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1 O DANO MORAL NA JURISPRUDÊNCIA CIVIL-CONSTITUCIONAL _________________________________________________________________ Felipe Peixoto Braga Netto ([email protected] ) Procurador da República. Mestre em Direito Civil pela UFPE. Professor de Direito Civil da ESDHC. Procurador Regional Eleitoral substituto em Minas Gerais. Autor, entre outros, de “Responsabilidade Civil” (São Paulo: Saraiva, 2008) e Manual de Direito do Consumidor (Salvador, Juspodivm, 2 a edição, 2008). “Quanto mais conservadoras são as idéias, mais revolucionários são os discursos”. Oscar Wilde SUMÁRIO 1. Direito civil: aberta rebeldia aos padrões clássicos? 2. Assincronias históricas: o papel do Código Civil de 2002. 3. O diálogo das fontes nas soluções jurisprudenciais. 3.1. A função significativa das palavras: o que é dano moral? 3.2. Linhas de tendência: o esvaziamento da autonomia privada 3.3. Códigos retóricos: o público e o privado 4. A flexibilidade orgânica do dano moral: as opções valorativas. 5. A violência simbólica da quantificação: tensão dialética entre o teórico e o prático 6. A recriação do sentido: em busca de mecanismos preventivos de tutela. 1. DIREITO CIVIL: ABERTA REBELDIA AOS PADRÕES CLÁSSICOS? Este artigo analisa a evolução do dano moral na jurisprudência brasileira, evidenciando, de algum modo, as conexões de sentido que oportunizaram a construção do atual modelo cognoscitivo, o qual, embora não ostente marcos conceituais unívocos, sinaliza, simbolicamente, as opções valorativas básicas do direito civil brasileiro. Virou lugar comum afirmar que o direito civil, nas últimas décadas, opera em aberta rebeldia aos padrões clássicos. Descontados os evidentes exageros da afirmação – Nelson Saldanha adverte que os exageros são o preço de toda

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O DANO MORAL NA JURISPRUDÊNCIA CIVIL-CONSTITUCIONAL

_________________________________________________________________

Felipe Peixoto Braga Netto ([email protected]) Procurador da República. Mestre em Direito Civil pela UFPE. Professor de Direito Civil da ESDHC. Procurador Regional Eleitoral substituto em Minas Gerais. Autor, entre outros, de “Responsabilidade Civil” (São Paulo: Saraiva, 2008) e Manual de Direito do Consumidor (Salvador, Juspodivm, 2a edição, 2008).

“Quanto mais conservadoras são as idéias, mais

revolucionários são os discursos”.

Oscar Wilde

SUMÁRIO 1. Direito civil: aberta rebeldia aos padrões clássicos? 2. Assincronias históricas: o papel do Código Civil de 2002. 3. O diálogo das fontes nas soluções jurisprudenciais.

3.1. A função significativa das palavras: o que é dano moral? 3.2. Linhas de tendência: o esvaziamento da autonomia privada 3.3. Códigos retóricos: o público e o privado

4. A flexibilidade orgânica do dano moral: as opções valorativas. 5. A violência simbólica da quantificação: tensão dialética entre o teórico e o

prático 6. A recriação do sentido: em busca de mecanismos preventivos de tutela.

1. DIREITO CIVIL: ABERTA REBELDIA AOS PADRÕES CLÁSSICOS?

Este artigo analisa a evolução do dano moral na jurisprudência brasileira,

evidenciando, de algum modo, as conexões de sentido que oportunizaram a

construção do atual modelo cognoscitivo, o qual, embora não ostente marcos

conceituais unívocos, sinaliza, simbolicamente, as opções valorativas básicas do

direito civil brasileiro.

Virou lugar comum afirmar que o direito civil, nas últimas décadas, opera em

aberta rebeldia aos padrões clássicos. Descontados os evidentes exageros da

afirmação – Nelson Saldanha adverte que os exageros são o preço de toda

2

tipificação -, é fato que as grandes unidades conceituais do direito civil clássico

perderam força explicativa.

Basicamente, são dois os fenômenos subjacentes à referida percepção: a) no plano

normativo, as fontes normativas atuais são interdisciplinares; o caráter

monotemático dos grandes códigos pertence ao museu das idéias, pelo menos em

seus propósitos exclusivistas dos séculos passados; b) no plano da meta-linguagem

– relativismos pós-modernos à parte – busca-se esquemas temáticos que não

mutilem a totalidade compreensiva, ensejando, em conexão com o item anterior,

um desejável diálogo das fontes.

Naturalmente, tais mudanças não se fazem sem atropelos. A formação cultural do

civilista - apontado, não à toa, como o ápice do conservadorismo jurídico – não

tolera bem a polissemia irritante que pontua certos discursos, sob o pretexto de

corrigir os formalismos característicos do direito privado.

Entretanto, a hiper-complexidade que define os dias em que vivemos desautoriza o

civilista a manter, insensivelmente, seus condicionamentos epistemológicos. Há,

gostemos ou não, problemas para cujas soluções se impõe uma tensão dialética

entre o teórico e o prático – ou, em outras palavras, uma flexibilidade orgânica que

não participava dos modelos cognoscitivos básicos do direito civil1.

Tudo posto na balança, percebe-se que mudou não só a forma de solução de

problemas – cada vez mais tópica e mais voltada para o caso concreto -, mas os

próprios problemas mudaram2.

2. ASSINCRONIAS HISTÓRICAS: O PAPEL DO CÓDIGO CIVIL DE 2002

Seria possível – falando do Brasil - conectar culturalmente tais mudanças à

aprovação de um novo código civil em 2002? A resposta só pode ser negativa. As

complexas alterações de rumo - havidas e em curso -, essencialmente culturais,

não são reduzíveis a tais pobres simplificações esquemáticas. O direito civil alterou

seus paradigmas hermenêuticos fundamentais porque a sociedade mudou. A

sociedade – antes agrária, patriarcal, fundada sob valores severos - deu lugar a

1 ESSER, Josef. Principio y norma en la elaboración jurisprudencial del derecho privado. Barcelona: Bosch, 1961, p. 188. 2 VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979, p. 38.

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uma sociedade urbana, plural, que rejeita os padrões comportamentais lineares dos

séculos anteriores.

Isso - e não poderia ser diferente - fez com que os valores fundamentais do direito

civil mudassem. No passado, o valor maior do civilista era a segurança. A

segurança era a âncora do sistema, tudo girava em torno de assegurar um

ambiente estável para o cumprimento dos contratos livremente firmados. Era a era

da segurança, de Stefhan Zweig, a era de ouro do “pacta sunt servanda”.

Hoje o direito civil não despreza a segurança, que continua sendo um valor

juridicamente caro. Mas a segurança cedeu espaço a outros valores, tão ou mais

importantes, que devem ser ponderados, no caso concreto, com vistas a proteger a

unidade valorativa do sistema3. O direito civil deve promover a solidariedade, deve

reduzir as desigualdades, deve proteger, enfim, o ser humano. São tarefas, de

algum modo, inéditas para o civilista. A tecnologia de lidar com normas abertas,

normas de conteúdo semântico flexível, traz certo sabor de ineditismo. Algum

tempo passará até que o jurista desenvolva ferramentas adequadas a essa

proteção.

De uma perspectiva científica, o fenômeno se espelha do seguinte modo: perdem

força explicativa as teorias gerais, tradutoras de grandes unidades conceituais.

Vivemos dias de fragmentação teórica, de consideração tópica e problematizada

dos temas civis. Naturalmente que isso não importa, nem poderia, irresponsável

desprezo pela tradição. Mesmo porque, como já alertou um escritor, o

autenticamente novo é um fiel depositário da tradição.

Diga-se, em breve parênteses, que um pensamento tradicionalmente preso às

subsunções e aos formalismos – tão presentes no pandectismo, por exemplo –

assiste algo inquieto ao que se poderia, com olhos conservadores, chamar de

desordem teórica – cabendo lembrar a advertência de Goffredo Telles Júnior: a

desordem é a ordem que não conhecemos. Não há, em ciências humanas, saltos

evolutivos. A formação cultural do civilista traduz condicionamentos que não serão

facilmente despidos em poucos anos. Há certa assincronia histórica entre a meta-

linguagem – postulando reinterpretações radicais – e a linguagem normativa –

ainda, digamos, hesitantemente presa a certos padrões clássicos.

3 Ver, a respeito, GOMES, José Jairo. Responsabilidade Civil e Eticidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, trabalho no qual o autor propõe uma nova feição para a responsabilidade civil a partir das idéias de solidariedade e cooperação.

