lÊnora santos peixoto
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE – UFRN
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
LÊNORA SANTOS PEIXOTO
“PELO MENOS AGORA EU POSSO FALAR, SÓ NÃO SEI SE VÃO ME OUVIR”:
UMA ETNOGRAFIA DAS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA POR CRIMES DE TRÁFICO
DE DROGAS
Natal-RN
2020
1
LÊNORA SANTOS PEIXOTO
“PELO MENOS AGORA EU POSSO FALAR, SÓ NÃO SEI SE VÃO ME OUVIR”:
UMA ETNOGRAFIA DAS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA POR CRIMES DE TRÁFICO
DE DROGAS
Dissertação apresentada como requisito para
obtenção do título de Mestre em Antropologia Social,
pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Área de concentração: Política, Direitos e Etnicidade.
Orientadora: Dra. Juliana Gonçalves Melo.
Natal-RN
2020
2
LÊNORA SANTOS PEIXOTO
“PELO MENOS AGORA EU POSSO FALAR, SÓ NÃO SEI SE VÃO ME OUVIR”:
UMA ETNOGRAFIA DAS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA POR CRIMES DE TRÁFICO
DE DROGAS
Aprovado em: 26/11/2020
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Profa. Dra. Juliana Gonçalves Melo (Presidente)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN
________________________________________
Profa. Dra. Julie Antoinette Cavignac (Examinadora Interna)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN
________________________________________
Prof. Dr. Clark Mangabeira (Examinador Externo) Universidade Federal do Mato Grosso – UFMT
________________________________________
Profa. Dra. Rozeli Maria Porto (Examinadora Suplente)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN
3
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro
de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA
Peixoto, Lênora Santos.
Pelo menos agora eu posso falar, só não sei se vão me ouvir:
uma etnografia das audiências de custódia por crimes de tráfico de
drogas / Lênora Santos Peixoto. - 2020.
201f.: il.
Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e
Artes, Programa de Pós-graduação em Antropologia Social,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2021.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Juliana Gonçalves Melo.
1. Audiência de custódia - Dissertação. 2. Tráfico de drogas -
Dissertação. 3. Direitos humanos - Dissertação. 4. Antropologia do
Direito - Dissertação. I. Melo, Juliana Gonçalves. II. Título.
RN/UF/BS-CCHLA CDU 39:34
Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-15/748
4
Às minhas avós, Cícera Peixoto e Rita Pereira dos Santos.
Cicinha, no exercício do cuidado de um filho-neto dependente de
drogas, vivenciou múltiplos medos e silenciamentos, entre
invasões da polícia ao seu domicílio, violências físicas e
materiais, prisões, lutas por internações, clínicas de (não)
reabilitação, ameaças e todas as marcas que as ações e omissões
seletivas do Estado ajudaram a agravar. Após uma dessas dores,
seu coração não resistiu e, em abril em 2019, ela partiu.
Já Ritinha lutou bravamente por notícias de um dos seus filhos,
que, durante as maiores rebeliões já ocorridas no Sistema
Prisional do Estado do Rio Grande do Norte, estava encarcerado
na Penitenciária Estadual do Seridó. Após acionar o Estado
diversas vezes, ela conseguiu, após revisão criminal, a absolvição
do meu seu filho, meu tio, por unanimidade. Em maio de 2020,
ela partiu como um dos casos suspeitos de Covid-19, unindo a
família novamente para uma nova luta, agora em respeito à sua
memória.
Elas partiram durante o processo de escrita dessa dissertação, mas
se fizeram presentes em cada uma de suas linhas.
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
pela bolsa concedida durante 13 meses para a conclusão desta dissertação. Em tempos de
sucateamento do ensino público e da pesquisa científica no Brasil, desde promulgação da PEC
95 que congelou os recursos da Educação, até os mais recentes cortes, interferências na
autonomia universitária e tentativas de desvalorização e de deslegitimação das ciências sociais
e humanas, ser financiada é um privilégio que, infelizmente, poderá se esvair se essa política
de desmonte perdurar.
Outrossim, ter acesso a esse recurso só foi possível graças àqueles e àquelas que se
engajaram e fizeram o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte – PPGAS/UFRN se tornar referência. A todos os professores,
discentes, servidores e bolsistas que encamparam essa luta, deixo o meu reconhecimento.
Dentre eles, agradeço, especialmente, a minha orientadora Juliana Gonçalves de Melo
por ser a minha grande inspiração profissional, enquanto antropóloga, professora e ativista na
luta pelos Direitos Humanos da população carcerária e de suas famílias. Através do seu nome
e do da querida Professora Julie Antoinette Cavignac, agradeço também a todos que fazem parte
da linha de pesquisa Política, Direitos e Etnicidade e, principalmente, aos que constroem o
querido e ativo grupo Cultura, Identidade e Representações Simbólicas – CIRS.
