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Fernando Henrique Cardoso A arte da política: a história que vivi

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Fernando Henrique Cardoso

Fernando Henrique Cardoso

A arte da poltica: a histria que vivi

SUMARIO

Agradecimentos 9 Introduo 11

1. Fortuna e alguma vrt 31

2. Aprendendo na poltica 75

3. O Plano Real: da descrena ao apoio popular 137

4. No Planalto: desvendando a esfinge do poder 223

5. Pedras no caminho: as incertezas na economia 339

6. Dos obstculos herana bendita 389

7. A luta contnua para reordenar o Estado 445

8. A sociedade como protagonista 499

9. Estado e crescimento econmico 559

10. Poltica externa: o papel e as viagens do Presidente 601

Palavras finais 673

AGRADECIMENTOS

Este livro,deu muito trabalho a muita gente. No fosse a competncia, apacincia e a amizade de Danielle Ardaillon, Eduardo Graeff, SrgioFausto, Tarcsio Costa e Jos Estanislau do Amaral, ele jamais chegaria publicao. Antigos colaboradores, esmeraram-se em me ajudar aprecisar informaes, revisar documentos, entrevistar pessoas, revertextos, complement-los com sugestes, enfim, a fazer o que s comdedicao e trabalho se consegue. Sou imensamente grato a eles.

Alm desses, outros amigos tiveram a pachorra de ler e fazer comentriossobre alguns captulos, especialmente Celso Lafer, Clvis Carvalho eEduardo Jorge, eles mesmos partes de algumas das estrias que conto notexto. Outros, que tambm participaram dos esforos para mudar o Brasil,se dispuseram a dar entrevistas ou a responder a consultas feitas porSrgio Fausto ou por mim, especialmente Pedro Malan, Jos Gregori,Armnio Fraga, Gustavo Franco, Prsio rida, Gustavo Loyola, AmauryBier, Murilo Portugal e Jos Paulo Silveira. Sou-lhes enormemente grato.

Na obsesso de reler e revisar os captulos (mormente porque escritos emmomentos distintos), pedi opinies no s aos meus colaboradoresdiretos, j mencionados, mas Ruth e a meus filhos Paulo Henrique eBeatriz. Por fim, com franqueza, no fosse a dedicada, competente eminuciosa cooperao de Ricardo A. Setti, que revisou tudo, adicionoucomentrios, reviu nomes, datas, fatos e estilo, certamente o livroseria de mais difcil leitura e correria maiores riscos de impreciso.

Especialmente a Setti, a Danielle, a Eduardo Graeff e a Srgio Fausto,devo imensa gratido.

Desnecessrio dizer, como de praxe (por isso redundo), que nenhum doscitados acima tem a mais remota responsabilidade pelas opinies einterpretaes do livro, mas todos tm muito a ver com o que de bompossa haver nele.

Por fim, a compreenso, o estmulo e a pacincia de meus editores,Srgio Machado e Luciana Villas-Boas, foram fundamentais para diminuir aangstia de quem sabia que tinha todos os prazos esgotados e aindamuitas obrigaes a cumprir. Sem essa atitude este livro no teriachegado ao final. Sou-lhes gratssimo.

F.H.C.

1

Introduo

O tempo no perdoa

Hesitei em escrever um livro a respeito do Brasil que inclusse minhaexperincia como Presidente. Primeiro, porque talvez se espere de umexPresidente um livro de memrias ou, se ele tiver experinciaacadmica, uma anlise aprofundada das questes nacionais. Sempre tiveimplicncia com a idia de escrever rememoraes pessoais,autobiografias e coisas assemelhadas. Parece pretensioso e corre o riscoda subjetividade, conduzida para fazer o autor sair-se bem na posehistrica.

Alm disso, no falta quem diga que sou vaidoso. Imagine-se o que diriamse me dedicasse a escrever autobiografia. Pelo menos neste caso valha aboutade, que j me deu tanto trabalho, de dizer que sou maisinteligente do que vaidoso, e afaste-se de mim este clice.

Bem que tive vontade de ser um pouco mais memorialista do que socilogo.

Gravei impresses quase todos os dias em que exerci a Presidncia.

Quando o cansao impedia esse exerccio dirio, registrava dois ou trsdias depois minhas observaes e sensaes. Devo a Celina Vargas doAmaral Peixoto a sugesto de faz-lo. No incio do governo ela me deuum caderno de anotaes, junto com uma pgina fotocopiada do dirio, atento indito, de seu av, Getlio Vargas. Logo percebi a maiorpraticidade de ditar a um gravador as impresses em vez de escrev-lascom minha letra de mdico, difcil de decifrar.

No tenho, por outro lado, disponibilidade de tempo para elaborar umaanlise acadmica e bem documentada do processo poltico e dastransformaes pelas quais o Brasil tem passado nestes ltimos vinteanos. Refiro-me tanto ao tempo real (as presses do dia-a-dia do mundocontemporneo e as especficas de um ex-Presidente) quanto aoimaginrio: aquele que a distncia infinita da morte faz de seudesperdcio um gozo. Comecei a escrever este livro aos 72 anos e agora,aos 74, termino esta Introduo. No posso mais dar-me ao luxo deimaginar, parafraseando obliquamente Vinicius de Moraes, que a vida seja infinita enquanto dure.

Essa sensao de infinitude um consolo para as rupturas. A maistrgica de todas a da prpria existncia. Constrangedora, cruel,inevitvel. S os loucos, no entanto, no a tomam em conta.

Ulysses Guimares repetia que o tempo no perdoa quem no sabe trabalharcom ele. Por essa razo, tomei algumas decises prticas. Primeiro,deixarei as gravaes para serem analisadas posteriormente, por quempossa interessar-se em ver como as sensaes percebidas por quem estexercendo o governo so (ou podem ser) distintas daquilo que de fatoacontece. E tambm como os motivos e os objetivos de quem toma decisespodem ser muito diferentes do que pensam ou dizem a imprensa, as outraspessoas e mesmo os polticos.

Isso no quer dizer que deixarei de consultar esses registros. Mas noos usarei sistematicamente.

Sonhei que, deixando a Presidncia, teria de vagar para voltar aosarquivos do Congresso, s atas de reunies de governo, enfim, documentao necessria para imitar, guardadas as propores e sem apretenso de comparar, o que Joaquim Nabuco fez com o pai, o senadorJos Thomaz Nabuco de Arajo (1813-1878), governador de provncia,senador e ministro, em Um estadista do Imprio.1 Para isso seria precisoter havido de verdade um estadista na Repblica.

Um Estado a ser reconstrudo

Quando se acorda do sonho, a realidade bem outra. Bastou reler osjornais e revistas do perodo de preparao do Plano Real e mergulhar emalgumas entrevistas com meus colaboradores da poca para perceber queno seria possvel existir estadista em um Estado prximo da runa. Sealgo realizamos nos dez anos em que fui ministro ou Presidente - noapenas eu, mas dezenas de pessoas, annimas umas, notrias outras, ealgumas notveis -, foi reconstruir a mquina administrativa, dar maiorconsistncia s polticas pblicas, enfim refazer o Estado, sempre nocontexto de uma sociedade que se democratiza e quer respeitar os valoresrepublicanos.

Por ironia, o cantocho contra mim e contra o governo quase semprerepisava que ramos "neoliberais", queramos privatizar tudo, minimizaro Estado e servir ao capital.

Espero que este livro proporcione ao leitor uma viso mais objetiva doesforo desenvolvido e mostre a complexidade, a rugosidade do real, nos da moeda e de seu plano de estabilizao, mas da realidadebrasileira. Sobretudo espero que o leitor possa perceber que governar umpas, elaborar projetos, conceber programas, implantar polticas umprocesso coletivo. Insisto no conceito: processo. Lendo os jornais erevistas, assistindo TV, conversando nos botequins e pontos de nibus,nas ante-salas de ministrios, nos corredores do Congresso e mesmo nogoverno, espera-se, implora-se s vezes, por um ato, um gesto herico,enfim, qualquer coisa que solucione logo as aflies do povo, ou osinteresses de algum grupo. Estes ltimos talvez possam ser atendidos numrompante. Os interesses de todo um povo, no. Dependem de aocontinuada que mude prticas, mentalidades, estruturas.

No por acaso as reformas so to difceis. Nem por outra razo quemdeseja mudar de verdade as coisas, para propiciar ao pas um horizontede maior bem-estar e progresso, s vezes se sente s.

Em famlia: o Brasil e a Histria

Os captulos em que discuto os percalos para empreender algumasreformas e nos quais mostro parte dos resultados alcanados soantecedidos por dois outros relativos a perodo distinto de minha vida.

No primeiro deles, intitulado "Fortuna e alguma virt", fao umas poucasreferncias biogrficas. Nelas incluo breves anotaes sobre minhafamlia, principalmente a paterna, estabelecida no Rio de Janeiro desdea juventude de meu av (a materna vivia em Manaus), com a qual tiveconvvio intenso e aprendi muitas lies sobre o Brasil e a Histria.

Jovem oficial do Exrcito, meu av, Joaquim Ignacio Batista Cardoso,participou da conspirao para a Proclamao da Repblica. A profundaimerso dele e do irmo, Augusto Ignacio do Esprito Santo Cardoso,igualmente militar, em lutas e conspiraes para mudar o pas acabaramcontaminando primos, filhos e sobrinhos, criando o caldo de cultura cvica em que vivi desdecriana. Fao ainda referncias minha formao intelectual e poltica.

Em duas passagens deste captulo - "Uma digresso terica" e "A buscacontnua da legitimao"-, me deixei levar por consideraes um poucomais acadmicas. Espero que o leitor perdoe o tom e o deixe conta dequem tem a boca torta pelo uso do cachimbo. Sua leitura permitiresclarecer os fundamentos de algumas de minhas convices. Se, porm,for cansativa, salt-la no prejudica a compreenso dos captulos queseguem.

No Captulo 2, "Aprendendo na poltica", rememoro meus passos iniciaisfora da Academia e dou um depoimento de como vi certas questesfundamentais da redemocratizao. A grande causa de minha gerao nofoi a da estabilizao da economia. Nem tampouco a do desenvolvimentoeconmico. Foi a da democracia. Elas no so excludentes. H que lhesatribuir a cada momento, no entanto, seu peso relativo. E, comomostrarei nos captulos subseqentes, as mudanas havidas no Brasiltiveram como base a redemocratizao. bvio que sem ela tambmpoderiam ter ocorrido mudanas, eventualmente at com maiores xitos nocrescimento do Produto Interno Bruto (PIB). O pas, contudo, seriaoutro, com outro dinamismo, mais baseado no Estado e nas empresas do quena vitalidade da sociedade.

Por isso, para mim, a Histria contempornea da poltica brasileiracomea nos anos 1970, com as lutas pela volta democracia, sonhada pormuitos como se fosse a inaugurao de uma sociedade - dando nome scoisas - socialista. Dos guerrilheiros de todo tipo aos democratasliberais, da luta pela anistia ao renascimento da sociedade civil comsuas persistentes organizaes no-governamentais (ONGs), dos fruns doTeatro Casa Grande, no Rio, Sociedade Brasileira para o Progresso daCincia (SBPC), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ConfernciaNacional dos Bispos do Brasil (CNBB) ou Associao Brasileira deImprensa (ABI), das greves de Osasco (SP) e do ABC paulista campanhapelas Diretas J, de tudo isso junto surgiu um horizonte democrtico.

