Não era um especialista, mas um articulador de ideias que exigiam a cooperação de todas as ciências sociais. Por isso mesmo, especialistas e cientistas resistiram a admiti-lo em seu grêmio.

Sua filosofia social ancora-se firmemente em Santo Tomás e Maritain, em uma concepção de democracia orgânica baseada no conceito de comunidade. Há certa nostalgia em tudo isso como na concepção da Gemeinshaft, do sociólogo alemão Tönnies com a qual se aparenta. Encontrava na comunidade o meio natural para o desenvolvimento da pessoa humana. Nela se cultivam as liberdades e recua o poder do Estado. O crescimento da sociedade industrial canibalizara os grupos intermediários e o assustava. Por isso recomendava com fervor juvenil as experiências comunitárias. Boimondau foi, nos primeiros tempos, o grande troféu de Economia e Humanismo até que seu líder Marcel Barbu pereceu em um campo de concentração. O anarquista Kropo-tkine mais do que Marx, era o imspirador dessas utopias comunitárias, impregnadas de romantismo, com as quais se imaginava domesticar o Leviatã do mercado. François Perroux, em carta a Lebret já nos idos de 1943, procurava resfriar esses entusiasmos: “Lamentamos”, escrevia, “que nossos amigos (de E.H.) não tenham compreendido que nenhuma economia moderna e progressista possa dispensar a moeda e que a moeda só se torne capaz de exercer suas funções pelo viés de um mercado unitário. Contrariamente ao que muitos pensam,

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a moeda libera tanto quanto escraviza; introduz ordem na economia, sob a condição de que ela mesma seja ordenada. A economia nacional do século XX não tem muito que aprender da aldeia e das comunida-des de pescadores. Os comunistas já o entenderam. Nossos amigos dão às vezes impressão contrária.”

Sob esse aspecto, a filosofia social de Lebret tem uma conotação arcaizante, mal adaptada ao século do ultrasom, da informática e da bomba atômica. A metrópole e a megalópole pedem formas de ad-ministração e organização, além e acima do quartier e da vizinhança. Prende-se ao tradicionalismo que esse grande inovador trazia de suas origens e do qual jamais definitivamente se desprendeu. Sua demo-cracia orgânica, baseada na comunidade, nunca se articulou em um quadro institucional que a recobrisse, na visão de uma representação participativa, de um Parlamento e em uma consciência da importância da norma jurídico-constitucional. Deteve-se na corporação. Parece que esta, praticada por Lebret, nos tempos da organização sindical da pesca, foi o nec plus ultra dessa construção, seu limite.

Todo o planismo dos anos 50 e 60, parecia, aliás, ignorar qualquer arcabouço normativo. Talvez, implícita, a ideia de um ilustre ministro e economista brasileiro – “jurista só atrapalha”, de que resultaram, aqui e lá, inúmeros obstáculos e derrotas para as intenções do planejador. Entre todas as manifestações de Lebret, mesmo as mais candentes e revolucionárias sobre a propriedade, não se encontra referência clara à norma jurídica, ao estatuto, à lei e seu papel. Na dinâmica do desenvolvimento, nos vários níveis, na arbitragem entre as diversas tensões, não se menciona a estrutura jurídica vigente. Fala-se em intervenção do Estado – mas quem a limita, quem defende a pessoa contra suas opressões? Na equipe central de Economia e Humanismo, que se saiba, nenhum jurista.

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Talvez isso se deva, reconheçamos, ao caráter, em geral, conservador de alguns juristas o que os convertia, muitas vezes, em barreiras à mo-dernização. Seria de esperar nesse economista alimentado desde cedo com o leite do tomismo, uma vinculação das propostas de reforma das estruturas ao direito natural. Essa preocupação não aparece nos textos que nos chegaram.

