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José Barreto Fernando Pessoa em defesa da Maçonaria: A história do artigo que rompeu com o Estado Novo Versão revista e aumentada do posfácio a Fernando Pessoa, Associações Secretas e outros escritos, ed. José Barreto, Lisboa: Ática, 2011, pp. 239-288. O artigo “Associações Secretas”, publicado por Fernando Pessoa no Diário de Lisboa de 4 de Fevereiro de 1935, foi, sem dúvida, o mais importante texto político que o escritor deu à estampa em toda a sua vida, tanto pelo seu conteúdo e oportunidade como pelo vasto público que alcançou. Ocupar a primeira página e as duas centrais do vespertino lisboeta lido pelas classes cultas era bem diferente do que escrever para a gaveta ou a arca, destino de muitas centenas de textos políticos escritos ao longo dos anos. Acresce que, num tempo de ditadura e mordaça à imprensa, Pessoa conseguiu misteriosamente esquivar-se ao rigor da censura e colocar na rua um texto de combate redigido num tom desafiante do poder, a recordar os idos da liberdade de imprensa, circunstância que provocou uma corrida às bancas e esgotou a tiragem aumentada do jornal. A importância do artigo advém, por outro lado, do significado pessoal e das consequências dessa rara intervenção política a céu aberto de Pessoa, que marca o início da sua ruptura definitiva com o regime de Salazar. A defesa pública da Maçonaria − que o Estado Novo tinha então por principal inimigo, preparando-se para a banir por meio de uma lei contra as “associações secretas” − foi uma atitude corajosa e, diga-se, algo inesperada, vinda de um escritor nacionalista e recém-galardoado com um prémio do governo (31 de Dezembro de 1934) pelo livro Mensagem. Essa intervenção separadora de águas culminava, todavia, um processo gradual e íntimo de evolução do posicionamento político de Pessoa, amplamente testemunhado pelos escritos do seu espólio. A publicação de “Associações Secretas” desencadeou medidas retaliatórias contra o seu autor, que até aí não tivera grandes razões de queixa da censura. No debate jornalístico que se seguiu à publicação do artigo, Pessoa não pôde retorquir aos seus críticos. Quando tentou fazê-lo, esbarrou nas instruções dadas por Salazar ao director dos Serviços de Censura no sentido de calar a polémica. Também os planos de reeditar o artigo em opúsculo ou de publicar um livro sobre todo o caso tiveram que ser abandonados por Pessoa, que foi assim reduzido ao silêncio. É esta história que aqui se pretende contar. 1. A 16 de Dezembro de 1934 realizaram-se as primeiras eleições de deputados à Assembleia Nacional, ao abrigo da nova Constituição, plebiscitada no ano anterior. Cerca de 480.000 eleitores deram o seu voto para a eleição dos 90 deputados propostos na lista única da União Nacional. Inaugurada solenemente a 11 de Janeiro de 1935, a Assembleia Nacional iniciou no dia imediato os trabalhos de elaboração do respectivo regimento. Decorria ainda a discussão deste quando, a 19 de Janeiro, o deputado e director-geral dos Serviços Prisionais José Cabral interrompeu os trabalhos para, no

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José Barreto

Fernando Pessoa em defesa da Maçonaria: A história do artigo que rompeu com o Estado Novo

Versão revista e aumentada do posfácio a Fernando Pessoa, Associações Secretas e outros escritos, ed. José Barreto, Lisboa: Ática, 2011, pp. 239-288.

O artigo “Associações Secretas”, publicado por Fernando Pessoa no Diário de

Lisboa de 4 de Fevereiro de 1935, foi, sem dúvida, o mais importante texto político que

o escritor deu à estampa em toda a sua vida, tanto pelo seu conteúdo e oportunidade

como pelo vasto público que alcançou. Ocupar a primeira página e as duas centrais do

vespertino lisboeta lido pelas classes cultas era bem diferente do que escrever para a

gaveta ou a arca, destino de muitas centenas de textos políticos escritos ao longo dos

anos. Acresce que, num tempo de ditadura e mordaça à imprensa, Pessoa conseguiu

misteriosamente esquivar-se ao rigor da censura e colocar na rua um texto de combate

redigido num tom desafiante do poder, a recordar os idos da liberdade de imprensa,

circunstância que provocou uma corrida às bancas e esgotou a tiragem aumentada do

jornal. A importância do artigo advém, por outro lado, do significado pessoal e das

consequências dessa rara intervenção política a céu aberto de Pessoa, que marca o início

da sua ruptura definitiva com o regime de Salazar. A defesa pública da Maçonaria − que

o Estado Novo tinha então por principal inimigo, preparando-se para a banir por meio

de uma lei contra as “associações secretas” − foi uma atitude corajosa e, diga-se, algo

inesperada, vinda de um escritor nacionalista e recém-galardoado com um prémio do

governo (31 de Dezembro de 1934) pelo livro Mensagem. Essa intervenção separadora

de águas culminava, todavia, um processo gradual e íntimo de evolução do

posicionamento político de Pessoa, amplamente testemunhado pelos escritos do seu

espólio. A publicação de “Associações Secretas” desencadeou medidas retaliatórias

contra o seu autor, que até aí não tivera grandes razões de queixa da censura. No debate

jornalístico que se seguiu à publicação do artigo, Pessoa não pôde retorquir aos seus

críticos. Quando tentou fazê-lo, esbarrou nas instruções dadas por Salazar ao director

dos Serviços de Censura no sentido de calar a polémica. Também os planos de reeditar

o artigo em opúsculo ou de publicar um livro sobre todo o caso tiveram que ser

abandonados por Pessoa, que foi assim reduzido ao silêncio. É esta história que aqui se

pretende contar.

1. A 16 de Dezembro de 1934 realizaram-se as primeiras eleições de deputados à

Assembleia Nacional, ao abrigo da nova Constituição, plebiscitada no ano anterior.

Cerca de 480.000 eleitores deram o seu voto para a eleição dos 90 deputados propostos

na lista única da União Nacional. Inaugurada solenemente a 11 de Janeiro de 1935, a

Assembleia Nacional iniciou no dia imediato os trabalhos de elaboração do respectivo

regimento. Decorria ainda a discussão deste quando, a 19 de Janeiro, o deputado e

director-geral dos Serviços Prisionais José Cabral interrompeu os trabalhos para, no

período antes da ordem do dia, enviar para a mesa da Assembleia um projecto de lei, o

primeiro apresentado naquele órgão sob o Estado Novo.1

Em nome de um combate sem tréguas contra as “associações secretas”, o

projecto de lei de José Cabral determinava o confisco dos seus bens e a perseguição dos

seus associados, adoptando medidas especiais contra a “infiltração” dos mesmos no

funcionalismo público e nas forças armadas. O diploma, para cuja discussão o deputado

solicitou carácter de urgência (que seria negado), estabelecia a proibição de pertença de

qualquer cidadão português a associações secretas, cuja definição era parcialmente

remetida para uma velha disposição legal, o artigo 283.º do Código Penal de 1886,

teoricamente em vigor, mas de facto letra morta. O projecto estipulava duras penas de

prisão, multas e desterro para os filiados e dirigentes das ditas associações e exigia dos

funcionários do Estado, civis ou militares, e dos alunos do ensino público maiores de 16

anos uma declaração de não vinculação a associações secretas, sob pena de demissão

dos primeiros e expulsão do ensino dos segundos.

No preâmbulo do projecto, o deputado proponente aludia aos malefícios das

associações secretas e afirmava significativamente: “Nas nações em que se tem

procurado robustecer a autoridade do Estado, começou-se por combater

impiedosamente todas as organizações dessa espécie”. Assim, o exemplo a seguir era

apontado, sem os nomear, em países como a Itália fascista e a Alemanha nazi, se não a

Rússia comunista. Haveria que defender o Estado e a sociedade da contaminação

corruptora e da infiltração de elementos perturbadores, pois que “o Estado é, hoje mais

que nunca, factor dominante de toda a vida social e condição indispensável do

desenvolvimento das próprias actividades individuais”.

Embora o projecto de lei sobre associações secretas não mencionasse a

Maçonaria, ficava claro que era ela o seu alvo principal, se não único. Assim o

entenderam o público, a imprensa, o governo de Salazar e os procuradores à Câmara

Corporativa que elaboraram o parecer sobre o projecto de lei. O parecer da Câmara,

com efeito, refere-se quase que exclusivamente à Maçonaria2, declarando que seria

ocioso mencionar outras “sociedades clandestinas”, como as “de intuitos comunistas”,

tão claro seria o carácter “criminoso” destas. Quanto à Maçonaria, a Câmara entendia

dever referir-se-lhe detalhadamente, “por haver ainda quem pretenda a todo o transe

defender-lhe e até exaltar-lhe os fins e processos”. Não era a Maçonaria, interrogava-se

retoricamente o parecer, “o último reduto das forças ocultas organizadas contra a

Revolução Nacional”? Em todo o caso, a lei proposta incidiria sobre todo o tipo de

associações consideradas secretas − à semelhança da lei fascista italiana, de 26 de

Novembro de 1925, cujo debate parlamentar dera lugar a um histórico discurso do

comunista Antonio Gramsci, acusando Mussolini de, a pretexto de ilegalizar a

Maçonaria, pretender perseguir as organizações em geral e as operárias em particular.

Com a sua iniciativa extemporânea, o deputado José Cabral parece ter desejado

antecipar-se aos seus pares, entre os quais haveria decerto elementos juridicamente mais

qualificados e até melhor sintonizados com a orientação política dominante.3 Ao

assumir, em cavaleiro solitário, a liderança do combate antimaçónico, o irrequieto José

1 Ao projecto de lei de José Cabral foi atribuído o número 2. Aparentemente, ao projecto de

regimento terá sido atribuído o número 1, embora não exista disso registo no Diário das Sessões. 2 O parecer da Câmara sobre o projecto de lei, datado de 27 de Março, foi publicado no Diário das

Sessões, suplemento ao n.º 39, de 2 de Abril de 1935, pp. 1-25. 3 O parecer da Câmara começava por declarar que teria sido “preferível resolver o problema das

sociedades secretas na prevista lei especial do exercício da liberdade de associação [...], e no estatuto dos

funcionários públicos”, ressalvada embora a “concordância da Câmara com a generalidade da doutrina do

projecto” (p.1). As numerosas alterações que foram propostas pela Câmara revelariam, porém, diferenças

de sensibilidade política em relação ao projecto de Cabral.

Cabral mostrava sede de protagonismo. O projecto de lei revelava, porém, deficiências

formais e, do ponto de vista do poder, um desnecessário radicalismo – traço

característico do seu autor, antigo sidonista e guerrilheiro monárquico, ex-membro

destacado do Nacional-Sindicalismo e defensor da reintrodução da pena de morte em

Portugal. Em particular, a referência do projecto de lei aos militares era susceptível de

gerar reacções de hostilidade no seio do exército, um pilar do regime que ao poder não

interessaria muito agitar.

