fernando florencio - autoridades tradicionais vandau de moçambique

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369 Fernando Florêncio*  Análise Social, vol. XLIII (2.º), 2008, 369-391 Autoridades tradicionais vaNdau de Moçambique: o regresso do indirect rule ou uma espécie de neo-indirect rule?**  Neste artigo, partindo do exemplo Ndau de Moçambique, pretende-se compreender a importância do lugar social que as autoridades tradicionais detêm na actualidade e qual o seu papel no processo de formação do Estado ao nível distrital. Pretende-se demons- trar que, à semelhança do passado colonial, o Estado moçambicano tem procurado usar as autoridades tradicionais vaNdau em processos administrativos que se podem caracterizar como uma espécie de neo-indirect rule. Palavras-chave:  indirect rule; RAU; autoridades tradicionais; Estado. Using the example of the Ndau of Mozambique, this article seeks to interpret the significance of the social standing of traditional authorities in modern life and their role in state formation at the district level. It endeavours to show how, as in the colonial past, the Mozambican state has sought to use the traditional vaNdau authorities in administrative roles which can best be described as a kind of neo- indirect rule. o Keywords: indirect rule; RAU (overseas administrative regulations); traditional authorities; the state. ABERTURA  Neste artigo, e a partir do exemplo de Moçambique, sobretudo da relação entre o Estado e as autoridades tradicionais vaNdau da região centro, pre- tende-se compreender a importância do lugar social que estas autoridades detêm na actualidade para a maioria das populações rurais e qual o seu papel * Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. ** O presente texto alicerça-se em dados empíricos recolhidos pelo autor ao longo de diversos momentos de trabalho de campo no distrito do Búzi, entre Fevereiro e Junho de 1994,  para a tese de mestrado (Florêncio, 1994), no distrito de Sussundenga, entre Fevereiro e Abril de 2000, nos distritos de Mossurize e Machaze, entre Setembro e Dezembro de 2000, e no distrito do Búzi, entre Julho e Setembro de 2001. Os trabalhos de campo de 2000 e 2001 serviram de suporte empírico para a tese de doutoramento (Florêncio, 2003). Para uma consulta mais aprofundada dos temas tratados neste artigo, cf. Florêncio (2005).

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Neste artigo, partindo do exemplo Ndau de Moçambique, pretende-se compreender a importância do lugar social que as autoridades tradicionais detêm na actualidade e qual o seu papel no processo de formação do Estado ao nível distrital. Pretende-se demonstrar que, à semelhança do passado colonial, o Estado moçambicano tem procurado usar as autoridades tradicionais vaNdau em processos administrativos que se podem caracterizar como uma espécie de neo-indirect rule.

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    Fernando Florncio* Anlise Social, vol. XLIII (2.), 2008, 369-391

    Autoridades tradicionais vaNdau de Moambique:o regresso do indirect rule ou uma espciede neo-indirect rule?**

    Neste artigo, partindo do exemplo Ndau de Moambique, pretende-se compreender aimportncia do lugar social que as autoridades tradicionais detm na actualidade e qualo seu papel no processo de formao do Estado ao nvel distrital. Pretende-se demons-trar que, semelhana do passado colonial, o Estado moambicano tem procuradousar as autoridades tradicionais vaNdau em processos administrativos que se podemcaracterizar como uma espcie de neo-indirect rule.

    Palavras-chave: indirect rule; RAU; autoridades tradicionais; Estado.

    Using the example of the Ndau of Mozambique, this article seeks to interpret thesignificance of the social standing of traditional authorities in modern life and theirrole in state formation at the district level. It endeavours to show how, as in thecolonial past, the Mozambican state has sought to use the traditional vaNdauauthorities in administrative roles which can best be described as a kind of neo-indirect rule.o

    Keywords: indirect rule; RAU (overseas administrative regulations); traditionalauthorities; the state.

    ABERTURA

    Neste artigo, e a partir do exemplo de Moambique, sobretudo da relaoentre o Estado e as autoridades tradicionais vaNdau da regio centro, pre-tende-se compreender a importncia do lugar social que estas autoridadesdetm na actualidade para a maioria das populaes rurais e qual o seu papel

    * Faculdade de Cincias e Tecnologia da Universidade de Coimbra.** O presente texto alicera-se em dados empricos recolhidos pelo autor ao longo de

    diversos momentos de trabalho de campo no distrito do Bzi, entre Fevereiro e Junho de 1994,para a tese de mestrado (Florncio, 1994), no distrito de Sussundenga, entre Fevereiro e Abrilde 2000, nos distritos de Mossurize e Machaze, entre Setembro e Dezembro de 2000, e nodistrito do Bzi, entre Julho e Setembro de 2001. Os trabalhos de campo de 2000 e 2001serviram de suporte emprico para a tese de doutoramento (Florncio, 2003). Para umaconsulta mais aprofundada dos temas tratados neste artigo, cf. Florncio (2005).

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    no processo de formao do Estado ao nvel distrital. Pretende-se igualmentedemonstrar que, semelhana do que fizera o seu congnere colonial, oactual Estado moambicano tem procurado usar as autoridades tradicionaisvaNdau em processos administrativos muito similares, no que se poderiacaracterizar como uma espcie de neo-indirect rule, de ressurgimento doindirect rule em termos e moldes actuais.

    O ressurgimento das autoridades tradicionais na frica subsariana apartir dos anos 1990 relaciona-se directamente com a crise dos Estadosafricanos independentes, expressa numa profunda incapacidade em contro-larem e gerirem partes significativas dos seus territrios e das suas popula-es.

    Com o fim dos sistemas de partido nico e com a introduo dos sis-temas multipartidrios, processo que ficou conhecido como de transiopara a democracia, surgiram no universo rural africano, a nvel local, novosactores polticos, como os membros das igrejas e confisses religiosas, osprofessores, os comerciantes, os cooperantes e elementos ligados s orga-nizaes no governamentais. As autoridades tradicionais, que tinham de-sempenhado um papel preponderante nos regimes administrativos coloniais,acabariam tambm por reemergir progressivamente, ocupando pouco a pou-co os lugares sociais que os Estados independentes e os actores estataisforam deixando vazios, sobretudo nos universos rurais. Esses processos deretraco dos Estados consubstanciavam uma crise que, alm de econmica,era tambm de legitimidade social, poltica e cultural.

    A partir de meados dos anos 90 do sculo XX, e passados os primeirosimpactos dos processos de transio e de eleies, os Estados e as antigaselites polticas nacionais mantiveram-se, em geral, na governao e procu-raram captar as novas elites rurais, sobretudo as autoridades tradicionais,para o processo de governao, no sentido de reporem ou restaurarem alegitimidade e o controlo poltico perdido durante as dcadas anteriores.

    O INDIRECT RULE E AS AUTORIDADES TRADICIONAIS VANDAU

    Nos territrios de Moambique o processo colonial portugus consubs-tanciou-se com a assinatura do tratado luso-britnico de 1891, no qual seestabeleceu o traado definitivo das fronteiras moambicanas. No final dosculo XIX era evidente a incapacidade do Estado portugus em implementaro princpio da ocupao efectiva do territrio moambicano, estabelecido naConferncia de Berlim, pois a presena portuguesa era escassa e os recursosdo Estado igualmente fracos. Assim, a soluo encontrada foi a de desen-volver um esforo de colonizao diferenciado que conjugava a participaodo Estado portugus com a interveno de capitais estrangeiros privados,

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    nomeadamente atravs do recurso a companhias concessionrias, como foio caso da Companhia de Moambique.

    Neste perodo do final do sculo XIX e incio do sculo XX, a Companhiade Moambique pretendia, sobretudo, das populaes locais a cobrana deimpostos (de palhota do mussoco1) e o recrutamento de mo-de-obra local,delegando nas autoridades tradicionais a responsabilidade pelo cumprimentodestas actividades, assim como pela manuteno da ordem. As autoridadestradicionais vaNdau constituam j, neste perodo da administrao da Com-panhia de Moambique, o elo administrativo que permitia Companhia con-trolar e enquadrar as populaes rurais. Outra tarefa importante desempenha-da pelas autoridades tradicionais era a regulao dos milandos2 locais,nomeadamente os relacionados com a feitiaria, pequenos roubos e relaesfamiliares.