Na sua análise das tensões entre Estado e comunidade havia a inter-ferência de uma barreira cultural. Na Europa é nítida a divisão entre culturas estatais e culturas comunitárias. A participação comunitária é corrente nos países de língua inglesa; difícil, induzida, nos países de língua latina. Nos primeiros, o recurso à utopia comunitária é desnecessário – como observou o historiador Daniel Boorstin, – porque a participação na base faz parte da própria cultura. Lebret encontraria a prática comunitária, afanosamente buscada no modelo de Boimondau, muito perto, além da Mancha, na Inglaterra – e tam-bém nos Estados Unidos.

Para isso, porém, teria de superar certas dificuldades. Primeiro o co-nhecimento da língua inglesa que nunca dominou. Depois algo mais sutil, os própríos preconceitos na interpretação do Capitalismo e do “Imperialismo” americano que nunca chegou a superar. Em 1948, escrevia artigo denunciando o Plano Marshall como instrumento de dominação da Europa pelos Estados Unidos. À luz do que hoje se sabe, é uma enormidade. Como ingênua sua Oração pelos americanos e as injustas referências ao seu egoismo (sic).

Lebret combateu o Capitalismo e o Socialismo sem maiores discri-minações, principalmente sem distinguir no Capitalismo, o regime econômico, o mercado e a própria economia como fato – da ideologia

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e dos desvios de minorias apropriativas, egoistas e corruptas. Fala do Capitalismo sem precisar se é o liberal ou o Estatal. O mesmo quanto ao Socialismo. É o soviético? O dos países escandinavos? Sem essa discriminação, os destinos do mundo moderno, continuam incom-preensíveis. O fenômeno extraordinário da socialização da riqueza e a participação comunitária, nos Estados Unidos, tão bem descritos, já no século XIX, por um compatriota de Lebret, Alexis de Tocqueville e, devidamente glosado por outro francês, o sociólogo Raymond Aron - permaneceram impenetráveis para Lebret.

Finalmente, um dos ideais do dominicano – a integração das ciências sociais na teologia, permaneceu sempre obscuro. Desde os primórdios de Economia e Humanismo essa tese, tão cara a Lebret, criou-lhe as maiores dificuldades, na França e em Roma, com os próprios com-panheiros e irmãos da Ordem. Nos idos de 1941, Lebret escrevia: “A teologia não existe; até o fim dos tempos, a teologia deve progredir, se os teólogos não fraquejarem. A contribuição das ciências permite um inventário e uma utilização mais rigorosa do dado revelado ... O sábio deve assumir a imensa contribuição das ciências físicas, biológi-cas e sociais para que possa realizar sua síntese. O homem moderno espera do teólogo esse esforço que teria tentado, sem dúvida, um Alberto, o Grande, talvez um Santo Tomás. A teologia não deve se constituir apenas a partir das fontes da ordem revelada, mas ainda a partir de toda fonte de conhecimento. Toda verdade tem valor para a teologia, cujo objeto é Deus, ao mesmo tempo o Deus revelado pelos profetas e pelo Cristo, e o Deus de que testemunham toda criatura e toda manifestação de vida.” Teilhard de Chardin tentaria essa síntese e, ao que parece, faltou-lhe do mesmo modo fundamento filosófico. Não foi feliz.

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Para Lebret, Economia e Humanismo vinha renovar o pensamento católico “assim como o aristotelismo renovara a filosofia escolástica.” É fora deproporção. Alguns dominicanos contestaram essa afirmação, pois o locus próprio da teologia é exatamente o dado revelado, enrique-cido com o testemunho dos Padres e a interpretação dos Doutores, sancionados pela Igreja. Tudo o mais é secundário, exterior, subsidi-ário. “Os resultados da filosofia, da história, da sociologia e de outras ciências humanas, trarão, sem dúvida, alguma luz à teologia, mas como contribuição extrínseca, cada uma dessas ciências trabalhando na periferia da teologia pode ser assumida quanto a sua conclusão sob a luz da fé no organismo teológico, mas sem nunca pretender fornecer princípios próprios a construir verdadeiramente uma ciência do revelado.”