Deixo também meus agradecimentos ao Programa de Pós-Graduação em Residência
Judicial – UFRN/ESMARN que abriu caminho, incentivou e financiou as minhas primeiras
pesquisas nas audiências de custódia no município de Natal entre os anos de 2016 e 2017. E,
em especial, aos meus professores/preceptores José Armando Ponte Dias Júnior e Rosivaldo
Toscano dos Santos Júnior por todos os ensinamentos.
O conhecimento compartilhado nessa pesquisa também foi oriundo de todo o
aprendizado que obtive na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte a partir dos projetos
de pesquisa e de extensão no âmbito dos direitos humanos em que tive a oportunidade de
participar durante a minha graduação. Dentre eles, agradeço aos professores e alunos que
encamparam os Projetos “Um olhar multidisciplinar sobre as drogas nas escolas”; “Direitos
humanos, educação e violência simbólica”; “Debate, café e cinema”; “Combatendo o Bullying
nas escolas: pelo direito a dignidade”; “Grupo de estudos da Criança e do Adolescente –
GECA” e ao “Grupo de pesquisa ParticipAção: Cidadania, participação popular e políticas
públicas”, o qual eu ainda atuo como colaboradora.
6
Aos alunos da disciplina Direitos humanos, diversidade cultural e relações étnico-
raciais, com quem pude trabalhar durante o estágio-docência, por me ajudarem a confirmar que
vale a pena permanecer lutando por uma educação plural e emancipatória.
Registro a minha gratidão a equipe de técnicos, oficiais de justiça, seguranças,
estagiários, auxiliares de serviços gerais e a direção que compõe a Central de Flagrantes de
Natal, por toda a receptividade, confiança e compartilhamento de dados e experiências.
E, especialmente, a todos os custodiados e seus familiares, aos defensores, aos
advogados, aos juízes, aos promotores e aos policiais que aceitaram ser meus interlocutores,
partilhando conhecimento, vivências e anseios antes, durante e/ou depois das audiências de
custódia. Vocês foram o corpo e a alma desta pesquisa.
Também agradeço aos meus companheiros do PPGAS, com os quais paguei
disciplinas, participei de congressos, protestos e vivi tantas dores e desafios, em meio aos
estudos, artigos, cobranças e luta pela manutenção da nossa saúde física e mental. Em especial,
às minhas maiores dádivas: Adara e Michelle.
Às minhas amigas-irmãs Nayara, Bárbara, Isadora, Camila, Yara, Diores, Noelly e
Josivânia por serem meu suporte emocional nos momentos mais desafiadores que enfrentei
durante a minha jornada acadêmica.
À minha irmã Ângela, por me apresentar um mundo de alternativas à educação e a
alfabetização formal, a partir de práticas libertadoras e do diálogo integrador das diferenças.
Por todo o amor e apoio incondicional, aos meus pais, Agnelo e Irani, que sempre me
incentivaram a estudar e a lutar por um mundo mais justo, me fornecendo as condições materiais
e emocionais em todas as minhas etapas acadêmicas.
Ao meu Padrasto, Álvaro Oliveira, em memória, que sempre acreditou em meus
sonhos e me encorajou a por eles lutar.
E, com toda ternura e afeto, a Gabriel Santos, meu melhor amigo e companheiro nesse
processo de (r)evolução. Obrigada por ser a minha maior fonte de inspiração, desde 2012,
durante a nossa amizade e militância estudantil no Centro Acadêmico de Direito Rose Mary
Souza, até os dias hoje, compartilhando sonhos, lutas, projetos, paixões, (des)construções e o
mais belo amor.
7
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Achar que essas mazelas me definem é o pior dos crimes
É dar troféu pro nosso algoz e fazer nóis sumir
(Emicida, AmarElo, 2019)
8
RESUMO
O presente estudo objetiva problematizar como se materializam as audiências de custódia em
relação aos marcadores sociais e jurídicos que circundam os usos das substâncias classificadas
como “drogas”, mediante uma análise qualitativa que revele os papéis, as vozes e os eventuais
silêncios dos seus atores, observando os seus posicionamentos, campos de poder, as agências e
interações (in)existentes entre eles. Após ter atuado como residente judicial e pesquisadora na
Central de Flagrantes do Município de Natal-RN, realizando análises quantitativas referentes
aos seus primeiros 18 meses de funcionamento, pude perceber que haviam símbolos e vivências
que os números não eram capazes de desvelar. Nesse lume, decidi (res)significar o meu campo
a partir de um olhar etnográfico, propiciado pela Antropologia do Direito, que reconhecesse as
lacunas deixadas pelas análises estritamente positivistas e propiciasse um novo olhar sobre as
vozes, os silêncios e marcas que se revelam entre as grades reais e simbólicas das audiências
de custódia realizadas em Natal e na sua região metropolitana. A pesquisa será centrada no
crime de “tráfico de drogas”, que, segundo o levantamento nacional de informações
penitenciárias de 2019, é um dos que mais resultam em prisões cautelares, que antecedem o
julgamento definitivo. É sob esse norte que este trabalho irá utilizar uma metodologia empírica
e participante, através do acompanhamento presencial das audiências e mediante a aplicação de
questionários semiestruturados. Através deles serão estudados os papéis representados pelos
juízes, serventuários, promotores, defensores, familiares e custodiados, as mudanças entre as
narrativas, os processos de (não) escuta e a reprodução dos estigmas correlatos aos usos de
drogas nos processos de diferenciação entre tráfico e o porte para consumo pessoal. Outrossim,
reconhecendo a necessidade de posicionar a pesquisa e a pesquisadora em um contexto histórico
e político e nas vivências e referências que singularizam as lentes com que serão avaliados os
dados, será primada uma pesquisa interdisciplinar, situada e desconstrutivista. Portanto, é diante
de uma realidade carcerária sobrecarregada e violadora de direitos humanos e em tempos de
cerceamento e perseguição às pesquisas acadêmicas sociais e humanas, que se sobreleva a
necessidade de dar visibilidade às histórias não contadas pelos termos judiciais e de questionar,
qualitativamente, as prisões e a sua racionalidade em um cenário crescente de seletividade penal
e de reprodução de violência sistêmica e simbólica.