    O Estado colonial, ou as companhias, no exerciam uma autoridade e umcontrolo directo sobre as populaes, mas socorriam-se de um modelo degesto do territrio e da populao do estilo do indirect rule. Isto , utiliza-vam os sistemas polticos locais para esse efeito, por interesse das prpriasadministraes, que, nesta fase, eram manifestamente incapazes de controlaras vastas extenses de territrio e a populao sob o seu domnio. Nestembito, as autoridades tradicionais locais foram sendo progressivamenteenquadradas, de modo diferenciado de regio para regio, consoante ascapacidades de controlo da prpria administrao colonial. Por outro lado,eram as autoridades tradicionais locais que carregavam com o nus dacolecta do imposto de palhota e da imposio do chibalo3.

    Importa ainda realar os efeitos perniciosos das reformas administrativas,nomeadamente a de 1907, nas estruturas de poder tradicional Ndau. A partirda introduo das circunscries, a Companhia de Moambique comeou,progressivamente, a enquadrar as bases territoriais das autoridades tradicio-nais na lgica da sua diviso administrativa. Assim, alguns dos mambos4vaNdau mais importantes viram os seus nyika5 bastante reduzidos e circuns-critos a uma s diviso administrativa. Da mesma forma, as populaes queanteriormente lhes estavam subordinadas foram poltica e administrativamen-te integradas noutros regulados, com os quais no tinham anteriormenterelaes de subordinao. Tratava-se, efectivamente, de uma poltica delibe-rada da administrao que visava reduzir-lhes o espao de poder e influncia.Esta domesticao das autoridades tradicionais englobava tambm a subs-

    1 Nome dado ao imposto anual na zona do Zambeze.2 Expresso que designa conflitos, problemas.3 Termo chindau que designa o trabalho forado.4 Termo shona para chefe.5 Termo chindau que designa territrio.

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    tituio dos rgulos que denotavam uma maior influncia e prestgio juntodas suas populaes6.

    Com o Estado Novo instaura-se uma nova fase da poltica colonial por-tuguesa, mais estruturada e definida na ntegra a partir do Estado central paraa totalidade dos seus territrios ultramarinos. Inaugura-se uma poca deforte actividade legisladora, que viria a assumir grande importncia para aregulao da vida indgena, na qual se destacam o Estatuto Poltico, Civile Criminal dos Indgenas da Guin, Angola e Moambique, publicado em1929, a Constituio da Repblica, o Acto Colonial, a Carta Orgnica e a Leida Reforma Administrativa Ultramarina, promulgados em 1933.

    Com a publicao do Estatuto Poltico, Civil e Criminal dos Indgenas daGuin, Angola e Moambique e sobretudo da Lei da Reforma AdministrativaUltramarina (RAU), a colonizao portuguesa adopta formalmente o sistemade indirect rule, mesmo sem o nomear. Neste modelo claramente assumidaa duplicidade poltica e jurdica da sociedade colonial, sendo vedada spopulaes indgenas a integrao plena, devendo estas continuar a repro-duzir-se segundo os seus modelos tradicionais de organizao social. nestesentido que assumem especial relevo as instituies polticas locais, nomea-damente as suas autoridades tradicionais.

    A RAU, como ficou conhecida, define a diviso administrativa das col-nias portuguesas e as funes de cada categoria de funcionrios administra-tivos e assume igualmente uma importncia fulcral, uma vez que integra asautoridades tradicionais no aparelho administrativo e define o modelo desubordinao ao Estado colonial. No que respeita aos territrio de dominn-cia Ndau, os impactos da RAU apenas se fizeram sentir a partir de 1942,data em que expirou a concesso da Companhia de Moambique e se inicioua administrao directa por parte do Estado portugus.

    Importa aqui debruarmo-nos um pouco sobre a estrutura da organizaodo poder tradicional Ndau, de molde a podermos definir o que se entendepor autoridades tradicionais e compreender o seu lugar no universo polticomoambicano no perodo colonial e na actualidade. A organizao polticatradicional Ndau assenta na existncia de chefaturas, unidades polticas au-tnomas, governadas por um mambo, que controlava um territrio, o nyika.Este era, por sua vez, subdividido em unidades mais pequenas, em certaszonas denominadas mitundu, como no caso da regio do Bzi, ou simples-mente nyika, lideradas por um chefe pequeno, que se podia denominarzahambo (em certas zonas do Bzi), mambo mudoco7 (em Chindau, na

    6 Jos Feliciano descreve as mesmas intenes da administrao colonial portuguesa e osfraccionamentos efectuados nos regulados Thonga (Feliciano, 1998, pp. 91-92).

    7 Expresso que significa, literalmente, chefe pequeno.

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    regio de Mossurize e certas zonas de Machaze), ou apenas mambo8. Porsua vez, cada uma destas subunidades dividia-se em unidades menores,lideradas por um saguta (Florncio, 2005, pp. 98-99).

    A estrutura tradicional de poder poltico Ndau do tipo piramidal, comos mambo a ocuparem o topo da hierarquia e os saguta o escalo inferior.Numa posio intermdia situam-se os mambo mudoco. Quer no escalo dosmambo, quer no dos mambo mudoco, existem outras personagens sociaisque, individualmente ou em grupo, partilham o poder e coadjuvam na tomadade decises. Essas personagens so o conselho de ancios, o conselho daucama9, o nduna10, o muvia11 e os maporissas, ou cipaios12 (id., ibid., p. 100).Os matombo, mais velhos e que formam o conselho de ancios, so o grupomais importante de conselheiros dos mambo e dos mambo mudoco em todosos domnios da vida material e simblica das populaes vaNdau. O conselhoda ucama engloba os elementos masculinos, tais como os tios, irmos,sobrinhos e filhos do mambo, ou do mambo mudoco, e por vezes podetambm englobar as mulheres da ucama, como a me, tias, irms e esposasdo mambo. Este conselho da ucama desempenha um papel poltico de enor-me relevncia, sobretudo pelo poder que detm aquando da sucesso de umnovo mambo.

    O conceito de autoridades tradicionais composto, assim, pelo conjuntodestas personagens sociais, que fazem parte integrante da estrutura da or-ganizao do poder tradicional Ndau, e no se restringe apenas ao mambo,ou rgulos.

    Uma das consequncias mais importantes da introduo da RAU foi oefectivo enquadramento das unidades territoriais locais, as chefaturas, nalgica da diviso administrativa territorial das colnias. As reorganizaesterritoriais dos novos regulados (regedorias) vieram alterar substancialmenteas reas de jurisdio de alguns mambo vaNdau, sobretudo dos mais impor-

    8 A administrao colonial portuguesa passou a designar estes chefes pequenos por chefesde grupo de povoaes e os sagutas por chefes de povoao.

    9 Ucama ou bajare, linhagem, grupo de parentes agnticos que tm um antepassado emcomum venerado como fundador da unidade familiar.

    10 O nduna uma espcie de secretrio do mambo ou do mambo mudoco. O cargo denduna pode suceder de pai para filho, segundo as regras costumeiras de sucesso. O termonduna encontra-se mais enraizado na regio de Mossurize e Machaze, precisamente as regiesonde a dominao Nguni mais se fez sentir. Nas regies mais costeiras, como no Bzi, emgeral, designa-se apenas por secretrio do mambo.

    11 O muvia uma personagem social que no se encontra na totalidade das estruturaspolticas das chefaturas vaNdau. Em geral, um sobrinho do mambo, normalmente o filhomais velho da irm mais velha, e desempenha sobretudo funes rituais e simblicas.