Na unificação dos saberes, Lebret, invocava o precedente de Teilhard de Chardin que “experimentou, a partir do univer-so o que eu mesmo senti, a partir do estudo da sociedade”. “A redução progressiva do múltiplo ao uno sob o olhar da razão e da fé tem valor teológico quando os homens, as sociedades e todas as coisas são apreendidas em sua relação com Deus e o Cristo.” A ideia da integração final das ciências foi cavalo de batalha de vários filósofos e cientistas ao longo do século XX, mas não logrou sucesso, nem se sabe se jamais logrará. A invocação de Teilhard, enxarcado de hegelianismo, posto de quarentena pela Igreja, não parece caber. O relativismo é da natureza das ciências por si mutáveis. Na teologia o homem busca uma ciência da Revelação, portanto do Absoluto. “Distinguer pour unir” - aconselhava Maritain.

Lebret fechou os olhos a 20 de julho de 1966. O Diário registra seu demorado sofrimento. Após sua primeira hospitalização, em 1966, deixou algumas páginas, em que resume sua vida: “A beatitude da

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misericórdia foi para mim dominante, como a da doçura e do com-bate pela justiça... Adquirir a misericórdia é abrir o coração a todas as dimensões da miséria humana à medida que se nos tornam patentes. Para mim é um elemento essencial da inserção no Cristo... Aquele que foi devorado pela misericórdia deve saber que é um sacrificado, que é a causa que conta e não ele próprio.”

Pouco resta hoje de todo esse vasto movimento de ideias, de toda a agitação intelectual que provocou, do arcabouço conceitual que Le-bret introduziu na linguagem. Seus possíveis erros e equívocos, não diminuem, no entanto, sua estatura espiritual, sua enorme presença no século XX.

Temo que até aqui tenha esboçado o retrato de um sacerdote metido a economista, apenas preocupado com problemas sociais, um desses clérigos modernosos ansiosos por pendurar a batina no primeiro prego e partir para a “reforma social”. Nada disso.

Era antes de tudo um sacerdote, suas reações, como tive ocasião de testemunhar várias vezes, de um homem da Igreja, inteiramente dedicado a sua missão. Em suas viagens, onde estivesse, encontrava tempo e meios de celebrar diariamente a Santa Missa. No meio de relatórios e documentos que lhe atulhavam a mesa, não passava sem a leitura do breviário. Certa vez, depois de um dia de trabalho fatigante, a caminho do Convento do Leme, deteve o carro que o conduzia, desceu para rezar junto ao cadáver de um atropelado. Certa tarde, do escritório da rua México, de onde se descortinava a baía, viu-se um avião cair no mar. Lebret parou o trabalho, e rezou pelas vítimas. A qualquer momento interrompia suas tarefas para receber e ouvir pessoas que o procuravam em busca de conforto e conselho espiritual.

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Deixou vários livros de espiritualidade. Destaco Renovar o Exame de Consciência (1952) em colaboração com o Pe. Suavet, tentativa de cristianização do homem comum, fazê-lo refletir, dia a dia, sobre uma ética cristã. A Montée Humaine (1951) é outro esforço para levar o cristianismo ao cotidiano, na descoberta do universo, na conquista da terra, nas superações e alienações do homem moderno; também nas suas liberações, na necessidade de um retorno universal a Deus, no testemunho e no comprometimento do cristão. Assim em Action, marche vers Dieu (1949), em Princípios para a Ação (1959), no Apelos ao Senhor (1955), constituido de edificantes orações para todos os mo-mentos do dia, do despertar ao deitar, admiráveis preces “de uns e de outros”, “por uns e por outros” às quais anexava a oração dominicana e a oração franciscana. Em tudo, seguia o preceito do seu mestre, o Pe. Augier que lhe ensinara, com Santo Tomás, a exercitar a oração, fazê-la em termos concretos, o mais próximo de Deus.