Palavras-chave: Audiência de custódia. Tráfico de drogas. Direitos Humanos. Antropologia
do Direito.
9
ABSTRACT
This master thesis aims to problematize how custody hearings are materialized in view of the
social and legal markers that refer to the uses of substances classified as "drugs". Through a
qualitative analysis that reveals the social roles, the voices and the eventual silences of their
actors, analyzing their positions, fields of power, agencies and (in) existing interactions between
them. After my work as a Judicial Resident and researcher at the Central de Flagrantes de Natal-
RN, where I did quantitative analysis corresponding to this first 18 months of operation, I
realized that the numbers do not reveal all the experiences observed in that space. In this light,
I decided to (res)signify my field from an ethnographic look, provided by Legal Anthropology.
That acknowledged the gaps left by strictly positivist analyzes and demonstrated how voices,
silences and marks are revealed between the real and symbolic grids of a custody hearings held
in Natal and its metropolitan region. Especially, when focused on the crime of “drug
trafficking”, that according to the 2019 national penitentiary survey, is one of the crimes that
most result in ‘precautionary arrests” which are those that precede the final conviction. It is
from this north that this work will use an empirical and participatory methodology, through the
attendance of the audience and the application of semi-structured questionnaires. Through them
I will study the roles played by judges, civil servants, prosecutors, defenders, family members
and custodians. As well I will analyze the variations between the narratives; the listening and
silencing processes and the reproduction of the stigmas related to drugs in the processes of
differentiation between trafficking and possession for personal consumption. Moreover, an
interdisciplinary, localized and deconstructive research will be prioritized to recognize the need
to position the thesis and its researcher in a historical and political context and in the experiences
and references that single out the lenses with which the data will be evaluated. Therefore, it is
in the face of an overloaded and human rights violating prison reality and in times of curtailment
and persecution of social and human academic research, that it is necessary to give visibility to
the stories not told by the judicial terms and it becomes pertinent to question, qualitatively, the
prisons and their rationality in a growing scenario of criminal selectivity and the reproduction
of systemic and symbolic violence.
Key-words: Custody hearing. Drug trafficking. Human rights. Legal Anthropology.
10
LISTA DE ABREVIATURAS/ SIGLAS
ADPF – Arguição de descumprimento de preceito fundamental.
ADC – Ação direita de constitucionalidade.
ADI – Ação direta de inconstitucionalidade.
AMB – Associação dos magistrados brasileiros.
ANADEP – Associação nacional dos defensores públicos.
APAC – Associação de proteção e assistência aos condenados.
APF – Auto de prisão em flagrante.
CDP – Centro de detenção provisória.
CF – Constituição Federal.
CNJ – Conselho Nacional de Justiça.
CP – Código penal.
CPI – Comissão parlamentar de inquérito.
CPP – Código de processo penal.
DPE – Defensoria Pública do Estado.
ESMARN – Escola de Magistratura do Estado do Rio Grande do Norte.
HC – Habeas corpus.
HRW – Human Rights Watch.
IDDD – Instituto de defesa do direito de defesa.
ITEP – Instituto técnico de exame pericial.
MP – Ministério Público.
NOADE - Núcleo de orientação e acompanhamento aos usuários e dependentes químicos.
PL – Projeto de lei.
SAJ – Sistema de automação judicial.
SEJUC – Secretaria de Justiça e Cidadania.
SISNAD – Sistema nacional de políticas sobre drogas.
STF – Supremo Tribunal Federal.
STJ – Superior Tribunal de Justiça.
TJ – Tribunal de Justiça.
TJRN – Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte.
UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
USP – Universidade de São Paulo.