    12 Os maporissas, como se chamam na regio de Mossurize e Machaze, ou cipaios, naregio do Bzi, so uma espcie de polcias do mambo, mambo mudoco, e mesmo dossagutas, ou auxiliares para pequenas tarefas, tais como acompanhamento das partes queixosasdurante o processo de julgamento de milandos, e outras. Os maporissas ou cipaios podemainda desempenhar tarefas como emissrios e mensageiros.

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    tantes. Estas reorganizaes alteraram igualmente o tipo de relacionamentohierrquico entre os mambo de uma dada regio, pois a extenso do seunyika era o reflexo da sua importncia poltica.

    A administrao colonial chegou tambm a introduzir nas circunscriesnovos padres de hierarquizao, ao impor, pelo menos de modo informal,que o rgulo cujo nyika se encontrasse na zona da sede da circunscrio,por conseguinte mais perto da administrao, fosse considerado uma espciede rgulo dos rgulos. Por outro lado, procedia frequentemente a substi-tuies das autoridades tradicionais, nomeadamente chefes de grupo depovoaes, que se mostravam menos zelosos no cumprimento das suasfunes.

    O concelho do Bzi bastante paradigmtico no que concerne aosarranjos territoriais levados a cabo pela administrao colonial. No perodopr-colonial existia na regio do Bzi um conjunto de chefaturas, que aadministrao da Companhia de Moambique manteve como regulados semalteraes significativas. Contudo, em 1942, quando comeou a administra-o directa pelo Estado portugus, deu-se uma profunda modificao ehouve um arranjo no nmero de regulados. Muitos desapareceram e foramintegrados noutros e os respectivos mambo foram desclassificados para acategoria de chefes de grupo de povoaes. Esto nesta situao os casosdos antigos mambo de Chissinguana, Inhangujo, Bagaza, Chironda,Mazimba, Fumo, Ussingu, Chicoio, Inhangoro, Guenje, Beia, Grudja eGerome.

    Estes exemplos, retirados do actual distrito do Bzi, demonstram bem osimpactos violentos que a administrao colonial foi produzindo ao longo dedcadas na estrutura do poder tradicional, ao ponto de ser quase impossvel,no final do colonialismo, traar com clareza as verdadeiras linhassucessrias. As ucama que detinham o poder no final do perodo colonials esporadicamente coincidem com as que estavam no poder antes da ad-ministrao da Companhia de Moambique, o que levanta bastantes proble-mas sobre a tradicionalidade dos actuais regulados e dos seus mambo. Aocontrrio, em Mossurize e Machaze, e mesmo na zona do posto administra-tivo de Chibabava, no concelho do Bzi, no existiu esta nsia reformistae a estrutura de poder tradicional manteve-se praticamente inalterada aolongo de todo o perodo da administrao colonial.

    Este facto demonstra igualmente que a prpria administrao no erauniforme nas suas capacidades de controlo, manipulao e enquadramentoterritorial das autoridades tradicionais, pois as manipulaes eram maisfrequentes nas circunscries mais importantes do ponto de vista dos inte-resses coloniais. Ao invs, outras regies estavam quase ausentes do con-trolo administrativo colonial, ou ento os oficiais administrativos eram menosincisivos a exercerem esse mesmo controlo, e a as autoridades tradicionais

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    foram capazes de manter a estrutura tradicional mais imune a estas manipu-laes.

    A partir da implantao da RAU, as autoridades tradicionais tornaram-separte integrante da administrao colonial, sobretudo os mambo, mambomudoco e sagutas (respectivamente rgulos, chefes de grupo de povoaese chefes de povoao), acabando por ser incorporados como funcionriosda administrao, usando um uniforme colonial e insgnias, tais como divisase um basto. Os sagutas no possuam nenhuma identificao distintiva darestante populao. Os rgulos recebiam ainda uma remunerao anual, quecorrespondia a cerca de 3% da verba total de imposto de palhota recolhidono seu regulado.

    As funes mais relevantes que estas autoridades locais executavam paraa administrao colonial centravam-se, essencialmente, no controlo da mo--de-obra, no recrutamento para o chibalo, na recolha do imposto de palhotae no controlo e manuteno da ordem pblica atravs da resoluo demilandos entre os indgenas. A administrao colonial, devido s dificuldadesde controlo sobre a populao, delegava nestas autoridades rgulos,chefes de grupo de povoaes e sagutas a responsabilidade das referidastarefas, em especial a recolha do imposto de palhota13 e o recrutamento damo-de-obra local, quer para os contratos de trabalho livre, quer para oregime de trabalho forado14.

    Por vezes, as autoridades tradicionais funcionavam apenas como agentesintermedirios no processo de recrutamento, pois nem sabiam a finalidade aque este se destinava. No entanto, noutros casos eram capazes de manipularo sistema a seu favor e obter rendimentos ilegais deste recrutamento, sobre-tudo quando conseguiam uma relao directa com os recrutadores privados.

    As autoridades tradicionais, sobretudo os rgulos, e em menor grau oschefes de grupo de povoaes, usufruam de um conjunto de regalias peloseu trabalho para a administrao colonial. Alm da percentagem retirada datotalidade do imposto recolhido, os rgulos recebiam ainda um pequenosubsdio mensal e em certos casos eram-lhes atribudas casas de alvenaria.No entanto, tambm estavam sujeitos a um conjunto de punies que incluammesmo castigos fsicos, infligidos, regra geral, pelo chefe de posto ou mesmopelo administrador, sempre que estes entendiam que as autoridades tradicionaisse mostravam menos zelosas no cumprimento dos seus deveres.

    13 O imposto era pago por todos os indivduos do sexo masculino de idade compreendidaentre os 18 e os 60 anos. Regra geral, o imposto era recolhido pelos subordinados do rgulo.

    14 Outra funo desempenhada pelas autoridades tradicionais vaNdau de extrema relevnciapara a administrao colonial consistiu na fiscalizao da produo familiar de algodo duranteo perodo do regime de cultivo forado.

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    No que respeita manuteno da ordem social e resoluo de milandosentre os indgenas, existia um tribunal tradicional em todos os regulados.Pelo costume Ndau, o tribunal reunia-se uma vez por semana na casa daprimeira esposa lobolada do rgulo ou do chefe. Nos nyika dos chefes depovoao, ou saguta, no existia este tipo de tribunal. Estes tribunais tambmse organizavam de forma hierrquica, pelo que os chefes de grupo de po-voaes participavam periodicamente ao rgulo os milandos que resolviam eenviavam para o seu tribunal os que no conseguiam resolver. Porm, apopulao conseguia muitas vezes manipular este sistema, uma vez que asdecises destes tribunais no eram vinculativas. Deste modo, um indivduoou um grupo que ficasse insatisfeito com a deciso tomada no tribunal doseu chefe de grupo de povoaes podia recorrer ao tribunal de outro chefe,ou ao do rgulo, ou mesmo administrao colonial. Por sua vez, o tribunaltinha de enviar para a administrao os milandos que o seu tribunal noconseguia resolver ou aqueles que no faziam parte das suas competnciasjurisdicionais, como os milandos de sangue, os crimes contra o Estado (fugaao trabalho obrigatrio e ao imposto de palhota, fuga ao recrutamento parao servio militar), roubos de maior importncia, etc. Para estes casos existiana administrao um tribunal de indgenas, liderado pelo administrador,coadjuvado por dois rgulos.

    O encapsulamento das autoridades tradicionais no era integral, porfalta de capacidade da administrao colonial. Este facto demonstra-se pelasvrias manipulaes que as autoridades tradicionais faziam deste sistemahierrquico de justia, sonegando a informao de milandos graves, como,por exemplo, homicdios, que eram julgados nos tribunais dos rgulos oudos chefes de grupo de povoaes sem serem levados ao conhecimento daadministrao.