Estamos longe das pugnas do desenvolvimento, da poeira das-teorias, dos debates. É a grande calma da oração, das paisagens do Espírito, do repouso no regaço da Providência. Tudo isto está recolhido na personalidade do Dominicano, que fez das tarefas do social um ca-minho de meditação e superação.

Este o Lebret humanista, no sentido cristão e não marxista que so-nhou a aproximação de povos e culturas à sombra da Cruz e pensou estendê-la a todos os recantos da terra. Esta é sua maior missão e sua grandeza.

Fecho os olhos e o revejo caminhando no passo que parece ter guardado o balanço de muitos navios - andadura de camelo, como ele próprio dizia – mastigando o cachimbo e ruminando utopias

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impossíveis, abarcando através dos óculos de meia lente, paisagens sem conta, desertos humanos, palácios de orgulho e poder, mas, levando sempre no coração, como chama ardente, a imagem de um Deus crucificado e redentor, seu amor transfigurado a homens de vária cor e quadrante, todos marcados pela fome e pela miséria. Essa, é sua mensagem e seu maior carisma.

Fontes:

. Beltrão, Maria. “Teilhard de Chardin. Gênio Solitário e Profeta In Carta Mensal, CNC, nº 651, RJ, 2009.

. Cosmao, V. Prefácio a Développement, Révolution Solidaire, Paris: Les Editions Ouvriéres, l966.

. Encíclica Popularum Progressio

. Lebret, Louis-Joseph. Apelos ao Senhor (tradução). São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1955.

. Malley, François. Le Père Lebret: L´Economic au service des hommes. Paris: CERF, 1968.

. Maritain, Jacques. The Person and the Common Good (tradução). Notre Dame, 1947.

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. Pelletier, Denis – Economic et Humanisme. Paris: CERF, 1996

. Rubin, P. Achille – Vers une nouvelle économie humaine. Friburgo (Suíça): Valores, 1958.

Palestra pronunciada em 13 de outubro de 2009

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Ernane GalvêasEx-Ministro da Fazenda

Síntese da ConjunturaO Brasil e a crise mundial

Está se criando, no Brasil, um clima de euforia em relação à re-tomada do crescimento econômico. Os mais otimistas chegam

a afirmar que a economia nacional passou ao largo da crise mundial.

É importante não perdermos o sentido da realidade: o Brasil rece-beu um tranco violento com a crise. No 4º trimestre de 2008 o PIB nacional caiu 2,9% e continuou caindo no 1º trimestre de 2009. A queda na indústria foi brutal: no final do ano passado registrou uma redução de 8,1%.

A recessão bateu forte em algumas empresas como a Vale, a Petro-bras, as indústrias automobilística, de celulose e outras, voltadas para o exterior. As exportações brasileiras caíram 22,7% em 2009, o que nos dá, em resumo, a dimensão da crise que atingiu o Brasil.

Também é evidente que a economia brasileira está no caminho da

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recuperação, não só em função das medidas anticíclicas adotadas pelo Governo, como, também, pelo “efeito China”, que normalizou as exportações brasileiras de petróleo, de minério de ferro, de celulose, de soja e dezenas de outros produtos.

De qualquer modo, a realidade é dura: o PIB nacional cresceu 5,7% em 2007, 5,8% em 2008 e deverá ficar praticamente estagnado, com crescimento zero, em 2009. Resultados melhores são esperados em 2010, com crescimento acima de 5%, assim como nos anos seguintes.

Além da inusitada expansão do crédito, duas forças deverão dar impulso redobrado à economia: os investimentos da Petrobras e das empresas associadas aos projetos do Pré-Sal, e os investimentos ligados à Copa do Mundo de 2014 e às Olimpíadas de 2016.