O cerco ao regime autoritrio, sua transformao interna com a abertura"lenta, gradual e segura" e com o surgimento de figuras de relevo vindasdo movimento de 1964 que passaram a apoiar a redemocratizao, como oento senador Teotnio Vilela, o ex-ministro Severo Gomes ou o general Euler Bentes Monteiro, constituram a antecmara de um novoBrasil. A oposio institucional deixou de ser expresso da "oposioconsentida", como diziam do Movimento Democrtico Brasileiro (MDB), paraser a oposio de verdade.

O resultado desse borbulhar da sociedade acabaria sendo a convocao daAssemblia Nacional Constituinte, finalmente eleita em 1986. As grevesde So Bernardo do Campo (SP) e a campanha das Diretas J pavimentaram ocaminho. Sobre So Bernardo h muitos depoimentos e muitas estriascontadas. Registrarei, no Captulo 2, como vi na ocasio - e vi de perto- o que estava acontecendo, como conheci Lula e o que com ele cheguei acompartilhar.

A campanha das Diretas J em 1983-1984 deve muito viso e persistncia de um homem, Andr Franco Montoro, governador de So Paulopelo Partido do Movimento Democrtico Brasileiro (PMDB), somadas aomagnetismo de um cone democrtico, o deputado Ulysses Guimares,presidente do partido. Antes dessa poca, j agiam os movimentosprofundos da sociedade, que, mesmo sem saber ou querer, prepararam oterreno para a volta da democracia. As lutas contra a ditadura, osofrimento nas cmaras de tortura, a resistncia na imprensa nanica edepois na grande mdia, os estudantes, os intelectuais, os religiososinconformados, os operrios e seus lderes nas greves, a nsia de todoo povo por liberdade resultaram na Constituinte. No sem antes passarpela tragdia nacional da agonia e morte do Presidente eleito TancredoNeves. Foi esse processo que permitiu o surgimento na cena pblicanacional das novas lideranas, que ainda esto na lia, e deu a algumaslideranas da gerao anterior a possibilidade de se renovar. Permitiu,sobretudo, o enraizamento de instituies democrticas no Brasil,abrindo espao para um pas melhor.

Abracei a causa da democracia com entusiasmo: ela motivou a reviso deminhas anlises tericas e por causa dela passei a participar ativamenteda poltica partidria. Em 1978 tive minha primeira experinciaeleitoral, candidatando-me ao Senado em So Paulo com apoio desindicalistas, artistas e intelectuais, alguns dos quais se voltariamcontra mim como Presidente. Mais tarde, em 1985, j senador, amarguei aderrota ao disputar a Prefeitura da capital contra o ex-Presidente JnioQuadros. Doda no momento, serviu-me, porm, como valioso aprendizado.

O Plano Real, a candidatura e a chegada ao Planalto

Foi no quadro de absoluto respeito Constituio (inclusive paraalter-la), que abracei a outra grande causa da poca, a daestabilizao da moeda, como analiso no Captulo 3, "O Plano Real: dadescrena ao apoio popular". Hoje se fala da inflao como "galinhamorta", embora nessa matria seja imprudente considerar vitrias comosendo definitivas. Em 1993-1994, perodo em que fui ministro da Fazenda,o clima era totalmente distinto: a inflao corria acima de 20% ao ms.

Quer dizer, mais de 1.000% ao ano! S mesmo fazendo apelo exclamaoem desuso para descrever tanto horror perante os cus.

Descrevo a surpresa, que me atingiu como um terremoto, doconviteconvocao do Presidente Itamar Franco para que eu trocasse oItamaraty pelo Ministrio da Fazenda, quando me encontrava em NovaYork, voltando de misso oficial ao Japo. No clima de incertezadaqueles tempos (na verdade, a indexao salvava os ricos), a dvidamaior era saber se valia a pena e se existiam condies para aestabilizar a moeda. Mais do que um plano, os esforos, batizados namdia de Planos FHC-1 e FHC-2 (denominao preferida pelos queapostavam contra e diziam ser nome de agrotxico), constituram-se emuma aventura levada adiante por um pequeno grupo de crentes. Havia osque acreditavam na razo econmica e tinham sido escaldados por planosanteriores com os quais colaboraram. Havia os que acreditavam nosmilagres da democracia, para aumentar a conscincia da populao sobreos males que a afligem. Naturalmente, no se tratava de seitasexcludentes. Era possvel pertencer a ambas.

Houve momentos, como se ver adiante, nos quais o que veio a chamar-se(s vezes depreciativamente) de "a equipe econmica", com o ministro frente, estava quase completamente isolada. Quando assumi o Ministrioda Fazenda, era j o quarto ministro em sete meses e o governo doPresidente Itamar Franco (1992-1995) enfrentava srias dificuldades. Aprimeira reao foi de alvio, no s porque afirmei no discurso deposse que o Brasil tinha que enfrentar trs grandes problemas, a saber,a inflao, a inflao e a inflao, como porque eu gozava, sabidamente,da confiana do Presidente da Repblica.

Com o passar dos meses, como me recusasse a fazer a mgica, tantas vezestentada anteriormente, de acabar com a inflao "de um s golpe", aplicando um novo ucasse sobre a poltica econmica (priso desonegadores, "mais vontade poltica", as opes variando ao sabor dosproponentes), um certo desnimo se abateu nas cpulas dirigentes. Athoje no sei onde encontramos nimo para resistir a tantas presses.

Resistimos, fomos adiante, o Plano Real deu certo e, sem que essa fosseminha expectativa, me tornei candidato Presidncia. Todo o final doCaptulo 3 dedicado s articulaes que acabaram me levando apalanques, comcios e carreatas pelo Brasil afora e, finalmente, aoPalcio do Planalto. Ali narro da mesma forma as complexas relaes, emgeral amistosas e construtivas, que mantive durante aquele perodo com oPresidente Itamar, do qual fui candidato - acredite o leitor - sem queuma nica vez trocssemos uma palavra direta a este respeito. Ariqussima experincia da campanha eleitoral me permitiu enxergar melhoro pas e seus problemas. Refiro-me nessa parte tambm s emoes, quasesempre contidas por meu temperamento, do dia da posse, quando, ainda noRolls-Royce presidencial, a caminho da cerimnia no Congresso, enquantoacenava para a multido reunida na Esplanada dos Ministrios, sentiasobre meus ombros o aterrador peso da Histria.

Vitrias e derrotas, perdas e ganhos

No Captulo 4, "No Planalto: desvendando a esfinge do poder", entro dechofre em minha experincia como Presidente. No deixo de observar, aquie ali, algumas caractersticas que marcam (e muitas vezes para o mal)

nosso sistema poltico. Mas a descrio e a anlise se concentram emmostrar as condies nas quais um Presidente faz a escolha dos aliados,nomeia seus ministros - o episdio da conversa em que Pel aceitou serministro de Esporte talvez rendesse uma pea de fico -, tenta levaradiante suas polticas e entra no grande jogo de poder que se d entreo Executivo, o Legislativo e a sociedade, muitas vezes mediado pelaJustia. Nesse captulo procuro evitar tomar legendas por partidos,cair no simplismo de ignorar o choque de interesses econmicos ou depoder e enxergar em tudo diversidade de posies ideolgicas. Ao mesmotempo, evito pensar que todo jogo poltico mera mistificao e,portanto, ningum est nele com propsitos autnticos, visando melhoraras coisas (naturalmente, segundo perspectivas diversas). Na dinmicaentre o Executivo e o Legislativo, toda a arte para um governo levar adiante seu programa- desde que o tenha - consiste em manter a agenda do Congresso sobcontrole e a sociedade informada de seus propsitos. nesse contextoque aparecem os altos e baixos de minhas relaes com alguns dosprotagonistas da poltica como o ex-Presidente Jos Sarney ou o senadorAntnio Carlos Magalhes. Descrevo bem francamente alguns momentosdifceis pelos quais passei, incluindo-se a infmia da "compra de votos para aprovar a emenda da reeleio. Falo com franqueza de polticosprximos que romperam comigo, alguns momentaneamente, como oex-Presidente Itamar, outros definitivamente, caso do ex-governadorCiro Gomes. Abordo episdios pouco conhecidos, como o jantar com osministros militares em que lhes informei minha deciso de fazerreparaes nos casos dos mortos e desaparecidos polticos da ditadura.

Conto, com detalhes at agora no expostos publicamente, o duplo golpeque sofri ao perder, num intervalo de dois dias, dois amigos queridos edois esteios polticos de meu governo, o ministro das Comunicaes,Srgio Motta, e o lder do governo na Cmara, deputado Lus EduardoMagalhes. Mostro como encarei a tese da reeleio, em que momento e comquais motivos, ou justificaes, a endossei. E saliento, o tempo todo,que as reformas e a viso de um outro Brasil foram os objetivos deminhas aes e das alianas que fiz. Nos Captulos 5 e 6,respectivamente "Pedras no caminho: as incertezas da economia" e "Dosobstculos herana bendita", descrevo com os pormenores necessrios apresena inquietante do periurgo contemporneo: o mercado financeiro. por intermdio dele que entram em cena novos atores no palco do poder: as finanas internacionais, as grandes agncias, como o Fundo MonetrioInternacional (FMI), a presena do Tesouro (no caso o que realmenteconta, o americano), naes estrangeiras, a presso dos interesseseconmicos internos e assim por diante.

O enredo dessa histria, que a continuao da poltica deestabilizao, se desenvolve em uma pugna entre a taxa de juros e a taxade cmbio, envoltas ambas na atmosfera rarefeita da poltica deconteno de gastos pblicos, ou seja, na crise fiscal. Nesta, opersonagem central o crescente dficit da Previdncia, que tem um"amigo oculto", o corporativismo que resiste ao abandono de privilgios,encontrando brechas na lei e amparo no Judicirio. Tal enredo, noentanto, no vem cena de maneira direta e simples: ele aparece sob asvestes de especulaes financeiras, crises internacionais, vrus queafetam por contgio a moeda local. De fato, esses so vrusoportunistas que se instalam na economia pela fraqueza das finanaspblicas. Estas, corrodas pelos dficits (pois, alm da Previdncia,os gastos correntes, sobretudo com a folha de pessoal, tambm pressionamo Tesouro), sustentam-se com o governo tomando emprstimos em espiral,o que limita a possibilidade de baixar as taxas de juro. Quando astempestades vm do exterior encontram, portanto, uma economiadesabrigada, incapaz de ajustar-se, sem muitas reformas, aos ares domundo.

Os dois captulos descrevem os esforos, os erros e os xitos de oitoanos de readaptao das condies econmico-financeiras do Brasil para opas conseguir vir tona, como veio, na economia globalizada (hoje sefala dos BRICs, Brasil, Rssia, ndia e China, como as novas economiasemergentes). Conto, com os pormenores cabveis, as crises que levaramao fim os bancos Econmico, Bamerindus e Nacional, as dificuldades paraimplementar programas de salvaguarda da solidez do sistema financeiro,os supostos "escndalos" que permearam tudo isso, at chegar ao governodo Presidente Lula que, de certa maneira, ao manter inclumes os pilaresmacroeconmicos que lanamos, forneceu a prova de que nascircunstncias o caminho percorrido foi o melhor possvel. Relato oscontatos que mantive no exterior, o tempo todo, para salvaguardar osinteresses da economia brasileira - e o respaldo que obtive dedirigentes que se tornaram amigos, como o Presidente dos Estados Unidos,Bill Clinton. E conto como estava determinado a mudar a polticacambial e que obstculos enfrentei para efetivar esta mudana durante oprimeiro mandato. Eles variaram das incertezas e temores - na pocajustificados - quanto volta da inflao se houvesse uma poltica maisativa de desvalorizao da moeda sem aperto fiscal, at acidentes depercurso, como a perda de colaboradores preciosos graas ao "escndalo

dos grampos telefnicos. E tampouco havia certezas quanto melhorpoltica a adotar, nem capacidade efetiva da Unio para impor maiordisciplina fiscal, sobretudo aos estados. Tambm esto descritos nolivro os episdios que levaram desvalorizao do real e redefiniodas polticas macroeconmicas.