    Como se depreende do exposto at agora, as profundas transformaesque as estruturas de poder tradicional Ndau sofreram desde meados dosculo XIX e sobretudo com a administrao colonial portuguesa implicaramuma perda considervel de autonomia poltica, uma maior dependncia faceao aparelho administrativo local e a perda de legitimidade face s populaes.Ao mesmo tempo contriburam para cimentar a ambiguidade da sua posiosocial de charneira entre a administrao colonial e as populaes indgenas.Contudo, este processo social no foi suficiente para conduzir a uma totalperda de legitimidade e as autoridades tradicionais continuaram a gozar deum enorme prestgio e obedincia local.

    Uma das razes que explicam a manuteno desta legitimidade prende-secom a pluralidade e complexidade de papis sociais por elas desempenhados,no s os de natureza poltico-administrativa no mbito da administraocolonial, que foram os mais afectados com a implantao do colonialismo,mas tambm os de natureza mgico-religiosa, que so fundamentais no

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    sistema simblico e de reproduo social Ndau. Estes ltimos continuarampraticamente intocados, mesmo com a integrao na administrao colonial,nomeadamente a organizao e conduo das cerimnias colectivas dekudira ou mbhambha15, que so momentos ritualizados que consubstanciama relao de venerao e dependncia dos vivos face aos vadzimu (os esp-ritos dos antepassados) e que se realizam na poca das colheitas ou parapedir chuva, assim como o seu papel no controlo e regulao da feitiaria,designadamente nos julgamentos e resoluo de milandos. Estas funesmgico-religiosas constituem, provavelmente, a base mais poderosa da legi-timidade social das autoridades tradicionais vaNdau.

    Pode, assim, concluir-se que, apesar de todas as transformaes impos-tas pela administrao colonial com a introduo do modelo de indirect rule,a instituio de poder tradicional Ndau nunca se deixou encerrar completa-mente num modelo de administrative chieftaincy (Trotha, 1996) e que assuas autoridades tradicionais usufruam, no final do perodo colonial, de umalegitimidade social para a maioria da populao rural Ndau. Estas autoridadesdesempenhavam um papel de duplos intermedirios entre a administraocolonial e as populaes, por um lado, mas sobretudo entre a populao eos seus vadzimu, ou seja, entre o universo terreno e o universo dos espritosdos antepassados, consubstanciando essa relao e funcionando como factorde equilbrio na ordem e reproduo cosmolgica. este lugar de destaquena organizao da reproduo social Ndau que confere s autoridades tradi-cionais a sua principal fonte de legitimidade junto das populaes.

    A INDEPENDNCIA E NEO-INDIRECT RULE

    Com a independncia de Moambique, em 1975, a FRELIMO16 tentouimplementar um processo de modernizao do Estado, assente sobretudonuma poltica de socializao rural, cujo impacto foi profundamente nefastopara a maioria da populao rural, como demonstraram vrios autores(Cahen, 1987; Geffray, 1990; Casal, 1996; Florncio, 1994), e que acarretouforte perda de legitimidade para o Estado e para o prprio partido.

    No caso especfico das populaes vaNdau, o que contribuiu bastantepara essa perda de legitimidade foi sobretudo a tentativa de aniquilao dosmodelos tradicionais de reproduo social, com destaque para a produofamiliar de subsistncia, o aldeamento disperso e a gesto das terras fami-

    15 Na regio de Mossurize e Machaze as cerimnias familiares ou colectivas aos vadzimu(espritos dos antepassados) so genericamente denominadas kudira, enquanto na regiocosteira do Bzi e Machanga so conhecidas por mbhambha.

    16 Frente de Libertao de Moambique.

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    liares, a poligamia, as estruturas de poder tradicional, os mdicos e curan-deiros tradicionais e os cultos dos antepassados.

    Ao proibir a realizao das cerimnias tradicionais, o trabalho das per-sonagens mgico-religiosas e as consultas de kuringuidja17, a FRELIMOestava a desestruturar um pilar fundamental do edifcio simblico Ndau. verdade que, por vezes, e em certos locais, o Estado e a FRELIMO eramobrigados a fechar os olhos e a permitir a realizao de cerimnias, comono caso das cerimnias da chuva realizadas no Bzi em 1988 (Florncio,2004, p. 304). A proibio das actividades dos nyanga18 e dos nhamussoro19tambm afectou imenso o quotidiano das populaes, porque a maioria dapopulao, mesmo a que professa as diversas confisses crists, consultaregularmente estas personagens mgico-religiosas tradicionais.

    A proibio da FRELIMO, quer em relao s cerimnias tradicionais,quer s actividades mgico-religiosas, implicou, na generalidade, dois tiposde consequncias desestruturantes do modelo de reproduo social Ndau:constituiu uma forte ruptura no sistema de comunicao entre os espritose os vivos, fundamental para a manuteno e reproduo da ordemcosmolgica e, por conseguinte, da ordem social terrena; permitiu umaenorme expanso da feitiaria, dada a ausncia dos mecanismos tradicionaisde controlo, nomeadamente das actividades desempenhadas pelas persona-gens mgico-religiosas e pelas autoridades tradicionais.

    O processo de destituio destas autoridades iniciou-se formalmente, aonvel nacional, ainda em 1974, durante o governo de transio. Em geral, aspopulaes eram convocadas para participarem em banjas20, nas quais lhesera comunicado que o governo da FRELIMO tinha decidido abolir o sistemade regulados e, por conseguinte, retirar as funes aos mambo (rgulos) es outras autoridades tradicionais. A FRELIMO, ao realizar estas banjas,pretendia, essencialmente, mobilizar e adquirir uma rpida legitimidade faces populaes. Para as autoridades tradicionais, estas banjas acabavam porconstituir momentos de forte humilhao, porque eram publicamente acusa-das de colaboracionismo com o regime colonial.

    Uma parte da populao Ndau mostrava-se de acordo com esta medidada FRELIMO. Entre os grupos mais favorveis destituio das autoridadestradicionais pode destacar-se aquele que era composto pela populao jovem,mais receptiva aos discursos oficiais, e que via nestas autoridades umaforma de poder gerontocrtico, e tambm as mulheres e algumas famliasque mantinham algum tipo de conflito com as autoridades tradicionais, re-

    17 Processo de consulta/adivinhao e cura de um paciente.18 Curandeiro-adivinho.19 Mdium.20 Assembleias pblicas populares.

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    sultante de disputas de terras, pagamento de impostos, trabalhos nas terrasdos rgulos, ou outros. Neste mbito bem dramtico o exemplo do rgulode Grudja, que se suicidou aps ter sido destitudo numa destas banjas(Florncio, 2005, p. 163).

    A destituio das autoridades vaNdau em praa pblica produziu umenorme sentimento de humilhao no s para as prprias autoridades envol-vidas, como tambm para as suas famlias e certos estratos da populao,nomeadamente os matombo. As reaces das autoridades tradicionais varia-ram bastante, mas, de um modo geral, pode dizer-se que no houve umacontestao aberta, at porque a FRELIMO no permitia tais veleidades. Emmuitos casos, os GDs (grupos dinamizadores) utilizaram a fora fsica paraas humilharem e para sublinharem o seu desprezo pelas tradies locais,chegando a torturar rgulos e chefes de povoao e a violentar os locais deculto dos varungu a mambo (espritos dos falecidos mambo).

    Entre 1977 e 1992, durante o conflito armado com a RENAMO21, asautoridades tradicionais moambicanas iriam de novo desempenhar um papelrelevante, pelo menos em certas regies e durante certos perodos do con-flito, pois este movimento poltico viu-se obrigado a implementar umaestrutura poltico-administrativa civil que regulasse as relaes com a popu-lao nas reas que controlava. Em face da escassez de meios e de recursoshumanos, a RENAMO optou por um modelo de organizao muito ao estilodo indirect rule caracterstico do sistema colonial, dando autonomia spopulaes para organizarem o seu prprio modelo de reproduo social.Assim, e semelhana da poca colonial, a RENAMO recorreu s autorida-des tradicionais para a organizao administrativa das populaes. Para amaioria da populao rural Ndau e para as autoridades tradicionais, a polticaadministrativa implantada pela RENAMO simbolizava o respeito que o mo-vimento tinha pelas tradies e a possibilidade de reposio do seu modelode reproduo social22.