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E a jurisprudência reflete isso de modo especial. Há, ao lado de louváveis avanços –

conectados culturalmente com a prioritária proteção dos valores extra-patrimoniais

-, decisões que insistem em seguir certo código retórico tradicional, tradutor de

modelos cognitivos forjados nos séculos passados. Nem seria de se esperar que

ocorresse situação diversa, sabendo-se que as evoluções culturais, se é que nos é

lícito usar tal expressão, não se dão linearmente, mas de modo complexo e pouco

nítido. Cabe recordar a elegante explicação de Sérgio Paulo Roanet: “Interseção, na

história das idéias, não quer dizer convergência; ela designa, simplesmente,

aquelas áreas em que dois pensamentos se cruzem, ingressando entre si numa

relação seja de afinidade seja de oposição”4.

Tampouco se pode, no atual momento histórico, perfilhar certa linha de tendência–

não explícita, mas oblíqua e sutil – que nutre algum desprezo pela jurisprudência

(não declarado, repita-se). Entende-se que os temas versados na literatura

civilística não podem se ocupar demasiado com as práticas jurisprudenciais, menos

aptas, digamos, a figurar nos discursos técnicos da chamada ciência jurídica.

Quem despreza a jurisprudência – digamos, embora pisando na lama do óbvio - em

nome de uma ciência supostamente mais alta está na verdade desprezando a

feição real do direito. Está com isso prestando tributo a um academicismo que pode

até ser sofisticado, admitimos, mas dificilmente terá projeção na realidade, pois é a

jurisprudência que enfrenta, bem ou mal, as questões jurídicas que terão influência

imediata na sociedade. Cabe à jurisprudência a imensa tarefa de construir – em

aberta rebeldia aos padrões clássicos, se preciso for – âmbitos diferenciados de

proteção, resguardando, com escudos distintos, as violações preponderantemente

existenciais5 ou preponderantemente patrimoniais – sendo certo que dificilmente

teremos, na matéria, pesos puros, livres de influência do oposto conceitual.

3. O DIÁLOGO DAS FONTES NAS SOLUÇÕES JURISPRUDENCIAIS

Não havendo possibilidade de desenvolver, neste artigo, os inúmeros matizes

conectados com o estado de coisas acima referido, optamos por cingir nossa análise

às polêmicas e disputas que guardam relação com a responsabilidade civil - mais

especificamente no que toca ao dano moral. Talvez pudéssemos chamá-la de

responsabilidade civil constitucional, porque é uma responsabilidade civil cuja

4 ROUANET, Sérgio Paulo. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 151. 5 V. PIETROBON, Vittorino. Illecito e fatto illecito – inibitoria e risarcimento. Padova: CEDAM, 1998.

5

fundamentação se aproxima, cada vez mais, do conteúdo normativo da

Constituição.

Esse tema sido objeto de reconstrução pela jurisprudência do Superior Tribunal de

Justiça. Criado com a Constituição Federal de 1988, esse tribunal tem a importante

função de uniformizar a aplicação do direito no território nacional. As questões

relativas à responsabilidade civil constitucional, portanto, encontram no Superior

Tribunal de Justiça seu foro natural de debate, sem prejuízo, naturalmente, de

eventual reexame, quando for o caso, pelo Supremo Tribunal Federal.

3.1. A FUNÇÃO SIGNIFICATIVA DA PALAVRA: O QUE É DANO MORAL?

A Constituição Federal se refere ao dano moral no art. 5º, incisos V (“é assegurado

o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano

material, moral ou à imagem”) e X (“são invioláveis a intimidade, a vida privada, a

honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano

material ou moral decorrente de sua violação”).

A legislação infraconstitucional também a ele se refere, como, por exemplo, o

Código de Defesa do Consumidor, no art. 6º, VI (“São direitos básicos do

consumidor: a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais,

individuais, coletivos e difusos”); o Código Civil de 2002, no art. 186 (“Aquele que,

por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar

dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”), o qual traduz

a cláusula geral da responsabilidade civil culposa.

Não há, na ordem jurídica brasileira um conceito legal de dano moral. Há, no

Congresso Nacional, Projeto de Lei (nº 150/99), cujo substitutivo é do Senador

Pedro Simon, que busca conceituar dano moral, e o faz nos seguintes termos: “Art.

1º Constitui dano moral a ação ou omissão que ofenda o patrimônio moral da

pessoa física ou jurídica, e dos entes políticos, ainda que não atinja o seu conceito

na coletividade”.

Tal definição não se apresenta livre de problemas. Aliás, as definições em lei não

costumam receber acolhida simpática na doutrina (omnias definitio periculosa est).

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Ademais, o referido projeto adota a reparação tarifada, elegendo faixas de

indenização, o que não goza de boa reputação em nossa tradição jurisprudencial6.

O dano moral é categoria cuja construção é fundamentalmente jurisprudencial.

Quem quiser conhecê-lo deve ir aos julgados, e não às leis. Essas dizem pouco, e

não poderiam, na verdade, dizer muito, sem prejudicar sua natural evolução. Aliás,

à jurisprudência devemos alguns dos mais notáveis passos que demos nos últimos

séculos – teoria do abuso de direito, responsabilidade objetiva do Estado, além da

própria reparação dos danos morais.

É impossível definir, abstratamente, o dano moral, sem exemplificar,

circunstancialmente, os fatos que o ensejam. Se existe uma certa categoria de

fatos cuja gravidade evidencia, por si só, o cabimento dos danos morais – morte de

um filho, por exemplo – existem, por outro lado, uma imensa gama de fatos cuja

inserção na classe dos danos morais não é muito clara7.

6 As imposições legais de indenização tarifada não são bem vistas pela jurisprudência. A Constituição Federal, ao prever a indenização do dano moral, não fixou tarifas, nem disse que a lei o faria. Ademais, os limites legais podem se revelar, no caso concreto, insuficientes, negando realização ao princípio da reparação integral dos danos. Bem por isso, o STJ, em abril de 2004, aprovou o seguinte verbete de Súmula: “A indenização por dano moral não está sujeita à tarifação prevista na Lei de Imprensa”.

Outro exemplo – que mostra a linha de tendência da jurisprudência em afastar a indenização tarifada – ocorreu com a Convenção de Varsóvia (12/10/29). Tal Convenção – tratado internacional do qual o Brasil é signatário, incorporado à ordem jurídica nacional por intermédio do Decreto n. 20.704, de 24/11/31 – previu, art. 22, a indenização tarifada em caso de extravio de bagagens. A jurisprudência nacional, após alguma hesitação inicial, rechaçou a aplicação da indenização tarifada prevista na Convenção, sendo certo que tal limitação se chocaria com o Código de Defesa do Consumidor. No caso das empresas aéreas, temos, claramente, uma relação de consumo. A prestação do serviço, por parte da companhia aérea, faz surgir, para o passageiro, a possibilidade de invocar o Código de Defesa do Consumidor, o qual, além de responsabilizar o fornecedor independentemente de culpa (art. 14), não traz limites legais para a indenização, nem admite que tais limites sejam contratualmente estabelecidos (arts. 25 e 51, I). O CDC, além do mais, prestigia o princípio da reparação integral (art. 6º, VI). Argumenta-se, ainda, sob um prisma procedimental, que os tratados ingressam na ordem jurídica brasileira com status de legislação infraconstitucional – salvo se versarem sobre direitos humanos -, submetendo-se, portanto, ao critério cronológico, segundo o qual lei posterior prevalece sobre a anterior – e o CDC é posterior ao ingresso da Convenção de Varsóvia no sistema jurídico nacional. “Responsabilidade civil. Transportador. Limitação de indenização. Código de Defesa do Consumidor. Convenção de Varsóvia. Editada lei específica, em atenção à Constituição (art. 5, XXXII), destinada a tutelar os direitos do consumidor, e mostrando-se irrecusável o reconhecimento da existência de relação de consumo, suas disposições devem prevalecer. Havendo antinomia, o previsto em tratado perde eficácia, prevalecendo a lei interna posterior que se revela com ele incompatível. Recurso conhecido e não provido”.(STJ, Resp,169000/RJ, 04/04/2000, 3ª. T., Rel. Min. Paulo Costa Leite). “Responsabilidade civil. Transporte aéreo. Extravio de Bagagem. Inaplicabilidade da Convenção de Varsóvia. Relação de consumo. Código de Defesa do Consumidor. Indenização ampla. Danos materiais e morais. Orientação do Tribunal. Pagamento de bolsa de estudos. Dano incerto e eventual. Aprovação incerta. Exclusão de indenização. Recurso acolhido parcialmente. Maioria. I – Nos casos de extravio de bagagem ocorrido durante o transporte aéreo, há relação de consumo entre as partes, devendo a reparação, assim, ser integral, nos termos do Código de Defesa do Consumidor, e não mais limitada por legislação especial”.(STJ, Acórdão 300190/RJ (200100055230) RE 423751, 24/04/2001, 4ª. T., Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira).

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Porém, quando se rompe uma linha – imaginária e fluída – de razoabilidade,

agredindo, de modo severo, as expectativas legítimas de tolerabilidade, esvaziando

a tranqüilidade da vítima, a compensação moral se faz presente8.