11
LISTA DE IMAGENS
Figura 1. Gráfico da proporção dos dados qualitativos nominais dentro do quantitativo dos
“casos que resultaram em liberdade” nos crimes tipificados na Lei nº 11.343/06................... 69
Figura 2. Gráfico das fundamentações utilizadas nas decisões que decretaram prisão
preventiva em crimes de tráfico de drogas, entre o período de out./2015 a
abr./2017...................................................................................................................................81
Figura 3. Visão frontal do prédio da Central de Flagrantes, dando destaque a câmera de
segurança instalada em frente....................................................................................................86
Figura 4. Planta original do Grande Hotel, desenhada pelo arquiteto francês Georges Henry
Mournier em 1935.....................................................................................................................87
Figura 5. Divulgação do Grande Hotel na década de 1940...................................................... 88
Figura 6. Varanda do Grande Hotel em 1940.......................................................................... 92
Figura 7. Sala em que ocorrem as audiências de custódia. Perspectiva vista por trás da cadeira
onde se senta o(a) juíz(a).........................................................................................................100
Figura 8. Sala em que ocorrem as audiências de custódia. Perspectiva vista por trás da cadeira
em que os custodiados se sentam.............................................................................................101
12
SUMÁRIO
LISTA DE ABREVIATURAS/ SIGLAS .............................................................................. 10
LISTA DE IMAGENS............................................................................................................ 11
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 14
ENVOLVIMENTO COM O CAMPO ................................................................................. 17
JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS ........................................................................................ 19
METODOLOGIA ................................................................................................................. 23
ESTRUTURAÇÃO............................................................................................................... 27
CAPÍTULO I: SOBRE (RE)CONHECER O PASSADO, NOSSAS LENTES E
ESPELHOS. ............................................................................................................................ 30
1.1 CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
BRASILEIRO. ...................................................................................................................... 32
1.2 AS RELAÇÕES ENTRE CIÊNCIA, HEGEMONIA E POLÍTICAS DE
CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA .................................................................................. 41
1.3 POLÍTICAS DE GUERRA E OS DISCURSOS PUNITIVISTAS ........................... 49
CAPÍTULO II: A IMPLEMENTAÇÃO DAS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA: ENTRE
AS VIVÊNCIAS E AS (RE)AÇÕES. .................................................................................... 55
2.1 PERCURSOS NORMATIVOS E OS IMPACTOS SOCIO-POLÍTICOS DA
IMPLANTAÇÃO DAS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA. .................................................. 55
2.2 AS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA NO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE
E OS INFLUXOS DOS DISCURSOS SOBRE “CRISES”. ................................................ 65
2.3 A QUERELA DAS PRISÕES POR TRÁFICO DE DROGAS PARA ALÉM DOS
NÚMEROS. .......................................................................................................................... 75
2.4 O (RE)INÍCIO DO CAMPO: NOVOS OLHARES E ESCUTAS SOBRE O
ESTRUTURAL E A ESTRUTURA. .................................................................................... 83
CAPÍTULO III: AS AUDIÊNCIAS E OS SEUS PERSONAGENS: ANTES, DURANTE
E DEPOIS DO (DES)LIGAR DAS CÂMERAS. ................................................................. 96
3.1 A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA DE RENATO. ................................................... 102
3.2 AS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA DE ANTÔNIO, JOÃO E ALBERTO. .......... 112
3.3 A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA DE ÍTALO......................................................... 123
3.4 AS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA DE VICTOR, GUSTAVO, DANIEL E SIDNEY.
127
3.5 AS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA DE PEDRO E DE FERNANDO. ................ 136
13
CAPÍTULO IV: AS VOZES E OS SILÊNCIOS NOS SEUS CAMPOS DE (NÃO)
PODER. ................................................................................................................................. 147
4.1 ABISMOS COMUNICATIVOS E OS PROCESSOS DE SILENCIAMENTOS .. 149
4.2 REDUZINDO A TERMO: ENTRE O ORALIZADO E O TRANSCRITO ........... 158
4.3 ATRÁS DAS GRADES FÍSICAS, MATERIAIS E SIMBÓLICAS ...................... 172
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 182
REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 187
ANEXO 1 - ROTEIRO SEMIESTRUTURADO DE ENTREVISTA ......................... 18795
ANEXO 2 - MODELOS DE TERMO DE AUDIÊNCIA .................................................. 197
14
INTRODUÇÃO
Consubstanciada na apresentação da pessoa presa em prazo rápido e razoável à
autoridade judicial para que seja apreciada a legalidade e a necessidade da manutenção da
prisão, a audiência de custódia, também chamada de audiência de apresentação, é um direito
previsto em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, como o Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas1 e a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos2.
Apesar de estar elencada por esses tratados como um instrumento essencial à garantia
de direitos, principalmente no que concerne ao combate à tortura, a sua efetivação encontrou
resistência no Brasil, sendo necessárias diversas reivindicações e acionamentos jurídicos por
parte da militância e dos institutos de defesa dos direitos humanos, até que viesse a ocorrer a
sua regulamentação.