O Captulo 7, "A luta contnua para reordenar o Estado", descreve ocalvrio da apresentao, debate, descaracterizao, reconstituio eaprovao (nem sempre em termos satisfatrios) de um conjunto demedidas necessrias para reformar a mquina governamental, minorar acrise fiscal e liberar a economia das travas do passado. Ao analisar as dificuldadespara avanar as reformas, contudo, mostro que o Congresso, com suaspeculiaridades e morosidades, representa os interesses e as visesexistentes na sociedade. Cabe ao governo (e principalmente aoPresidente) entender os termos do jogo democrtico. Presidente que notoma o Congresso em considerao est invariavelmente fadado aofracasso, quando no ao impeachment. O Presidente precisa ter equilbriopara perceber que as obstrues, emendas e negaas do Legislativomuitas vezes propiciam entendimentos que melhoram os resultados. Nemsempre, verdade. Neste caso, cabe ao Presidente bater o p, dentrodas regras do jogo. E se no obtiver resultado, ir novamente sociedadee insistir na defesa de suas teses. por isso que nas democracias aluta contnua e as melhorias so incrementais. De quando em vezabre-se uma clareira na cerrao dos avanos lentos. Isso se deu noincio de meu primeiro mandato, quando aceleramos a aprovao dasemendas constitucionais que quebraram ou flexibilizaram monopliosexercidos pelo Estado sobre certas atividades econmicas. No foifcil: precisei enfrentar com energia uma greve de petroleiros que, sobpretexto de demandar melhores condies de trabalho, no fundo, queriabarrar a quebra dos monoplios, essencial para o progresso e amodernizao do Brasil. At mesmo do ponto de vista subjetivo me custouassumir as posies que adotei, pois meu pai, o general LenidasCardoso, foi um dos baluartes da campanha "O Petrleo Nosso", e euprprio respondi a inqurito policial-militar e fui processado por haverparticipado do mesmo movimento como tesoureiro do Centro de Estudos eDefesa do Petrleo, em So Paulo. Em 1996 e 1997 conseguimos caminhar denovo com velocidade. O Congresso aprovou vrias leis complementares,como as relativas telefonia ou criao das agncias reguladoras.

Tambm nos perodos de crises financeiras o Congresso em geral teveatitude responsvel, levando adiante matrias delicadas, como a criaoou o aumento de impostos.

A sociedade, a economia e uma preocupao do Papa

Comeo o Captulo 8, "A sociedade como protagonista" fazendo um apanhadosumrio do modo como evoluram as relaes entre o Estado e a sociedadepara fundamentar as mudanas nas polticas sociais. Em seguida mencionoas principais polticas que pusemos em marcha. Comeo pelas que, tendocomo objetivo generalizar o acesso educao e sade, sofundamentais para eliminar a excluso social. Descrevo o que foi feito,sobretudo para a incluso na escola bsica. Quanto sade, mostro comotornamos realidade o que antes era aspirao e mesmo obrigaoconstitucional, o Sistema nico de Sade (SUS).

Em seguida, discuto o significado da reforma agrria para nossasociedade, tema carregado de paixo a ponto de merecer o interessepessoal do Papa Joo Paulo II - que, como vou narrar neste livro,manifestou a mim reservas sobre a postura de setores da Igreja no Brasildiante da questo da terra. Paradoxalmente, me vi defendendo diante doPapa aqueles que, dentro do Brasil, me criticavam duramente. Apesar dosentraves legais, das presses contra e a favor da reforma, conseguimosaceler-la modificando as leis que definem os ritos de desapropriao.

Graas a um programa que institumos, pela primeira vez na Histria ocrdito agrcola oficial chegou s mos dos pequenos produtores rurais.

Por outra parte, pusemos em funcionamento o Banco da Terra, quesubstitui a desapropriao pela compra, quando escasseiam latifndiosimprodutivos nas reas de assentamento.

Nas partes finais do captulo, cuido das polticas para reduzir osbolses de pobreza. Descrevo, sem muitas mincias, no que consistiamesses programas, como foram financiados e os resultados expressivos -embora pouco divulgados - que alcanamos, melhorando a vida e a rendadas pessoas. E trato tambm do que denominei projetos para uma novaagenda da cidadania: os direitos humanos, as questes da igualdade degnero e de raa, e as importantssimas questes do meio ambiente. Oleitor ver o desdobramento na agenda nacional desses temas dademocracia contempornea.

Deixei para o penltimo captulo, o 9, "Estado e crescimento econmico",a discusso mais sistemtica sobre as relaes entre o Estado e aeconomia em poca de globalizao. Mostro que, a despeito de taxasmodestas de crescimento econmico, houve uma mudana de patamar naestrutura produtiva brasileira. Ressalto o significado que o processode privatizao teve para as mudanas na organizao do aparelhoestatal, discuto a questo do investimento estrangeiro e destaco o papelque o planejamento estratgico desempenhou em meu governo. Muito doobtido se deveu reduo de custos, fixao de prioridades e metassustentadas em uma concepo de planejamento indutivo, e a parceriasentre os setores pblico e privado.

Para reanimar a economia, abalada pela abertura dos mercados e oscontroles impostos pela estabilizao, inclusive os juros altos, nohesitamos em sustentar com o Banco Nacional de DesenvolvimentoEconmico e Social (BNDES) polticas de industrializao voltadas parareas especficas. S assim se tornou possvel renovar amplos setoresindustriais e expandir a produo a ponto de, no governo que se seguiuao nosso, se atingir nmeros impressionantes na pauta de exportaes.

Diga-se tambm que incentivamos com convico as polticas exportadorasa partir da criao de uma cmara especfica e do financiamento daatividade exportadora pelo BNDES, sem falar no corte dos impostos querecaam sobre ela e nos acordos comerciais negociados pelo Itamaraty.

Na rea agrcola, resolvemos a dvida agrria, criamos novosinstrumentos de financiamento, induzimos a compra de equipamentos pelocrdito facilitado e, por fim, aps a desvalorizao do real, pudemosassegurar melhor competitividade a nossos produtos. Acrescento que, seno fosse a criao de um setor de produo de bens de informtica e detelecomunicaes e no fora a privatizao bem-sucedida nessa rea, opas no teria as condies de que passou a dispor para dar um salto naeconomia da era da informao.

Clinton, Menem, Blair: diplomacia presidencial e busca de nossosinteresses

No ltimo captulo, o 10, "Poltica externa: o papel e as viagens doPresidente", trato da poltica externa, incluindo o relacionamentopessoal que estabeleci, em nome dos interesses do Brasil, com chefes deEstado e governo mundo afora - de Clinton ao Presidente russo VladimirPutin, do Primeiro-Ministro britnico Tony Blair ao Presidente chilenoRicardo Lagos, dos reis da Espanha ao grande lder africano NelsonMandela. Consoante com a viso sustentada em todo o livro, narro comosubstitumos a concepo de poltica externa baseada na idia de"autonomia pela distncia" pela busca da "autonomia pela participao".

O mundo globalizado requer dos governos maior empenho na defesa dosinteresses nacionais.

Altera-se a relao entre o interno e o externo, mas no o compromissocom os interesses fundamentais do pas, O desafio da poltica externa transformar essa difcil relao em vantagem estratgica a nosso favor,

Da a importncia da ampliao de nossas relaes com a Unio Europia ea necessidade de uma redefinio das relaes com os EUA. Semprebuscando preservar nossa autonomia e nossos interesses, sem diminuir aimportncia para nossos produtos dos mercados das regies desenvolvidas.

Foi a partir dessa perspectiva que encaminhamos as negociaes da reade Livre Comrcio das Amricas (Alca), Entretanto, a valorizao doMercado Comum do Sul (Mercosul) e do papel tanto poltico como econmicoda Amrica Latina e em especial da Amrica do Sul continuam a ser ospilares de nossa poltica externa, O leitor encontrar, ao longo daspginas desse captulo, episdios como uma dramtica reunioBrasil-Argentina num hotel de So Paulo em que, a certa altura, tivemosque intervir - o Presidente Carlos Menem e eu - para desfazer umdifcil n. Conversamos parte da mesa de reunies, nos entendemos e euprprio redigi, mo, o texto do acordo que enfim acertamos. Destacoinclusive como e por que convoquei a primeira reunio de presidentes daAmrica do Sul, realizada em Braslia em 2001.

As relaes entre os pases no se limitam economia. Muitas vezes asboas relaes econmicas que so conseqncias de relaes polticas.

Prestei tambm muita ateno a essas ltimas. Mostro o papel ativodesempenhado pelo Brasil na soluo do conflito armado entre o Equador eo Peru e na defesa da democracia em nossa regio, e o fao comdetalhes. Alis, essa a parte do livro em que h mais referncias asituaes especficas e a dilogos. Isso no s porque crescentemente adiplomacia presidencial ganhou flego, como porque h grandeincompreenso sobre as viagens presidenciais ao exterior. Penso que,mostrando diretamente o tipo de relao pessoal que se estabelece entreos chefes de Estado e governo (e isto assim no mundo todo), o leitorganha uma viso mais humana e ao mesmo tempo concreta de como seconstituem as redes de comunicao e entendimento entre os governantes.

Nos captulos econmicos exponho a importncia desse modo pessoal edireto de relacionamento para obter o melhor para o Brasil. Dentro delimites, naturalmente, pois nada substitui a boa diplomacia tradicionale, sobretudo, a coeso nacional para o pas ter presena externa forte.

Assim como, se os contatos pessoais ajudam a abrir mercados e a solver problemas, no so eles queexplicam os fluxos de comrcio.

Os captulos do livro no obedecem propriamente a uma ordem cronolgica,embora eu analise processos que vo se desdobrando no tempo. Sempre quepossvel, situo historicamente os episdios para que o leitor no seperca em seu emaranhado. No sigo, contudo, passo a passo o que foiocorrendo durante meus dois mandatos. A exposio antes segue a lgicados problemas discutidos do que o fio da Histria. O encadeamento entreos captulos mais suposto que explcito. Escrevi-os deixando certaautonomia entre eles, de modo que podem ser lidos na ordem que o leitorpreferir. Para facilitar a leitura h repeties, que ajudam a memria ea contextualizao.

Democracia, mercado, paixo e perspectiva

Por fim, antecipando interpretaes que farei com maior detalhe ao longodeste livro, adianto umas poucas consideraes de ordem metodolgica evalorativa sobre os acontecimentos histricos.

Depois de aprovada a emenda da reeleio no Brasil, Mrio Soares, ogrande lder do Portugal moderno, realizou uma srie de entrevistascomigo, que foram posteriormente publicadas no livro O mundo emportugus: um dilogo.2 Perguntou-me, a certa altura, se me considerariarealizado acaso fosse reeleito. Respondi-lhe que no: s estariasatisfeito se, ao terminar o segundo mandato, pudesse dizer, semhesitao, que "o Brasil mudou". No posso avaliar objetivamente se defato houve mudanas e em que medida o pas se transformou, nem se asmudanas alcanaram o ponto de no-retorno. Talvez seja esta a sensaoagnica a pagar por quem se lana na vida pblica: o juzo que conta oda Histria, e a ele os personagens no assistem. Quando a grande mestrados homens sentencia, o veredicto recai nos mortos.