Maria Celina Bodin de Moraes fundamenta o dano moral na lesão à dignidade,

sendo esta, a seu juízo, formada por quatro princípios fundantes: igualdade,

integridade psicofísica, liberdade e solidariedade9.

3.2. LINHAS DE TENDÊNCIA: O ESVAZIAMENTO DA AUTONOMIA PRIVADA

O direito civil contemporâneo passou – está passando – por um período de

redefinição de valores. Os séculos passados aprimoraram, de modo espetacular, a

construção dogmática do direito civil. Atingimos, com a pandectística alemã,

7 Mesmo o inadimplemento contratual pode, eventualmente, dar ensejo a dano moral. Assim decidiu o STJ: “O inadimplemento do contrato, por si só, pode acarretar danos materiais e indenização por perdas e danos, mas, em regra, não dá margem ao dano moral, que pressupõe ofensa anormal à personalidade. Embora a inobservância das cláusulas contratuais por uma das partes possa trazer desconforto ao outro contratante – e normalmente o traz – trata-se, em princípio, do desconforto a que todos podem estar sujeitos, pela própria vida em sociedade. Com efeito, a dificuldade financeira, ou a quebra da expectativa de receber valores contratados, não toma a dimensão de constranger a honra ou a intimidade, ressalvadas situações excepcionais” (STJ, REsp.202.564, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4ª T., j. 02/08/01). Ver, a propósito, ITURRASPE, Jorge Mosset. Responsabilidad por daños. El incumplimiento contractual. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 1998. 8 Curioso é notar que esse caráter fluído do dano moral importa derrogação de certos caracteres clássicos do processo. Tanto é assim que a clássica regra que imputa as verbas da sucumbência ao vencido na lide, sofre, aqui, em sede de dano moral, exceções construídas pela jurisprudência. Se, digamos, alguém pede cem mil reais a título de danos morais, e recebe 50 mil, deverá sofrer os efeitos da sucumbência recíproca? A jurisprudência tem tendido a responder que não, por se tratar de avaliação subjetiva, de dificílima estimação. Assim, dada “a multiplicidade de hipóteses em que cabível a indenização por dano moral, aliado à dificuldade na mensuração do valor do ressarcimento, tem-se que a postulação contida na exordial se faz em caráter meramente estimativo, não podendo ser tomada como pedido certo para efeito de fixação de sucumbência recíproca, na hipótese de a ação vir a ser julgada procedente em montante inferior ao assinalado na peça inicial” (STJ, REsp. 432.177, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, 4a T., j. 23/09/03, p. DJ 28/10/03). Pertinente, nesses casos, a aplicação do art. 21 do Código de Processo Civil, que estabelece, no caso, um critério de proporcionalidade: “Em ação de reparação de danos morais, mesmo quando a indenização imposta é inferior àquela pleiteada na inicial, a fixação de honorários em percentual sobre o valor da condenação atende ao critério de proporcionalidade estabelecido no art. 21 do CPC” (STJ, REsp. 504.144, Rel. Min. Nancy Andrigui, 3a T., j. 06/06/03, p. DJ 30/06/03). Em outro julgado, o STJ, razoavelmente, afastou a sucumbência recíproca porque, com ela, a vítima do dano pagaria mais a título de honorário advocatício do que receberia como compensação moral: “Em princípio, a sentença que defere menos do que foi pedido a título de indenização por dano moral acarreta a sucumbência recíproca, exigindo a aplicação do artigo 21 do Código de Processo Civil. Solução que se afasta, porque, observado esse critério na espécie, a vítima do dano moral pagaria mais à guisa de honorários advocatícios do que receberia por conta do ressarcimento” (STJ, REsp. 265.350, Rel. Min. Ari Pargendler, Segunda Seção, j. 22/02/01, p. DJ 27/08/01). O Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, ao votar, ponderou: “Por isso, tratando-se de dano moral, com pedido certo, havendo decaimento parcial do autor, a fixação dos honorários sobre o valor da condenação representa temperamento compatível para impedir o desequilíbrio entre as partes, que é princípio fundamental no sistema processual brasileiro”. 9 BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 327.

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notável rigor lógico na definição de categorias e subsunção de conceitos10. Os

códigos civis - monumentos do saber jurídico – se orgulhavam de incorporar, de

modo exaustivo, o direito privado então existente, regulamentando, com

completude, a vida das pessoas.

Não é aqui o local adequado para refazer essa jornada. Já o tentamos em outra

oportunidade11. Assinalemos apenas, ainda que brevemente, os pontos de contato

desta transformação com os danos morais.

O dano moral – e sua evolução na ordem jurídica brasileira – é sintomático da

mudança de postura ocorrida (e que ainda ocorre). Refazendo o trajeto histórico

(sumariado mais à frente), percebemos como, aos poucos, fomos nos livrando de

velhos conceitos e arraigados preconceitos, e passamos a admitir, não sem

hesitação inicial, que a reparação não pode ficar circunscrita à esfera patrimonial da

pessoa.

O direito civil atual deve muito de sua configuração aos debates havidos tendo

como pano de fundo o dano moral. A força dos fatos – iconoclasta e desafiadora –

provocava os juristas, que hesitavam em abandonar o conforto das antigas lições, e

encarar a difícil complexidade do novo.

A construção de parâmetros adequados de solução de problemas, relacionados com

o dano moral, permitirá a concretização tópica da dignidade humana. As soluções

jurisprudenciais aqui adotadas - sem prejuízo das demais categorias, naturalmente

– podem contribuir na promoção da solidariedade e da redução das desigualdades,

objetivos fundamentais da Constituição.

E esses temas têm evoluído numa direção de progressiva proteção à pessoa. As

cláusulas contratuais, mesmo que livremente pactuadas (o que não ocorre nos

contratos de adesão), não são um obstáculo à incidência da Constituição12. O

10 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone, 1995. 11 “Direito Civil e Constituição: desafios e perplexidades de uma aproximação” pp. 189/199, In: Crise e Desafios da Constituição. José Adércio Leite Sampaio (Coord.) Belo Horizonte: Del Rey, 2004. 12 O STJ tem decidido que, ainda que contratualmente prevista, não prevalece a regra que limita, no tempo, o período de internação coberto pelo plano de saúde, porquanto tal limitação seria agressiva à dignidade humana: “Consoante jurisprudência sedimentada na Segunda Seção deste Tribunal, é abusiva a cláusula que limita o tempo de internação hospitalar” (STJ, REsp. 402. 727, Rel. Min. Castro Filho, 3a Turma, j. 09/12/03). Recentemente, o STJ sumulou esse entendimento (Súmula 302: “É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar”).

Da mesma forma, a retenção, pelo banco, de salário depositado em conta para pagamento de cheque especial vencido é ilícita – segundo o STJ. Isso, entenda-se, mesmo que haja cláusula contratual permissiva que autorize: “Mesmo com cláusula contratual permissiva, a apropriação do salário do correntista pelo banco-credor para pagamento de cheque especial é ilícita e dá margem a reparação por

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direito contemporâneo não atribui ao contrato força superior à justiça material. O

efeito vinculante do contrato somente persistirá se condizente com a função social

dos contratos e da boa-fé objetiva – isso, frise, tanto para os contratos de

consumo, como para os contratos inter-civis.

Percebe-se, como linha de tendência, que o pacta sunt servanda perde espaço. Os

conteúdos contratuais devem ser confrontados com padrões de razoabilidade, e são

esses padrões que definirão, no caso concreto, a validade de determinada cláusula.

Por exemplo, os tribunais superiores firmaram posição, já há algum tempo, que o

suicídio não exclui a obrigação da seguradora em pagar o seguro de vida, se não foi

premeditado, cabendo a prova da premeditação à seguradora13.

dano moral” (STJ, REsp. 507.044, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, 3a T., j. 18/03/04, p. DJ 03/05/04).

A Quarta Turma tem julgado semelhante: “Não pode o banco se valer da apropriação de salário do cliente depositado em sua conta corrente, como forma de compensar-se da dívida deste em face de contrato de empréstimo inadimplido, eis que a remuneração, por ter caráter alimentar, é imune a constrições dessa espécie (...)” (STJ, REsp. AGA 353.291, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, 4a T., j. 28/06/01, p. DJ 19/11/01).

O banco, nessa linha, “não pode apropriar-se da integralidade dos depósitos feitos a título de salários, na conta do seu cliente, para cobrar-se de débito decorrente de contrato bancário, ainda que para isso haja cláusula permissiva no contrato de adesão” (STJ, REsp. 492.777, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4a T., j. 05/06/03, p. DJ 01/09/03). A indenização, na espécie, foi fixada em cinco mil reais.

Em outra oportunidade, o Tribunal bem ponderou: “A cláusula que permite esse procedimento é mais abusiva do que a cláusula mandato, pois, enquanto esta autoriza apenas a constituição do título, aquela permite a cobrança pelos próprios meios do credor, nos valores e no momento por ele escolhidos” (STJ, REsp. 250.523, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4a T., j. 19/10/00, p. DJ 18/12/00).