Em uma perspectiva que, em teoria, se propõe polifônica, esse direito objetiva que o
contato direto com a pessoa que acabou de ser presa possa contribuir com uma melhor análise
acerca dos fatos e dos procedimentos que envolveram a prisão, evitando, assim, um
cerceamento de liberdade arbitrário, desarrazoado e/ou desnecessário e podendo ser essencial
na denúncia e na coibição da tortura policial.
Diferentemente da audiência de instrução e julgamento, em que já está consolidada
uma acusação e em que já estão atribuídos elementos de autoria e de materialidade, a audiência
de custódia analisaria, exclusivamente, como ocorreu a prisão, sendo, pretensamente, um
momento de escuta presencial por parte de juiz em até 24h após o cerceamento de liberdade.
Esse contato direto, em tese, pode propiciar a melhor visualização por parte do
magistrado acerca das necessidades particulares da pessoa presa, possibilitando o
encaminhamento a mecanismos de natureza assistencial, a verificação de práticas de tortura
durante atuação policial e oportunizando também coadunar as decisões com a proteção à
1 Artigo 9, item 3: “Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem
demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de
ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam
julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem
o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a
execução da sentença.” (ASSEMBLÉIA-GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS, 1966) 2Artigo 7. Direito à liberdade pessoal, item 5. “Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença
de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um
prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser
condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.” (CONVENÇÃO AMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS, 1969)
15
gestação, às crianças, aos adolescentes e às pessoas com deficiência que estejam sob a
responsabilidade dos custodiados e custodiadas.
Apesar do direito de apresentação a um juiz após uma prisão já ser reconhecido como
um direito humano pelos tratados internacionais supramencionadas, ele não se materializava na
maior parte das comarcas do Brasil até o ano de 2015, sob as alegadas dificuldades
procedimentais e orçamentárias, agregadas à relativização do que era considerado “sem
demora” – que, em alguns casos, poderia chegar a anos.
Em paralelo a isso, o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias realizado
no ano de 2014 pelo Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN explicitou que a
população penitenciária brasileira havia chegado a 622.2023 em dezembro daquele ano e que,
dentro desse quantitativo, 41% dos detentos ainda não haviam sido sentenciados com trânsito
em julgado, estando enquadrados na categoria das “prisões preventivas”.
Foi considerando esses dados de 2014 e as recorrentes denúncias de violações aos
direitos humanos dentro dos presídios no Brasil, que a Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental nº 347, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL, provocou,
em 2015, o reconhecimento por parte do Supremo Tribunal Federal do estado de coisas
inconstitucional4 que se encontra submetido o sistema carcerário brasileiro, reivindicando
medidas voltadas ao equacionamento das violações aos direitos dos presos, em seu proveito e
em prol da segurança de toda a sociedade. Dentre as medidas pleiteadas, foi deferida, em sede
cautelar5, a obrigatoriedade de que todos os juízes e tribunais realizassem audiências de
custódia, viabilizando o comparecimento dos presos perante a autoridade judiciária no prazo
máximo de 24 horas, contados do momento da prisão.
Ocorre que, mesmo após a determinação da obrigatoriedade da implantação dessas
audiências, ainda é necessário pesquisar e refletir sobre a sua assimilação, aplicabilidade e
materialização enquanto espaço efetivamente polifônico, como se propõe no plano formal.
Sendo cogente reconhecer que os direitos elencados em uma superestrutura jurídica vigente –
supostamente aplicados mediante implantação dos seus institutos – não são, por si sós, capazes
de exprimir a cidadania e tão pouco, a “autoidentificação enquanto cidadão”, consoante
3 Em julho de 2019 este número alcançou o patamar de 812.564 mil presos, sendo 41,5 sem condenação, conforme
dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (2019). 4 Conforme as lições de Campos (2016, p. 20), o quadro prolongado de violação massiva de direitos decorrentes
de falhas estruturais, deficiências institucionais e de insuperáveis bloqueios políticos estaria além de
“inconstitucionalidade por omissão”, correspondendo a vigência do que se denomina de um “estado de coisas
inconstitucional (ECI). 5 Decisão proferida antes da análise do mérito principal. Ela visa proteger que o seu objeto ou o direito em questão
pereçam ou sejam danificados durante o curso processual.
16
lecionam os sociólogos Haroldo Abreu (2018) e Jessé Souza (2015), ambos seguindo a linha
de Gramsci (2010) no que tange às reflexões sobre poder e hegemonia no processo social.
Assim, superando as análises que se resumem, meramente, às previsões legislativas, à
aplicabilidade jurídica ou à compilação estatística, passei a sentir a necessidade de descortinar
como as audiências de custódia se revelam na sua prática e como se particularizam a depender
do tipo do crime e dos seus contornos sociais, territoriais, raciais e de classe que circundam
seus atores e os processos decisórios que julgam a legalidade e a necessidade de uma prisão.
Esses processos se tornam ainda mais particulares e sintomáticos se observarmos,
especificamente, os crimes correlatos aos usos de drogas e a discricionariedade existente na
diferenciação entre o uso para consumo próprio ou para o tráfico. Tão quanto, na justificação
da prisões preventivas sob o argumento da necessidade da “garantia da ordem pública”6, ainda
que se tratando de um crime, em regra, cometido sem o uso de violência imediata.