Anos antes, em finais de 1931, já o nome de José Cabral aparece ligado a um

programa intitulado “Da Defesa do Estado”, em que se incluem medidas visando o

encerramento das “agremiações” secretas e o confisco das suas sedes, bem como a

criação de uma Milícia Nacional, destinada a colaborar com as autoridades nas tarefas

de vigilância social e repressão.4 José Cabral estaria posteriormente ligado à criação da

Legião Portuguesa (1936), de cuja primeira Junta Central foi adjunto político e de cujos

Serviços de Acção Social e Política foi o primeiro director, instalando a sua sede no

palácio do Grémio Lusitano (sede da entretanto extinta Maçonaria), ao abrigo da lei n.º

1950, de 18 de Fevereiro de 1937, de que também ele foi o proponente.

José Cabral discursando na inauguração das instalações da Legião Portuguesa, sede da

extinta Maçonaria, em 18 de Dezembro de 1937 (foto ANTT).

4 S/autor, Da Defesa do Estado. Bases da Sua Organização, s.l., s.d. [ca. 1931-1932]. O único

exemplar conhecido, do Arquivo de José Pacheco Pereira, contém no rosto a assinatura de José Cabral.

O projecto de lei de José Cabral sobre associações secretas surgia quando estava

em curso na Alemanha hitleriana a extinção da Maçonaria, mas inspirava-se mais

proximamente na referida lei fascista sobre associações secretas, com que o regime de

Mussolini tinha dado o golpe final na Maçonaria italiana, após anos de perseguições e

violências dos squadristi contra maçons e lojas maçónicas. Comparativamente com a lei

italiana, o projecto de José Cabral continha várias lacunas, pois não definia capazmente

“associações secretas” nem estabelecia trâmites processuais para a dissolução das

mesmas. O projecto de Cabral limitava-se a reproduzir várias das disposições da lei

italiana – idênticas penas de prisão, multas e perda de direitos políticos para os

membros de sociedades secretas, similar obrigatoriedade para os funcionários do Estado

de prestarem uma declaração formal de não pertença a entidades secretas. O projecto

era, todavia, em vários aspectos, mais radical do que a lei em vigor na Itália fascista,

nomeadamente no respeitante aos estudantes do ensino público. Além disso, a

declaração de não pertença à Maçonaria era obrigatória, no projecto de Cabral, para

todos os funcionários do Estado (na lei italiana era obrigatória apenas para aqueles a

quem fosse solicitada). Os funcionários do Estado português deveriam ser também

obrigados a uma vexatória declaração de desvinculação da Maçonaria caso a ela

tivessem pertencido no passado (tal norma tinha sido retirada da lei italiana na sua

revisão de 1926). A pena por falta de declaração era mais dura no projecto de Cabral

(demissão) do que na lei italiana (suspensão de vencimento). O projecto de Cabral era

também mais discricionário do que a lei italiana, ao não prever qualquer tramitação

processual de dissolução das associações secretas, mas apenas o seu confisco directo, ao

livre arbítrio do poder.

No fundo, o objectivo do projecto de Cabral coincidia largamente com a

intenção política do Estado Novo quanto à Maçonaria, que era, de facto, a sua

perseguição e extinção. Durante o debate da lei, o representante do governo na

Assembleia Nacional, Mário de Figueiredo, seria muito claro quanto ao destino a dar à

Maçonaria: “É preciso exterminá-la, e o Estado Novo tem não só o direito, mas o dever

de o fazer imediatamente.” Todavia, quanto a aspectos particulares ou formais do

projecto, havia discordâncias. Recusada pelo governo − através de Mário de Figueiredo

− a urgência pedida pelo deputado proponente, o projecto de lei foi remetido para

estudo à Câmara Corporativa, que só publicou o seu parecer em 2 de Abril, após uma

reunião, a 13 de Março, do seu relator, o penalista Abel de Andrade, com Salazar.5 A

Câmara, fundando-se expressamente na lei italiana, integralmente transcrita no parecer,

supriu as lacunas jurídicas do projecto de Cabral, eliminou aspectos “desnecessários”,

limou arestas e produziu um projecto alternativo, de conteúdo bastante idêntico à lei

fascista. A Câmara adoptou mesmo a alteração que em 1926 fora feita à lei italiana, no

sentido de não obrigar ex-maçons a mencionar a sua pertença passada à Maçonaria,

obrigação que o projecto de Cabral mantivera. Ficavam assim desobrigados dessa

declaração os ex-maçons que eram agora altas figuras do Estado Novo, como o

Presidente da República, Óscar Carmona e o Presidente da Assembleia Nacional, José

Alberto dos Reis, para não citar outros, como Bissaya Barreto, amigo e conselheiro de

Salazar, que com este reunia semanalmente. Não por acaso, no próprio dia da votação

do projecto de lei, o deputado Carneiro Pacheco apresentou previamente uma proposta

de elevação do general Carmona ao marechalato.6 No respeitante às sanções, a Câmara

foi, por vezes, mais longe do que o projecto de Cabral, acrescentando, por exemplo, a

5 Entrada na agenda de audiências de Salazar, a 13 de Março de 1935: “Dr. Abel de Andrade – proj.

do Dr. José Cabral (maçonaria) – estudos e relatório” (ANTT/AOS/1/5/73). 6 Veja-se o relato da sessão parlamentar de 5 de Abril no Diário de Lisboa do mesmo dia, p. 5.

perda de pensão de reforma dos funcionários do Estado pertencentes a sociedades

secretas. Foi nesta versão inteiramente refundida pela Câmara Corporativa que o

projecto de lei foi aprovado por unanimidade na Assembleia Nacional em 5 de Abril de

1935, apenas com uma alteração de última hora, proposta pelo mesmo José Cabral, que

fez finca-pé em manter uma menção expressa dos militares entre os funcionários do

Estado obrigados a prestar a referida declaração de não pertença a sociedades secretas.

A Câmara, ao tentar retirar a expressão “civis ou militares” do projecto de Cabral,

pretendera talvez evitar vexar os oficiais do exército maçons ‒ ou ex-maçons, como

Carmona. No dia seguinte à aprovação da lei, em nova intervenção na Assembleia

Nacional, José Cabral procuraria exibir uma atitude mais apaziguadora para com os

oficiais que se encontravam afastados do activo “por razões especiais” (políticas),

pugnando pela resolução da sua situação (reintegração).

2. Perante as primeiras notícias, a 19 de Janeiro, sobre a iniciativa legislativa do

deputado José Cabral, não tardou muito a reacção da própria Maçonaria que, abrindo

uma excepção à sua estrita regra de silêncio, veio a público defender-se. Uma carta de

protesto subscrita pelo general Norton de Matos, grão-mestre do Grande Oriente

Lusitano, e datada de 31 de Janeiro de 1935 foi enviada ao presidente da Assembleia

Nacional, o antigo maçon José Alberto dos Reis. O GOL era a obediência maçónica

que, com mais de 3.000 associados7 e uma clara orientação anti-Ditadura e anticlerical,

estava principalmente na mira do projecto de lei. Cópias da carta circularam de mão em

mão, pois a censura impediu que o documento chegasse às páginas dos jornais e a

própria notícia da sua recepção pela Assembleia Nacional foi cortada pela censura no

jornal República de 7 de Fevereiro. Na sua carta, Norton de Matos contestava a

aplicação do conceito de associação secreta à Maçonaria, cujos fins, dirigentes e

actividades seriam, na sua opinião, suficientemente do conhecimento público. Lembrava

as perseguições de que as lojas maçónicas eram objecto tanto na Rússia comunista

como sob os regimes fascista e nazi, evocava grandes figuras maçónicas da história

portuguesa e alertava, enfim, para o facto de que a Maçonaria, quando perseguida, tinha

sempre ressurgido nos países em que se encontrava estabelecida.8

Fernando Pessoa não só teve acesso à carta-protesto de Norton de Matos, de que

o espólio do escritor conserva uma cópia9, como lhe foi aparentemente encomendada a

sua tradução integral para inglês, cuja cópia também encontrámos no seu espólio.10

O

artigo “Associações Secretas”, escrito e publicado quatro dias depois, revelava uma

certa sintonia argumentativa de Pessoa com o dito documento, contendo, por exemplo,

uma alusão a um congresso católico de Braga em que tinha sido pedida a extinção da

Maçonaria11

, facto sublinhado pelo grão-mestre maçónico logo nas primeiras linhas da

sua carta, apontando assim a Igreja Católica como a inspiradora do projecto de lei. O

autor deste, o monárquico José Cabral, era católico e devoto de Fátima, como o

anticatólico Pessoa insinuou no artigo “Associações Secretas” e sublinhou em vários

outros escritos, chegando a chamar-lhe “fatimólogo”.12

Num outro escrito, Pessoa

7 O parecer da Câmara Corporativa citava o número total de 3.325 maçons, referente a Julho de 1926,

indicando como fonte um relatório do Supremo Conselho da Maçonaria Portuguesa. 8 Carta transcrita em A. H. de Oliveira Marques, A Maçonaria Portuguesa e o Estado Novo (3.ª ed.,

Lisboa: Dom Quixote, 1995), pp. 217-222. 9 BNP/E3, 113P1-87r a 90r. 10 BNP/E3, 113I-31r a 36r. 11 Tratava-se do Congresso Nacional do Apostolado da Oração, que teve lugar em Braga a 9-11 de

Julho de 1930. 12 Fernando Pessoa, Associações Secretas e outros escritos, Lisboa: Ática, 2011, texto 28.

acusou José Cabral de em tempos ter pretendido criar uma associação secreta de

princípios nacionalistas e católicos para combater a Maçonaria.13

Primeira página da tradução para inglês, por Fernando Pessoa, da carta de Norton de

Matos ao presidente da Assembleia Nacional, José Alberto dos Reis, em 31 de

Janeiro de 1935 (BNP/E3, 113I-31r).