Há, no entanto, julgado da Quarta Turma que admite o banco resgate valores depositados em nome da pessoa jurídica que firmou, com o banco, contrato de empréstimo bancário: “Não é abusiva a cláusula inserida no contrato de empréstimo bancário que versa autorização para o banco debitar da conta-corrente ou resgatar de aplicação em nome do contratante ou coobrigado valor suficiente para quitar o saldo devedor, seja por não ofender o princípio da autonomia da vontade, que norteia a liberdade de contratar, seja por não atingir o equilíbrio contratual ou a boa-fé, uma vez que a cláusula se traduz em mero expediente para facilitar a satisfação do crédito, seja, ainda, por não revelar ônus para o consumidor” (STJ, REsp. 258.103, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4a T., j. 20/03/03, p. DJ 07/04/03). Nesse caso - que destoa da linha de tendência seguida pelo Tribunal -, é preciso frisar que não se trata de salário apropriado, nem mesmo de apreensão da totalidade dos valores depositados na conta corrente.

De igual modo – embora não haja, aqui, conexão com os danos morais, apenas com o declínio do pacta sunt servanda - a inadimplência do comprador, na promessa de compra e venda não autoriza a perda dos valores pagos a título de preço, mesmo que haja cláusula contratual nesse sentido. Nesse caso, tem dito o STJ, deve ser deduzido, apenas, o valor correspondente à ocupação do imóvel, a título de aluguel (STJ, REsp. 416.338, Rel. Min. Ari Pargendler, 3a T., j. 03/04/03, p. DJ 02/06/03).

13 Ou seja, mesmo que no contrato, livremente firmado, esteja consignado que a seguradora fica livre de responder em caso de suicídio do segurado, a jurisprudência, interpretando o conteúdo do acordo à luz da boa-fé objetiva, faz surgir tal dever, se não houver, ao contratar o seguro, premeditação do segurado (STJ, REsp. 304.286, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4a T., j. 12/03/03, p. DJ 06/05/02).

Assim, “o suicídio não premeditado é de considerar-se abrangido pelo conceito de acidente para fins de seguro. Invalidade da cláusula excludente desse risco” (STJ, REsp. 6.729, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, 3a T., j. 30/04/91, p. DJ 03/06/91). O ônus da prova da premeditação está a cargo da seguradora, não da família do suicida: “À seguradora, ainda, compete a prova de que o segurado se suicidou premeditadamente, com a consciência de seu ato” (STJ, REsp. 194, Rel. Min. Barros Monteiro, 4a T., 29/08/89, p. DJ 02/10/89). O Código Civil de 2002, no parágrafo único do art. 798, disciplinou a questão, a nosso ver de forma desastrosa.

10

Os direitos fundamentais não são limitáveis contratualmente. Tal afirmação, um

tanto truística, apenas muito recentemente começa a ter amparo na jurisprudência

brasileira. Ou seja, um contrato, ainda que livremente firmado, pode ainda assim

ser um contrato injusto, como afirma Teresa Negreiros, e por isso sujeito a

mudanças judiciais, ou mesmo rescindido. Afirma a jurista que “à ênfase na

liberdade sucede à ênfase na paridade”14. Ou seja: a autonomia da vontade,

perdendo espaço, deu lugar ao conceito de equilíbrio material entre as prestações.

Em caso julgado há pouco tempo a situação era a seguinte: uma pessoa muito

humilde sofreu um dano grave, e deu quitação ao causador do dano, recebendo em

contrapartida uma quantia ínfima, irrisória. Depois, devidamente informada, foi à

justiça, procurar a reparação adequada dos danos que sofreu. O STJ, em julgado

relatado pelo Ministro Sálvio de Figueiredo, afirmou que a quitação, dada antes da

propositura da ação, não pode inibir o acesso à justiça, mormente se a quitação foi

dada por pessoa humilde, de parcos conhecimentos e baixa renda.

A igualdade material – substancial - é que deve iluminar os debates. As pessoas

são diferentes, e essas diferenças devem ser consideradas na busca de soluções

compatíveis com a Constituição. Não podemos igualar o advogado e o analfabeto, o

milionário e o humilde, a grande empresa e o comércio de fundo de quintal. O

direito civil contemporâneo tem olhos bem abertos às desigualdades, porque se não

tiver reproduzirá, sob o manto da neutralidade, horríveis iniqüidades15.

14 NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato. Novos Paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 158. 15 Embora L. Diéz-Picazo entenda que o dano moral não pode ser presumido pelos tribunais, como conseqüência de certas lesões (DIÉZ-PICAZO, Derecho de daños. Madrid: Civitas, 2000, p. 329), é certo que a jurisprudência brasileira, dadas as especificidades da lesão não patrimonial, tem se inclinado no sentido de dispensar a prova do dano moral, só necessária excepcionalmente. Quem, digamos, perde um filho, padece de um sofrimento que não precisa ser provado, decorre da ordem natural das coisas (presunção hominis). Quem perde parte do corpo (lesão à integridade física, direito da personalidade) sofre por isso, e o dano moral, daí decorrente, é presumido (in re ipsa), prescindindo de prova. Decidiu, a respeito, o STJ: “A inscrição indevida do nome do autor em cadastro negativo de crédito, a par de dispensar a prova objetiva do dano moral, que se presume, é geradora de responsabilidade civil para a instituição (...)”. (STJ, REsp. 432.177, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, 4a T., j. 23/09/03, p. DJ 28/10/03). “A indevida inscrição em cadastro de inadimplente, bem como o protesto do título, geram direito à indenização por dano moral, independentemente da prova objetiva do abalo à honra e à reputação sofrida pelo autor, que se permite, na hipótese, presumir, gerando direito a ressarcimento que deve, de outro lado, ser fixado sem excessos, evitando-se enriquecimento sem causa da parte atingida pelo ato ilícito” (STJ, REsp. 457.734, 4a T., j. 22/10/02, p. DJ 24/02/03). O STJ, dessa forma, em casos tais, considera “a exigência da prova satisfeita com a demonstração da inscrição indevida” (STJ, REsp. 293.669, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, 3a T., j. 15/10/01, p. DJ 04/02/02). Basta que se prove o dano – a inscrição irregular no cadastro de inadimplentes – sem que se precise provar a dor moral daí decorrente. “Em se tratando de indenização decorrente da inscrição irregular no cadastro de inadimplentes, ‘a exigência de prova de dano moral (extrapatrimonial) se satisfaz com a demonstração da existência de inscrição irregular’ nesse cadastro” (STJ, REsp. 233.076, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4a T., j. 16/11/99, p. DJ 28/02/00).

11

Os contratos, cada vez mais, por obra da jurisprudência, estão deixando de ser

intocáveis, para fazer a vontade, não das partes, mas da Constituição. Até porque

falar em vontade das partes, quanto se está diante de desigualdades, é piada de

gosto duvidoso. Os contratos apenas revelarão o que a parte mais forte quis.

Larcordaire, poeticamente, já percebera: entre o forte e o fraco, é a liberdade que

escraviza, e a lei que liberta.

O direito civil atual é o direito civil do diálogo com a Constituição. Esse diálogo das

fontes enriquece, tremendamente, as soluções jurisprudenciais, permite que o

direito incorpore, traga a si novos valores, sem precisar recorrer, a cada passo, a

modificação legislativa, o que seria impossível com a velocidade das mudanças

sociais.

3.3. CÓDIGOS RETÓRICOS: O PÚBLICO E O PRIVADO

Vale transcrever o que escrevemos em outra oportunidade: “Nesse contexto, como

dizer que algo é puramente civil? O puramente civil não existe. Os ramos se

confundem no mundo atual. Legislativamente, não há espaços definidos. A

separação rígida, no plano do direito legislado, perde a inflexibilidade que possuía

nos oitocentos. É certo que as interpenetrações sempre existiram. O que

impressiona, hoje, é a intensidade. A dicotomia público e privado, como modelo

teórico, está claramente envelhecida”16.

No plano do direito comparado, o julgado que marcou uma mudança de rumos –

em direção de uma maior convivência do direito civil com a Constituição -, o

leading case foi um julgado da Corte Constitucional alemã, em 1958, no qual um

judeu, presidente do clube de imprensa de Hamburgo, e militante da associação

para cooperação judaico-cristã, Erich Lüth, pressionou distribuidores e donos de

cinemas, para que não exibissem nem incluíssem em sua programação um filme

rodado por um sujeito que houvera sido integrante, ou pelo menos simpatizante, do

partido nazista.