O recurso disponvel para minorar o sentimento de indeterminao queisso causa a busca de referncias em autores que lidaram com percursoshistricos distintos. Por essa razo, e sem nimo de comparar seno que de aprender, tratei de me beneficiar com a leitura de mestresna interpretao dos processos de mudana na Histria. ClaudeLvi-Strauss, talvez o maior antroplogo contemporneo, escreveu que aocomear um trabalho de sociologia ou de etnologia relia o O 18 Brumrio,de Marx.3 Lvi-Strauss tem uma interpretao bastante pessoal do O 18Brumrio. V em Marx o cientista que constri um modelo, cujaspropriedades e diferentes formas de reao estuda, como em umlaboratrio; e depois aplica essas observaes para interpretar o queocorre empiricamente. Concordo que quem quiser escrever sobre Histria epoltica deve ler o livro recomendado. No sou, porm, toestruturalista quanto o mestre francs. Tenho mais pendor para ver comoas estruturas se formam pela ao das pessoas. Por isso acrescentaria recomendao da leitura de Marx que se lesse tambm algum texto deAlexis de Tocqueville.

Os livros mais conhecidos e famosos de Tocqueville, A democracia naAmrica4 e O antigo regime e a Revoluo? so boas fontes de inspirao.

Como contraponto anlise do O 18 Brumrio, entretanto, a leitura dasLembranas de 18486 a mais indicada. Ambos foram escritos ao calor dahora, sem a perspectiva do tempo, mas a agudeza de percepo dos autores extraordinria. Tudo o que explicado pelo grande movimento dasestruturas da sociedade na tradio marxista vem esmiuado na narrativado dia-a-dia de Tocqueville. Nela, as aes, pensamentos e omisses dosdistintos atores so analisados antes de serem "acontecimentoshistricos". A trama da situao revolucionria na Frana da pocadescrita por Tocqueville abrange os grandes atores que se moviam nascpulas, mas inclui tambm os sans-culottes encontrados casualmente nasbarricadas de Paris. Embora no acompanhe Tocqueville na visolberal-conservadora, admiro-lhe a capacidade de entender o desenrolardos fatos de 1848.

O quadro de inspirao para entender os acontecimentos histricos ficarcompleto se for possvel acrescentar a leitura da famosa conferncia deMax Weber sobre A poltica como vocao,7 na qual o maior socilogo dosculo passado analisa os xitos e fracassos dos polticos no af demodificar o curso das coisas. As dez ltimas pginas da confernciaexpressam perfeio as angstias dos polticos conscientes de seupapel. O tema da tica de responsabilidade e da tica de convices exposto magistralmente pelo mestre alemo: "Se fizermos qualquerconcesso ao princpio de que os fins justificam os meios, no serpossvel aproximar uma tica dos fins ltimos (de convices) e umatica da responsabilidade, ou decretar eticamente que fim devejustificar que meios.

A situao agnica do poltico, no obstante, permanece. Emcontraposio tica crist, por exemplo, ou tica do amor, deoferecer o outro lado a quem j alvejou uma face do rosto, o polticotem comportamento distinto. norma de no resistir ao mal pela fora, opoltico responde que "a proposio inversa que tem valor: 'o maldeve ser resistido pela fora' ou seremos responsveis pela sua vitria

(p. 143).

Da Weber afirmar, sem contradio com o comportamento tico (mas de umatica que mede as conseqncias dos atos), que a violncia instrumentodecisivo na poltica. Essa caracterstica obriga o poltico a lidar comas "foras demonacas", como ele chama: "Tambm os primeiros cristossabiam muito bem que o mundo governado pelos demnios e quem sededica poltica, ou seja, ao poder e fora como um meio, faz umcontrato com as potncias diablicas, e pela sua ao se sabe que no certo que o bem s pode vir do bem e o mal s pode vir do mal, mas que,com freqncia ocorre o inverso. Quem deixar de perceber isso , narealidade, um ingnuo em poltica" (p. 147).

Antes de Weber, Maquiavel, como mostrarei no Captulo 1, propusera umatica no-crist que, mesmo sem substituir esta ltima, guiaria ospassos dos polticos. Weber ressoava Goethe, cujo Fausto, quase umsculo antes, trabalhando com o mal, descobriu que a destruio pode sercriativa. Tomando de emprstimo as capacidades destrutivas deMefistfeles, sentiu que existia algo de divino no poder demonaco. SeWeber aceita que a violncia e o poder participam das artes do capeta e que obem (Deus) tambm criou a capacidade csmica de destruio, no chegato longe quanto o demo, que aconselhava Fausto a afastar qualquerdvida moral, lanando nos outros a culpa e eliminando a perguntainibidora da liberdade de ao: "deveria faz-lo?" A questo vlidaseria outra: "comofaz-lo?

Weber tinha desprezo pelo poltico que d de ombros para asconseqncias de seus atos, jogando a "culpa" na mesquinhez dos outrosou do mundo, resguardando-se em sua moral ntima, com as mos limpas.

Ao contrrio, respeitava o homem maduro (no importa se jovem ou velho)

que, em determinada circunstncia, decide: "no posso fazer de outromodo" e assume a respectiva responsabilidade. "Isso", diz nosso autor," algo genuinamente humano e comovente" (p. 151). "Na medida em queisso vlido, uma tica de fins ltimos e uma tica deresponsabilidade no so contrastes absolutos, mas antes suplementos,que s em unssono constituem um homem genuno - um homem que pode tera 'vocao para a poltica'" (p. 151).

Foi por vislumbrar em Weber a possibilidade de conciliar realismo (sequiserem, pragmatismo, sem porm a conotao filosfica) com valores elimites ticos que transcendem o imediato da circunstncia, que em meudiscurso inaugural no Senado, em 1983, inclu a citao que orareproduzo: "A poltica como a perfurao lenta de tbuas duras. Exigetanto paixo como perspectiva. Certamente, toda a experincia histricaconfirma a verdade, que o homem no teria alcanado o possvel serepetidas vezes no tivesse tentado o impossvel. Para isso, o homemdeve ser um lder, e no somente um lder, mas tambm um heri, nosentido muito sbrio da palavra. E mesmo os que no so lderes nemheris devem armar-se com a fortaleza de corao que pode enfrentar atmesmo o desmoronar de todas as esperanas." O verdadeiro poltico,mesmo que no alcance aquilo a que se props, e que todos se voltemcontra ele, encontrar foras para dizer que "apesar de tudo" fez o quepde. S aquele capaz disso, dir Weber, tem a verdadeira vocao paraa poltica.

Reli tudo o que estou aconselhando ao leitor. Ainda assim, tenhodificuldades para compor um painel do Brasil de hoje e compar-lo com ode ontem. No tarefa simples mostrar que existe um Brasilradicalmente diferente do passado e, conseqentemente, avaliar minhaprpria ao.

No fosse o legado intelectual dos autores referidos anteriormente e demuitos outros, estaria em condio ainda mais adversa. Consolo-me deminha insuficincia intelectual para a tarefa proposta, dizendo quetalvez no consiga esboar um painel convincente das grandes mudanasporque no houve no Brasil uma poca de grandes transformaes. Aodizer isto, porm, lano uma condenao sumria a meu prprio esforo eao de muitos contemporneos: se eu duvidar da magnitude das mudanas, que diro os outros?

Melhor, com menos modstia, apostar em que algo de fato mudousignificativamente. Algumas transformaes importantes se iniciaramantes de meu governo, outras foram consolidadas por polticas quepraticamos. Muitas, ainda, permaneceram a meio caminho, sem falardaquelas, que no so poucas, que precisariam ser realizadas paraestarmos altura dos desafios do mundo e que no pudemos conduzir.

Repito a ressalva: o juzo dos contemporneos sempre precrio,sobretudo o dos atores principais. So tnues os limites entre obalano do realizado e a racionalizao para justificar o que deixou deser, do quanto se pde caminhar, do que se logrou, apesar dasdificuldades. Portanto, neste livro no me arriscarei propriamente aapresentar um balano de resultados, que seria pretensioso e levaria tentao de argumentar em causa prpria. Darei mais opinies do queextrairei concluses. Navegarei mais no subjetivismo dos projetos e davontade intencionada do que em dados comprobatrios.

Durante os anos em que exerci a Presidncia, disse vrias vezes, de modoangustiado, que no sabia se meu governo marcava um incio ou se seriaum interregno. Que as mudanas no mundo e as nossas prprias estavam aclamar por um reajuste de muita coisa, eu no tenho dvidas. Ser,entretanto, que as modificaes introduzidas na conduo das polticase na estrutura do Estado esto - ou tornaram-se - enraizadas nasociedade com fora suficiente para impedir retrocessos? At hoje me difcil avaliar.

quase impossvel separar as modificaes conseqentes de iniciativasdo governo e o que se imps de fora, fruto das novas formas de atuaodas empresas e dos agentes econmicos em tempos de globalizao e daeconomia da informao. Se para destrinchar essa realidade to intricadaeu pudesse refazer, ainda que palidamente, o itinerrio de Marx,repetiria o que tentei fazer com o socilogo e historiador chileno EnzoFaletto, nos anos 1960, para explicar as "situaes de dependncia" na AmricaLatina.8 Partiria das regras de funcionamento da economia globalizada -das determinaes gerais, abstratas, no linguajar marxista -, ereconstituiria como elas foram sentidas, adaptadas ou transformadas emcada grupo relativamente homogneo de pases. Analisaria as relaesdinmicas entre as foras sociais locais e as internacionais. Examinariacomo se foram introduzindo adaptaes e inovaes na forma de vinculaode cada grupo homogneo de pases economia global, como seconstruram percursos histricos especficos, embora sujeitos aoscondicionantes gerais.

Ou seja, a moldura das transformaes dada pela globalizao e pelaeconomia da informao. Entretanto, h vrias maneiras para cada pas seinserir nela ou dela se defender. As "respostas" podem ser criativas,umas mais vantajosas do que outras. E cada resposta depende tanto decircunstncias dadas (como a localizao do pas, sua populao edotao de recursos naturais) quanto de decises polticas em cadasociedade. Estas possuem graus diversos de desenvolvimento econmico ecultural, que propiciam melhores ou piores alternativas de adaptao snovas circunstncias. Ou seja, no h "receitas" prontas para odesenvolvimento de um pas. H percursos histricos que no se limitama reproduzir mecanicamente o "modelo" estrutural global.

Notas de roda p deste trecho Para pular este trecho busque por ###

1 Joaquim Nabuco, Um estadista do Imprio, apresentao e cronologia deRaymundo Faoro, posfcio de Evaldo Cabral de Mello, textos de Machado deAssis e Jos Verssimo Baptista Pereira, 5a ed., Rio de Janeiro,Topbooks, 1997,2 v.

2 Mrio Soares e Fernando Henrique Cardoso, O mundo em portugus: umdilogo, So Paulo, Paz e Terra, 1998.

3 Karl Marx, O 18 Brumrio e Cartas a Kugelmann, apresentao de Octaviolanni, 2a ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974 (Rumos da CulturaModerna, 19).

4 Edio recente desta obra em dois volumes, o primeiro de 1836, osegundo de 1840, Alexis de Tocqueville, A democracia na Amrica, SoPaulo, Martins Fontes, 2005 (volume I) e 2000 (volume II).

5 Edio recente desta obra de 1856 Alexis de Tocqueville, LAncienregime et Ia rvolution, Paris, GF, 1988.

6 Edio recente desta obra de 1851 Alexis de Tocqueville, Lembranasde 1848: as jornadas revolucionrias em Paris. So Paulo, Companhia dasLetras, 1991.

7 Max Weber, Ensaios de sociologia, Rio de Janeiro, Zahar, 1963,traduo de Waltensir Dutra, cap- 4, "A poltica como vocao".