Pessoa nunca foi maçon, como ele próprio o afirmou repetidamente, inclusive

em alguns dos textos aqui reunidos. Sabe-se mesmo, pelos seus escritos privados, que

era um crítico da Maçonaria portuguesa, por ele considerada como uma mera

“carbonária ritual” ou “um anticlericalismo secreto”, mas “católico romano em espírito

até à medula”.14

Também se sabe, contudo, por esses escritos, que Pessoa afirmava

nutrir “um sentimento profundamente fraternal” para com a Maçonaria e que, como

assumido cristão gnóstico, se sentia “espiritualmente correligionário dos maçons,

embora sob outra Luz.”15

Por “outra Luz” Pessoa referia-se muito provavelmente ao

facto de se considerar templário, isto é, “iniciado, por comunicação directa de Mestre a

13 Idem, texto 18. 14 Idem, textos 78, 79, 80 e 81. 15 Idem, texto 81.

Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de

Portugal”, como declarou na sua conhecida ficha pessoal datada de 30 de Março de

1935.16

Além disso, numerosos escritos do espólio de Pessoa denotam uma clara

proximidade espiritual em relação à Rosa-Cruz, irmandade esotérica de afinidades

doutrinárias e ligações históricas com a Maçonaria. Num texto de 1935 sobre a

Mensagem, Pessoa afirmava que o seu livro estava “abundantemente embebido em

simbolismo templário e rosicruciano”, circunstância que alegava em justificação da sua

intervenção pública em “defesa integral da Maçonaria”.17

Não terão sido, porém, unicamente sentimentos de fraternidade espiritual para

com a Maçonaria que levaram Pessoa a publicar o artigo “Associações Secretas”. Ele

próprio esclarece os seus motivos mais profundos num escrito que deixou inacabado,

até hoje inédito:

Era esse artigo dirigido directa e aparentemente contra um projecto de

lei que o sr. José Cabral apresentara na Assembleia Legislativa; era dirigido

indirecta e realmente, contra as forças que moveram o sr. José Cabral, quer

ele o saiba quer não. [...] De há bastante tempo que se tornou preciso atacar

certas influências, infiltradas em muita parte e partidos ou pseudo-não-

partidos, que ameaçam, em todo o mundo, a dignidade do Homem e a

liberdade do Espírito. Decidido, desde sempre, a fazer o que pudesse [...]

para contrariar essas forças, servi-me da primeira oportunidade que se me

ofereceu. Foi o projecto de lei do sr. José Cabral; podia ter sido outra coisa

qualquer.18

A fazer fé neste texto, o objectivo de Pessoa era, pois, principalmente político: o

de combater certas influências que ameaçavam, em todo o mundo, a dignidade do

homem e a liberdade do espírito. Essas forças, segundo ele infiltradas em partidos e

pseudo-não-partidos (uma plausível alusão à União Nacional), eram certamente aquelas

mesmas que Pessoa um ano antes − numa carta em defesa da Maçonaria que enviou ao

jornal A Voz − designara por “a tripla prole do Anti-Cristo”: o fascismo, o nazismo e o

comunismo.19

Pessoa via também no projecto de Cabral, como já foi dito, uma

actuação ao serviço dos interesses da Igreja Católica. Cabral era “o tipo perfeito de

reaccionário português”, escreveu Pessoa após a resposta do deputado ao seu artigo.20

E,

sobre a motivação da sua intervenção a favor da Maçonaria, escreveu também:

Uma coisa, e uma só, me preocupa: [...] estorvar os reaccionários

portugueses em um dos seus maiores e mais justos prazeres − o de dizer

asneiras. Confio, porem, na solidez pétrea das suas cabeças e nas virtudes

16 Idem, texto 82. Em carta a Adolfo Casais Monteiro de 13 de Janeiro de 1935, Pessoa disse não

pertencer a qualquer ordem iniciática, declarando ter-lhe sido apenas permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus da Ordem Templária de Portugal. Noutro escrito de 1935 (texto 53), Pessoa declarava,

todavia, que era templário português e que, se antes tinha afirmado (no artigo “Associações Secretas”),

que não pertencia a ordem nenhuma, isso se devia ao facto de a Ordem Templária não estar activa em

Portugal, constituindo apenas um “sistema de iniciação”. Enfim, no poema “S. João”, de Junho de 1935,

Pessoa escreve: “Sou mais que maçon – eu sou templário”. 17 Idem, texto 60. 18 Idem, texto 14. 19 Idem, texto 71. 20 Idem, texto 19.

imanentes naquela fé firme e totalitária que dividem, em partes iguais, entre

Nossa Senhora de Fatima e o senhor D. Duarte Nuno de Bragança.21

A necessidade de demarcação de Pessoa em relação ao poder político relacionava-

se ainda com outros factos, como a circunstância de ter sido um mês antes premiado

pelo governo pelo livro Mensagem e de esta obra ter sido depois elogiada, no jornal do

regime, como uma visão profética da alvorada do Estado Novo 22

– interpretação que

não pode ter deixado de desagradar ao poeta, tão cioso da sua independência, dada a

imagem pública daí resultante de que teria sido recrutado pelo poder com um prémio

monetário.

Acresce a isto um facto coevo, que interessa mencionar. Em 31 de Janeiro de

1935, no mesmo dia em que Norton de Matos escreveu a carta de protesto contra o

projecto de lei antimaçónico, cerca de duzentos jornalistas, escritores, intelectuais e

artistas tinham reunido num banquete em Lisboa, a pretexto da histórica data

republicana. No final foi subscrito um protesto colectivo contra a censura, que havia

sido instalada pela Ditadura Militar nove anos antes. O documento, com 196

assinaturas, foi enviado ao presidente da Assembleia Nacional, tal como o havia sido a

carta do grão-mestre maçónico.23

Em ambos os casos, a Censura cortou qualquer

referência na imprensa.24

Pessoa não participou no banquete dos intelectuais nem

subscreveu sequer posteriormente o protesto, como alguns fizeram, embora não se saiba

se para tal chegou a ser convidado. Diga-se que, se o tivesse feito, não teria sido a

primeira vez que assinava um documento colectivo de intelectuais contra a censura.

Com efeito, em 1923, Pessoa subscrevera, com meia centena de outros escritores e

artistas, um protesto contra a proibição da representação da peça de António Ferro,

“Mar Alto”, que as autoridades tinham suspendido na sequência dos desacatos ocorridos

durante a estreia. Vários nomes de subscritores do protesto de 1923 reaparecem no de

1935, mas não o de Pessoa.

Quatro dias depois da reunião dos intelectuais, a 4 de Fevereiro de 1935, Pessoa

publicava no Diário de Lisboa o seu veemente artigo em defesa da Maçonaria e contra o

projecto de lei de José Cabral. Esse acto, no contexto político do momento, tinha algo

de um alinhamento desalinhado do autor com o protesto subscrito pelos seus pares,

sobretudo se atentarmos nos motivos, atrás citados, com que Pessoa justificou essa

intervenção: a defesa da “dignidade do Homem” e da “liberdade do Espírito”.

21 Idem, texto 13. 22 João Ameal, “Mensagem – Versos de Fernando Pessoa”, Diário da Manhã, 25 de Janeiro de 1935,

p. 3. A Mensagem é aí elogiada por Ameal e o seu autor descrito como profeta do “futuro já presente”. 23 Arquivo da Assembleia da República, Assembleia Nacional, Livro 1, n.º 55, fls. 123-142. Entre

outros, assinaram o documento António Sérgio, Câmara Reis, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Abel

Salazar, José Rodrigues Miguéis, Adolfo Casais Monteiro, João de Barros, Hernâni Cidade, Rodrigues

Lapa, Domingos Monteiro, Bernardo Marques, Joaquim Madureira, Matos Sequeira, Norberto de Araújo,

Manuel Mendes, Rocha Martins, Cunha Leal, Nuno Simões e Ramada Curto. 24 Dias depois, a circular n.º 101 da Direcção-Geral dos Serviços de Censura à Imprensa (DGSCI),

datada de 8 de Fevereiro de 1935, insistia em que nenhuma referência fosse permitida na imprensa a essas

duas “petições”. Insistência desnecessária, porque a censura já tinha cortado as respectivas notícias.

“Associações Secretas”, por Fernando Pessoa, no Diário de Lisboa de 4 de Fevereiro de 1935.

O artigo “Associações Secretas”, escrito num tom crítico totalmente

desacostumado na imprensa amordaçada pela censura, provocou sensação e esgotou o

jornal nas bancas.25

No semanário sensacionalista X, o seu director Reinaldo Ferreira (o

Repórter X) daria depois uma sugestiva descrição do impacto do artigo de Fernando

25 Afirma-o Maia Pinto (T.D.) no Fradique de 28 de Fevereiro de 1935, p. 8. Foi cortada pela censura

uma notícia do jornal O Povo, de 11 de Fevereiro de 1935, em que se referia que a edição do Diário de

Lisboa em que se publicou o artigo de Fernando Pessoa se tinha esgotado completamente, apesar de a

tiragem desse dia ter sido muito aumentada (ANTT/MI, Gab. do Ministro, Mç. 472, p. 1/1, fl. 214).

Pessoa − um desconhecido do grande público cujo nome, “ao som de uma imprevista

pancada de gongo”, surgira bruscamente da sombra, “encharcado pelas luzes de mil

holofotes”. Sem se referir uma única vez, porque a censura o não permitiria, ao título ou

ao conteúdo do artigo de Pessoa que despertara a enorme curiosidade do público,

Reinaldo Ferreira escreve:

Fernando Pessoa que, há dez dias a esta parte, é dos indivíduos mais

discutidos − não só nos cafés, nas esquinas, nas tertúlias da capital, como em

todo o país − é também dos nomes mais ignorados, das personalidades

menos conhecidas... À parte uma minúscula minoria intelectual que não só

não o ignora, como o admira e o entroniza mui alto [...], Fernando Pessoa é

uma incógnita.

O jornalista relata, divertido, especulações que correram sobre a autoria do artigo, que

muitos supunham assinado por um pseudónimo, duvidando da existência de Fernando

Pessoa. E prossegue, na sua característica prosa empolada:

Ora Fernando Pessoa existe, felizmente para as letras portuguesas e

para a guloseima espiritual dos seus raros íntimos. Antes de mais nada, é

preciso que se saiba que a especial e sempre admiravelmente estranha

actividade mental de Fernando Pessoa dura há vinte e tal anos. Já na aurora

desta geração [...] Fernando ocupou um posto marcante de chefe, de

orientador fleumático, oculto, desprezando glórias e troféus − de olhos fixos

apenas no triunfo dos ideais e sonhos estéticos em jogo. Foi ele um dos

generais do célebre Orpheu [...] Não exibe as suas produções; raramente as

publica. São para ele só − e para alguns amigos. A sua missão na vida,

missão mental, espiritual, parece ocultá-la como um segredo e cumpri-la

fervorosamente como um desígnio de Deus.26

A “vertiginosa popularidade”, como Reinaldo Ferreira lhe chamou,

instantaneamente conseguida por Pessoa contrastou com as fortes reacções de desagrado

da imprensa pro-regime. No dia imediato à sua publicação, o artigo de Pessoa foi

atacado num comentário não assinado, inserto na primeira página do Diário da

Manhã,27

órgão oficial da União Nacional, facto que confirma, se tal fosse necessário, o

apadrinhamento do projecto de lei de José Cabral pelo regime. Escrito num tom

chocarreiro, o comentário continha uma alusão a bares, visando veladamente os hábitos

de bebida do poeta – algo que outros críticos de Pessoa, como Alfredo Pimenta e Artur

Bivar, também não deixariam de insinuar em artigos de jornais. O crítico anónimo do

Diário da Manhã lamentava que “o poeta distinto da Mensagem” se tivesse tornado

num prosador ridículo e pretensioso, pretendendo dar uma lição de Maçonaria aos

deputados da Assembleia Nacional, “que não lha pediram”. E finalizava:

Vá lá a gente fiar-se em poetas! No seu poema, o sr. Fernando

Pessoa, ao encerrá-lo, brumoso e profético, tinha-nos anunciado: “É a hora!”