O produtor e o distribuidor da obra processaram Erich Lüth, perante o juízo cível,

requerendo-lhe perdas e danos. E ganharam. O juízo cível, amparado no § 826 do

12

BGB, - aquele que diz que quem, contrariando os bons costumes, causar danos a

outrem, ficará obrigado a indenizá-lo - numa decisão absolutamente conforme com

os padrões então aceitos, proibiu réu judeu de se manifestar a respeito do filme. A

Corte Constitucional, no entanto, reformando a decisão inferior, entendeu ter

havido agressão à liberdade de expressão.

Hoje tal decisão não causaria maiores discussões – aliás, o Supremo Tribunal

Federal, há pouco tempo, em caso paradigmático, por 7 a 3, condenou o

distribuidor e escritor que fazia apologia do nazismo. Um caso rico para se discutir,

na prática, a ponderação de valores na Constituição. Pois bem, essa decisão da

Corte Alemã mudou a abordagem do tema, pois, até então, uma lide entre

particulares deveria ser resolvida pelo direitos dos particulares, que era o direito

civil. O direito civil era a constituição do cidadão. Os direitos fundamentais não

diziam respeito às lides civis. Eram campos estanques e incomunicáveis.

Antes, portanto, na interpretação e aplicação do direito civil, a Constituição era uma

hóspede intrusa, cuja presença numa lide civil ninguém compreenderia. Hoje, cada

vez mais, seja na doutrina, seja na jurisprudência, o conteúdo normativo do direito

civil se faz próximo das diretrizes constitucionais, e é bom que seja assim, é

necessário que seja assim. Numa sociedade complexa e instável como a nossa, um

direito rígido, centrado em bases pensadas em outros tempos, é um direito que

além de renunciar à efetividade, apresenta legitimidade bastante duvidosa.

É como excelentemente disse um jurista argentino, Ricardo Lorenzetti: “Se o direito

privado apenas se concentra nos interesses individuais das partes, e não tem em

vista uma perspectiva pública, pode apresentar sintomas de invalidade para

resolver problemas complexos”17.

4. A FLEXIBILIDADE ORGÂNICA DO DANO MORAL: AS OPÇÕES

VALORATIVAS

No Brasil, é interessante analisar a evolução jurisprudencial na abordagem do dano

moral. É bem revelador dessa mudança de postura a que nos referimos. Em relação

ao dano moral, o Supremo Tribunal Federal, até meados dos anos sessenta, dizia,

de modo peremptório, que “não é possível que os sofrimentos morais dêem lugar à

reparação pecuniária, se deles não decorre nenhum dano material”. Ou seja, não se

16 BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Teoria dos Ilícitos Civis. Belo Horizote: Del Rey, 2003, p. 20. 17 LORENZETTI, Ricardo. Fundamentos do Direito Privado. Trad. Vera Maria Jacob de Fradera. São Paulo: RT, 1998, p. 84.

13

indenizava, no Brasil, os danos morais; apenas os danos materiais seriam

indenizáveis.

A objeção clássica à reparação dos danos morais era a ausência de equivalência

possível entre o sofrimento e o dinheiro. Não é possível medir a dor - diziam,

cinicamente, os autores do século passado - portanto não é possível indenizá-la. O

curioso é que essa objeção clássica, de aparente caráter ético, conduzia, na prática,

a injustiças e perplexidades. Um animal morto – um boi, um cavalo – recebia, em

tese, uma indenização maior do que uma pessoa morta, pois, em relação à pessoa,

o Código Civil de 1916 restringia a reparação às despesas do luto e do funeral.

Se os pais tivessem um filho menor morto, em acidente causado por outrem,

receberiam apenas, como indenização, as despesas do luto e do funeral. Isso

prevaleceu no Brasil até meados dos anos sessenta. O leading case – o divisor de

águas que sinalizou a mudança de rumo – aconteceu no Supremo num julgado da

relatoria do Min. Aliomar Baleeiro. Nele, o Supremo deu provimento a um recurso

extraordinário e reconheceu que o dano moral é, sim, reparável18.

No caso concreto, a ação foi proposta pelos pais, em razão do falecimento de duas

crianças – de 09 e 06 anos – vitimadas por um acidente cuja culpa foi atribuída à

empresa de ônibus. Os tribunais inferiores reconheceram a culpa da empresa,

porém, como não havia dano material – as crianças naturalmente não trabalhavam

– não concedeu indenização, pois o dano moral puro, isto é, o dano moral

desacompanhado de um dano material não seria, segundo os padrões mentais da

época, indenizável.

O Supremo Tribunal Federal deu provimento ao recurso, e concedeu, nesse julgado,

a indenização pelo dano moral. Porém, o avanço foi relativo, eis que o STF

determinou que a indenização fosse calculada com base naquilo que os pais

gastaram até ali com a criação e a educação dos filhos.

Ou seja, o que se estava indenizando, na verdade, não era a dor da perda dos

filhos, mas os gastos materiais para a criação deles até a data da morte. Uma

indenização claramente material, travestida de indenização por dano moral.

18 Publicado no RTJ, v. 39, pp. 38/44. Ver, a propósito, MONTEIRO FILHO. Carlos Edílson do Rego. Elementos de Responsabilidade Civil por Dano Moral. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pp. 10 e seguintes.

14

Houve avanço? Em termos práticos sim, porém ainda sob um sol cujos raios eram

patrimoniais. O filho era um patrimônio cuja perda deveria ser reparada por aquilo

que de prejuízo trouxe, materialmente falando, para os pais19.

Depois de algum tempo veio a Súmula 491 do STF, que estabeleceu ser indenizável

o acidente que cause a morte de filho menor, ainda que não exerça atividade

remunerada. Assentou-se que a morte dos filhos menores, que não trabalham, é

indenizável. Com essa Súmula, passou-se a incluir, nas verbas indenizatórias, não

apenas os gastos passados, mas também os presumíveis ganhos futuros

frustrados.

Mudança de fato houve, e profunda, com a Constituição de 1988. Antes dela, os

julgados, alguns com forte carga ideológica, rejeitavam com veemência a reparação

moral, mesmo depois da mencionada decisão do Supremo. Com a Constituição, que

previu explicitamente a reparação do dano moral no artigo 5º, incisos V e X,

acabaram os espaços para as recusas hesitantes. A perda de um ente querido gera,

portanto, sem dúvida, dano moral, que aliás, segundo a jurisprudência atual do

STJ, nem precisa ser provado. Decorre da ordem natural das coisas (presunção

“hominis”).

19 Frise-se, em relação ao dano material – de cujos contornos não podemos nos ocupar detidamente neste artigo - que a jurisprudência construiu, também aqui, uma hipótese de presunção de danos, a ser aplicada quando falecer menor em família de baixa renda. Nesse caso, ainda que o menor não trabalhe, serão devidos, à família, danos materiais, pois a jurisprudência, baseada na realidade brasileira, observou que, em famílias carentes, os filhos ajudam no sustento da casa, devendo, por isso, ser a família materialmente indenizada. O STJ presume que os menores, no Brasil, nas famílias de baixa renda, contribuem, de alguma forma, com o sustento doméstico, razão porque, se falecem, os pais fazem jus a danos materiais, além, naturalmente, dos morais (STJ, Resp. 172.335, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ de 18/10/99). Tal presunção persiste mesmo se o menor ainda não exerce atividade lucrativa (STJ, Aga 521.935, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, 3a. T., j. 19/08/03, p. DJ de 06/10/03). Caso se trate de família cujo nível sócio-econômico não possa ser caracterizado como sendo de baixa renda, não se aplica o paradigma que presume os danos materiais (STJ, REsp. 466.691, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, 3a T., j. 11/04/03). Em julgado recente, o STJ reafirmou sua orientação: “1. Pacificado o entendimento, no STJ e no STF, quanto ao cabimento de dano material em decorrência de acidente que cause a morte de filho menor, ainda que não exerça trabalho remunerado, em se tratando de família de baixa renda. 2. A jurisprudência do STJ sedimentou-se, ainda, no sentido de fixar a indenização por perda do pai ou progenitor, com pensão ao filho menor até os 24 (vinte e quatro) anos de idade (integralmente considerados), ou seja, até a data de aniversário dos 25 anos e, a partir daí, pensão reduzida em 2/3, até a idade provável da vítima, 65 anos” (STJ, REsp. 427.842, Rel. Min. Eliana Calmon, Eliana Calmon, 2a T., j. 03/08/04, p. DJ 04/10/04). No mesmo sentido (STJ, REsp. 592.671, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 06/04/04). A quarta Turma do STJ também estabeleceu que nos “lares desprovidos de maiores recursos, os filhos menores constituem fator econômico, cuja perda autoriza a reparação. Extensão do pensionamento até a idade de provável sobrevida da vítima (65 anos). Segunda orientação traçada pela Quarta Turma, a pensão arbitrada deve ser integral até os 25 anos, idade em que pela ordem natural dos fatos da vida a vítima constituiria família, reduzindo-se a partir de então essa pensão à metade, até a data em que, também por presunção, o ofendido atingiria os 65 anos” (STJ, REsp. 220.234, Rel. Min. Barros Monteiro, 4a T., j. 14/09/99, p. DJ 03/04/00).