    Esta espcie de regresso ao passado, protagonizado pela RENAMO nassuas zonas de controlo, revelava dois aspectos fundamentais: uma necessi-dade pragmtica face total ausncia de um projecto novo de sociedade euma incapacidade do movimento em montar uma estrutura administrativaprpria; uma configurao ideolgica que pretendia constituir um contrapon-to poltico, econmico, cultural e social ao projecto de sociedade do Estado--FRELIMO, mostrando-se a RENAMO defensora das tradies e da auten-ticidade africana.

    21 Resistncia Nacional Moambicana.22 Aos poucos estas ideias foram-se implantando tambm junto da populao que vivia

    nas zonas controladas pela FRELIMO, obtendo forte impacto junto de largos sectores dapopulao rural Ndau descontente com o Estado.

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    Nesse modelo de neo-indirect rule eram as autoridades tradicionais, so-bretudo os rgulos e chefes de povoao, que desempenhavam o papel deintermedirios entre a populao civil e a organizao militar da RENAMO.Assim, eram estas que assumiam o papel de organizar a vida das populaescivis, pois tinham de controlar e organizar a produo, zelar pela manutenoda ordem, pela resoluo de conflitos locais, pela distribuio de terras, pelacolecta de impostos em gneros (comida para os soldados), pela edificaode postos de vigilncia e pela constituio do corpo de mujeebas23. Narealidade, mais correcto afirmar que a RENAMO no instituiu nenhummodelo de organizao social nas reas libertadas, deixando essa tarefa sprprias populaes e, sobretudo, responsabilidade das autoridades tradi-cionais locais. O movimento como que permitiu a institucionalizao de ummodo de reproduo social hbrido, que j no era nem do tipo pr-colonialnem colonial, mas que integrava alguns aspectos significativos de ambos,tais como a produo de subsistncia nas terras familiares, em habitat dis-perso, a reposio dos cultos dos antepassados e outras manifestaes douniverso simblico Ndau, a legalizao das actividades mgico-religiosas e amanuteno da subordinao deste modelo a uma estrutura, neste casopoltico-militar, exgena.

    Contudo, necessrio muito cuidado no que diz respeito ao estabeleci-mento de uma relao de empatia e identificao directa entre as autoridadestradicionais e a RENAMO, mesmo na regio Ndau. A grande maioria destasautoridades optou deliberadamente por uma espcie de neutralidade face aosdois oponentes, refugiando-se nos pases vizinhos ou deixando-se ficar naszonas controladas e protegidas pelo prprio Estado-FRELIMO. No caso dosrgulos, esta escolha foi bastante clara, pois foram poucos os que optarampor uma estratgia de dissidncia aberta e activa contra o Estado-FRELIMO.Nesse sentido, necessrio aprofundar e mesmo relativizar a prpria noode autoridades tradicionais das zonas controladas pela RENAMO, e o que sepode afirmar com clareza que este movimento poltico restituiu s ucamareais, a nvel local, o estatuto social que haviam perdido com o projecto desociedade da FRELIMO. Todavia, essa restituio no foi isenta de manipu-laes, pois muitas vezes o poder tradicional no foi institudo nos seusverdadeiros detentores, nem mesmo nos seus legtimos herdeiros, os quais,na maior parte dos casos, no se encontravam presentes, mas sim emindivduos que, apesar de pertencerem ucama real, podiam no deterdireitos legtimos de poder. Estes indivduos investidos pela RENAMO, asautoridades tradicionais RENAMO (Florncio, 2005, p. 193), tinham,assim, fortes problemas de legitimidade perante as prprias populaes.

    23 Corpo de milcias criado pela RENAMO.

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    Autoridades tradicionais vaNdau de Moambique

    A ACTUAL CONSTRUO DO ESTADO MOAMBICANO

    Com o fim do conflito armado e a assinatura do Acordo Geral de Paz emOutubro de 1992, o governo moambicano viu-se perante a necessidade deestabelecer uma administrao territorial nica, englobando as reas contro-ladas pela RENAMO. Na regio rural Ndau (distritos de Mossurize, Machaze,Chibabava, Bzi e Machanga), a partir de 1992, o Estado distrital, sobretudoatravs dos administradores de distrito, comeou a desenvolver esforos nosentido de contactar com as autoridades tradicionais e comear a atribuir--lhes algumas tarefas administrativas. No entanto, esta relao era, pelomenos no seu incio, marcada por uma fortssima desconfiana entre aspartes. O Estado, e mais explicitamente o partido FRELIMO, desconfiava daproximidade ideolgica das autoridades tradicionais RENAMO e temia quea deposio de poderes nas mos desta instituio fosse aproveitada por estepartido. Ou seja, para a FRELIMO, as autoridades tradicionais eraminstrumentalizadas pela RENAMO e nesse sentido constituam um perigo paraa sua soberania. Para as autoridades tradicionais no existia uma real separaoentre o Estado e a FRELIMO e, como tal, desconfiavam do que este partidolhes tinha feito no perodo logo a seguir independncia. Ao nvel nacional, foimesmo na regio Ndau, no posto administrativo de Dombe, que, em 1994, estadesconfiana entre o Estado e as autoridades tradicionais atingiu uma maiorviolncia, ganhando foros de problema nacional e obrigando interveno doEstado central e do prprio presidente Joaquim Chissano.

    Deste modo, pode afirmar-se que no incio do processo de instituciona-lizao das autoridades tradicionais o Estado enfrentava um forte dilema: porum lado, defrontava-se com a necessidade de as enquadrar no processo deformao do Estado ao nvel distrital, enquanto, por outro lado, enfrentavauma enorme desconfiana face a esses actores locais e o temor de que estesfossem instrumentalizados pela RENAMO. Nesse sentido, sempre que pos-svel, o Estado intentava um processo, semelhante ao do Estado colonial, demanipulao e controlo desta instituio, tentando imiscuir-se nos mecanis-mos de sucesso, influenciando ou mesmo impondo elementos mais suscep-tveis de um bom relacionamento com a FRELIMO e com o Estado.

    Em grande medida, as actuais administraes distritais usam o mesmotipo de estratgias manipuladoras que no tempo da administrao colonial,podendo no influir directamente na escolha de um herdeiro, mas aprovei-tando-se de conflitos pela sucesso, ou pela manuteno do poder, dentro daprpria ucama para tomarem partido por uma das partes em conflito e dessemodo influenciarem a escolha ou a nomeao de um indivduo que seja maisfavorvel aos interesses da administrao.

    Por outro lado, em 1993, quando os governos distritais comearam anomear as autoridades tradicionais para colaborarem na administrao e estas

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    iniciaram o regresso s suas terras, sobretudo nas regies que eram contro-ladas pela RENAMO, depararam-se com as denominadas autoridades tra-dicionais RENAMO, que efectivamente estavam a controlar esses territ-rios. A transposio de poderes dessas autoridades tradicionais RENAMOpara as verdadeiras autoridades tradicionais originou, na maioria dos casos,acesos conflitos entre estes dois grupos. Estes conflitos acabariam porenvolver membros das ucama, autoridades tradicionais (alm dos rgulos,chefes de povoao e saguta, directamente implicados nesses conflitos pelopoder, envolveram-se igualmente os matombo sobre quem recaa geral-mente a resoluo desses conflitos , os muvia e os antigos cipaios oumaporissas), elementos da administrao distrital (nomeadamente o administra-dor distrital) e elementos dos dois partidos polticos, FRELIMO e RENAMO.Alguns destes conflitos foram de fcil resoluo, mas outros atingiram algu-ma agressividade e outros no foram ainda resolvidos. No distrito deMossurize, por exemplo, os conflitos mais graves aconteceram na zona deMutoi e nos regulados de Inhacufera, Inhabanga e Chaiva. No distrito deMachaze existiu igualmente uma srie de conflitos entre as autoridades tra-dicionais e as autoridades tradicionais RENAMO nos regulados de Mecupee Butiro e entre os chefes Zianga e Chimbia. O distrito do Bzi parececonstituir um raro exemplo onde no se verificou este tipo de conflitos, oupelo menos onde a sua resoluo foi bastante fcil.