26 O relato não assinado, da presumível autoria de Reinaldo Ferreira, foi publicado no semanário X,

n.º 13, de 7 de Fevereiro de 1935, p. 4, na rubrica “Homens da semana”. Ver também Ilídio Rocha,

“Fernando Pessoa existe”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, 14 de Junho de 1988, p. 14. 27 “A dança das horas. Um poeta e o papão (e que papão!) maçónico”, Diário da Manhã, 5 de

Fevereiro de 1935, p. 1.

Ou porque o relógio do sr. Fernando Pessoa esteja atrasado, ou

porque a loja que lho vendeu era maçónica, o seu brado da Hora Augusta,

depois deste artigo, só encontrará um eco em todo o Portugal:

Ora sebo!...

Comentário não assinado publicado na 1.ª página

do Diário da Manhã de 5 de Fevereiro de 1935

Nesse mesmo dia e nos seguintes, o escrito de Pessoa foi também alvo da

imprensa católica pro-regime. No diário A Voz, após um primeiro editorial do director

Fernando de Sousa, o próprio deputado José Cabral respondeu a Pessoa, voltando à

carga no dia imediato no Diário de Lisboa, fazendo em ambos os jornais observações

ofensivas para com Fernando Pessoa.28

Um Cabral truculento e certamente pouco dado

a leituras afirmava na Voz que Pessoa não passaria de “um raté qualquer da literatura e

da vida” e, no Diário de Lisboa, tratava-o de “pobre escrevedor”, a quem não “valeria a

pena sequer mencionar-lhe o nome”. Chamava-lhe ainda “beócio”, “tolo” e “mimoso

anfíbio”, acusava-o de ter actuado a mando da “seita” (a Maçonaria) e afirmava que

Pessoa, no passado, tinha tido convicções integralistas − o que também era falso.

José Cabral chama a Fernando Pessoa “um raté qualquer da literatura e da vida” (A Voz, 6 de Fevereiro de 1935, p. 1).

Fernando Pessoa tratado por José Cabral de “pobre escrevedor”, a quem “não valeria a pena sequer

mencionar-lhe o nome” (Diário de Lisboa, 7 de Fevereiro de 1935, p. 4).

Seguir-se-iam nos dias imediatos, ainda em A Voz, um artigo contundente de

Alfredo Pimenta, que também fazia insinuações ofensivas para o visado, e um segundo

editorial de Fernando de Sousa. O jornal Novidades, pela pena de Malho (Artur Bivar),

publicaria nada menos de sete artigos de resposta, rebatendo várias das afirmações de

Pessoa, mas usando um tom sobranceiro e expressões que o poeta considerou

impróprias do jornal da Igreja Católica. Numa nota manuscrita posterior, Pessoa

chamará “sovaqueiras romanas” aos jornais católicos como A Voz e Novidades.29

O

artigo “Associações Secretas” seria, inclusive, duramente atacado no semanário

Fradique pelo seu director, Tomás Ribeiro Colaço, um monárquico nacionalista que era

amigo de Pessoa e estava longe de ser um incondicional do regime. Colaço mantinha

28 José Cabral, “Chove no templo...”, A Voz, 6 de Fevereiro de 1935, p. 1, e “O projecto de lei sobre

associações secretas. O sr. dr. José Cabral responde ao artigo do sr. Fernando Pessoa”, Diário de Lisboa,

7 de Fevereiro de 1935, pp. 1 e 4. 29 Associações Secretas e outros escritos, op. cit., texto 45.

boas relações com Rolão Preto, a quem facultaria em Março a primeira página do seu

jornal para tomar posição sobre a lei antimaçónica.30

3. Atendendo à forte reacção de desagrado, perfeitamente previsível, que o

artigo “Associações Secretas” provocou nos meios pro-regime, uma questão se colocava

já então − e se mantém hoje de pé, depois de algumas tentativas baldadas de se lhe

responder: como foi possível que a Censura tivesse deixado passar semelhante texto?

Não existe uma resposta cabal e definitiva para esta pergunta, ainda que seja

possível uma aproximação à verdade. A questão, que escapou a alguns estudiosos31

, não

é de somenos importância, atendendo a que textos politicamente muito mais inofensivos

eram sistematicamente alvo de corte censório total. Especulações indocumentadas que

já se fizeram sobre a aparente “complacência” da censura em relação a Fernando Pessoa

conduziram, como adiante se verá, à formulação de hipóteses aberrantes. Na realidade, a

publicação do artigo foi tão inesperada e surpreendente, tanto para o público como para

o poder, que a resposta a dar a esta questão não deixará de conter aspectos instrutivos

sobre o contexto político do caso. É o que aqui se tentará fazer, com os dados de que

actualmente se dispõe.

Maria da Graça Facco Vianna Martins, que trabalhou vários anos no escritório

da firma Gouveia & Carvalho, na Rua da Prata, onde conheceu e conviveu com

Fernando Pessoa entre 1933 e 1935, prestou sobre o caso um depoimento recolhido e

publicado nos anos 80 por Isabel Murteira França, sobrinha-neta do poeta. Eis esse

curto depoimento, que pretendia ser um esclarecimento definitivo da questão:

Ele [Pessoa] não era político, mas gostava de dar a sua ferradinha. Eu

tinha uma amiga minha na Censura, e fui eu que consegui que ele publicasse

um artigo no Diário de Lisboa; era inofensivo, mas naquela época deu

imenso brado. Ele estava divertidíssimo com o escândalo que aquilo deu.32

O depoimento de Maria da Graça, se constitui uma achega curiosa, levanta

porém, pela sua subjectividade, vários problemas, o menor dos quais não será a

afirmação de que o texto de Pessoa era “inofensivo”. Além disso, o facto de ela ter

intercedido pela publicação do artigo junto de “uma amiga” que trabalhava nos Serviços

de Censura não prova que essa intercessão tenha sido, por si só, eficaz, ou que

circunstâncias mais ponderosas não se lhe tenham sobreposto. Os censores eram todos

militares, o que à partida exclui que “uma amiga” tivesse tido uma interferência

decisória.33

A Censura não funcionava na base de amizades pessoais e, à excepção de

Salazar, ninguém em Portugal, mesmo nos meios do regime, se encontrava ao abrigo do

lápis azul dos censores. Poderia uma mera funcionária do serviço ter persuadido um

censor do carácter alegadamente inofensivo do texto? Não parece plausível, dadas as

flagrantes implicações políticas do escrito, a sua desusada contundência e até o seu

30 Ver na secção 1. da Bibliografia, as referências bibliográficas das peças da polémica. 31 José Blanco, em particular, passa ao lado desta questão em “Fernando Pessoa e as ‘Associações

Secretas’ (o artigo, a polémica e os folhetos)”, em Gilda Santos et alia, Cleonice, Clara em Sua Geração

(Rio de Janeiro: UFRJ, 1995), pp. 305-317. Blanco desconhecia o dactiloscrito do artigo de Pessoa, o que

o leva a tecer algumas hipóteses infundadas sobre as diferentes versões do texto no jornal e no opúsculo. 32 Isabel Murteira França, Fernando Pessoa na Intimidade (Lisboa: Dom Quixote, 1987), pp. 149-

152. O livro contém o fac-simile da dedicatória autógrafa de Pessoa, no livro Mensagem, a Maria da

Graça Facco Vianna Martins, datada de Dezembro de 1934. 33 Sobre os militares e a censura, ver Joaquim Cardoso Gomes, Os Militares e a Censura: A Censura

à Imprensa na Ditadura Militar e Estado Novo (1926-1945) (Lisboa: Livros Horizonte, 2006).

sarcasmo. Pessoa chamou-lhe “uma bomba”, depois de constatar, com satisfação, o

efeito causado no público.

Maria da Graça Facco Vianna Martins nos anos 1930 e dedicatória de Fernando Pessoa à mesma, num

exemplar oferecido de Mensagem, datada de 5 de Dezembro de 1934 (in Isabel Murteira França,

Fernando Pessoa na Intimidade (Lisboa: Dom Quixote, 1987), pp. 178-179.

Sendo altamente improvável que tal artigo possa ter obtido o agrément dos

Serviços de Censura com prévio conhecimento do seu director, Álvaro de Salvação

Barreto, ou sequer dos responsáveis da Comissão de Censura de Lisboa, não pode

todavia excluir-se a hipótese de que o escrito tenha sido autorizado por um censor à

revelia daqueles, isto é, sem o seu conhecimento. Mesmo nesse caso, os responsáveis

teriam de se presumir estranhamente desatentos, dado o grande destaque gráfico e de

paginação dado ao artigo, que ocupava a primeira página e as duas centrais − ou seja, o

espaço mais nobre do Diário de Lisboa, um jornal que era tido pelos Serviços de

Censura como um órgão da “imprensa adversa”. Todavia, um censor não totalmente

sintonizado com a orientação política dominante poderia ter iludido a vigilância dos

responsáveis ou, actuando habitualmente numa base de confiança ou por delegação,

poderia ter autorizado sozinho a publicação, fundado num critério político pessoal − não

sem antes operar um ou outro corte ligeiro, para manter a aparência de rigor, o que

realmente aconteceu, como adiante se verá. De facto, havia ainda na Comissão de

Censura de Lisboa, e por lá continuaram até Setembro de 1935, alguns censores ligados

ao Nacional-Sindicalismo, apesar de o movimento de Rolão Preto ter sido dissolvido

pelo governo de Salazar em Julho do ano anterior. É esse o caso, entre outros, do

capitão João dos Santos Marques, antigo tenente sidonista e cunhado do chefe nacional-

sindicalista Rolão Preto.34

O capitão Marques, um irrequieto militar que já em 1934

estivera envolvido em conspirações, viria a ser preso em Setembro de 1935 por

envolvimento na tentativa do golpe de Mendes Norton e Rolão Preto. Só uma tal brecha

política, aliás datada e provisória, no seio da Comissão de Censura de Lisboa parece

permitir explicar a insólita tolerância para com o artigo de Pessoa.