15

Não há, no Brasil, conceito legal de dano moral, embora o Projeto de Lei n. 150, em

tramitação no Congresso Nacional, pretenda defini-lo - de forma equivocada,

segundo entendemos. Aliás, além desse projeto há outro, de Emenda à

Constituição, que busca instituir, inspirado no modelo americano, o tribunal do júri

para julgar questões relativas aos danos morais, o que constitui lamentável

importação.

Antes da Constituição, mesmo os julgados que admitiam o dano moral, não

aceitavam sua cumulação com o dano material. E o raciocínio não deixava de fazer

sentido, pois o que se dava, antes de 1988, como dano moral, era na verdade dano

material sob diversa denominação. Não se poderia, sem incidir em bis in idem,

indenizar por dano material duas vezes, e por isso não se tolerava a cumulação dos

danos material e moral. Hoje se sabe que a questão está pacificada pela Súmula 37

do STJ que aceita, tranqüilamente, a cumulação, em virtude de um mesmo fato20.

Divergem, ainda, os julgados acerca da transmissibilidade da ação de danos morais

aos herdeiros. A questão, posta em termos técnicos, é esta: como um direito da

personalidade – conceitualmente intransmissível, portanto – poderia passar à

esfera jurídica dos herdeiros? A doutrina, corretamente, entende possível

semelhante transmissão. A jurisprudência, não sem alguma hesitação inicial,

parece trilhar idêntico caminho21.

20 A cumulação dos danos material e moral, em decorrência de um mesmo fato, é pacífica, na jurisprudência, a teor da conhecida Súmula 37 do STJ. A discussão, que hoje agita a jurisprudência, indaga se os danos morais são cumuláveis com os danos estéticos. Digamos que alguém se submete a uma cirurgia plástica, com fins estéticos – procedimento que a doutrina e jurisprudência, de modo geral, vêem como uma obrigação de resultado -, e sofre um dano. Nesse caso, seria possível cumular danos materiais, morais e estéticos? O STJ tem dito que sim, se no caso concreto os danos são distinguíveis: “Responsabilidade civil – Indenização por danos sofridos em conseqüência da infecção hospitalar – Culpa contratual – Danos moral e estético – Cumulabilidade – Possibilidade – Precedentes – Recurso desprovido. I – Tratando-se da denominada infecção hospitalar, há responsabilidade contratual do hospital relativamente à incolumidade do paciente, no que respeita aos meios para seu adequado tratamento e recuperação, não havendo lugar para alegação da ocorrência de ‘caso fortuito’, uma vez ser de curial conhecimento que tais moléstias se acham estreitamente ligadas à atividade da instituição, residindo somente no emprego de recursos ou rotinas próprias dessa atividade a possibilidade de prevenção. II – Essa responsabilidade somente pode ser excluída quando a causa da moléstia possa ser atribuída a evento específico e determinado. III – Nos termos em que veio a orientar-se a jurisprudência das turmas que integram a seção de direito privado deste tribunal, as indenizações pelos danos moral e estético podem ser cumuladas, se inconfundíveis suas causas e passíveis de apuração em separado”(STJ, REsp.116.372, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4ª T., j. 11/11/97, p. DJ 02/02/98). 21 A quarta turma do STJ “admite a transmissibilidade do direito à indenização depois de intentada a ação”. REsp 440.626-SP, Rel. Min. Ruy Rosado, julgado em 3/10/2002. Embora os direitos da personalidade sejam intransmissíveis (art. 11, CC/2002), seus reflexos patrimoniais são transmissíveis, e não há razão para negar aos herdeiros tal reparação. Aliás, o art. 943 do Código Civil, ao dispor que o “direito de exigir reparação e a obrigação de prestá-la transmitem-se com a herança” não distinguiu o dano material do moral, e não podemos esquecer que este Código, ao caracterizar o que seja dano (art. 186), englobou ambos, o que afasta qualquer hermenêutica restritiva. Há julgado do STJ compartilhando tal percepção:“Os pais estão legitimados, por terem interesse jurídico, para acionarem o Estado na

16

O fundamental, como linha de tendência, é a percepção de que a complexidade

crescente das relações tornou necessária a diferenciação material das situações.

Não mais, como no passado, através de uma cadeia infinita de deduções. “Uma

tarefa que exige do operador jurídico capacidade para lidar com diferenciações

formuladas a partir de elementos externos à estrutura conceitual, abstratamente

considerada”22. 298

5. A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA DA QUANTIFICAÇÃO: TENSÃO DIALÉTICA

ENTRE O TEÓRICO E O PRÁTICO

A quantificação do dano moral é outro fator que atormenta os juristas. Como

quantificar o inquantificável? Como definir valores para a morte de um filho, para o

atleta olímpico que é atropelado brutalmente por uma lancha e perde uma das

pernas? Para o casal de idosos que é acusado, injustamente, de pedofilia, como

aconteceu na Escola Base? Como dar valores a isso?23

Superada a cínica fase da negação absoluta da reparação, eis que devemos,

analiticamente, valorar o dano. O intuitivo dilema que logo surge é: como

quantificar lesões que não ostentam, em si mesmas, rigorosa força demonstrativa?

Devemos nos dar por felizes com abstratas menções, nas decisões, à razoabilidade

do valor imposto? Ou cabe, em linha inversa, aos magistrados, inserir, em suas

fundamentações, acréscimos minuciosamente analíticos, explicitando as razões que

os levaram a este, e não àquele valor?

busca de indenização por danos morais, sofridos por seu filho, em razão de atos administrativos praticados por agentes públicos que deram publicidade ao fato de a vítima ser portadora do vírus HIV”. Continua o acórdão: “Os autores, no caso, são herdeiros da vítima, pelo que exigem indenização pela dor (dano moral) sofrida, em vida, pelo filho já falecido, em virtude de publicação de edital, pelos agentes do Estado, referente à sua condição de portador do vírus HIV. O direito que, na situação analisada, poderia ser reconhecido ao falecido, transmite-se aos sucessores da vítima”. Finaliza o acórdão, citando doutrina francesa: “O herdeiro não sucede no sofrimento da vítima. Não seria razoável admitir-se que o sofrimento do ofendido se prolongasse ou se estendesse ao herdeiro e este, fazendo sua a dor do morto, demandasse o responsável, a fim de ser indenizado da dor alheia. Mas é irrecusável que o herdeiro sucede no direito de ação que o morto, quando vivo, tinha contra o autor do dano. Se o sofrimento é algo estranhadamente pessoal, o direito de indenização do dano moral é de natureza patrimonial e, como tal, transmite-se aos sucessores” (STJ, REsp.324.886, Rel. Min. José Delgado, 1ª T., j. 21/06/01, p. DJ 03/09/01). 22 NEGREIROS, Teresa.Teoria do Contrato. Novos Paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 298. 23 O Código Civil português, no seu art. 496, dispôs: “Na fixação da indenização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam tutela do direito”. No Brasil, apesar de não termos regra semelhante, essa orientação prevalece, afastando-se os danos de pequena monta, sem gravidade. Aliás, o STJ já disse, pela voz do Ministro Eduardo Ribeiro, em tom irônico, que se levarmos o dano moral às últimas conseqüências, não haverá mais dano material que não cause, conjuntamente, dano moral, pois mesmo a mais simples colisão de trânsito gera, para quem teve seu veículo atingido, aborrecimento e contratempos.

17

No comum dos casos, prevalece a primeira opção. O valor é, muitas vezes,

apontado como adequado, pouco ou nada se dizendo acerca dos caminhos que

conduziram até ele. São lacônicas, e pouco claras, em geral, as decisões. Não

admira, nessa trilha, que tanto disparate haja na fixação dos valores. Além das

convicções e preconceitos ínsitos a cada magistrado, o chamado bom senso não é

categoria unívoca. Aliás, Descarte já brincava que o bom senso é a virtude melhor

distribuída no mundo, eis que todos, sem exceção, se acham dele dotados.

É certo que não estamos em campo no qual possa prevalecer rigorosa força

demonstrativa. As unidades de significação, permeáveis aos danos morais, são

naturalmente fluídas, organicamente dúcteis, pouco rígidas24. Tal constatação, no

entanto, não é passaporte que exima o magistrado de fazer constar na decisão, tão

analiticamente quanto seja possível, o porquê desse, e não daquele valor25.

Até mesmo falar de indenização nesses casos é impróprio. Indenização vem do

latim, “in dene”, que significa voltar ao estado anterior, ao “status quo ante”. Ora,

essa volta é possível no dano material, mas é completamente impossível no dano

moral. Esses danos, conceitualmente, não têm volta. Por isso é que se diz que os

danos morais são compensáveis, não são ressarcíveis.