Há um certo temor de que a expansão econômica possa gerar pres-sões inflacionárias, o que excitaria o Banco Central a subir a taxa de juros básica, com os conhecidos efeitos negativos sobre o Tesouro Nacional. É óbvio que a expansão de crédito nos Bancos públicos (BNDES, BB e CEF), assim como os incentivos fiscais, tem uma influência muito maior sobre o consumo e os investimentos do que a “política monetária” do Banco Central. Se, realmente, a expan-são da demanda gerar alguma inflação, a solução óbvia é refrear o BNDES, o BB e a CEF, assim como os estímulos fiscais e não recorrer à elevação dos juros, que só agravam o déficit do Governo e a dívida pública, além de desorganizar o mercado cambial, através da atração de voláteis capitais especulativos.

Há muitas razões para o otimismo dos brasileiros, na conjuntura atual, face às estatísticas que indicam a retomada do crescimento econômico a partir deste ano, após a paralisação (crescimento zero)

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em 2009. Há confiança entre os consumidores e os empresários, apesar dos vicios do Governo – nos três níveis do Poder – que se esmera em constantes provocações que causam desconfiança e inse-gurança jurídica em relação ao regime democrático, à livre iniciativa e à propriedade privada.

Em contrapartida ao otimismo generalizado que ressurge na área econômica, há também muitas razões para descrença em relação ao futuro próximo, principalmente no que tange à qualidade da educação e às perspectivas do mercado de trabalho. Vale a pena atentarmos para dois importantes relatórios recentes, da Unesco e do IPEA.

Segundo a UNESCO, o Brasil continua sendo o país com o maior número de crianças fora da escola, na América Latina e no Caribe. O país também teve os piores números de repetência na escola pri-mária: a taxa brasileira foi de 19% em 2007, enquanto os índices dos vizinhos latino-americanos e caribenhos giraram em torno de 4%. Em comparação com países de todos os continentes, o Brasil é o 12º no ranking dos que têm mais crianças fora da escola: foram 901 mil em 2007, com idades entre 7 e 10 anos.

O estudo divulgado pelo IPEA revela que é preocupante a falta de investimento na juventude brasileira. Um dos maiores desafios para o Governo é lidar com o desemprego crescente entre os jovens e os efeitos que o problema terá no futuro deles. Na faixa etária dos 16 aos 20 anos, a taxa de desemprego passou de 7%, em 1987, para mais de 20%, em 2007. Na faixa dos 21 aos 29 anos, o desemprego mais que dobrou, passando de 5% para 11% no mesmo período. Especialmente elevado (19,8%) era o número de jovens que não estudavam nem trabalhavam.

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Os juros do banco central

Com a decisão do Banco Central pela manutenção da taxa de juros básica em 8,75% , volta à tona o debate sobre a possibilidade de elevação da taxa, por influencia das “previsões” do mercado finan-ceiro. A razão de ser estaria na perspectiva de alta da inflação, face ao aumento de preços dos alimentos. Verdadeiramente, um non sense.

Há, grosso modo, três tipos de preços: a) os administrados pelo Governo (tarifas de serviços públicos, combustíveis, etc), 2) os que são formados no mercado internacional (petróleo, matérias primas, alimentos) e 3) os que resultam do livre jogo da oferta e procura no mercado interno.

A taxa de juros do Banco Central, a rigor, só teria efeito sobre os preços da terceira categoria; assim mesmo, de maneira duvidosa.

Elevar a taxa de juros para combater uma inflação potencial é, na conjuntura atual, uma grande contradição com o que vem fazendo o Governo, mobilizando todos os recursos e subsídios fiscais para fomentar o consumo e os investimentos, através de uma vigorosa expansão do crédito no BNDES, Banco do Brasil e CEF.

Como já se afirmou em outras oportunidades, nos últimos anos as altas taxas de juros só têm servido para agravar as contas deficitárias do Tesouro e a dívida pública, ao mesmo tempo em que transfere renda para os felizes investidores – nacionais e estrangeiros – nos Fundos de renda fixa. Em 2009, chegou a R$ 169,1 bilhões o mon-tante de juros pagos sobre a dívida pública, resultado, de um lado, da insensibilidade do Banco Central e, de outro, da farra de gastos de custeio do Governo federal.