Que o poeta tinha boas relações pessoais em meios nacional-sindicalistas, isso

parece comprovado pelo facto de em 1932 e 1933 ter publicado duas colaborações

literárias (mas não escritos políticos) no órgão desse movimento, o diário Revolução, a

que o amigo de Pessoa, Augusto Ferreira Gomes, esteve ligado.35

Diga-se que o chefe

nacional-sindicalista Rolão Preto, que só regressou do exílio espanhol em meados de

Fevereiro de 193536

, tomaria em 14 de Março posição pública contra a lei das

associações secretas, não por simpatia para com a Maçonaria, mas por achar que a

“perseguição” e a “repressão” não eram o modo mais inteligente e eficaz de a combater.

Segundo ele, o combate visando “vencer a maçonaria” deveria antes decorrer no plano

das ideias e da persuasão. As soluções do projecto de lei revelavam, no dizer de Rolão

Preto, “primitivismo” e “cegueira”, e eram animadas de um espírito “conservador” e

“reaccionário”.37

Não se sabe até que ponto esta curiosa posição liberal de Rolão Preto

era genuína ou preferencialmente motivada por forte antipatia contra o autor do projecto

de lei, José Cabral, ex-membro do Grande Conselho do Nacional-Sindicalismo e que,

no ano anterior, tinha contribuído destacadamente para a cisão desse movimento

político e tomado posição pela sua ilegalização.

Que forte razão poderia levar um censor militar nacional-sindicalista (mesmo

que com isso anuísse ao pedido de uma senhora) a autorizar, à revelia dos seus chefes, a

publicação do artigo de Pessoa em defesa da Maçonaria, organização que não tinha

qualquer afinidade ideológica ou ligação pessoal com o Nacional-Sindicalismo? Uma

vaga razão poderia estar relacionada com o desagrado existente em certos meios

militares pela projectada lei das associações secretas. Essa circunstância levaria meses

depois a uma insólita colaboração de militares monárquicos e republicanos, entre os

quais oficiais de baixa patente maçons, com os nacional-sindicalistas de Rolão Preto na

tentativa de golpe de 10 de Setembro de 1935, chefiada pelo comandante Manuel

Mendes Norton, um conservador monárquico, aliás primo do general Norton de Matos,

líder da Maçonaria.38

Todavia, uma pista explicativa mais plausível da atitude

permissiva de um censor nacional-sindicalista relacionar-se-ia certamente com o

crescente descontentamento dos seguidores de Rolão Preto para com Salazar, que tinha

decidido a dissolução do movimento em Julho de 1934. Ora, como foi dito, a extinção

do Nacional-Sindicalismo seguira-se a uma cisão no seu seio operada sob o

protagonismo de José Cabral, um devotado salazarista que se transferiu com os seus

sequazes para a União Nacional – razão pela qual teria ganho o lugar de deputado à

34 Idem, pp. 72 e 172. Segundo o autor, João dos Santos Marques entrou para a Comissão de Censura

de Lisboa em Novembro de 1931. 35 Fernando Pessoa, “Do Livro do Desassossego, composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-

livros na cidade de Lisboa”, Revolução, n.º 74, 6 Junho de 1932, e “Mar Português”, Revolução, n.º 383,

16 Junho de 1933. 36 Rolão Preto, que se exilara em Espanha após a dissolução do Nacional-Sindicalismo em 1934,

ainda se encontrava em Madrid em 5 de Fevereiro de 1935. É o que se pode inferir da notícia do seu

iminente regresso a Portugal, constante de um telegrama de Madrid, que foi cortada pela Censura no

Diário de Lisboa de 6 de Fevereiro de 1935 (ANTT/MI, Gab. do Ministro, Mç. 472, p. 1/1, fl. 169). 37 Rolão Preto, “Não!”, Fradique n.º 14 de Março de 1935, p. 1. 38 Luís Cardoso de Menezes, “A revolta Mendes Norton de 1935”, Cadernos Vianenses, t. 44, 2010,

pp. 257-293.

Assembleia Nacional.39

Dado o modo como o artigo de Pessoa personalizava em José

Cabral o alvo do seu ataque ao projecto de lei, mais verosimilhança ganha a hipótese de

que a vingança de um censor nacional-sindicalista contra o cisionista e trânsfuga José

Cabral possa ter estado na origem da aparente falha ou permissividade da censura.

Cabral era, de facto, odiado e vilipendiado pelos partidários de Rolão Preto.40

Muito arriscado seria, neste ponto, conjecturar a possibilidade de que Fernando

Pessoa já anteriormente tivesse sido solicitado por alguém daquele mesmo quadrante

político para escrever o próprio artigo “Associações Secretas”. Embora o seu

relacionamento pessoal com nacional-sindicalistas ou aparentados permita,

teoricamente, essa especulação (como se disse já, um íntimo do escritor, Augusto

Ferreira Gomes, também colaborara no jornal Revolução, antes de se tornar redactor do

Diário da Manhã, órgão da União Nacional), não é, porém, de crer que Pessoa tivesse

resolvido intervir publicamente por encomenda de uma qualquer facção política. Não

foi o artigo “Associações Secretas”, aliás, a sua primeira tentativa de publicar uma

defesa da Maçonaria: já o tinha feito em Janeiro de 1934, em carta enviada ao jornal A

Voz, que a não publicou. Se Pessoa tinha, como se disse, relacionamentos pessoais na

área do Nacional-Sindicalismo, eram escassas, ou nenhumas, as suas afinidades

ideológicas com o movimento. Em vão pretendeu Alfredo Margarido, em oito (!) textos

publicados entre 1975 e 1986, construir uma imagem se não fascista, pelo menos

fascizante de Pessoa, retratando-o como “ídolo dos nacional-sindicalistas” e tentando

provar que Pessoa “admirou Mussolini”, depois de em 1971 o ter caracterizado, num

longo artigo de fundamentação marxista, como um ideólogo da burguesia.41

Margarido

não apresentou melhor prova dos supostos “laços que uniam Pessoa à extrema-direita” e

da sua alegada proximidade ao Nacional-Sindicalismo do que a “campanha”

desenvolvida no jornal Revolução por Augusto Ferreira Gomes, íntimo de Pessoa,

visando a adopção do poema “Mar Português” pelos livros de leitura do ensino público

(que, de facto, não foi então adoptado).42

Num artigo em que confessa lançar-se numa

“extrapolação não documentada”, Margarido atribui as duras críticas que Pessoa fez a

Salazar à mera diferença de estilos dos ditadores português e italiano. Margarido

sustenta sem qualquer prova que, para Pessoa, “a figura carismática por excelência é,

naturalmente, Mussolini, cujo verbo e cuja veemência física se aproximam de Hitler,

mas se afastam de Salazar”.43

Não é arriscado afirmar que Fernando Pessoa − seguidor atento da política

portuguesa, conhecedor dos rumores de golpes e ecos dos bastidores que, por essa

altura, lhe chegavam nas tertúlias e cafés que frequentava e, por isso, certamente bem

informado do descontentamento que grassava nas hostes nacional-sindicalistas,

republicanas e em meios militares reviralhistas − tivesse escrito o artigo “Associações

Secretas” na posse de toda essa informação. Seria, porém, entrar no domínio da pura

especulação admitir a possibilidade de Pessoa ter sido utilizado como articulista político

39 A. Costa Pinto, Os Camisas Azuis: Ideologia, Elites e Movimentos Fascistas em Portugal (Lisboa:

Estampa, 1994). O autor afirma que Cabral foi o único ex-membro do Nacional-Sindicalismo premiado

por Salazar com um lugar de deputado à Assembleia Nacional, pelo seu papel na cisão anti-Rolão Preto e, até, na liquidação do Nacional-Sindicalismo. O trânsfuga José Cabral terá aconselhado a Salazar uma

atitude firme contra o movimento de que fizera parte (op. cit., pp. 263, 265 e 299). 40 Refere A. Costa Pinto que, em privado, os adeptos de Rolão Preto alcunhavam os seguidores do

cisionista José Cabral de “cabrões” (op. cit., p. 257). 41 Ver a lista dos artigos de Alfredo Margarido na bibliografia final. 42 A. Margarido, “Pessoa, ídolo dos nacional-sindicalistas”, JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º

73, 25 de Novembro de 1983, p. 11. 43 A. Margarido, “Nota curta para lembrar que Pessoa admirou Mussolini”, JL – Jornal de Letras,

Artes e Ideias, n.º 85, 21 de Fevereiro de 1984, p. 11.

por qualquer grupo conspirador ou, mesmo, de o conteúdo do seu artigo ter sido

previamente concertado com alguém da área nacional-sindicalista. Ainda que o artigo

em defesa da Maçonaria possa ter correspondido a objectivos precisos e bem

delimitados desse sector político, tal não significa que Pessoa tivesse sido recrutado ou

usado por ele. O artigo foi, de resto, publicado no Diário de Lisboa, jornal independente

e plural, de simpatias oposicionistas e liberais, que nada tinha que ver com o Nacional-

Sindicalismo. O artigo seria também aplaudido (veremos como) pelo semanário O

Diabo, ligado à intelectualidade de esquerda republicana, socialista e comunista, com a

qual Pessoa também nada tinha a ver.

Dispõe-se apenas de elementos parcelares, ainda que muito relevantes, sobre a

reacção dos responsáveis da Censura e do próprio governo nos dias imediatos à

publicação do artigo de Pessoa. A 8 de Fevereiro de 1935, quatro dias depois da

publicação do artigo “Associações Secretas”, o director-geral dos Serviços de Censura,

major Álvaro Salvação Barreto, emitiu uma circular com instruções aos seus serviços.

Nela, constatando o “acréscimo de combatividade notada na imprensa adversa” desde a

abertura da Assembleia Nacional (11 de Janeiro), Salvação Barreto determina que as

comissões e delegações de censura “permaneçam atentas”, alerta para que a censura

“não deve atenuar o rigor da sua acção” e exige “o máximo rigor na apreciação de toda

a matéria suspeita”. Mais adiante, proíbe que se dê “relevo” ao artigo de Fernando

Pessoa ou que se fizessem até “simples referências” ao assunto, que doravante deveria

ser “evitado”, tendo em vista o seu desejado “esquecimento”.44

Como antecedente

directo desta circular, dois dias antes, na tarde de 6 de Fevereiro, Salazar tinha reunido

com o director Salvação Barreto, com o assunto “Instruções” na agenda 45

, facto que

sugere de quão perto Salazar acompanhou o caso do artigo de Fernando Pessoa. Pode

imaginar-se a surpresa e o desagrado do ditador, vendo um escritor recém-premiado

pelo Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) − órgão adstrito à própria Presidência

do Conselho − tomar uma posição política tão contrária aos interesses do regime e fazê-

lo com tão grande repercussão pública. Obviamente, também o director da Censura foi

apanhado de surpresa pela publicação do artigo do Diário de Lisboa, pois não é de crer

que, em 1935, Salvação Barreto ou os responsáveis da Comissão de Censura de Lisboa,

todos de comprovada fidelidade a Salazar46

, ainda precisassem de instruções detalhadas

do chefe do governo para decidir sobre um artigo que tomava tão notoriamente a defesa

da Maçonaria, o arqui-inimigo do Estado Novo e da Igreja Católica, e que se permitia

até fazer referências desrespeitosas a órgãos do poder.