8 Enzo Faletto e Fernando Henrique Cardoso, Dependncia edesenvolvimento na Amrica Latina, Rio de Janeiro, Zahar, 1970. Otrabalho mereceu vrias edies e reimpresses em diferentes idiomas epases. At a publicao deste livro, a mais recente edio, revisada,com novo prefcio e o post-scrptum "Estado e processo poltico naAmrica Latina", era da editora Civilizao Brasileira, Rio de Janeiro,2004.

Fim das notas

### CAPTULO 1

Fortuna e alguma virt

O deus avulso do imprevisto

Primeiro, vamos s surpresas da vida poltica, comeando por mim mesmo.

Cansei de ler que "desde pequenininho" queria ser Presidente, se nopudesse ser Papa... A verdade que passei boa parte da vida nauniversidade. Aos 37 anos era professor catedrtico de Cincia Polticada Universidade de So Paulo (USP), tendo feito antes, na prpria USP,as teses de mestrado, doutorado e livre-docncia em Sociologia. Tambmhavia sido diretor-adjunto do Instituto Latino-Americano e do Caribe dePlanificao Econmica e Social (Ilpes), organismo vinculado ComissoEconmica para a Amrica Latina (Cepal), com sede em Santiago do Chile,por sua vez ligada Organizao das Naes Unidas (ONU), e professorde Sociologia na Universidade de Paris, em Nanterre. No teria tidotempo para cogitar qualquer atividade profissional fora da vidaacadmica.

A insensatez do regime autoritrio me levou a sair do Brasil em 1964.

Depois de haver obtido um habeas corpus no Superior Tribunal Militar(STM) para cancelar uma ordem de priso expedida sob o pretexto de queeu incitara "subverso" e de ganhar, em 1968, um concurso de ctedra,foi de novo o regime autoritrio que me aposentou pelo AtoInstitucional nmero 5 (AI-5) e, paradoxalmente, me trouxe vidapoltica. Em 1969, junto com outros professores perseguidos, ajudei afundar em So Paulo o Centro Brasileiro de Anlise e Planejamento(Cebrap).1 Nos anos 1970, intercalando com cursos que dei na Frana, naGr-Bretanha e nos EUA, preguei continuamente em favor da democracia.

Escrevi em todo jornal ou publicao de oposio que pude (Opinio,Movimento, Argumento) e, quando o clima desanuviou, na Folha de S.

Paulo, Participei de inmeros atos pblicos, principalmente da SBPC.

Com colegas do Cebrap, ajudei o MDB a elaborar seu programa para acampanha eleitoral de 1974, e dom Paulo Evaristo Arns a difundir suacrtica social (basta ver o livro So Paulo 1975: crescimento epobreza).2 Disso decorreu que, em 1977, fui lanado candidato ao Senadopelo MDB de So Paulo, para as eleies do ano seguinte, por um grupo deintelectuais de esquerda.

Na ocasio, nem eu nem os demais companheiros sabamos sequer onde selocalizava a sede do partido. Eu mantinha escassas relaes com o MDBpaulista. Tinha contatos com o deputado estadual Alberto Goldman e osfederais Ulysses Guimares e Joo Pacheco e Chaves. Relacionava-me maiscom o MDB gacho, do deputado estadual Pedro Simon, e com os lderesque ocasionalmente davam guarida s vozes da oposio intelectual. Eudividiria a legenda do MDB com o senador Franco Montoro, candidatofavorito reeleio. Tratava-se de fazer uma pregao oposicionista edenunciar novamente o arbtrio, mesmo porque eu havia sido aposentadocompulsoriamente e portanto, de acordo com o AI-5, era inelegvel, oque levaria cassao do registro da candidatura.

Como se previa, houve as impugnaes. Para surpresa de todos, porm,duas semanas antes do dia das eleies - realizadas a 15 de novembro de1978 -, o Supremo Tribunal Federal (STF) anulou as decises anterioresda Justia Eleitoral contrrias ao registro de meu nome, e desta formame tornei candidato efetivo. Arnaldo Malheiros, meu advogado, mostrou odisparate da perda de direitos polticos sem prazo definido, pois oscassados o foram por dez anos e os aposentados pelo AI-5, como eu, parasempre. Mais surpreendente ainda, o relator que acolheu no STF aargumentao foi ningum menos que o professor Joo Leito de Abreu,figura importante do governo do general Emlio Garrastazu Medici(1969-1974) e que, depois de aposentado como ministro do tribunal,voltaria a exercer papel semelhante no governo do general Joo BaptistaFigueiredo (1979-1985).

Tambm como previsto, fiquei em segundo lugar na legenda do MDB, com osenador Montoro sendo reeleito. Mas, na sublegenda - recurso de que sevaleu a legislao eleitoral do regime militar para abrigar, nos doispartidos permitidos, diferentes correntes internas - obtive nmerosuperior de votos aos do candidato do partido adversrio, a AlianaRenovadora Nacional (Arena). Pelas regras de ento, o suplente deMontoro seria eu, e no quem se inscrevera na sublegenda dele, osaudoso Jos Roberto Magalhes Teixeira, na ocasio vice-prefeito e, nofuturo, prefeito de Campinas (SP). O curioso que, quando sacandidato, no sabia disso.

Da por diante, ganhei um lugar ao sol na poltica. Passaram a meintitular "senador suplente" e galguei posies no MDB paulista. Chegueia ser presidente do partido em So Paulo quando ele se reorganizou, porfora de lei autoritria, mudando o nome para PMDB. O resto histriarazoavelmente conhecida. Montoro se elegeu governador em 1982, e em1983 assumi sua cadeira no Senado. Antes da campanha de 1982, eu estavalecionando nos EUA, no Departamento de Sociologia da Universidade daCalifrnia, em Berkeley. Quase ao final do perodo letivo, o diretor doDepartamento, professor Robert Bellah, especialista em Sociologia dasReligies, me convidou para tomar ch. Para minha surpresa, ofereceu-meum posto permanente em Berkeley para substituir ningum menos do que ogrande filsofo Jiirgen Habermas, que voltava para a Alemanha.

Encabulado pela desproporo intelectual entre quem partia e quem eraconvidado a permanecer, respondi brincando:

- S se o senhor me oferecer tambm uma cadeira no Senado americano,porque sou suplente de um senador que dever ganhar as eleies para ogoverno de So Paulo.

Conto o episdio pelo pitoresco e para reiterar o papel do acaso, dasorte, da fortuna, palavra latina que tem o mesmo sentido em italiano eem portugus: tornei-me senador sem jamais haver tido este propsitoseriamente.

Anos depois, em 1985, com a volta das eleies diretas para prefeitosnas cidades consideradas "rea de segurana nacional", inclusive ascapitais, concorri Prefeitura de So Paulo. O candidato natural,Mrio Covas, prefeito em exerccio nomeado por Montoro, conforme asregras de ento, fora impedido de disputar por uma manobra poltica noCongresso, que vedou aos titulares das prefeituras o direito de secandidatar. Favorecia-se assim a candidatura do ex-Presidente JnioQuadros pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) em coligao com oPartido da Frente Liberal (PFL), com a eliminao do competidor maisforte da oposio, Mrio Covas. Resultado: o governador Montoro, nossolder poltico,

levou-me disputa.

Perdi por poucos votos (cerca de 2%) num universo de 4,8 milhes deeleitores. H vrias especulaes sobre as razes da derrota e uma sverdade: no fui capaz de convencer o povo de que seria bom prefeito...

No certo que eu tenha proclamado na TV minha suposta condio deateu, o que me teria levado a perder. O editor-chefe da Folha de S.

Paulo, Boris Casoy, me dirigiu uma pergunta que lhe pareceu oportunasobre minhas convices religiosas. Respondi que se tratava de questode foro ntimo, sem utilidade para avaliar o desempenho de um prefeito,tal como registrado pela prpria Folha, Intil: no dia seguinte, acidade se enchia de panfletos contra o "ateu".

Pior, os adversrios utilizaram uma entrevista que eu havia concedido jornalista Miriam Leito para a revista Playboy3 meses antes, e,deturpando o sentido de uma resposta, qualificaram-me como usurio demaconha. Minha inocncia poltica era tamanha que no percebi opotencial devastador do boato. Parecia-me to descabido algumacreditar na verso que no imaginei que a histria "pegasse".

Pois pegou. E seu efeito demolidor superou o do suposto atesmo. Um dia,na periferia de So Paulo, na Cidade Tiradentes, em uma quasefavela, umasenhora me perguntou:

- verdade que o senhor vai distribuir maconha no lanche das escolas?

Poltica, principalmente eleitoral, assim mesmo. H momentos em quevale tudo e nos quais se acredita em qualquer coisa.

A outra "explicao" da derrota tem a ver com uma foto publicada no diadas eleies, 15 de novembro de 1985, uma sexta-feira, na qual apareosentado na cadeira de prefeito, antes da hora. evidente que, pornumerosos que tivessem sido os leitores da reportagem, no haveria tempode influir no voto. Mas a foto prova que eu merecia perder... poringenuidade. Estabeleci um acordo com reprteres da revista Veja SoPaulo para ser fotografado nessa situao para o caso de vitria, poisas eleies estavam extremamente apertadas e, alm de tudo, se a revistaquisesse, como pretendia, trazer o novo prefeito na capa, no haveriacomo fotograf-lo a tempo no gabinete oficial. (Veja So Paulo fechavasua edio na sexta-feira da eleio.) Num final de manh, a revistaaproveitou minha presena numa solenidade na ento sede da Prefeitura,no Parque do Ibirapuera, e executou o trabalho. Outros fotgrafostambm clicaram a cena, assumindo o mesmo compromisso da revista. AFolha de S. Paulo, porm, rompeu-o e publicou a foto em primeira pgina.

Pior teria sido se outro fotgrafo, com o qual fiz outro acordo, no metivesse devolvido os negativos de uma foto, feita na sala de meuapartamento, na qual eu aparecia quebrando uma vassoura, smbolo dopopulismo janista, que se dizia varredor de todo o lixo da corrupo.

No fosse a integridade do fotgrafo - cujo nome prefiro no divulgar -e essa foto talvez me tivesse causado um prejuzo poltico ainda maior.

Nunca ningum soube dela at a publicao deste livro, Grave: despreparopara a aspereza da luta poltica. Pedgio pago por um professorcatapultado arena cheia de feras. Perdi, o que conta. E a derrotame ajudou na futura trajetria poltica.

Os primeiros dias aps a derrota, porm, foram amargos. Janistas iam ata porta do prdio onde eu e minha famlia morvamos, rua Maranho, nobairro de Higienpolis, para buzinar. Viajamos, mais tarde, para nossacasa de campo em Ibina, a 70 quilmetros de So Paulo, para curtir aderrota. L, vi Jnio Quadros na TV, caricatural, desinfetando acadeira de prefeito na qual me sentara. Jnio, raposa talentosssima,talvez tenha percebido o que nem eu sabia: melhor esconjurar-me a tempopara no dar trabalho, em outras eleies, como dei a muitosadversrios,

A derrota ensina. O ex-governador Leonel Brizola um belo dia apareceu emminha casa. Dele ouvi o consolo: tambm perdera uma eleio paraprefeito de Porto Alegre, me disse, e foi a adversidade que lhe deufora para, perdendo a arrogncia - o juzo dele -, ser mais realistae buscar energia para novas caminhadas. Ser verdadeira a tese? possvel. O fato que desde ento, em todas as partidas polticas emque me meto, e no s nas eleitorais, entro sempre supondo apossibilidade da derrota. Quando ganho, naturalmente me sintogratificado, mas nunca o suficiente para esquecer o quanto custou avitria; quando perco, durmo com a esperana do amanh.