    Muitos dos actuais problemas com que se deparam as autoridadesvaNdau derivam da recente histria poltica de Moambique, nomeadamentedas novas identificaes polticas nascidas durante o conflito armado com aRENAMO. No entanto, outros constituem como que uma espcie de deno-minador comum na relao passada e presente desta instituio de poderlocal tanto com o Estado colonial como com o actual. Entre esses denomi-nadores podem salientar-se as reformas administrativas e o impacto deses-truturante que provocam na base territorial das autoridades tradicionais. Naactualidade, o marco principal a reforma administrativa de 1986, que traoua configurao actual das divises administrativas do pas. A reintegraodas autoridades tradicionais no processo de formao do Estado veio enfren-tar um novo tipo de problemas derivados desta reforma de 1986, pois oslimites geogrficos dos distritos e dos postos administrativos foram altera-dos. Deste modo, em certos casos, quando as autoridades tradicionais foraminvestidas, deparam-se com o facto de os seus nyika estarem agora parcial-mente divididos em dois postos administrativos diferentes, ou at mesmo emdois distritos.

    Em Mossurize este facto foi bastante comum porque uma parte signifi-cativa da regio sul do distrito passou para a jurisdio de Machaze, queascendeu categoria de distrito em 1986. Os regulados mais afectadosforam os de Gargua, Chaiva, Chinzine, Maobera e Mavu. Por sua vez, o

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    regulado de Gunha ficou inteiramente sob a jurisdio do posto administra-tivo de Dombe, que pertence ao distrito de Sussundenga. No distrito do Bzio regulado de Mexemedje o exemplo mais paradigmtico do tipo de mu-dana provocado pela reforma administrativa de 1986, pois o regulado ficourepartido entre os distritos de Chibabava (que era posto administrativo at1986) e do Bzi.

    Estas mudanas administrativas provocam alteraes importantes no es-tatuto das autoridades tradicionais, que ficam com o seu poder e prestgiobastante diminudos, por comparao com os que tinham no final do perodocolonial, que , para elas, o perodo de referncia no que respeita s suasreclamaes sobre o estatuto, o prestgio e as regalias scio-econmicas. Poroutro lado, estas alteraes tm consequncias para as prprias populaes,pois o facto de ficarem subordinadas a outros rgulos e chefes de povoaoconstitui um importante factor de ruptura nas antigas alianas familiares, nasrelaes de fora e prestgio entre as diferentes ucama que tradicionalmenteocupam um determinado territrio e entre estas e a ucama real. Tambm doponto de vista mgico-religioso, esta alterao provoca impactos importan-tes, na medida em que uma alterao na subordinao scio-poltica a umaautoridade tradicional implica, sobretudo, uma subordinao dessas popula-es aos varungu a mambo desse nyika. Ao passarem a depender de umoutro rgulo ficam ento subordinadas aos varungu a mambo do novorgulo, espritos esses com os quais os seus espritos familiares nuncativeram qualquer tipo de relao e que at ento podiam mesmo ser consi-derados espritos agressores, provocando-se deste modo uma profunda al-terao na ordem cosmolgica, quer familiar, quer mesmo do inteiro nyika.

    A actual reintroduo das autoridades tradicionais trouxe tambm para acena poltica local outro tipo de problemas do passado, que se relaciona comas manipulaes e alteraes que a administrao colonial exerceu sobre estainstituio. Como foi realado, no perodo colonial as administraes dascircunscries destituram rgulos e chefes de povoao que, por motivosdiversos, se mostraram menos zelosos. Em certos casos, este processoprovocou profundas alteraes na relao de foras entre os musiwango24reais. A partir de 1992, com a restaurao da instituio, alguns dos herdei-ros dos rgulos e chefes de povoao que foram destitudos ou afastados dasucesso durante o perodo colonial passaram a exercer presso sobre asactuais administraes distritais no sentido de lhes ser restitudo o seu es-tatuto. Um caso emblemtico deste tipo de problemas o do regulado deChaiva, em Mossurize. O Sr. Nicolau Joo de Deus foi entronizado como

    24 Musiwango, ou musi, significa casa, ncleo residencial de reproduo, produo econsumo. Era constitudo por um homem, mulher e filhos, ou s mulher e filhos, no casode poligamia.

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    rgulo em 1967, por imposio da administrao da circunscrio deMossurize, aps esta ter deposto do cargo o irmo mais velho do pai do Sr.Nicolau, que era o rgulo e dono das terras de Chaiva. O Sr. Nicolaubeneficiou do facto de trabalhar como carpinteiro na administrao e depossuir a 3. classe para ser escolhido como sucessor do tio, em detrimentodos legtimos herdeiros. No ano de 2000, um dos filhos do rgulo depostoem 1967 apareceu na administrao distrital de Mossurize a reclamar odireito ao ttulo de rgulo por ser o verdadeiro herdeiro das terras deChaiva. Apesar de o reclamante contar com o apoio de vrios matombo,conhecedores do caso, a actual administrao distrital decidiu apoiar o Sr.Nicolau e no pretende remov-lo do cargo porque ele que est registadocomo rgulo no livro das Autoridades Gentlicas25 e, por conseguinte, considerado pela actual administrao o rgulo legtimo. , pois, bastanteelucidativo, mas ao mesmo tempo contraditrio, que a actual administraodistrital invoque a autoridade da administrao colonial para perpetuar umevidente desvio praticado por esta ltima, revelando assim estar em consonn-cia com o mesmo tipo de interesses que a administrao colonial no querespeita ao relacionamento e aproveitamento das autoridades tradicionais.

    As actuais administraes distritais tentam desempenhar um papel regu-lador nestes conflitos. Contudo, na medida em que so tambm um dosactores polticos envolvidos nestas lutas, a sua participao no pode serdesinteressada e, bastas vezes, assumem-se mesmo como parte do problemae no parte da soluo. Por outro lado, bastante notrio que as adminis-traes distritais no possuem mecanismos institucionais para resolveremestes problemas nem tm, para as autoridades tradicionais vaNdau e para asprprias populaes, legitimidade para tal. Essa legitimidade reside apenasnas mos destas autoridades. Neste sentido, assiste-se actualmente a umaespcie de ressurgimento da gerontocracia, uma vez que, em geral, nosmatombo que recai a legitimidade para resolver os conflitos internos dainstituio.

    Alm destes conflitos sucessrios provocados por influncia exgena, ainstituio sofre, como sempre sofreu, de conflitos endgenos entre osdiferentes escales de poder, nomeadamente entre mambo (rgulos) emambo mudoco (chefes de povoao26) e entre diferentes regulados. Neste

    25 Livro de assentos da administrao colonial onde se registavam todos os processos sobreas autoridades tradicionais, na poca denominadas autoridades gentlicas ou indgenas, e de queainda se encontram alguns exemplares em certos distritos, sendo ainda usados pelas actuaisadministraes.

    26 Na actualidade, a classificao das autoridades tradicionais um pouco diferente da doperodo colonial. Mantm-se o cargo e a designao de rgulo, mas a de chefe de grupo depovoaes foi eliminada, usando-se, em sua substituio, a designao de chefe de povoao.O antigo chefe de povoao denomina-se actualmente saguta.

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    ltimo caso encontram-se sobretudo os conflitos em torno da posse deterras.

    Os conflitos entre rgulos e chefes de povoao tm vindo a aumentarnos ltimos anos, sobretudo aps a publicao do Decreto-Lei n. 15/2000.Tal como na poca colonial, estes conflitos actuais giram principalmente emtorno das compensaes monetrias que a administrao oferece s autori-dades tradicionais, nomeadamente as compensaes pela recolha do IRN(imposto de reconstruo nacional), e que esto consignadas no referidodecreto. Estas compensaes so pagas aos rgulos, que depois as devemredistribuir pelos seus chefes. Contudo, na actualidade, tal como durante otempo colonial, muitos rgulos retm a totalidade das verbas, no as redis-tribuindo, provocando mal-estar e conflitos com os chefes.