É cogente, então, refletir em que medida há a construção ou a deterioração da
comunicação nessas audiências que se propõem, em tese, como espaços polifônicos, de contato
e de observação face-a-face. E, nesse âmago, observar como se revelam os processos de escuta
ou de silenciamentos7 das pessoas que estão sob custódia em razão de um suposto flagrante de
crime correlato aos usos de drogas. Analisando, a partir desses pontos, as seguintes questões:
como as vivências relacionadas a essas substâncias passam a ser acionadas nesses eventos? Em
que se constituem as sensibilidades jurídicas presentes nas audiências de custódia? Como é
mensurada a suposta periculosidade que justifique a manutenção da prisão ou a concessão da
liberdade? Quais os símbolos de poder que marcam esses eventos? Como as audiências de
custódia são compreendidas por parte daqueles que as protagonizam?
Para tentar responder adequadamente essas perguntas é, preciso, primeiramente
admitir, consoante os ensinamentos de Roberto Kant de Lima e de Bárbara Gomes
Lupetti Baptista que apenas “ler leis, livros e manuais de Direito não é suficiente para construir
uma percepção adequada do campo jurídico e tampouco permite entender a lógica do sistema
judiciário” (2013, p. 4). Logo, é nesse lumiar que somente o trabalho de campo permite ir além
do que está informado nos discursos e documentos oficiais, analisando os processos e
6 A categoria “ordem pública”, bastante reproduzida no Código de Processo Penal, não possui consenso doutrinário
jurídico, sendo alvo de muitas críticas em razão de ser um conceito aberto e discricionário. 7 A categoria referente aos “processos de silenciamento” que serão abordados ao longo dessa dissertação se referem
às minhas observações em campo sobre momentos em que presenciei a retirada ou a mitigação da voz dos
custodiados, dos seus familiares e dos seus defensores. Essas observações eram advindas de ordens impositivas
emanadas pela autoridade judiciária e policial e também de forma simbólica, em razão da própria estrutura da
Central de Flagrantes. O ato de silenciar o outro ou de fazer o outro silenciar, será melhor aprofundado no Capítulo
IV desta pesquisa.
17
observando as vozes e os silêncios daqueles que dinamizam esses eventos, vendo-os, como bem
coloca Sherry Ortner, não simplesmente como “reprodutores e reagentes passivos a um sistema,
mas como agentes ativos e sujeitos da sua própria história” (2011, p. 438-439).
Entrementes, é caro também reconhecer que, nos termos em que aponta Donna
Haraway (1995), qualquer transcrição do outro ou sobre o outro parte de uma leitura situada e,
nos termos que ensinou James Clifford (1998) não há método científico soberano, mas sim,
uma luta por evitar a representação do outro como ser abstrato e a-histórico, admitindo as
múltiplas subjetividades e constrangimentos políticos que permeiam a transcrição de
experiências.
É partindo desse contexto e do redimensionamento epistemológico do direito à
antropologia, que passarei a abordar como ocorreu o meu envolvimento com o campo e com a
perspectiva interdisciplinar ora adotada, justificando e contextualizando o tema e apresentando
a estruturação do seu processo de escrita.
ENVOLVIMENTO COM O CAMPO
Durante a minha graduação no curso de Direito, a importância de realizar pesquisas
interdisciplinares ficava cada vez mais evidente ao me deparar com as lacunas entre o estudo
mecanicista e objetivista exigido para a aprovação nas provas e no Exame da Ordem (OAB) e
o que eu presenciava nos projetos de extensão e nos estágios em que eu lidava diretamente com
pessoas e realidades que se constituíam e se relacionavam muito além dos autos, das leis ou da
dogmática jurídica.
Essas inquietações sobre os abismos existentes entre a teoria e a prática no campo
jurídico se tornaram ainda mais latentes após um ano e seis meses de prática e de pesquisas no
programa de Pós-Graduação em Residência Judicial, com atuação voltada à seara criminal8,
momento em que acompanhei de perto a implantação das audiências de custódia na Comarca
de Natal – RN, entre os anos de 2015 e 2018. E pude presenciar, como parte inserida dentro do
sistema, a repercussão dos discursos políticos, jurídicos e midiáticos pautados, em sua grande
8 Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN e da Escola de
Magistratura do Estado do Rio Grande do Norte – ESMARN para obtenção do título de especialista em Residência
Judicial. O programa exige dedicação exclusiva, é remunerado mediante bolsa de estudos e é dividido em eixo
teórico de seis meses (R1) e em eixo prático de um ano (R2). O Eixo Prático (R2) por mim exercido ocorreu entre
os meses de setembro de 2016 a setembro de 2017 na 2ª Vara Criminal da Zona Norte da Comarca de Natal, com
atuação em regime de plantão junto à Central de Flagrantes de Natal.