35

Eu estava por baixo. Hlio Jaguaribe, fiel amigo e intelectual generoso,procurou-me no ano seguinte, 1986, pedindo que no me afastasse dapoltica nem concorresse novamente ao Senado, pelas poucas chances devitria, mas Cmara dos Deputados. Concordei com ele, at queapareceram as primeiras pesquisas de inteno de voto para as eleies.

Mrio Covas e eu, referendados candidatos pela conveno do PMDBestadual, ramos imbatveis na disputa das duas vagas de senador por SoPaulo. Obtive 1 milho de votos a mais do que o candidato vitoriosopara o governo do estado.

Assim o eleitorado, que pratica uma espcie de "justiacompensatria": quem perde hoje, se no se desmoralizar, tem boa chancede ganhar amanh. No sem razo que os polticos profissionais sosempre candidatos a alguma coisa. Ganhar melhor, mas perder no chegaa ser uma tragdia. E a derrota deve ser assumida plenamente pelocandidato derrotado. Foi o que procurei fazer quando perdi a Prefeiturade So Paulo. Ofereci um coquetel em meu apartamento e, depois, reuni nasede do PMDB os lderes do partido, inclusive os que apoiaram oadversrio - j na poca o PMDB abrigava diferentes correntes empraticamente todos os estados, e em So Paulo certos setorestrabalharam abertamente para a candidatura Jnio. Agradeci a todos osesforos feitos e assumi a derrota. De nada adianta buscar culpados nemguardar ressentimentos, e menos ainda discutir lealdades. O melhorcimento das lealdades a vitria. Escrevi mais do que imaginava arespeito de fatos que se passaram comigo h tanto tempo. Mas, uma vezque o assunto at agora a imprevisibilidade da vida poltica, vale apena adicionar algumas observaes sobre meu relacionamento com oPresidente Itamar Franco.

Minhas relaes com Itamar so um captulo parte. Conhecemo-nos noSenado, em 1983. O senador Itamar (PMDB-MG), como eu, integrava aoposio ao governo do Presidente Joo Figueiredo. Nacionalistaextremado e contendor permanente na poltica mineira, ele s vezesobstrua uma sesso por vrias horas. Ou ento infernizava os ministrosda rea econmica cobrando expresses inglesas no traduzidas emrelatrios e discursos.

Recordo-me uma vez, sendo eu lder do PMDB, a feroz obstruo que elemoveu aprovao de um aumento de 1% no Imposto sobre a Circulao deMercadorias e Servios (ICMS), A medida beneficiaria, entre

vrios, o governador mineiro Tancredo Neves e, embora fossem ambos domesmo partido, no convinha ao jogo poltico do senador. A sesso durouat as trs da madrugada para vencer a obstruo de Itamar. Enquantoproferamos nossos discursos divergentes, quem de ns estivesse esperade rplica aproximava-se do outro e, em voz baixa, fazia comentriosbem-humorados.

Foram assim nossas relaes como senadores, De respeito e bom humor. Atento, contudo, no tnhamos amizade pessoal. Jamais saramos paraalmoar ou jantar juntos ou para conversar sobre poltica.

Itamar surpreendeu todo mundo quando, no incio de 1989, surgiu comocandidato a Vice-Presidente na chapa de Fernando Collor de Mello.

Recordo que Covas e eu fomos de Braslia a Belo Horizonte e nosencontramos com Itamar no avio. Ns dois acreditvamos que ele apoiariaCovas, candidato do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) Presidncia. Mas tinha ido a Minas firmar sua candidatura no partidocriado por Collor, o Partido da Renovao Nacional (PRN).

Trs anos e pouco depois, em 1992, dias antes da abertura na Cmara doprocesso de impeachment de Collor - que ocorreria no dia 28 de setembro- , procurou-me o senador Jutahy Magalhes (PMDB-BA), este sim amigo deItamar. O Vice-Presidente queria falar comigo. Fui ter com ele no anexodo Palcio do Planalto, gabinete da Vice-Presidncia. A seu modomatreiro, perguntou-me o que acreditava que ia acontecer.

Eu tivera uma reunio a dois com o ex-Presidente e senador Jos Sarney(PMDB-AP), na sala dos arquivos do Senado, para que no fssemos vistos.

Sarney sempre mencionava o "Sacro Colgio dos Cardeais" ou seja, umgrupo de polticos de vrios partidos que, por sua experincia eresponsabilidade, tm uma viso institucional. Na hora das crises,considerava, a esses que se deve apelar.

Nas nossas avaliaes, nada mais sustentava o governo Collor, dados osescndalos. No estive na primeira linha do impeachment at ler aexplosiva entrevista do irmo caula do Presidente, Pedro Collor, revista Veja? denunciando com todas as letras um esquema de corrupoque chegava ao Palcio do Planalto. Temia as conseqnciasinstitucionais da deposio de um Presidente. Utilizei mesmo uma frasede efeito, que no entanto se demonstrou incorreta: "Impeachment como bombaatmica, serve para dissuadir, mas no deve ser usada." quela altura,diante dos fatos, no restavam condies morais para sustentar outrocaminho que no o afastamento de Collor. Sarney era da mesma opinio eat mais veemente. E tinha informaes sobre a reao - neutra - dasForas Armadas. Elas seguiriam a Constituio. Relatei tudo a Itamar,que me perguntou:

- E seus amigos em So Paulo?

Nem sei bem a quem ele se referia, mas o fato que So Paulo pareciaser para Itamar uma espcie de buraco negro. Disse-lhe que haviadesconfianas quanto linha que ele adotaria caso assumisse oPlanalto, que o tinham em geral como ultranacionalista e "atrasado".

De rompante, perguntou-me:

- Voc acha que eu sou ingnuo?

- Claro que no - respondi. - Mas teimoso voc , e muito.

Assegurou-me que teria um comportamento responsvel e autorizoume,depois que sugeri, a dar uma entrevista dizendo isso. Foi o que fiz noJornal da Tarde de 19 de setembro de 1992.

A partir desse dia, at o final do governo, Itamar Franco manteve as

melhores relaes comigo. Tornamo-nos amigos. Certo dia, logo depois

desse dilogo e de minha entrevista ao Jornal da Tarde, conversvamos

sobre o futuro Ministrio, na cozinha do meu apartamento, no prdiofuncional do Senado, na Superquadra Sul 309 (SQS 309, como se diz,

numa espcie de cdigo de filmes de espionagem que utilizado paralocalizar os edifcios em Braslia). A determinada altura, tomando caf,

Itamar me perguntou se aceitaria ser ministro das Relaes Exteriores.

Disse-lhe, como de praxe, que o convite no era necessrio, mas que, seele assim desejasse, aceitaria. E, para dizer a verdade, fiquei bemsatisfeito com o cargo.

Tivemos muitas conversas sobre o Ministrio. Na busca de um ministro daFazenda, por exemplo, tomei a iniciativa de trazer para conversar comItamar em meu apartamento, separadamente, o deputado Jos Serra(PSDB-SP), economista de nomeada com experincia na vida pblica e meuamigo desde os tempos do exlio de ambos no Chile, e um empresriomuito versado em economia e preocupado com questes nacionais, PauloCunha, dirigente do Grupo Ultra, gigante da rea de qumica epetroqumica. Volta e meia eu perguntava ao Presidente sobre oMinistrio da Educao (MEC), o que levou Itamar convico de que euambicionava comand-lo. Expliquei-lhe que no, que fora a vida todamais pesquisador do que propriamente professor e no tinha sequer umaviso aprofundada dos problemas educacionais. Apenas desejava saberquem seria o ministro por considerar indispensvel que no fosse umpoltico clientelista. Itamar disse que j tinha o nome, no o revelou,mas cumpriu o prometido. Nomeou o professor Murlio Hingel, que haviatrabalhado com ele durante sua gesto como prefeito de Juiz de Fora(MG), entre 1967 e 1971.

As conversas decisivas sobre a formao do Ministrio - que deveria serde "unio nacional", s no sendo assim ao p da letra porque o Partidodos Trabalhadores (PT) no aceitou participar - se deram na casa deMaurcio Corra, senador do Partido Democrtico Trabalhista (PDT) peloDistrito Federal. A ltima ocorreu no gabinete da Vice-Presidncia, svsperas do afastamento de Collor por resoluo da Cmara, que se dariaa 29 de setembro daquele 1992 - afastamento ainda provisrio, at que oSenado julgasse o impeachment, o que s ocorreu a 29 de dezembro.

A reunio foi dramtica. Faltava escolher o ministro da Fazenda. Euhavia perdido a indicao de Jos Serra, que Itamar e os senadoresnordestinos no aceitavam - Serra, durante a Constituinte, tinha sidoacusado por polticos do Nordeste de defender interesses especficos deSo Paulo no captulo tributrio. O PMDB paulista, com o ex-governadorOrestes Qurcia frente, proporia um nome, mas o dia passava e nada dechegar a indicao. O senador Humberto Lucena (PMDB-PB) achava quedeveria ser eu. Horrorizado com a hiptese, que me afastava doItamaraty para mares nunca dantes navegados, lembrei o nome doembaixador Rubens Ricupero, versado em economia e veterano denegociaes internacionais nessa rea. Itamar me autorizou a consult-lopelo telefone, mas a resposta foi negativa.

Nesse dia notei qualquer coisa de estranho no semblante dos ministros daAeronutica, brigadeiro Scrates Monteiro, e da Marinha, almirante MrioCsar Flores, com os quais cruzara nos corredores da Vice-Presidncia.

No final da tarde, sem acordo quanto pasta da Fazenda, o futuroPresidente pediu que ficssemos com ele, se no me falha a memria,Pedro Simon (PMDB-RS), que viria a ser lder do governo no Senado, os

senadores Maurcio Corra, Alexandre Costa (PFL-MA), Jutahy Magalhes eeu, e possivelmente Henrique Hargreaves, amigo de infncia de Itamar,experiente funcionrio de carreira da Cmara dos Deputados eex-subchefe da Casa Civil do governo Sarney (1985-1990). Todos ns, comexceo de Jutahy, seramos nomeados ministros.

Passou-me uma nota que recebera do gabinete de Collor e me pediu que alesse para todos. Tratava-se de uma requisio de um contingente desegurana para o Presidente Collor durante o perodo de afastamento.

Diante do que Itamar nos comunicou que demitiria todos os ministrosmilitares e nomearia outros, diretamente de sua confiana. Acreditavaque o pedido de Collor revelava uma disposio de resistir a um eventualimpeachment.

O gesto do Presidente explicou o comportamento dos militares com osquais havia cruzado, at porque com um deles, o almirante Flores, euconversara sobre sua possvel permanncia no Ministrio da Marinha, nos pela admirao que lhe tinha (e tenho), mas porque o futuroPresidente compartilhava meus sentimentos. Os ministros militares,porm, tinham sido informados, instantes antes daquele encontro fortuitonum corredor, de que deixariam o governo.

Ocorreu forte constrangimento, principalmente por parte do senadorSimon, que manifestou desagrado pela deciso surpreendente e nodiscutida de antemo conosco. No houvera uma combinao explcita deque nosso grupo deveria opinar sobre os principais passos do futuroPresidente, mas isso parecia-nos um pressuposto, j que quase todosseriam ministros, eram ex-colegas de Itamar no Senado e vinham sendoconsultados por ele para a formao do futuro governo. O Presidente,porm,

atalhou, taxativo:

- assim que eu atuo e ponto final.