44 Circular n.º 101 da DGSCI de 8 de Fevereiro de 1935, já citada. Ver o fac-simile da circular em

Richard Zenith, Fotobiografias Séc. XX: Fernando Pessoa (Lisboa: Círculo de Leitores, 2008), p. 164. 45 ANTT/AOS/1/5/37, Agenda de 1935, dia 6 de Fevereiro. Numa entrada do dia, lê-se: “Director da

Censura – Instruções”. 46 A obra atrás citada de J. Cardoso Gomes sustenta a inteira fidelidade a Salazar dos responsáveis da

censura a partir de 1932. Aparentemente, não foi demitido qualquer censor em consequência da falha da

censura. Esta obra não se refere ao caso, embora aluda às instruções do director da censura para silenciar

a polémica jornalística em torno do artigo de Pessoa.

Página da agenda de Salazar do dia 6 de Fevereiro de 1935, com a referência “Director da Censura – Instruções”, relativa a uma reunião do ditador com Salvação Barreto, que esteve na origem da

circular deste aos Serviços de Censura proibindo referências ao artigo de Fernando Pessoa.

Parece claro que a circular do director da Censura constituía uma reprimenda e

um aviso endereçados ao censor ou censores responsáveis pela clamorosa falha de

“atenção” e “rigor” na apreciação do artigo de Fernando Pessoa. Antes mesmo de emitir

essas instruções por meio da dita circular, já Salvação Barreto tinha diligenciado junto

dos serviços para que elas fossem cumpridas sem falhas. Assim, referências elogiosas a

Pessoa e ao seu artigo foram cortadas pela censura já na edição de O Diabo de 7 de

Fevereiro47

, dia seguinte à reunião de Salazar com Salvação Barreto, tendo esse

semanário apenas podido homenagear Pessoa com uma fotografia sua na primeira

página, sob o inofensivo título “Figuras da actualidade”. A 11 de Fevereiro, o jornal

republicano de esquerda O Povo, do Funchal, seria por sua vez impedido de anunciar a

47 ANTT/MI, Gab. do Ministro, Mç. 472, p. 1/1, fl. 170.

próxima publicação nas suas páginas do artigo de Pessoa.48

Não obstante, o Fradique

ainda pôde publicar diversos textos sobre o caso durante o mês que se seguiu, nenhum

deles, obviamente, elogioso do artigo de Pessoa. O artigo de Rolão Preto "Não!", na

edição de 14 de Março do Fradique, embora muito crítico do sentido do projecto de lei

antimaçónico, não defendia a Maçonaria nem apoiava o artigo de Pessoa, ao qual, de

resto, nem sequer se referia.

O "Não!" de Rolão Preto à lei antimaçónica (Fradique, 14 de Março de 1935, p. 1).

48 Idem, fl. 214.

Isso não impediu Alfredo Margarido, apostado em sustentar a proximidade de

Pessoa à extrema-direita, de afirmar abusivamente que Rolão Preto foi “muito

singularmente, o único defensor de Fernando Pessoa”49

− parecendo até ignorar que, por

força da censura, nenhum defensor de Fernando Pessoa poderia ter vindo a terreiro

defendê-lo.50

Ao contrário de Pessoa, Rolão Preto não tinha qualquer simpatia pela

Maçonaria e os argumentos por ele usados contra o projecto de José Cabral pouco ou

nada tinham em comum com os expendidos no artigo “Associações Secretas”. Não

obstante, Pessoa elogiou a tomada de posição de Rolão Preto, cuja argumentação, neste

caso, tinha assumido simplesmente um cunho liberal, à revelia das posições políticas

habituais do chefe nacional-sindicalista, claramente antiliberais.

Que o artigo “Associações Secretas” foi realmente submetido à Censura e esta o

deixou passar, sabemo-lo pelo boletim de registo de cortes que a Comissão de Censura

de Lisboa elaborava semanalmente para o governo e, também, pelo próprio Fernando

Pessoa. O relatório com o sumário dos cortes operados na semana de 4 a 10 de

Fevereiro de 1935, assinado pelo capitão Dimas Lopes de Aguiar (homem da confiança

de Salvação Barreto, fiel salazarista e futuro subdirector dos Serviços de Censura),

começava por observar que o artigo de Pessoa discordava da doutrina do projecto de lei

apresentado na Assembleia Nacional. Não obstante, segundo este responsável, apenas o

subtítulo do artigo foi cortado, em virtude do seu carácter “tendencioso”, dado nele se

afirmar que o projecto de lei era “ao mesmo tempo inútil, injusto e prejudicial para o

país”.51

Ora essa mesma afirmação era feita por Pessoa no corpo do artigo, sem que

tivesse sofrido corte, para não mencionar muitas outras afirmações passíveis de serem

censuradas (por muito menos, a decisão habitual da censura era o “corte total” do

artigo). Diga-se que o original dactilografado, cuja cópia se encontra no espólio de

Pessoa, se intitulava “Um projecto de lei” e não tinha qualquer subtítulo. Não se sabe se

a iniciativa de alteração do título para “Associações Secretas” foi da redacção do Diário

de Lisboa ou, eventualmente, proposta pelo censor. Quanto ao “subtítulo” (isto é, o

título da continuação nas páginas centrais), é muito provável que ele tenha sido da

responsabilidade da redacção e que esta, depois do corte pela censura, o tenha

substituído por outro.52

Num manuscrito coevo, Pessoa refere que o artigo foi deixado passar

“integralmente” pela Censura.53

Noutra nota de 1935, Pessoa afirmava que, se havia

alguém que, até então, não se podia queixar da censura, era ele próprio.54

A censura era

já então extremamente rigorosa e atenta ao menor sinal de dissonância política. Vários

exemplos de cortes integrais efectuados pela censura durante a mesma semana são

eloquentes a esse respeito. Até a imprensa afecta ao regime teve notícias e textos

cortados, não, obviamente, por tomarem posição contra o poder político, mas porque

foram simplesmente julgados “inconvenientes”, “prematuros”, etc. Permanece a

questão: se o artigo de Pessoa foi considerado pela Censura como contrário à doutrina

49 A. Margarido, “Introdução”, em Fernando Pessoa, Santo António, São João, São Pedro, org.

Alfredo Margarido (Lisboa: A Regra do Jogo, 1986), p. 17. 50 A censura nem sequer deixou passar notícias sobre os aplausos de que o artigo de Pessoa foi alvo.

No jornal O Povo de 13 de Fevereiro de 1935 foi cortada uma local que referia que Fernando Pessoa tinha

“recebido inúmeras cartas e telegramas de felicitações pelo brilhante artigo que há dias publicou nas

colunas do Diário de Lisboa” (ANTT/MI, Gab. do Ministro, Mç. 472, p. 1/1, fl. 237). 51 ANTT/MI, Gab. do Ministro, Mç. 472, p. 1/1, fl. 169. 52 O título nas páginas centrais do Diário de Lisboa era: “Análise serena e minuciosa ǀ O projecto de

lei apresentado ao Parlamento acerca de associações secretas ǀ apreciado e largamente comentado pelo sr.

Fernando Pessoa”. 53 Associações Secretas e outros escritos, op. cit., texto 6, nota b. 54 Idem, texto 59.

do projecto de lei, porque lhe foi apenas cortado um subtítulo, que se limitava a

reproduzir uma passagem não cortada do texto?

O deputado José Cabral, apanhado de surpresa pela intrigante falha da censura,

afirmaria mais tarde, em 5 de Abril, durante o debate da lei na Assembleia Nacional, ter

conhecimento dos meios de que a Maçonaria se teria servido, depois de alegadamente

ter mandado Fernando Pessoa fazer a sua defesa num jornal, para “conseguir que, na

imprensa portuguesa, essa defesa aparecesse”. Apesar de insinuar assim que a passagem

do artigo pelas malhas da censura se teria devido a uma maquinação da Maçonaria, o

deputado entendeu, porém, não ser naquele momento “oportuno falar desse aspecto da

questão”, ou para não ter que denunciar os responsáveis directos pela falha da censura

ou para evitar falar sobre certas cumplicidades políticas e conspirações em curso.

Esclareça-se que decorriam nesse mesmo momento contactos conspiratórios, que eram

do conhecimento da polícia política, entre militares republicanos, incluindo maçons, e

os meios civis e militares do Nacional-Sindicalismo, contactos que desembocariam em

duas tentativas de golpe nesse ano. Em todo o caso, é muito significativo que Cabral

tenha imputado a publicação do artigo a um estratagema qualquer da Maçonaria, o que

exclui a hipótese de o texto ter obtido luz verde dos responsáveis dos Serviços de

Censura.

Perante o mistério da insólita permissividade da censura, Alfredo Margarido, a

quem essa estranha circunstância não escapou, aventou a hipótese de Pessoa ter sido

“manipulado” ou a de a publicação do artigo ter sido permitida por uma “astúcia” do

governo, que assim teria pretendido varrer “toda e qualquer outra forma de oposição

pública” à lei antimaçónica.55

Margarido chega a admitir a absurda eventualidade de

Salazar ter dado o seu aval à publicação.56

Além de tortuosas e infundadas, tais

hipóteses são muito pouco verosímeis. O governo não precisava de qualquer pretexto

astucioso para silenciar a oposição, neste ou em qualquer outro assunto. A Censura

intervinha então com todo o rigor por razões bem menos ponderosas, como foi dito. Até

a mera citação de uma afirmação do presidente da Assembleia Nacional, proferida em

plena sessão, foi cortada, por “inconveniente”, em todos os diários do dia 8 de

Fevereiro.57

O artigo de Pessoa, recorde-se, além do seu tom geral de crítica sarcástica,

chamava “dominicano” e “inquisidor” ao deputado católico José Cabral, duvidava da

sapiência dos restantes deputados e chegava até a ironizar sobre o Conselho de

Ministros, permitindo-se apontá-lo, por redução ao absurdo, como uma “associação

secreta”, dado que o que se passava nas suas reuniões era igualmente rodeado de sigilo.