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COP 15 – Copenhague

A reunião das Nações Unidas (COP 15), em Copenhague, teve três destaques: 1) aguçou as dúvidas sobre o “efeito estufa”, embora não tenha chegado à confrontação entre os “fanáticos do CO²” e os “céticos” do aquecimento global; 2) aliviou a “barra” dos grandes países industrializados, que praticamente suspenderam as obrigações decorrentes do Protocolo de Kyoto e transferiram parte das responsa-bilidades aos países de menor nível de desenvolvimento, como China, Brasil e Indonésia, incluindo o desmatamento das florestas entre as maiores causas de emissão de CO²; e 3) paralelamente, metade da reunião foi dedicada a assuntos financeiros, principalmente a ajuda bilionária que os países ricos devem dar aos países pobres, a título de adaptação. Não se discutiu o grave problema da explosão demográ-fica, principal causa do empobrecimento e grande parte da poluição. É uma conclusão óbvia: sem deter o crescimento demográfico, não há solução para a pobreza. Mas parece que ninguém se interessa por isso. Não dá “dividendos”.

O Brasil aceitou dois compromissos sérios: contribuir com US$ 10 bilhões iniciais para o Fundo de ajuda aos países pobres e reduzir – voluntariamente – entre 36,1% e 38,9%, até 2020, as emissões de GEE (gases de efeito estufa), inclusive, drástica redução do desma-tamento, tendendo a zero. Por outro lado, o Brasil espera receber vultosa indenização pela floresta não desmatada, dentro do sistema REDD. Ou seja, o Brasil espera sair ganhando.

Vários “estudos” realizados por instituições nacionais e estrangeiras concluíram que o Brasil é responsável por 5% das emissões globais de GEE e que 55% dessas emissões provêm da pecuária e do desma-

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tamento. Colocaram - e colocamos - um laço no pescoço de nosso próspero agronegócio.

Atividades econômicas

Indústria

Em novembro/09, a produção industrial caiu ligeiramente 0,2%, em relação a outubro, mas cresceu 5,1%, comparada com novembro/08. Entretanto, no acumulado do ano (11 meses), a produção caiu -9,3%, sendo -20,2% de bens de capital, -10,9% bens intermediários e -4,1% bens de consumo.

A produção de veículos ficou praticamente estagnada, com alta de 0,7% no ano. Segundo a CNI, as vendas da indústria subiram 1,3% em novembro sobre outubro e 8,4% sobre novembro/08. O índice de capacidade utilizada subiu a 81,4%. De 27 atividades pesquisadas em novembro, apenas seis registraram aumento (IBGE). A indústria paulista fechou 2009 com queda de 8,5% (FIESP), mas cresceu 2,4% em dezembro. O consumo de energia elétrica ficou 1,1% abaixo de 2008.

Ao longo de 2009, até novembro (11 meses), as vendas do comércio varejista cresceram 5,3%, contra queda de 10,6% na produção in-dustrial, distância essa que se explica pelo volume das importações.

Em 2009, a produção de aço bruto caiu 21,4%, apesar do crescimento da indústria automobilística. A produção de celulose cresceu 6,0% e a de papel caiu 0,7%, enquanto as exportações cresceram 16,9% e 1,3%, respectivamente.

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Neste início de 2010, a indústria automobilística vendeu 23,4% menos do que em dezembro, mas ficou 11% acima de janeiro/09. Também a indústria siderúrgica retomou o nível normal de produção.

Segundo a CNI, o otimismo no setor industrial chegou ao nível recor-de, em janeiro, o mesmo que o apurado pelo IBGE. Os investimentos na indústria prosseguem acelerados. A Petrobras e a Chevron vão investir US$ 5,2 bilhões na Bacia de Campos (RJ). A Vale comprou a Bunge (fertilizantes) por US$ 3,8 bilhões.