E isso mesmo. Quem imaginar que o dr. Itamar Franco ingnuo ou nodispe de "vontade poltica", engana-se. Se nem sempre o rumo quepersegue claro para os demais e parece ziguezagueante, porque esta sua prtica poltica. E inegvel que tem "faro", no obstante algica do comportamento esteja longe de ser cartesiana. No caso dadispensa dos ministros militares, no havia motivo para preocupaes. AsForas Armadas tiveram uma conduta irrepreensvel durante o processo deimpeachment. Itamar queria somente mostrar autoridade.

noite informou-nos o nome do ministro da Fazenda, algum que ningumesperava: o deputado do PFL Gustavo Krause, ex-prefeito do Recife eex-governador de Pernambuco.

Foi em circunstncias semelhantes (por isso essa longa digresso) queItamar fez de mim ministro da Fazenda em maio de 1993. Como ministro dasRelaes Exteriores, eu estava em campanha pela recuperao doprestgio internacional do Brasil. Tarefa rdua. Com a inflao nasnuvens, por mais que dissesse (e fosse verdade) que os nmeros daeconomia no setor privado eram bons, quem acreditaria? Recordo-me, entrecenas que me vm memria, do rosto de espanto e descrena deempresrios chilenos (e olhe que eles ainda no tinham tanta confianana prpria economia como passariam a ter anos depois) diante dessaafirmao, num encontro de que participei em Santiago quando chanceler.

Visitei vrios pases nessa pregao. Nesse maio de 1993 viajei ao Japopara tentar refazer laos abalados pela administrao de Fernando Collorde Mello (1990-1992) e sua ministra da Economia, Zlia Cardoso deMello. Na ida estive em Washington, com o secretrio de Estadoamericano, Warren Christopher, que me alertou sobre "compra de materialrusso para fabricao de msseis pelo Brasil" - assunto do qual nem eunem o Presidente Itamar sabamos.5 Respondi, ironicamente, que s sefosse com financiamento deles, americanos, dada a quebradeira dos doispases. Christopher ficou um tanto desconcertado e no soube o queresponder. Segui ento para o Japo, onde consegui um aumento de 1bilho de dlares no valor do seguro s exportaes.

Voltei contente, no mais via Washington, mas via Nova York. Na noite de19 de maio fui jantar na casa do embaixador brasileiro junto ONU,Ronaldo Sardenberg, quando, na hora do brinde (feito moda japonesa,no incio da refeio), a esposa do ministro, embaixatriz Clia, mepediu para atender ao telefone.

Era o capito-de-corveta Antnio Carlos Passos de Carvalho,ajudante-de-ordens, que me passou o Presidente Itamar. Este meperguntou, brincando, se eu estava sentado ou em p e colocou aquesto:

-Voc aceita ser ministro da Fazenda?

Respondi que jamais pretendera a posio, que no era economista, e,sobretudo, reiterei que, com tanta troca de ministro da Fazenda, nodispunha mais de argumentos para convencer no exterior de que tudo iabem

no Brasil.

De fato, seria, como j disse, a quarta troca em apenas sete meses degoverno. Itamar relatou-me problemas com o ministro Eliseu Rezende, comquem ele se avistaria naquela mesma noite. Havia uma acusao de que aempreiteira Norberto Odebrecht tinha pago a hospedagem de Eliseu emWashington durante uma viagem feita antes de ele assumir a Fazenda.

Insisti com o Presidente em que Eliseu vinha fazendo um esforo enormepara, pelo menos, saber a quantas andavam as contas pblicas, e que omelhor seria mant-lo. Meu nome surgira como possvel alternativaporque, mesmo do Itamaraty, eu influenciava algumas decises econmicas,participando, por exemplo, da discusso sobre a fixao dos preosmnimos nos leiles de privatizao, sem contar que havia tido aoportunidade de intervir numa reunio no Palcio da Alvorada, aresidncia oficial do Presidente da Repblica, em que se discutira oprprio programa do ministro da Fazenda. Acrescentei:

- No estou a no Brasil. Sei pelo noticirio, que acompanhei comapreenso no Japo, que sua situao difcil. No gostaria de faltarcom minha solidariedade, mas, por favor, insista para que Eliseupermanea no Ministrio.

Voltei mesa preocupado. Todos se deram conta. Ao final do jantar,novamente a embaixatriz me avisou que o ajudante-de-ordens telefonarapara dizer que o Presidente no precisava mais falar comigo. Fui dormiraliviado. Na manh seguinte, desde familiares at o secretrio-geral doItamaraty, o embaixador Luiz Felipe Lampreia, me chamaram do Brasilpara dizer que eu fora nomeado ministro da Fazenda. A primeira pessoaque me ligou foi minha mulher, Ruth. No queria acreditar quando lhedisse que havia um engano, pois eu ainda no dera resposta aoPresidente. Ela,

como meus filhos Paulo Henrique, Luciana e Beatriz e tambm meus amigos,achava que seria uma insensatez aceitar o Ministrio da Fazenda.

Somaram-se, portanto, as caractersticas pessoais do Presidente Itamar(sua aparente impulsividade, que na verdade sempre tem um clculo portrs), sua confiana em mim e eventuais qualidades minhas paraenfrentar adversidades ( minha maneira, dando impresso de suavidade)

para, ainda uma vez, sem clculo e sem astcia ex-ante, ir cumprindominha vontade "desde pequenininho" de chegar a ser Presidente...

S que, na poca, a maioria dos polticos, jornalistas e empresriostomou a nomeao como sendo de alto risco. Eu tambm. O jurista ecientista poltico Celso Lafer, que ocuparia dois diferentesministrios em meu governo - Indstria e Comrcio e Relaes Exteriores- me recordou um trecho precioso de Machado de Assis, em Esa e Jac,captulo 65, onde se l: "Conte com as circunstncias que tambm sofadas. Conte mais com o imprevisto. O imprevisto uma espcie de deusavulso ao qual preciso dar algumas aes de graas; pode ter votodecisivo na assemblia dos acontecimentos." Eu estava mais prximo dafogueira (e no das vaidades) do que do outeiro da Glria.

Uma digresso terica

Estendi-me na narrao desses episdios porque, alm do eventual valorhistrico, sustentam a idia de que a fortuna, ou a sorte, s vezes,precede a vrt,6 e que o empenho em objetivos pessoais menosimportante do que o "abraar uma causa". Seria enganoso, entretanto,imaginar que as carreiras polticas, os xitos eventuais, as mudanasque se consegue obter, decorrem de "mero acaso". No existe, tampouco napoltica, como na

viso terra-a-terra sobre os mercados, a mo oculta que conduz a ao emfavor do bem comum. E nem tm tanto peso as razes que a prpria razodesconhece, maneira de Pascal.

Na realidade, fui treinado para exercer papis de liderana poltica,mesmo sem ter muita conscincia disso. So muitos os caminhos para obtersucesso na vida poltica. s ver a trajetria de Lula, to diferenteda minha, mas que acabou levando-o Presidncia em 2002 com enormevotao. H tambm quem assuma o comando de um pas sem que a histriapessoal explique muita coisa. E outros h que jogam fora a prpriahistria. No o caso de dar nome aos bois. Cada leitor escolha opersonagem que lhe parea caber no figurino. Quem sabe cada um de nsque exerce liderana possa se encaixar melhor em um ou outro percurso,dependendo do momento de nossas vidas. Certamente, contudo, existeparte de virt em cada caso, e no mero acaso.

A discusso sobre as qualidades necessrias para o exerccio daliderana grande, varivel e antiga.7 Ela envolve aspectos complexosda tica e da moral e no cabe aprofund-las neste livro. Fao umaspoucas consideraes sobre esses temas para tornar mais claro o que quisdizer quando me referi noo de virt. Em Maquiavel ela quer dizermenos "virtude", no sentido moderno da palavra, do que a capacitaopara o exerccio do governo. E sabido tambm que o arquicitadoflorentino prezava antes a disposio do governante para fazer onecessrio a sua manuteno no poder do que sua f no Pater Noster.

Embora a frase a ele atribuda de que "os fins justificam os meios" noseja de sua lavra nestes exatos termos, os conselhos que d ao Prncipeno clebre captulo XVIII de sua

7 Na antiguidade clssica, tanto Aristteles como Plato discutiram asqualidades requeridas para algum ser lder. Plato, na Repblica, falado guardio do Estado como algum que, alm de sua disposio natural -so palavras dele -, se prepara, pela educao, para mandar. Aristtelessublinha mais ainda os atributos naturais e aceita a idia, hojeinaceitvel, de que desde o nascimento uns so fadados a obedecer,outros, a mandar. Um dos autores contemporneos mais citados na matria,o cientista poltico alemo Robert Michels, mantm a noo de quealgumas pessoas tm qualidades ou atributos de liderana que as capacitaat mesmo a "frearem as massas". Hoje em dia ningum em s conscinciamencionaria esses atributos sem ressaltar o contexto social especficoem que eles se desenvolvem e os recursos disponveis - amplo senso -para sua efetivao.

obra mais conhecida no deixam margens para dvidas quanto a seurealismo, digamos, "amoral".

O italiano Norberto Bobbio, como sempre o mais lcido e claro dospensadores contemporneos da poltica,8 assinala que a licena moral queMaquiavel dava aos poderosos era para os que realizassem "grandesfeitos" ou, mais literalmente, "grandes coisas".9 Os governantes capazesdos grandes feitos no se obrigariam sequer a cumprir os pactos e apalavra empenhada. Pela "sade da ptria" nos momentos das grandesdecises, seria necessrio ter fora e astcia (simbolicamente, agircomo o leo e como a raposa), e dissimular. Os resultados quecontariam, no os princpios. Embora aceitando que o Prncipe deve semanter o quanto possvel no caminho do bem, agindo em conformidade coma caridade, a f, a clemncia e a religio, Maquiavel reitera que eledever enveredar pelo mal quando for preciso. E justifica sua visodescarnada do poder e dos meios para sua manuteno, asseverando que osgovernantes agem dessa maneira porque os homens no so bons. Se todosfossem bons, os prncipes no precisariam ser dissimulados edissimuladores. No sendo assim, "na ao de todos os homens - eprincipalmente nas do Prncipe, contra o qual no existe tribunal a quese possa recorrer - o que importa o resultado."10

Os problemas colocados por esse tipo de interpretao so imensos. Nofundo volta-se relao entre moral e poltica. Maquiavel, de certomodo, no renega a moral crist, apenas mostra que a poltica obriga,em

8 Para uma sntese de sua obra, ver Norberto Bobbio, Teoria geral dapoltica (A filosofia poltica e as lies dos clssicos), Rio deJaneiro, Campus, 2000. Traduo de Daniela Beccaccia, edio organizadapor Michelangelo Bovero.

9 Ver Nicolau Maquiavel, O Prncipe, traduo de Lvio Xavier, Rio deJaneiro, Ediouro, 2002 (Introduo "A originalidade de Machiavelli", porIsaiah Berlin).

10 Maquiavel, op. "t, p. 216. Estou usando esta traduo, embora oscomentrios adiante faam referncia a outra mais completa, porque otrecho acima est mais acorde com tradues para outros idiomas. Porexemplo, na traduo de O Prncipe para o ingls, feita por W. K.

Marriott, publicada na srie Great Books, Enyclopedia Britannica, com oaval da Universidade de Chicago, Nova York, 1952, p. 25, l-se: "And inthe action ofall men, and specially ofprinces, which is notprudent tochallenge, onejudges by the result." Em italiano, "nelle azioni ditutti gli uomini, e massime di principi, dove non indizio a chireclamare, si guarda ai fine". Jl Prncipe, cap. 18, in Francsco Florae Cario Cord, Tutte l opere di Machiavelli, Verona, Mondadori, 1949,v. l, p. 57.