    Do ponto de vista das funes que desempenhavam para as administra-es distritais, e apesar da inexistncia de um enquadramento legislativonacional, a partir de 1994 foram sendo progressivamente atribudas s au-toridades vaNdau algumas funes administrativas e tambm de ndolemgico-religiosa, nomeadamente as cerimnias da chuva e as cerimniaspropiciatrias aos vadzimu, entre as quais se destacam as denominadascerimnias de lavagem das terras. As autoridades tradicionais tambmdesempenharam um papel relevante no regresso das populaes deslocadasou refugiadas e no seu reassentamento.

    Estabeleceram-se ento pontos de colaborao com as administraesdistritais que, variando bastante de caso para caso, tinham, no entanto, umimportante denominador comum: a reposio progressiva das funes maissignificativas desempenhadas pelas autoridades tradicionais durante o pero-do da administrao colonial. Neste mbito destacam-se a recolha do impos-to anual (IRN), a manuteno da ordem social local, atravs da reposio dostribunais tradicionais e do julgamento de milandos, a mobilizao das popu-laes para aces de cariz pblico e colectivo, como a reabilitao deestradas, centros de sade e escolas, a mobilizao para programas e cam-panhas do Estado distrital, como programas de vacinao, de vulgarizaoagrcola e de escolarizao, e a realizao das cerimnias tradicionais.

    Porm, a actualidade nacional, ou a modernidade poltico-social do pas,impe ainda outro tipo de funes, ou de tarefas, que estavam ausentesdurante o perodo colonial, sobretudo aos rgulos, chefes de povoao esagutas. Entre estas destacam-se as tarefas de ndole poltica, sobretudo noque respeita mobilizao das populaes, quer pela RENAMO, quer pelaFRELIMO, em especial durante as campanhas eleitorais, a que acrescemfunes de intermediao com as organizaes no estatais, nomeadamenteas ONGs nacionais e internacionais.

    No que diz respeito manuteno da ordem pblica, as autoridadestradicionais executam praticamente o mesmo tipo de funes que no perodo

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    colonial, existindo de novo os denominados tribunais tradicionais, os tribu-nais dos rgulos, nos quais so julgados atravs do direito costumeiropequenos delitos, como roubos, pequenas agresses fsicas que no envolvamhomicdios, e os assuntos tradicionais, entre os quais se destacam as acusa-es de feitiaria. Os crimes mais graves so, tal como no perodo colonial,remetidos para a polcia e para a Procuradoria da Repblica. A composiodestes tribunais exactamente a mesma que durante a poca colonial.

    No campo das actuais tarefas administrativas destaca-se a colecta doIRN. Tal como no perodo colonial, o subsdio mensal atribudo pelas ad-ministraes distritais aos rgulos discrimina os chefes de povoao, que, emmuitos casos, no recebem qualquer provento pelo seu trabalho para oEstado. Deste modo, no s existe uma discrepncia distrital nos rendimen-tos oferecidos pelo Estado s autoridades vaNdau, como o prprio Estadoinstituiu uma variao entre os diferentes escales, nomeadamente entre osrgulos e os chefes de povoao, beneficiando os primeiros, semelhanadas prticas utilizadas pela administrao colonial.

    Por outro lado, as administraes distritais tm impelido as autoridadestradicionais a desempenharem outras tarefas de menor relevo, mas que decerto modo reforam a ideia de que estas substituem o Estado distrital namaior parte das funes que este devia assegurar. Entre estas funes des-taca-se a participao nas campanhas de divulgao realizadas pelas DDADR(direces distritais de agricultura e desenvolvimento rural), pelas DDS (di-reces distritais de sade) e pelas DDE (direces distritais de educao)e o controlo demogrfico da populao, nomeadamente atravs do registodos nascimentos e dos bitos.

    Outra funo desempenhada pelas autoridades tradicionais e que se reves-te de especial relevncia a gesto do patrimnio fundirio, ou seja, dofundo de terras. Nesse sentido cabe-lhes a responsabilidade de gerirem aatribuio do fundo de terras da comunidade, como estabelecido a partir daLei das Terras (Lei n. 19/97).

    A questo das regalias a atribuir s autoridades tradicionais pelo seudesempenho e colaborao com as administraes distritais constituiu sem-pre uma espcie de caderno reivindicativo nacional a partir do momentoem que o Estado anunciou a sua inteno de as associar a estas tarefas. Asreivindicaes eram bastante semelhantes por todo o pas, apontando, nantegra, para a reposio do estatuto e das regalias que detinham durante operodo colonial: uso de um fardamento distintivo; uso de insgnias; uso deobjectos-smbolos de poder, como o basto ou bengala; imposio da ban-deira nacional nas suas residncias; construo de residncias de alvenaria;reposio de uma fora de cipaios ou de maporissas e de uma priso emcada regulado; o pagamento de um subsdio ou de um ordenado resultanteda sua participao na recolha do imposto nacional.

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    Estas reivindicaes das autoridades tradicionais s obteriam resposta doEstado com a elaborao do Decreto n. 15/2000, que acabaria, em grandemedida, por institucionalizar este caderno reivindicativo. Isso no significaque ao longo do perodo de 1992 a 2000 as administraes distritais notivessem oferecido s autoridades tradicionais algum tipo de incentivos,como meio informal de captura destes actores polticos locais, enquantocolaboradores no processo de formao do Estado distrital. Estes incentivosincidiam especialmente em bens de prestgio, como bicicletas e rdios.

    Por outro lado, as autoridades tradicionais continuam a desempenhar umforte papel de intermediao entre as organizaes estatais e as populaes,nomeadamente nas questes relacionadas com a sade ou com a educaoe com as ONGs nacionais e internacionais.

    Contudo, ao nvel distrital, sobretudo com os elementos e as organiza-es de massas da FRELIMO, nomeadamente com os secretrios de bairroe de clula, que as autoridades vaNdau continuam a travar uma forte lutapoltica, motivada quer pela conquista de um espao de actuao, quer pelosressentimentos existentes entres ambos. Os conflitos entre as autoridadestradicionais vaNdau e as organizaes da FRELIMO assentam numa duplanatureza: por um lado, do ponto de vista histrico, o relacionamento entreestes dois actores ainda sofre as consequncias das polticas estataisprosseguidas contra as autoridades tradicionais no perodo da independncia.Em segundo lugar, estes dois actores desenvolvem as suas actividades demobilizao e enquadramento das populaes no mesmo espao scio-geo-grfico, numa clara competio entre ambos.

    As autoridades administrativas continuaram a recorrer tanto s estruturaspartidrias da FRELIMO como s autoridades tradicionais enquanto agentesda administrao local. Por exemplo, em 1999, nos distritos de Chibabava eMachanga, as respectivas administraes distritais atriburam a colecta doIRN e a mobilizao das populaes para actividades colectivas de interessepblico aos GDs e s autoridades tradicionais. Os GDs e os secretrios debairro e de clula deviam tambm participar na resoluo de milandos rela-cionados com disputas sobre terras, casas, homicdios, roubos e desordens.

    Estes conflitos resultam da ambiguidade dos papis polticos, sociais eadministrativos desempenhados quer pelas autoridades tradicionais vaNdau,quer pelas estruturas da FRELIMO, e que o Decreto n. 15/2000, ao invsde sanar, acabou at por agudizar. A FRELIMO e o Estado parecem noestar interessados em clarificar o assunto porque as suas estruturas distritaisno usufruem da mesma legitimidade para as populaes que as autoridadestradicionais. A FRELIMO pretende assim impor, no processo de formaodo Estado distrital, uma estrutura poltica que lhe permita, pelo menos emcertas zonas, manter o controlo de uma parte da populao e da gesto derecursos distritais. Tal no sucede com a instituio das autoridades tradi-

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    cionais, que, ao contrrio, e apesar de todas as tentativas e processos demanipulao e controlo por parte do Estado, resiste e no se deixou enclau-surar completamente nem pelo Estado actual nem pelo colonial, mantendopor isso uma legitimidade significativa para uma parte substancial da popu-lao rural Ndau.