18
maioria, em naturalizações de estigmas e na reprodução de dados desconectados dos aspectos
macrossociais que os contextualizavam e das questões microssociais que os particularizavam.
As múltiplas informações e perspectivas reproduzidas, principalmente, pelos setores
políticos e midiáticos, especialmente as que afirmavam que as audiências provocavam “solturas
desmedidas” e “impunidade”, destoavam do que eu via durante a minha atuação direta em
processos de crimes de tráfico de drogas. No meu trabalho, eu observada que esses crimes
resultavam em muito mais prisões do que em solturas. Isso fez com que emergissem em mim
questionamentos mais densos acerca do modo de compreensão, apreensão e aplicabilidade do
instituto das audiências de custódia, quando em face aos marcadores sociais e jurídicos das
substâncias classificadas como drogas ilícitas e da classe social, gênero e cor da pele das pessoas
que permaneciam presas.
Diante da necessidade de confrontar cientificamente o que eu observava na minha
vivência profissional e o que eu ouvia e lia sobre essas audiências, me senti motivada a
participar de uma pesquisa de campo denominada “laboratório judicial” com apoio da Escola
de Magistratura do Estado do Rio Grande do Norte, onde analisei a implementação das
audiências de custódia no quantitativo de prisões preventivas em crimes de tráfico de drogas no
município de Natal-RN, entre outubro de 2015, mês de sua implantação, até abril de 2018
(PEIXOTO, 2018). Neste contexto, a pesquisa foi focada na divulgação e no estudo dos dados
coletados a partir da análise de 538 documentos judiciais denominados “termos de audiência”
especificamente de crimes tipificados na Lei nº 11.343/2006 (Lei de drogas ou SISNAD).
Apesar dos resultados dessa pesquisa, à época, já terem sido bastante sintomáticos9,
demonstrando as deficiências existentes na coleta oficial de dados por parte do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, apontando os percentuais relativos ao número de
prisões preventivas decretadas nesses eventos através de recortes que considerassem a natureza
do crime e expondo também as principais justificativas utilizadas na fundamentação, pude
perceber que a mera constatação e exposição dessas informações não era suficiente para revelar
várias particularidades que eu observava empiricamente. Para além das balizas metodológicas,
eu estava entre as grades epistemológicas que a pesquisa meramente jurídica me trancava.
Foi diante dessa conjuntura que cursar o Mestrado em Antropologia Social,
especialmente na linha de pesquisa Política, Direitos e Etnicidade e no grupo Cultura,
Identidade e Representações Simbólicas, contribuiu na minha busca por ir além da mera
9 Os dados serão apresentados e aprofundados no Capítulo II desta dissertação.
19
exposição quantitativa de dados e das abstrações jurídicas que estavam sob o escudo do dever
ser10.
A partir das suas contribuições teóricas, metodológicas e da sua capacidade crítica,
emancipatória e interdisciplinar, a Antropologia aflorou, então, como um caminho significativo
para o aprofundamento acerca das audiências de custódia por crimes autuados como “tráfico de
drogas”, mediante a pesquisa etnográfica dos eventos ocorridos na Central de Flagrantes do
Município de Natal.
JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS
Pesquisar, em particular, as audiências de custódia ocorridas por fatos “autuados”11
como “tráfico de drogas” é um recorte relevante e necessário que se justifica em razão do
contexto social, político e jurídico em que se insere a questão das substâncias classificadas
como ilegais no Brasil. Dentro dessa conjuntura estão o poder discricionário dos estereótipos e
os processos de estigmatização, trabalhados por Seyferth (1993) e Goffman (1978); os
processos de sujeição criminal, refletidos por Becker (2008) e Misse (2010), principalmente
para aqueles considerados “traficantes” e os corolários da “criminalização da pobreza”,
debatidos por Wacquant (2001) e Coimbra (2016), em virtude da adoção de políticas inspiradas
no modelo norte-americano de “guerra ao crime” e de “guerra às drogas”, como pontuam Santos
Júnior (2017) e Valois (2019).
Nesse âmago, sobreleva-se que segundo levantamento nacional de informações
penitenciárias realizado pelo DEPEN (BRASIL, 2019), calculou-se que a população carcerária
chegou a 773.151, em dezembro de 2019, o que consagra o Brasil como a terceira maior
população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. Sendo constatado,
também, que 30,43% dessas prisões são de caráter preventivo e que 20,28% desses detentos do
Brasil respondem ou foram condenados por crimes de tráfico de drogas.