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circunstncias dadas, a agir guiado por outros valores. Lana, assim, assementes de idias - depois intudas por Vio na Scienza Nwova11 - quemuito depois vieram a ser exploradas por Isaiah Berlin, como aincomensurabilidade e mesmo a incompatibilidade de valores que convivemna mesma cultura e entre os quais no existem padres racionais deescolha. Mais modernamente este constituiu o cerne da anlise de MaxWeber ao distinguir entre a tica da responsabilidade e a dasconvices. Ao leitor menos atento pode parecer que Weber, ao mostrar adiferena entre as duas ticas, acaba por dar sustentao ao amoralismomaquiavlico. Entretanto no bem assim. Se certo que o poltico,para Weber, deve ser julgado pelas conseqncias de seus atos,12 istono significa que a ao do poltico dispense convices. E Weber, quefoi deputado na Alemanha e era apaixonadamente nacionalista, as teve, emuitas.

Weber no separa de modo absoluto as duas ticas. Apenas as distingue:

uma, a das convices, ajuza as aes antes de sua vigncia; a outra, ada responsabilidade, julga as conseqncias do ato praticado. Na aodo grande poltico elas no podem ser separadas; se assim ocorrer, noprimeiro caso levar ao fanatismo e, no segundo, ao cinismo.

Essa temtica que aparece nas anlises tericas vivida cotidianamentepelos homens pblicos, ou pelo menos pelos polticos conscientes de seupapel e de suas responsabilidades e que ambicionam ser algo alm do que"um a mais". Por isso, quando escrevi na Introduo deste livro sobre aimportncia que representou para mim "abraar causas", comeando pelada democracia, estava me afastando do maquiavelismo e do weberianismovulgar (pobre Weber!), correndo o risco de ser percebido como um"idealista ingnuo". Ou, o que pior, como se estivesse tentandodisfarar o maquiavelismo, tal como nosso florentino aconselhava que aosprncipes cabe fazer...

11 Giambattista Vio, Princpios de (uma) cincia nova (acerca danatureza comum da naes), 3a ed., So Paulo, Abril Cultural, 1984.

" Mais contemporaneamente Merleau-Ponty argumentou de forma semelhantepara tentar explicar a aceitao de "culpa objetiva" por parte doslderes comunistas que, nos tribunais stalinistas, confessaram faltascometidas por terceiros, que, porm, teriam agido em conseqncia daspregaes Ou decises dos acusados. Ver Maurice Merleau-Ponty,Humanisme et terreur, P4rs> Gallimard, 1947; coleo Ides, 1980.

Por fora de minha trajetria intelectual, no poderia desconhecer asposies citadas. Se o leitor tiver conhecimento do que j escrevi arespeito, saber que poderia invocar Hegel, para quem a moral (pelomenos a Moral com M maisculo) se objetivava no Estado e no nosindivduos - aquele sim, tico. Ou, melhor ainda, invocar Marx emostrar que tambm este, embora sempre de olho nos modos de produo enas foras objetivas da Histria, juntava essa anlise aocomprometimento com uma "viso" com uma causa redentora. Isso sem que ofundamento moral da ao toldasse a compreenso da lgica da Histria, esem, em nome da causa, transformar em vlidos os meios utilizados paraalcanar os objetivos.

Para justificar o julgamento moral da ao poltica no preciso,portanto, assumir a posio dos jusnaturalistas, os quais imaginam um"contrato social" bsico ou algum outro "ente de razo" a partir doqual deduzem as obrigaes morais, sem se referir s situaeshistricas. Alis, para o prprio fundador dessa corrente de opinio, oholands Grcio, a idia de contrato e a suposio da razo como basepara o juzo moral no dispensavam uma anlise da evoluo histrica.13

O mestre das formas de governo, o francs Montesquieu, quando escreveuseu monumental livro, O esprito das leis, publicado em 1748, tocriticado na poca, estabeleceu a clssica distino entre o regimetirnico, o monrquico e o republicano.14 Deixando de lado a distinoaristo-

13 O "pai" do jusnaturalismo moderno, Hugo Grcio, em sua obra sobre apaz e a guerra, De iure belli acpacis, de 1625, se afastou da tradiomedieval (e mesmo clssica antiga) de buscar o fundamento das leis nosditames divinos. Em oposio s explicaes baseadas no "sobrenatural",afirmava o direito natural, o jusnaturalismo, sustentado exclusivamentepela razo humana. Hobbes tambm, como sabido, pensava o Estado comouma situao que se contrapunha em termos de um conceito racional aoestado de natureza, no qual o homem seria o lobo do homem. No fim dosculo XVII, Locke, em Dois tratados sobre o governo, formulou,independentemente de Grcio, teoria semelhante, mas com fundamento navontade dos indivduos, e no na natureza da razo.

14 Montesquieu (Charles-Louis de Secondat, baro de Ia Brde et deMontesquieu), LEsprit ds lois, Amsterd, Arste et Merxus, 1785,baseada na edio de 1758, revista pelo autor antes de sua morte (em1755). Tanto nesta edio como na das Obras completas editadas por L. deBure (Paris, 1827), publica-se o elogio a Montesquieu feito pord'Alembert para o tomo 5 da famosa Encklopdia,

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tlica entre governo de um, de poucos e de muitos, Montesquieu explica omodo de funcionar das trs formas a partir dos "princpios" que osregem: o medo, a honra e a virtude. Essas seriam as paixes humanas quemoveriam cada uma das modalidades bsicas de governo. Em cada formaohistrica haveria princpios ou paixes distintos que dariamsustentao s regras da poltica.

Entre os autores contemporneos, o filsofo britnico Isaiah Berlin foiquem melhor seguiu a tradio de envolver as anlises no contextohistrico sem cair no relativismo cultural que termina por no permitira distino entre o que correto e o que errado na comparao entremomentos histricos e entre diferentes sociedades.15 Berlin reconhece,tal qual Maquiavel, a coexistncia de valores que podem no serconciliveis mas so igualmente aceitos. Defende a tese da pluralidadeobjetiva de valores, os quais podem no ser compatveis nem guardarentre si um elo lgico que permita hierarquiz-los. Como conciliar, porexemplo, o "no matars" cristo, com as decises de matar na guerra emesmo na poltica, no caso dos guerrilheiros que lutam pela libertaonacional?

Distante da pregao dos que crem na moral kantiana e no monismo ticodos jusnaturalistas, Berlin sugere que em certas situaes h que seproceder a escolhas radicais, sem o amparo de um catecismo que nosajude a discernir o bem do mal. Por tal razo to importante o juzo,a percepo qualitativa que nos guia na hora de fazer uma escolha. Ecomo esses dilemas so freqentemente trgicos, o filsofo e cientistapoltico britnico John Gray busca inspirao nos dramaturgos gregospara batizar o liberalismo de Berlin como agnico, do grego gon, quesignifica embate. Em situaes muitas vezes dramticas as escolhasindividuais e coletivas tm esse carter. no momento das grandesdecises que o lder, em seu isolamento existencial, ainda que cercadofisicamente de muitas pessoas, aparece em toda a sua estatura,enfrentando todas as dificuldades.

15 Ver especialmente o admirvel ensaio "The pursuit of the ideal", inIsaiah Berlin, The Crook Timber of Humanity, Nova York, Vintage Books,1992. E ainda, John Gray, Isaiah Berlin, Princeton (EUA), PrincetonUniversity Press, 1996, especialmente o captulo 2. Celso Lafer produziuuma instigante comparao entre Berlin e Hannah Arendt, no livro queleva o nome desta ltima, publicado em segunda edio, ampliada, pelaPaz e Terra em 2003, cap. 8.

Ou ele tem o senso da Histria, intui, julga e decide, ou ningum o farpor ele, que pagar o preo da no-deciso ou, se for o caso, do erropela deciso assumida.

Aprendendo em casa o enredo da poltica

Quantas vezes o cidado comum, para no falar do poltico, enfrentaesses dilemas? Quando os chamados rgos de segurana me prenderam, em1975, me puseram um capuz, me ameaaram com tortura, me interrogarampor horas a fio, sem que eu atinasse a razo nem conhecesse os fatos esituaes questionadas. Sem apelar para Berlin, Maquiavel ou Weber, eume indagava: "E se confessar o que no sei?" Como julgar moralmente amentira de algum diante do algoz ou da ameaa de morte?, pergunto hoje.

Eu no tinha o que delatar e mais me indignei do que me amedrontei. Aexperincia daqueles dias sombrios me levou a julgar de modo diferenteas "delaes" em circunstncias semelhantes. O certo que tambm poresses caminhos inesperados acabei, pouco a pouco, penetrando nosmeandros e nas rudezas da ao poltica. Constatei que a palavra e aletra tm um custo maior do que eu poderia imaginar: estava diante dostemidos homens do DOI-Codi16 somente por haver escrito e falado sobre oBrasil e contra o autoritarismo militar, sem ao poltica direta.

Sem a mesma tragicidade, quantas vezes no exerccio da Presidncia tiveque escolher entre o ruim e o menos ruim? Ou entre objetivos moralmentejustificveis, mas incompatveis: por exemplo, aumentar o supervitprimrio - ou seja, o governo gastar menos do que arrecada para,

16 Os Centros de Operaes de Defesa Interna (Codi), criados em 1970,eram organismos colegiados integrados por representantes das trs Armase de governos estaduais, tendo sempre frente o comandante local doExrcito. Os Destacamentos de Operaes de Informaes (DI) constituamo brao operacional dos Codi, comandados por oficiais do Exrcito e comquadros compostos por militares das Foras Armadas e membros daspolcias militares estaduais. Em So Paulo, o DOI-Codi sucedeu aOperao Bandeirantes (Oban), formada em 1969, que reunia militares eagentes civis e era em parte financiada por empresrios. A Oban e osDOI-Codi foram os principais instrumentos de represso do governomilitar e conseguiram desarticular grupos oposicionistas clandestinos,armados ou no, por meio de prises, torturas e assassinatos.

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com o excedente, poder pagar juros da dvida pblica - ou elevar o gastosocial no Oramento? Nessas horas o peso das discusses tericas, comoas anteriormente mencionadas, recai abruptamente na cabea do lder,no como teoria, mas como experincia sofrida. Quem no dispe do amparodo conhecimento talvez sofra mais diante do desafio de fazer uma oporadical que descontente a muitos, mas parece necessria Co radicalchoice de Isaiah Berlin). Quem tem conhecimento d maior valor sdistines de Weber e, sem abonar o dualismo maquiavlico, sente a foradele.

Quando afirmei que aprendi em meu percurso a exercer funes deliderana e que h modos diferentes de exerc-la, convm ressaltar quetanto em meu caso como no do Presidente que me sucedeu esse aprendizadose deu no decorrer de um longo processo de amadurecimento democrtico dopas. Quanto a mim, especificamente, cabe mesmo invocar que aprendi emfamlia o enredo da democracia.

No Rio de Janeiro, onde nasci, nos interminveis seres mesa de jantarem casa de minha av paterna, Leondia Fernandes Cardoso, a "VovLinda", ou na de meu pai, general Lenidas Cardoso, voltava-se amide adiscutir os detalhes da "conspirao republicana" contra a Monarquia, naqual meu av, Joaquim Ignacio Batista Cardoso, e um tio-av, seu irmoAugusto Ignacio do Esprito Santo Cardoso, tomaram parte ativa. Meu avmorreu em 1923 com a patente de marechal e Augusto, general, foiministro da Guerra do governo provisrio de Getlio Vargas, entre 1930 e1932. Esse mesmo cargo seu filho Ciro, primo de meu pai e igualmentegeneral, exerceria entre 1952 e 1954, ainda sob Getlio, s que destafeita Presidente eleito por voto direto em 1950. Tambm as lutas"tenentistas" dos anos 1920 e 1930, ou a