Sublinhe-se, uma vez mais, que o projecto de lei de José Cabral contou com a luz verde

de Salazar, embora a apresentação do projecto de lei na Assembleia Nacional tenha sido

uma iniciativa individual e extemporânea e, por isso, certamente pouco ao gosto dos

altos responsáveis políticos de então. Uma vez apresentado na Assembleia, o projecto

de lei poderia ter sido esquecido, remetido para as calendas gregas ou substituído por

um projecto de diploma de âmbito mais vasto (como o parecer da Câmara Corporativa

declarou que teria sido preferível). Ora não foi isso o que realmente se passou, mas sim

a cooptação do projecto de lei pelo governo e pela Assembleia. Dois anos depois, em

1937, outro projecto de lei da iniciativa individual de José Cabral, visando a

reintrodução da pena de morte em Portugal, foi simplesmente chumbado nos bastidores,

não chegando a ser admitido à discussão no hemiciclo.

55 A. Margarido, “Introdução” a Fernando Pessoa, Santo António, São João, S. Pedro, op. cit., p. 16. 56 Idem, p. 15. 57 ANTT/MI, Gab. do Ministro, Mç. 472, p. 1/1, fl. 169. Foi cortada em toda a imprensa a notícia

sobre a resposta do presidente da Assembleia Nacional, José Alberto dos Reis, à petição dos intelectuais

contra a censura.

Alfredo Margarido conjecturou ainda que Fernando Pessoa, decidido a defender

publicamente a Maçonaria, se teria valido do seu prestígio recentemente adquirido junto

dos meios governamentais, devido ao prémio que lhe foi atribuído pela Mensagem. É

sabido que Pessoa era então ainda tido, em alguns dos meios que frequentava, por

“situacionista”. Ele próprio se considerava ainda, no início de Fevereiro de 1935, um

“situacionista por aceitação”, embora não “por convicção”.58

O director da propaganda

António Ferro e o ideólogo do regime João Ameal (autor do Decálogo do Estado Novo),

secundados por Augusto Cunha, Augusto Ferreira Gomes e outros, alimentavam desde

pelo menos 1934 o projecto de captar Fernando Pessoa, de retirar do seu “isolamento”

esse ilustre desconhecido do grande público e de fazer dele uma espécie de poeta e

profeta do regime, numa aplicação prática da “Política do Espírito” definida por

António Ferro. A Mensagem foi premiada e o seu prémio pecuniário muito aumentado

em relação ao previsto no regulamento por insistência de Ferro, que teria até avançado à

tipografia o custo da impressão do livro.59

Como já aqui se disse, o livro de Pessoa foi

depois publicamente elogiado por João Ameal, que o apresentou como sintonizado com

os objectivos do regime. Censurar, pois, um autor “nacionalista”, pouco antes premiado

pelo governo e alvo de elogio no Diário da Manhã, poderia ter suscitado estranheza e

corrido o risco de alienar do regime uma figura cuja tentativa de captação estava em

curso. Mas nada disto é convincente como explicação da insólita permissividade da

censura, embora se possa conjecturar que o censor que autorizou o texto possa ter-se

valido de argumentos desse jaez para justificar a posteriori a sua decisão. Mereceria

talvez mais consideração a circunstância, também alegada por Alfredo Margarido, de o

artigo “Associações Secretas” ter involuntariamente fornecido um argumento de fácil

exploração pelo campo anti-Maçonaria, a saber, a eventualidade, sublinhada algo

ingenuamente por Pessoa, de represálias da internacional maçónica contra Portugal caso

fosse aprovada uma lei antimaçónica no país. Ficaria desse modo patente – os críticos

do artigo de Pessoa assim o sustentaram depois nos jornais – que a Maçonaria, pelos

argumentos dos seus próprios defensores, corporizava uma interferência supra-nacional

e ilegítima nos negócios políticos internos. Não sendo totalmente absurda, a hipótese de

que este cálculo poderia ter facilitado a publicação do artigo seria mais verosímil se o

governo ou os Serviços de Censura usassem de tal táctica noutras ocasiões. Ora isso

nunca se verificou na década de 30: mesmo quando o poder atacava os seus críticos, que

a maior parte das vezes simplesmente ignorava, jamais permitia que publicassem as

suas posições nos jornais. Críticos do governo de Salazar como Afonso Costa,

Bernardino Machado ou Cunha Leal publicavam então as suas críticas no estrangeiro ou

recorriam a publicações clandestinas.

A Censura − ou um determinado censor, por sua conta e risco − deixou, de facto,

passar o longo e rebarbativo artigo de Pessoa sem alterações de maior, ainda que não

“integralmente”, como o escritor chegou a pretender. De facto, além do “subtítulo”

censurado, acontece que desapareceu no texto do jornal uma referência velada que o

original de Pessoa fazia ao Presidente da República, general Óscar Carmona, insinuando

a sua qualidade de ex-maçon. Não se sabe se esse desaparecimento se deveu à censura,

cujo relatório não regista tal corte, ou à redacção do Diário de Lisboa, com eventual

acordo do autor. Também não é possível saber a quem atribuir outras diferenças que se

podem verificar entre o original dactilografado do artigo e o texto publicado, como a

referência à situação da Maçonaria na Rússia, mais contundente para com o regime

comunista no texto saído no Diário de Lisboa do que no original. Sabe-se, no entanto,

58 Associações Secretas e outros escritos, op. cit., texto 57. 59 José Blanco, “A verdade sobre a Mensagem”, em Steffen Dix e Jerónimo Pizarro (orgs.), A Arca de

Pessoa (Lisboa: ICS, 2007), pp. 147-158.

que os censores faziam por vezes sugestões de alteração dos textos às redacções dos

jornais, o que pode ter acontecido neste caso.

Concluindo este ponto, uma parte do mistério perdura. José Cabral não revelou

aquilo que declarava saber sobre a origem da falha da censura, que atribuiu

laconicamente a vagas maquinações da Maçonaria. Alfredo Margarido fez sobre o caso

meros juízos especulativos, alguns deles completamente destituídos de fundamento.

Como o depoimento de Maria da Graça Facco Vianna Martins também não resolveu a

questão, não existem até hoje provas definitivas do que se terá realmente passado. A

hipótese que parece mais verosímil, todavia, é a de que a publicação de “Associações

Secretas” tenha sido autorizada, à revelia dos responsáveis do serviço, por um censor

menos sintonizado com a orientação política do governo, possivelmente um nacional-

sindicalista motivado pela sua forte antipatia por José Cabral − sempre pressupondo,

como se disse, alguma desatenção por parte dos chefes dos Serviços de Censura, sobre

cuja fidelidade a Salazar não existem dúvidas.

4. Não é este o lugar para se historiar a polémica jornalística que se seguiu à

publicação do artigo “Associações Secretas”. Uma síntese da polémica e algumas peças

dela foram já publicadas.60

Foi, de resto, uma polémica abortada e unilateral, porque

nem ao autor nem a outros críticos do projecto de lei foi dada a possibilidade de

voltarem a abordar o assunto. Perante a resolução de Salazar, transmitida ao director da

Censura, de não permitir o prosseguimento do debate e de fazer “esquecer” o assunto,

Pessoa não pôde realizar a sua intenção de responder no Diário de Lisboa aos seus

críticos61

nem a de publicar em opúsculo uma reedição correcta e anotada do artigo.62

Acabaria por surgir apenas, ainda em 1935, uma edição clandestina do texto, truncado e

não anotado, em folheto aparentemente publicado pelo Grande Oriente Lusitano63

, mas

tendo como fonte o original dactilografado do escritor e não o texto saído no jornal. Por

força dos constrangimentos da censura64

e, porventura também, do estado de desânimo

em que Pessoa caiu65

, não se concretizariam outros planos editoriais seus, como o de

publicar um livro sobre o caso, (para que imaginou o título Tarde e a Boas Horas66

), ou

o primeiro número de uma revista da sua lavra, baptizada Norma67

, em ambos prevendo

reproduzir o artigo “Associações Secretas”. A depressão e a doença de que alguns dos

seus últimos textos dão testemunho prenunciam já o fim próximo. O poema resignado

“Ouvi os sábios todos discutir...”, um rubaiyat escrito no início de Outubro, dois meses

antes da sua morte, dá bem conta do seu estado de espírito.68

Pessoa alude aí a uma

60 Além do artigo de José Blanco atrás citado, ver Fernando Pessoa, Hyram: filosofia religiosa e

ciências ocultas, notas e posfácio de Petrus (Porto: CEP, ca.1953), que também contém a versão do artigo

“Associações Secretas” que Petrus já publicara no ano anterior. 61 Associações Secretas e outros escritos, op. cit., especialmente os textos 13 e 14. 62 Idem, capítulo III. 63 Assim o admitiu, embora o não declarasse taxativamente, o historiador A. H. de Oliveira Marques,

que foi grão-mestre do GOL, numa entrevista publicada em 14 de Junho de 1988 no JL, p. 15. Existe uma

segunda versão, de igual conteúdo, do opúsculo clandestino, um “folheto de capa branca” referenciado por José Blanco no estudo citado.

64 Associações Secretas e outros escritos, op. cit., texto 59. Ver também a carta de 30 de Outubro de

1935 a Adolfo Casais Monteiro (apenas começada), em Fernando Pessoa, Correspondência 1923-1935,

ed. Manuela Parreira da Silva (Lisboa: Assírio & Alvim, 1999), pp. 357-358, na qual Pessoa se declara

decidido a não mais escrever para qualquer publicação ou livro em Portugal. 65 Ver carta a Marques Matias em Fernando Pessoa, Correspondência 1923-1935, op. cit., p. 358-359. 66 Associações Secretas e outros escritos, op. cit., textos 7 e 67. 67 Idem, texto 68. 68 Idem, texto 63.

polémica em que preferiu não participar, embora a todos os opositores pudesse refutar

facilmente. Imagina-se sem custo que polémica podia ter em mente. O poeta diz preferir

a sombra e limitar-se a ouvir, aconselhando obediência ao poder, quer este mande mal

quer bem, porque a vida dura pouco e, por isso, “não há muito que sofrer”.

“Ouvi os sabios todos discutir...” (BNP/E3, 63-43r).

Contrastando com o pessimismo e o desânimo em que o escritor cai nos meses

finais – caso já flagrante, em Junho, do poema “Elegia na Sombra”, a chamada anti-

Mensagem −, o artigo “Associações Secretas” tinha, contudo, dado o sinal de partida

para uma torrente de escritos políticos animados de um espírito claramente combativo.