    A pluralidade de funes exercidas na actualidade pelas autoridades tra-dicionais vaNdau27 permite concluir que, por um lado, estas continuam a serum actor fundamental a nvel local na formao e consolidao do Estado,desempenhando funes e tarefas em tudo similares s que desempenhavamnos tempos coloniais. Na realidade, o Estado actual, semelhana do seucongnere colonial, usa as autoridades tradicionais com os mesmos prop-sitos e por motivos anlogos: a falta de recursos disponveis e de legitimidadepara gerir e administrar a maioria do territrio e da populao local. Nestembito, o sistema de indirect rule permite aos Estados essa possibilidade deadministrao e controlo por via indirecta de actores polticos locais legti-mos para as populaes.

    Na actualidade, quer devido s novas funes exigidas s autoridadestradicionais e ao tipo de relacionamento a que esto sujeitas para com oEstado e com outros actores locais no estatais, quer ainda devido aoscontextos nacionais e regionais em que esto inseridas, no se pode falar deum simples regresso do indirect rule, tal como era praticado no perodocolonial. Nesse sentido, o uso do conceito de neo-indirect rule ganha umprofundo e elucidativo valor heurstico para definir a pluralidade e a moder-nidade das funes actualmente atribudas s autoridades tradicionais e aoseu papel na construo do Estado em frica.

    EPLOGO

    Desde os primrdios da presena colonial portuguesa em Moambiqueque o processo de formao do Estado tem tido um percurso muito com-plexo e fragmentado. Seguindo o exemplo de outros modelos de administra-o colonial, mormente o britnico, o colonialismo portugus implementouum modelo de administrao do territrio e das populaes indgenas doestilo do indirect rule, ou seja, usava os sistemas polticos locais, as auto-ridades tradicionais locais, de modo diferenciado de regio para regio,consoante as capacidades de controlo da prpria administrao colonial.

    No caso das autoridades tradicionais vaNdau, este processo iniciou-seainda durante o perodo de concesso da Companhia de Moambique, ebasicamente as tarefas que executavam para a administrao da Companhiaeram o controlo e enquadramento das populaes rurais, a colecta de impos-

    27 Este panorama muito semelhante ao nvel nacional, no se restringindo s autoridadestradicionais vaNdau.

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    tos, a organizao da mo-de-obra para o trabalho obrigatrio, a manutenoda ordem e regulao dos milandos entre indgenas, nomeadamente os re-lacionados com a feitiaria, pequenos roubos e relaes familiares.

    Com o estabelecimento da RAU, a administrao colonial foi progressi-vamente enquadrando estas autoridades enquanto elementos integrantes doaparelho administrativo. No geral, as autoridades tradicionais passaram adesempenhar para a administrao estatal as mesmas tarefas que para aadministrao da Companhia de Moambique.

    A administrao colonial pretendeu sempre controlar as autoridadesvaNdau, exercendo uma forte manipulao na instituio. Contudo, a admi-nistrao colonial no era uniforme nas suas capacidades de controlo, ma-nipulao e enquadramento territorial das referidas autoridades. Essa capaci-dade de controlo e manipulao variava muito de regio para regio, de pocapara poca e tambm segundo as capacidades quer dos prprios administra-dores e chefes de posto, quer das prprias autoridades tradicionais.

    Apesar das transformaes e manipulaes impostas pela administraocolonial, as autoridades vaNdau nunca se deixaram encerrar completamentenum modelo de administrative chieftaincy e pode mesmo afirmar-se que nofinal do perodo colonial usufruam de uma legitimidade social para a maioriada populao rural Ndau. Nesse sentido, o lugar social das autoridadestradicionais era o de duplos intermedirios entre a administrao colonial eas populaes e entre estas e os seus vadzimu. A estas autoridades cabia,pois, o papel de intermedirios entre o universo terreno e o universo dosespritos dos antepassados. As autoridades tradicionais constituam, assim,o factor de equilbrio na ordem e reproduo cosmolgica e social Ndau.

    Esta instituio viria a ser abolida pela FRELIMO. Durante o perodo doconflito armado com a RENAMO, as autoridades vaNdau viriam a desem-penhar novamente um papel de relevo, sobretudo na administrao das po-pulaes das reas controladas pelo movimento rebelde. Contudo, seria apartir de 1992, com o fim do conflito armado, que se assistiu ao ressurgi-mento formal e nacional desta instituio de poder local.

    Confrontado com a necessidade de reorganizar e unificar a administraona totalidade do territrio, o Estado moambicano viria a utilizar as autori-dades tradicionais no mesmo sentido e pelas mesmas razes que o seucongnere colonial, ou seja, pela sua prpria incapacidade de meios e recur-sos e falta de legitimidade para a maioria da populao rural. No caso Ndau,essa situao era ainda mais gravosa, pois a RENAMO detinha uma forteinfluncia na regio e controlava partes significativas do seu territrio.

    O Estado foi assim tentando, progressivamente, capturar as autorida-des tradicionais, instaurando um modelo de enquadramento e de administra-o muito semelhante ao indirect rule do perodo colonial e utilizando-as parao cumprimento de tarefas semelhantes s que eram obrigadas a desempenharanteriormente. Simultaneamente, as actuais administraes locais confronta-

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    Fernando Florncio

    ram-se com os mesmos problemas de controlo e enquadramento das auto-ridades tradicionais e tm intentado o mesmo tipo de manipulaes e controlosobre a instituio. Esse tipo de manipulaes tambm tem variado muito dedistrito para distrito e de regulado para regulado, consoante a capacidade decontrolo do Estado local e de resistncia das prprias autoridades tradicio-nais.

    As actuais dinmicas polticas, econmicas, sociais e religiosas no uni-verso rural Ndau e no moambicano, em geral, so muito mais complexase fragmentadas do que durante o perodo colonial. Deste modo, e desdelogo, as autoridades tradicionais confrontam-se com uma pluralidade deactores sociais muito diversificada, quer em termos da sua constituiosociolgica, quer em termos de legitimidade e motivaes polticas locais.Podem distinguir-se ento vrios grupos de actores: as autoridades tradicio-nais; as autoridades e as organizaes estatais; as organizaes no gover-namentais (ONGs), nacionais e estrangeiras; a FRELIMO e as suas organi-zaes; a RENAMO; as diferentes confisses religiosas; grupos relevanteslocais de homens importantes, professores, comerciantes, tcnicos de sade;adivinhos e curandeiros (AMETRAMO28). Por outro lado, o Estado local ,ele prprio, muito mais complexo e fragmentado, espartilhado entre actoresplurais, tais como as administraes distritais e os principais partidos pol-ticos (RENAMO e FRELIMO). As autoridades tradicionais no somente seconfrontam e afrontam com essa pluralidade de actores locais, como aindaso obrigadas a desempenhar uma multiplicidade de tarefas e papismodernos no s para as administraes distritais como, igualmente, deenquadramento e mobilizao poltico-partidria. Nesse sentido, no se podedizer que a actualidade marque o regresso ao direct rule do perodo colonial,mas antes a inaugurao de um neo-direct rule entre o Estado e as autori-dades tradicionais no processo de formao do Estado a nvel local.

    Em jeito de fecho, pode adiantar-se que a importncia social das autori-dades vaNdau e, em geral, das autoridades tradicionais moambicanas advmdo facto de continuarem a desempenhar tarefas fundamentais para a forma-o e consolidao do Estado a nvel local e de deterem uma forte legitimi-dade para uma parte muito significativa da populao rural.

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