A jurisprudência tem fixado o limite de 500 salários mínimos para a perda de ente

querido. Mas, mesmo nos tribunais superiores, são obscuros, quase sempre, os

caminhos que levam à fixação dos valores. Em 2001, em caso julgado pelo STJ,

citado por Maria Celina Bodin de Moraes, uma garota, que foi ao buffet marcar os

últimos detalhes da festa do seu casamento, foi atacada por oito cães de guarda do

dono do buffet, foi dilacerada, teve que passar por múltiplas cirurgias26, e recebeu

apenas 50 salários mínimos como compensação, que em regra é o mesmo valor

fixado para a inclusão indevida em cadastros como o SERASA, ou SPC.

24 “A indenização deve ser fixada em termos razoáveis, não se justificando que a reparação venha a constituir-se em enriquecimento indevido, com manifestos abusos e exageros, devendo o arbitramento operar com moderação, proporcionalmente ao grau de culpa e ao porte econômico das partes, orientando-se o juiz pelos critérios sugeridos pela doutrina e pela jurisprudência, com razoabilidade, valendo-se de sua experiência e do bom senso, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso” (STJ, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4a T., j. 03/08/00, p. DJ 11/09/00). 25 O porte econômico das partes tem sido considerado, ainda que sem maiores desenvolvimentos, na fixação dos valores de indenização (STJ, REsp. 176.662, Rel. Min. Barros Monteiro, 4a T., j. 13/04/04, p. DJ 01/07/04). 26

STJ, REsp. 287.005, Rel. Min. Pádua Ribeiro, j. 24/09/01.

18

O STJ aceita rever os valores fixados nas instâncias inferiores, a título de danos

morais, máxime quando o valor for absurdamente alto, ou ridiculamente baixo.

Essa concessão, claramente pragmática, foge ao esquema conceitual do recurso

especial, que não pode rediscutir matéria de fato, mas foi necessária, pois do

contrário as indenizações com valores díspares e inusitados prevaleceriam27.

No Brasil, face à ausência de parâmetros legais – e nesse ponto entendemos que o

Código Civil de 2002 pecou, pois deveria ter estabelecido parâmetros - os

magistrados ficam perdidos, e ocorrem freqüentemente descompassos absurdos.

No tristemente célebre acidente da TAM, em São Paulo, dois sujeitos, mortos no

mesmo acidente, com idêntico nível sócio-econômico, tiveram – no mesmo tribunal

de Justiça de São Paulo – indenizações pagas às respectivas famílias com

diferenças de 2.000%. Enquanto uma família conseguiu apenas 75 mil reais pela

morte do ente querido, a outra, no mesmo Tribunal – claro que em Turma distinta

– conseguiu dois milhões de reais.

27 O STJ, desse modo, mesmo não sendo uma instância ordinária, tem interferido no valor da condenação, aumentando-a ou reduzindo-a.Os julgados afirmam que o “valor da condenação por dano moral pode ser revisto quando exorbitante, abusivo, ou mesmo insignificante, irrisório (...)” (STJ, REsp. 438.696, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, 3a T., j. 18/02/03). Em caso de indenização por dano moral, decorrente de morte de filho provocada por erro médico, o STJ elevou o valor da indenização compensatória de R$ 12.000,00 para R$ 72.000,00 (STJ, REsp. 493.453, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4a T., j. 24/06/03, p. DJ de 25/08/03). O tribunal, nesses casos, conhece do recurso especial para ajustar a “condenação por dano moral ao que usualmente, em hipóteses semelhantes, tem sido arbitrado por esta Corte” (STJ, REsp. 565.299, Rel. Min. César Asfor Rocha, j. 16/03/04, p. DJ 13/09/04). Pode, de igual modo, reduzi-los: “admitida no caso a indenização e restrito o recurso à redução do quantum indenizatório, defere-se nesse sentido o apelo manifestado, em face de suas peculiaridades” (STJ, REsp. 468.377, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4ª T., j. 06/05/03). O STJ, portanto, aceita rever os valores, dizendo que o “valor indenizatório por dano moral pode ser analisado em sede de recurso especial, desde que o quantum se mostre manifestamente exagerado, ou irrisório, distanciando-se das finalidades da lei” (STJ, REsp. 302.298, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4a T., j. 07/05/02, p. DJ 17/06/02). Em caso acima referido, os pais – cujo filho recém-nascido faleceu em virtude de erro médico -, tendo perdido em primeira instância, obtiveram, mediante apelação, no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a condenação do réu (médico) no valor correspondente a 60 salários-mínimos. O STJ, julgando o especial, em acórdão relatado pelo Ministro Ruy Rosado de Aguiar, assim se posicionou: “A intervenção do STJ em casos tais tem sido admitida quando a indenização deferida é insuficiente para compensar o dano sofrido com ação culposa do responsável. No caso, a quantia de R$ 12.000,00 aos pais de uma criança que sofreu por tantos dias sem o devido atendimento médico, apesar da insistência em procurar a atenção do facultativo, e que terminou morrendo sem a devida assistência, parece inadequada. Estou, portanto, conhecendo do recurso especial pela divergência. Tratando de aplicar o direito à espécie, considero as circunstâncias já referidas, as enumeradas no r. acórdão e o pedido formulado no recurso para definir em R$ 72.000,00 o valor da indenização, corrigido desde agora” (STJ, REsp. 493.453, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4a T., j. 24/06/03, p. DJ 28/05/03). Segundo o Ministro Sálvio de Figueiredo, este “entendimento, aliás, foi firmado em face dos freqüentes abusos ou equívocos na fixação do quantum indenizatório, no campo da responsabilidade civil, com maior ênfase em se tratando de danos morais, pelo que se entende ser lícito a esta Corte exercer o respectivo controle” (STJ, REsp. 254.300, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4a T., j. 03/08/00, p. DJ 11/09/00. Com idêntica fundamentação: STJ, REsp. 183.508, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4a T., j. 05/02/02, p. DJ 10/06/02).

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Nos Estados Unidos, pátria das reparações milionárias, os autores começam a

questionar os altos valores atribuídos como reparação moral. Virou clássico o caso

de uma senhora – Stella Liebeck - que foi tomar um café no Mac Donald’s, o café

quente caiu-lhe sobre a perna, e foi-lhe por isso atribuída uma indenização de

quase três milhões de dólares. Isso de fato aconteceu, no entanto, o que nem

sempre se diz é que a quase totalidade desse valor foi concedido não como

compensação à vítima, mas como punição para a empresa, que já havia recebido

inúmeras reclamações sobre a temperatura do café - que se reduzisse alguns

poucos graus provocaria menos queimaduras -, e a empresa se manteve inflexível,

causando assim novos danos.

Isso preocupa os americanos. No último debate presidencial entre os candidatos à

presidência dos Estados Unidos da América, o atual presidente, George Bush foi

confrontado pelo então adversário sob o argumento de que faltariam vacinas contra

a gripe para os americanos. O atual presidente, então candidato, respondeu que as

empresas americanas produtoras de vacinas estavam se recusando a produzi-las,

temendo as vultosas indenizações. As grandes empresas hesitam em produzir

temendo as ações de reparação, o que não deixa de ser um curioso reflexo

econômico da chamada indústria dos danos morais.

Mas da common law vem uma questão interessante, crescentemente aceita no

Brasil, que é o aspecto punitivo da indenização por dano moral. O que vem a ser

exatamente isto? É a fixação, na reparação, de um valor para punir o agressor. Há,

no Congresso Nacional, o Projeto de Lei nº 6.960, de 2002, que pretende inserir um

parágrafo segundo no art. 944 do Código Civil dizendo que: “A reparação do dano

moral deve constituir-se em compensação ao lesado e adequado desestímulo ao

lesante”.

Ou seja, além da compensação à vítima, uma punição para o agressor, cujas

origens estão no direito anglo-saxão, onde as chamadas indenizações punitivas são

freqüentemente impostas. A jurisprudência brasileira, mesmo sem base legal, vem

aceitando, na quase totalidade dos julgados, a função também punitiva das

indenizações por dano moral28. Então, digamos, se um banco devolve um cheque

em cuja conta havia provisão de fundos, ele pode ser chamado a ressarcir não

28 A função primordial da reparação é reparar o dano, e não castigar o ofensor. LORENZETTI, Ricardo Luís. “La Responsabilidad Civil”. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, abr/jun. 2000, p. 46. Pontes de Miranda, aliás, já defendia que a teoria da responsabilidade civi não deve se basear no

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apenas o valor do cheque, mas também pode sofrer uma punição exemplar para

que evite que tal conduta se repita. É uma função pedagógica29.

Outra discussão que excita a doutrina é saber se os valores fixados como

compensação moral devem levar em conta a condição econômica da vítima.

Digamos que alguém é abordado por seguranças numa grande loja por suspeita de

furto. Tal revista, se feita com educação e sem caráter humilhante, não constitui,

segundo alguns julgados do STJ, dano moral, sendo exercício regular de direito.