Sobretudo os textos posteriores ao discurso de Salazar proferido, a 21 de Fevereiro, na

sessão de distribuição dos prémios literários do SPN (a que Pessoa faltou), revelam uma

posição política clarificada e de grande contundência contra Salazar e o Estado Novo.69

Pessoa diria depois que Salazar, no referido discurso, tinha enxovalhado “todos os

escritores portugueses – muitos deles seus superiores intelectuais – com a fútil

imposição de ‘directrizes’ que ninguém lhe pediu” e, com isso, de um só golpe afastara

de si “o resto da inteligência portuguesa que ainda o olhava com uma benevolência já

um pouco impaciente e uma tolerância já vagamente desdenhosa”.70

Nos meses que se

seguem Pessoa escreve uma dezena de poemas satíricos contra o ditador e o Estado

Novo, entre eles o conhecido tríptico sobre Salazar, de que circularam cópias nos cafés

de Lisboa, e numerosos textos políticos, quase sempre inacabados, de que se destacam

69 José Barreto, “Salazar and the New State in the Writings of Fernando Pessoa”, Portuguese Studies,

vol. 24 (2) 2008, pp. 168-214. 70 Idem, p. 206.

uma carta dirigida ao Presidente Carmona tomando posição contra o governo, um longo

texto em francês atacando Salazar e um comentário demolidor a um discurso de tom

totalitário do ministro da Justiça Manuel Rodrigues.

Apesar das recaídas depressivas, Pessoa escreve ainda em Novembro, a semanas

da sua morte, mais dois poemas políticos. Num deles, o “Poema de Amor em Estado

Novo”, glosa com sarcasmo os temas recorrentes da propaganda estadonovista, fingindo

seguir as “directrizes” que Salazar impusera aos escritores e artistas no discurso de 21

de Fevereiro. A esse poema Pessoa apõe ironicamente no final, como assinatura, a

expressão “o demo-liberalismo Maçónico-comunista” – uma citação do discurso do

poder71

, que habitualmente amalgamava Maçonaria e comunismo.72

A ideia de uma

conspiração maçónico-comunista em Portugal não tinha qualquer fundamento real, mas

era retoricamente utilizada pelo regime devido à circunstância de Portugal ter, desde

1931, como vizinha a Segunda República espanhola, “maçónica” e “vermelha”. O

“contubérnio maçónico-comunista” tornar-se-ia na grande obsessão do ditador Franco.

Na mesma torrente de escritos políticos de 1935 integram-se vários textos sobre

outros temas, como dois artigos sobre a invasão da Etiópia pela Itália fascista, escritos

em Outubro, em que Pessoa critica o fascismo e o imperialismo colonialista italianos.

Um deles, acabado e assinado, foi aparentemente recusado pela Censura, o outro ficou

inacabado.73

Antes de, em fins de Outubro, decidir não publicar mais em Portugal, nem

em publicações periódicas nem em livro74

, Pessoa planeava ainda colaborações para os

vespertinos Diário de Lisboa e República, os semanários Fradique e O Diabo e a

revista Presença, todos encarados como “adversos” pelo poder político.75

Se não há

sinais de que o escritor se dispusesse a enfileirar no campo da oposição democrática ou

da esquerda antifascista, a ruptura categórica com a situação salazarista era clara, depois

de anos de “aceitação”, ainda que não isenta de críticas e reservas.

Desta evolução faz também parte o seu repúdio do folheto O Interregno. Defesa

e Justificação da Ditadura Militar, que escrevera em fins de 1927, muito antes da

ascensão de Salazar, e que é habitual citar como prova das alegadas posições de

extrema-direita de Fernando Pessoa. Num texto datável de 1933-34, Pessoa diz: “Dou

hoje esse escrito por não escrito”.76

E planeia publicar um novo folheto, que tomaria já

em conta a aprovação da nova Constituição e a criação do Estado Corporativo (o

plebiscito constitucional é de Março de 1933 e a legislação corporativa é de Setembro

do mesmo ano), com os quais afirma não concordar: “a ambos aceito, por disciplina; de

ambos discordo, porque não concordo”.77

Nos anos finais, Pessoa teorizará em vários

escritos sobre o “nacionalismo liberal”78

, demarcando-se dos nacionalismos estatistas e

totalitários e, nomeadamente, do “nacionalismo animal” de Hitler e Mussolini.79

71 Pessoa rematara já o famoso triplo poema satírico contra Salazar, datado de 29 de Março de 1935,

com a assinatura “Um sonhador nostálgico do abatimento e da decadência”, expressão retomada do

discurso de Salazar de 21 de Fevereiro. 72 Por exemplo, em 27 de Janeiro de 1936, o órgão da União Nacional Diário da Manhã declarava

que “a ofensiva maçónico-comunista é um facto”. 73 Os dois artigos foram reproduzidos em apêndice a José Barreto, “Fernando Pessoa e a invasão da

Abissínia pela Itália fascista”, Análise Social n.º 193, 2009, pp. 693-718. 74 Carta inacabada (não enviada) a Adolfo Casais Monteiro em 30 de Outubro de 1935 (BNP/E3,

1141-36r), publicada em Adolfo Casais Monteiro, A Poesia de Fernando Pessoa, org. José Blanco

(Lisboa: INCM, 1985). 75 Associações Secretas e outros escritos, op. cit., texto 67. 76 BNP/E3, 92A-26r. Publicado em Fernando Pessoa, Da República, op. cit., pp. 361-362. 77 Idem. 78 Veja-se, por exemplo, o texto intitulado “Nacionalismo liberal”, publicado em Fernando Pessoa,

Ultimatum e Páginas de Sociologia Política, org. Joel Serrão (Lisboa: Ática, 1980), pp. 343-351.

79 BNP/E3, 92M-62r a 63r, intitulado “Nacionalismo” (inédito).

Sobre O Interregno Pessoa escreverá novamente, em 30 de Março de 1935, que

ele deveria “ser considerado como não existente”, acrescentando: “Há que rever tudo

isso e talvez que repudiar muito.” 80

A partir do artigo “Associações Secretas”, torna-se

cada vez mais claro o retorno consequente à posição do “nacionalista e liberal” que

Pessoa, em escritos coevos, afirma sempre ter sido:

Fui sempre, e através de quantas flutuações houvesse, por hesitação de

inteligência crítica, em meu espírito, nacionalista e liberal”.81

[...] de facto, fui sempre fiel, por índole, reforçada por educação − a

minha educação é toda inglesa −, aos princípios essenciais do liberalismo,

que são o respeito pela dignidade do Homem e pela liberdade do Espírito,

ou, em outras palavras, o individualismo e a tolerância, ou, ainda, em uma

só palavra, o individualismo fraternitário.82

Após a morte de Pessoa, o semanário cultural Bandarra − que o SPN de António

Ferro lançara em 1935 expressamente para fazer guerra às publicações literárias

adversas do regime – decidiu passar uma esponja sobre o episódio do artigo

“Associações Secretas” e tentar refazer a imagem de um Pessoa nacionalista, defensor

da Ditadura e profeta do Estado Novo. Nos últimos quatro números do semanário, que

terminou com a edição de 11 de Janeiro de 1936, foi reeditado o texto integral de O

Interregno.83

É muito pouco provável que Augusto Ferreira Gomes, colaborador do

Bandarra, desconhecesse o repúdio do folheto pelo autor, seu amigo íntimo. O

recrutamento de Pessoa para profeta do regime, que havia falhado em vida do poeta, era

agora tentado depois de morto. Para cúmulo da má-fé, a Editorial Império, editora do

Bandarra e ligada ao SPN, reeditaria em 1940 o poema de Pessoa “À Memória do

Presidente-Rei Sidónio Pais”, precedido da transcrição da ficha pessoal inédita que o

poeta elaborara sobre si próprio em 30 de Março de 1935, na qual tinha claramente

repudiado O Interregno, mas com essa e outras partes politicamente inconvenientes

cortadas.84

O artigo “Associações Secretas” e os escritos políticos posteriores revelam uma

nova fase na evolução do posicionamento político de Fernando Pessoa, mas que a morte

prematura interrompeu. A sua intervenção pública em defesa da Maçonaria funcionou

como um catalisador dessa evolução, cujo sentido se encontrava em gestação desde pelo

menos o início da década de 30. O “mistério” da sua ruptura definitiva com o Estado

Novo ‒ a que, valha a verdade, jamais aderira ‒ suscitou a perplexidade de

contemporâneos e, posteriormente, de vários historiadores, mas nada tem de misterioso

para quem atente nas linhas mestras do pensamento liberal de Pessoa − que, para lá das

oscilações pontuais e das hesitações próprias de uma “inteligência crítica”, mostra uma

coerência e continuidade iniludíveis.

80 Associações Secretas e outros escritos, op. cit., texto 82. 81 Texto publicado em Teresa Rita Lopes (org.), Pessoa por Conhecer, op. cit., p. 88. 82 “Explicação de um livro”, em Associações Secretas e outros escritos, op. cit., texto 60. 83 Bandarra, n.º 40 a 43, de 21 de Dezembro de 1935 a 11 de Janeiro de 1936. 84 Associações Secretas e outros escritos, op. cit., texto 82. Em À Memória do Presidente-Rei Sidónio

Pais (Lisboa, 1940) a Editorial Império censurou no dito documento, que era então desconhecido, o

último período da entrada “Obras que tem publicado”, onde Pessoa repudiava O Interregno, e cortou na

íntegra as entradas “Ideologia política”, “Posição religiosa”, “Posição iniciática”, “Posição patriótica”,

“Posição social” e ainda o “Resumo destas últimas considerações”.

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177, 26 de Novembro de 1985, p. 17.

____ “Introdução”, em Fernando Pessoa, Santo António, São João, São Pedro, org.

Alfredo Margarido (Lisboa: A Regra do Jogo, 1986), pp. 9-90.

MONTEIRO, Adolfo Casais: A Poesia de Fernando Pessoa, org. José Blanco (Lisboa:

INCM, 1985, 2.ª ed. 1999).

PIZARRO, Jerónimo (org.): Fernando Pessoa: O Guardador de Papéis (Alfragide:

Texto, 2009).

ZENITH, Richard: Fernando Pessoa. Fotobiografias Século XX (Lisboa: Círculo de

Leitores, 2008).

4. Outras obras

CABRAL, José: Sociedades Secretas (Lisboa: Editorial Império, 1935).

GOMES, Joaquim Cardoso: Os Militares e a Censura: A Censura à Imprensa na

Ditadura Militar e Estado Novo (1926-1945) (Lisboa: Livros Horizonte: 2006).

MENEZES, Luís Cardoso de: “A revolta Mendes Norton de 1935”, Cadernos

Vianenses, t. 44, 2010, pp. 257-293.

PINTO, António Costa: Os Camisas Azuis: Ideologia, Elites e Movimentos Fascistas

em Portugal (1914-1945) (Lisboa: Estampa, 1994).

WEBER, Eugen: Satan franc-maçon. La mystification de Leo Taxil (Paris : Juliard,

1964).