Das 14 regiões investigadas, apenas três (Pernambuco, Goiás e Ceará) já retornaram ao patamar pré-crise, de setembro de 2008. Por outro lado, o Estado de Minas Gerais, que tem a atividade mais voltada para o mercado externo, mostra a maior perda na produção (-10,7%).

Comércio

Em novembro/09, o comércio varejista cresceu 1,1% em relação a outubro, no sétimo aumento seguido, segundo o IBGE. As vendas de móveis e eletrodomésticos subiram 5,9%, embaladas pelos incen-tivos fiscais e pelo forte consumo de ventiladores e ar-condicionado. Na comparação com novembro de 2008, o varejo cresceu 8,7% e a expectativa é de aceleração no ritmo. No acumulado do ano (11 meses), a expansão foi de 5,5%. As vendas de materiais de cons-trução cresceram 4,2%.

Os supermercados registraram aumento de 3,2% no volume de vendas em 2009 (Abras). As bebidas alcoólicas puxaram a alta, com 8,6% de variação em 2009, com destaque para cervejas (10,5%). O setor de alimentos perecíveis foi o segundo, com ganho de 7,2%.

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As famílias brasileiras iniciaram 2010 com intenções de consumo elevadas. De acordo com pesquisas da CNC, dos 18 mil entrevistados em todo o país, 60,2% estão endividados, mas somente 9,2% afirmam não ter condições de pagar em janeiro.

A Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC), realizada pela primeira vez, indica que 13,5% dos consumi-dores se consideram “muito endividados”. Entre os que recebem até dez salários mínimos, essa avaliação sobe para 14,3% e entre os que ganham mais de 10 mínimos, 8,3% se consideram muito endividados.

Segundo a Fecomércio-SP, o índice de confiança do consumidor registrou alta de 2,2% em janeiro, em relação a dezembro/08. A Fecomércio-RJ indica que, nos próximos seis meses, 43,9% das famí-lias do Grande-Rio irão às compras de bens duráveis e semi-duráveis; o atraso no primeiro semestre do ano passado foi de 19,9% e nos seis meses seguintes passou a 18,3%. A inadimplência das empresas fechou o ano passado com crescimento de 18,8%, segundo a Serasa. Maior alta desde 2001. Os títulos protestados representaram 41,5% e os cheques sem fundos 38,6%

Agricultura

O ano de 2009 registrou uma super safra de milho que, face à queda do preço, está estocada e abarrotando os armazéns gerais do Centro-Oeste. Também a situação da soja é de superprodução, o mesmo que nos Estados Unidos e Argentina, o que vem derrubando os preços. As fortes chuvas no Sul e Sudeste vão prejudicar a safra corrente.

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Mercado de Trabalho

Segundo o IBGE, o desemprego em 2009 ficou em 8,1%, ante 7,9%, em 2008. Em dezembro/09, o índice atingiu 6,8% ante 7,4% em novembro. Pelo levantamento do DIEESE, o índice de 13,2%, em novembro, caiu para 12,5%, em dezembro. O fechamento de 415.192 empregos com carteira assinada, em dezembro, interrompeu uma sequência de dez meses de geração líquida de vagas, reduzindo o saldo de criação de postos em 2009 para 995.110, o pior resultado em seis anos. O segmento que mais contratou foi o de serviços, com 500.117 contratações, com destaque para o comércio varejista com 297.157 postos, e a construção civil com 177.185. A indústria teve o pior resultado, com 10.865 vagas.