Resta ver se tal solução é uniforme, para qualquer pessoa, de qualquer padrão

econômico. Seria de todo indesejado, para uma ordem jurídica que se pretende

igualitária e promotora da dignidade humana, que a solução dos casos, nessas

hipóteses, oscilasse ao sabor do nível sócio-econômico da pessoa revistada.

5. A RECRIAÇÃO DO SENTIDO: EM BUSCA DE MECANISMOS PREVENTIVOS

DE TUTELA

O direito civil sempre ostentou um rico aparato conceitual, cuja transmissão, de

geração em geração, se dava sem parênteses críticos. Tínhamos, nessa visão, uma

propósito de sancionar, de punir, mas reparar, sempre que possível, o dano sofrido pela vítima, sem qualquer elemento de vingança (Tratado de Direito Privado. São Paulo: Borsoi, 1968, p. 183). 29 A jurisprudência do STJ aceita o aspecto punitivo dos danos morais. Em múltiplos julgados colhe-se a menção à função punitiva e inibidora que a indenização deve ter, em ordem a evitar condutas semelhantes: “O valor da indenização por dano moral sujeita-se ao controle do Superior Tribunal de Justiça, desde que o quantum contrarie a lei ou o bom senso, mostrando-se manifestamente exagerado, ou irrisório, distanciando-se das finalidades da lei. Na espécie, levando em consideração a situação econômico-social das partes, a atividade ilícita exercida pelo réu 2º recorrente, de ganho fácil, o abalo físico, psíquico e social sofrido pelo autor, o elevado grau da agressão, a ausência de motivo e a natureza punitiva e inibidora que a indenização, no caso, deve ter, mostrou-se insuficiente o valor fixado pelo Tribunal de origem a título de danos morais, a reclamar majoração” (STJ, REsp. 183.508, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4a T., j. 05/02/02, p. DJ 10/06/02). O caso, que deu origem ao julgado acima transcrito, se deu da seguinte forma: um jovem, de 22 anos, estudante de engenharia, jantando em restaurante carioca com dois amigos, teria trocado olhares com a mulher de um bicheiro, que se encontravam no mesmo restaurante. Os três jovens, ao deixarem, de carro, o restaurante, foram surpreendidos pelo bicheiro, e seus capangas, que chutavam o carro e dirigiam ameaças aos jovens, que conseguiram sair, às pressas, do local. Foram perseguidos, por três carros, e à altura de um conhecido shopping carioca, os carros dos bicheiros fizeram um “V” invertido, com um carro atrás, e os outros dois carros na frente do veículo dos jovens, impedindo-lhes, por completo, de deixar o local. Descendo, os agressores, com pistolas 9mm à mão, desferiram três tiros no autor, na região cervical, os quais o deixaram paraplégico, perdendo o controle dos esfíncteres anal e uretral, ficando impedindo de defecar e de urinar normalmente. A indenização por dano moral, no caso, foi fixada em 1.500 (um mil e quinhentos) salários mínimos. Segundo o Ministro, em seu voto, a indenização “deve procurar desestimular o ofensor a repetir o ato” (STJ, REsp. 183.508, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4a T., j. 05/02/02, p. DJ 10/06/02). Em doutrina, porém, registram-se algumas vozes contrárias a tal admissão, pelo menos em caráter geral. Maria Celina Bodin de Moraes perfilha-se entre elas, aceitando, porém, em certos casos, mormente em função de exemplaridade, mediante manifestação legislativa (BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 263).

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sagrada herança que à nova geração não era dado discutir, mas reverenciar e

aplicar.

Seria intelectualmente suicida desprezar, em nome do novo, o notável legado

clássico. Nem o mais iconoclasta pensador proporia semelhante disparate. O que se

busca, naturalmente, é reler as velhas e sólidas categorias sob novas luzes,

tradutoras de novos valores e novas necessidades.

Embora pudéssemos arrolar múltiplos casos em abono a tais linhas gerais, cremos

que não acrescentaria muito, em substância, àquilo que já pontuamos – Hegel,

aliás, jocosamente alertou que o excesso de argumento prejudica a causa. O que

parece relevante, em estreita conexão com o tema proposto, é otimizar os

mecanismos preventivos de tutela – desafio certamente árduo, para cujo

implemento a jurisprudência desempenhará notável função.

De pouco ou nada vale – senão em nível retórico – afirmar o caráter não

patrimonial de um direito, se o desarmamos de técnicas efetivas de proteção

prévia. A tutela inibitória, com vistas a evitar o ilícito (ou quanto menos sua

continuação), é imprescindível como meio de adequação do que antes dissemos30.

A propósito, já tivemos a oportunidade de defender, em outra ocasião, a incorreção

do senso comum, ao fazer conceitualmente indistintos os conceitos de ilícito civil e

responsabilidade civil31.

O ilícito civil, atualmente, deve ser perspectivado não só como representante do

dever de indenizar, mas também, fundamentalmente, como a categoria que

30 Fundamentais, no Brasil, sobre o tema, são os trabalhos de MARINONI, Luiz Guilherme (Tutela Inibitória. São Paulo: RT, 2000, entre outras), e ARENHART, Sérgio Cruz (A Tutela Inibitória da Vida Privada. São Paulo: RT, 2000). 31 BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Teoria dos Ilícitos Civis. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. “É interessante, portanto, sob o prisma teórico, mostrar que não existe uma relação necessária entre os ilícitos civis e o dever de indenizar. Apenas para exemplificar, a ingratidão do donatário é um ilícito civil cujo efeito consiste, exatamente, na possibilidade, que o ordenamento faculta ao doador, de revogar a doação, se assim lhe aprouver (art. 557, CC/2002; art. 1.183, CC/1916). Trata-se, portanto, da uma autorização como efeito de um ilícito. Os ilícitos civis também podem dar ensejo a perda de direitos e demais categorias de eficácia. Por exemplo, o herdeiro que sonegar bens, não os levando à colação, perde o direito que sobre eles pudesse ter (art. 1.992, CC/2002; art. 1.780, CC/1916). Quer dizer: a perda de um direito como efeito de um ato ilícito. Enfim, é apenas uma demonstração, sumária e singela, que os efeitos possíveis são múltiplos, não se resumem a uma eficácia única. É equivocada a leitura tradicional, que vincula, de modo absoluto, os ilícitos civis a uma eficácia monolítica, ofuscando as ricas possibilidades que o sistema jurídico, adequadamente compreendido, oferece”.

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possibilita uma atuação reativa do sistema para evitar a agressão aos valores,

princípios e normas protegidos pelo direito.

Mesmo porque a banalização do dano moral, ao invés de proteger a pessoa

humana, acaba redundando, em grande parte das vezes, em seu desprestígio. Por

que? Porque se patrimonializa situações que, a rigor, não são patrimoniais. Tudo

passa a ter um preço. Cecília Meirelles constatou, já há algumas décadas, que o

supérfluo se tornou tão imprescindível que perdemos de vista o verdadeiramente

essencial.

E o essencial, pelo menos nesse nosso tema, é preservar os valores que não podem

ser reconstruídos se violados. Pelo menos não da forma anterior à lesão. Não

podemos nos dar por felizes com a confortável afirmação que, depois da lesão,

temos a reprimenda do dano moral. Não é esta, seguramente, a atitude

participativa que se deseja do civilista no novo século. Luther King, em outro

contexto, desabafou: “O que me preocupa não é o grito dos violentos. O que me

preocupa é o silêncio dos bons”.

A construção de uma sociedade mais justa e solidária não se faz apenas imputando

aos danos reparações monetárias. É fundamental ampliar os espaços de exercício

da dignidade - na família, nos contratos, na empresa, ou em quaisquer relações

subjetivas que projetem efeitos jurídicos32.

Cabe aos civilistas abandonar a postura neutra - claramente envelhecida e

historicamente gasta -, e estabelecer, à luz da Constituição, paradigmas

diferenciados de proteção, otimizando proteção àquelas formas de contrato, de

propriedade, de união familiar, que melhor realizem os valores constantes em

nossa ordem constitucional. Enfim, deve-se buscar modelos que operacionalizem a

realização dos valores existenciais, em detrimento, havendo choque, dos valores

patrimoniais. É essa sua grande tarefa, no início do século XXI.

No fundo, é como disse, certa vez, um escritor: “Quanto mais próximos das

pessoas, mais juristas somos; quanto mais próximos da lógica e das categorias

abstratas, mais rábulas somos nós, se não somos menos do que isso”.

32 “Há, sem embargo, esperança do vir-a-ser no horizonte pela maturidade de nossos agentes e de algumas instituições. A sociedade cada vez mais se organiza fora do Estado-instituição e do Estado-locus do mando privado, não se limitando hoje apenas a controlar ambas as formas estatais ou os mandatos eletivos a cada pleito, mas igualmente está a promover por ela mesma soluções para os problemas sociais, políticos e econômicos ocorrentes” (LEITE SAMPAIO, José Adércio. Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 358).