Setor Financeiro

O sistema financeiro fechou 2009 com expansão de crédito de 14,9%, sendo +31,1% nos bancos públicos, +8,7% nos bancos privados na-cionais e menos 0,4% nos estrangeiros. Os desembolsos do BNDES aumentaram 49% e o crédito imobiliário da CEF cresceu 102%. No conjunto do crédito, a expansão dos empréstimos às pessoas jurídicas cresceu apenas 1,1%, ante +17,4% para as pessoas físicas. Em 2008, a expansão do crédito chegou a 31,1% mais do dobro de 2009. O papel-moeda emitido cresceu 13,2%, os meios de pagamento tradi-cionais (M1) 11,0% e o total (M4) 16,6%.

Na Bovespa, o ingresso de dólares, após alta de 145% em 2009, perdeu 11% em janeiro, com a saída de US$ 1,5 bilhão em apenas dois dias, 20 e 21.

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Em decisão de 27/1, o Banco Central manteve a taxa básica de juros em 8,75%, a maior taxa real do mundo. Há expectativa, no mercado, de que o BC volte a aumentar a taxa (em 0,5%), a partir de março, contrariando todas as manifestações do Ministério da Fazenda e do Governo, em geral. Com o objetivo de permitir a manutenção da taxa, o Ministério do Planejamento está anunciando que, em março, haverá corte nos gastos orçamentários. Difícil será compensar o aumento dos salários e do quadro de servidores públicos.

Inflação

O índice IGP-M/FGV teve alta de 0,63% em janeiro, puxado por três fatores: elevação nas tarifas de transportes (+2,3%), definida pelo Governo; maior custo sazonal na educação (+2,0%), devido à abertura das aulas (efeito “gregoriano”); e aumento no preço dos alimentos (+1,4%), devido às chuvas e enchentes, que caracterizam um eventual choque de oferta dos produtos agrícolas. Em janeiro, o preço do álcool subiu 9,28% e da gasolina 1,70%, em média. Nada disso se deve às pressões de demanda e, portanto, não deveria influir na taxa de juros fixada pelo Banco Central.

Setor Fiscal

Continua se agravando o desequilíbrio fiscal. Em 2009, apesar de todos os “truques”, o Governo só conseguiu “economizar” (supe-rávit primário) R$ 64,5 bilhões, para pagar R$ 169,1 bilhões de juros sobre a dívida pública, ocasionando um déficit nominal de R$ 104,6 bilhões, quase o dobro dos R$ 57,2 bilhões de 2008. Em consequência, a dívida bruta subiu a R$ 1.973,4 bilhões (R$ 232,5 bilhões acima de

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dezembro/08). A dívida mobiliária atingiu R$ 1.398,4 bilhões, com acréscimo de R$ 133,6 bilhões, no ano.

Em verdade, o superávit primário teria sido de apenas R$ 39,2 bi-lhões, tendo sido acrescido de R$ 25,3 bilhões, através de “artifícios contábeis”.

Setor Externo

O mês de janeiro começou mal: as exportações caíram 21,8% (US$ 11,3 bilhões) em relação a dezembro/09, e as importações 6,6% (US$ 11,5 bilhões), com saldo negativo de US$ 166 milhões.

O saldo negativo nas Contas-Correntes do balanço de pagamentos atingiu US$ 28,2 bilhões em 2008, US$ 24,3 bilhões em 2009 e ca-minha para US$ 40 bilhões em 2010, segundo previsões do Banco Central. Em 2009, as despesas com turismo e viagens internacionais somaram US$ 10,9 bilhões.

Em 2009, os investimentos estrangeiros diretos (IED) somaram US$ 31,7 bilhões (US$ 44,6 bilhões, em 2008), em ações US$ 37,1 bilhões e em Fundos de renda fixa US$ 9,1 bilhões. As remessas de lucros e dividendos alcançaram US$ 25,2 bilhões e a de juros US$ 9,1 bilhões. Os IEDs para 2010 estão sendo estimados em US$ 45,0 bilhões.

Segundo estimativas da AEB, em 2010 as exportações devem chegar a US$ 170,7 bilhões (+12%), as importações a US$ 158,5 (+23%) e superávit de US$ 12,2 bilhões (-49%).