Quando se trata de prisões de mulheres, os dados se mostram ainda mais significativos
e alarmantes. Conforme o último levantamento do INFOPEN-Mulheres (2018), até junho de
10 A distinção entre o ser e o dever ser é fruto da reflexão do jusfilósofo positivista Hans Kelsen, que os categoriza
em sua obra “Teoria Pura do Direito” para poder separar o direito “como ele é” do direito “como ele deve ser”,
ponderando que aquele está no “reino dos fatos” e este “no reino das normas”. (KELSEN, 1998) 11 A expressão “autuado” significa, no âmbito jurídico, “algo que está colocado nos autos”. Dizer que o fato foi
“autuado” como tráfico de drogas, significa que a autoridade policial assim o classificou e inseriu nos autos da
prisão em flagrante. Por vezes, é comum que a pessoa sob custódia seja chamada de “autuada”, sendo essa
expressão frequente no cabeçalho dos termos de audiência. Apesar de ser objetificadora, ela é que é considerada
na prática forense mais correta tecnicamente do que chamar a pessoa de “flagranteada” pois nesta palavra havia
certa presunção de que a prisão ocorreu de forma legal e em verdadeiro estado de flagrância.
20
2016, 45% das prisões de mulheres eram de caráter cautelar, sem condenação. E, no total, 62%
das prisões eram por crimes de tráfico de drogas, sendo assim, 3 a cada 5 mulheres que estão
presas no Brasil, são por crimes de tráfico de drogas (BRASIL, 2018, p. 53), o que demonstra
o impacto que as políticas proibicionistas representam na vida das mulheres, que possuem suas
particularidades e necessidades negadas diante de um sistema prisional pensado por homens e
para homens.
No caso do Estado do Rio Grande do Norte, os já precários dados em relação ao
número de prisões mascaram qualquer recorte em relação a sua natureza e em relação ao gênero,
impossibilitando, assim, a sua análise instrumental. A avaliação qualitativa, então, seria
imprescindível em um contexto de recorrentes denúncias de violações a Direitos Humanos
dentro dos presídios e das recentes rebeliões de repercussão nacional e internacional ocorridas
entre os anos de 2015 e 2017 no Estado Potiguar, que está em “situação de calamidade”
declarada de março de 2015 até os dias atuais.12
Em razão da repercussão dos discursos que circundaram esses atos e da frequente
assimilação da ideia de justiça à de punição (KANT DE LIMA, 2008), é preciso também
considerar os influxos midiáticos, políticos e do senso comum que transversalizam a atuação
jurisdicional, avaliando como o tensionamento entre esses sistemas influencia no paradigma
adotado pelos agentes estatais acerca do que se interpreta por “efetividade das decisões”.
Conforme refletiu Regina Lúcia da Fonseca, essa ideia de “efetividade”, por vezes,
acaba ultrapassando a de “garantia de direitos”, para ade um suposto “poder-dever” de
“descobrir a verdade” e de “fazer justiça” (FONSECA, 2008, p. 253). Entretanto, essa postura
vela a busca por uma atuação jurisdicional voltada à domesticação seletiva, cumprindo uma
“função política de instrumento de imposição e legitimação da dominação” (BOURDIEU,
1989, p. 6).
É diante desses contratastes que o presente estudo elege as audiências de custódia,
especificamente, por crimes classificados pela autoridade policial como “tráfico de drogas”, por
ser um delito, em regra, cometido sem violência ou grave ameaça, mas em que as pessoas sob
custódia, geralmente, findam por ter que aguardar toda a instrução processual em cárcere. Ainda
que, frequentemente, na hora do julgamento, haja o reconhecimento da figura do tráfico
12 Em 17.03.2015, através do Decreto nº 25.017, foi declarada situação de calamidade do Sistema Prisional do Estado do
Rio Grande do Norte. A cada 180 dias o decreto vem sendo sucessivamente renovado, totalizando 5 anos de
reconhecimento do Estado da Situação calamitosa vivenciada e da necessidade de adotar “medidas de emergência”.
21
privilegiado13 ou da desclassificação para posse de drogas para consumo pessoal14, que
possuem sanções menos gravosas que um regime fechado. Logo, a chamada “prisão preventiva”
acaba representando, em muitos casos, uma verdadeira antecipação de pena ou uma medida
ainda mais restritiva do que a pena que poderá, em tese, ser imposta em sentença.
Outrossim, é necessário destacar que a Lei de drogas prevê que o juiz deverá “atender
à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se
desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos
antecedentes do agente” (BRASIL, 2006)15 para caracterizar se a droga se destina ao “consumo
próprio” ou ao “tráfico”, que, por sua vez, engloba diversas condutas16.
Vê-se, então, que ao não estabelecer critérios objetivos como a quantidade de drogas
e ao homogeneizar diversos atos dentro da categoria “tráfico”, a avaliação do fato passa por um
crivo discricionário, que territorializa o crime ao etiquetá-lo geograficamente, que avalia
critérios sociais e pessoais e marca, principalmente, os indivíduos que habitam em regiões
marginalizadas e que já tiveram alguma passagem pela polícia.
Logo, é diante de um sistema prisional assumidamente sobrecarregado e desse quadro
de violação a direitos humanos e fundamentais no ambiente penitenciário que é caro e urgente
refletir, em uma perspectiva pluridimensional, como se revelam na prática os institutos que se
propõem a evitar prisões arbitrárias e a tortura a partir de um evento, em teoria, comunicativo
e polifônico.
Conforme será somado as reflexões aqui produzidas, a antropologia política, do direito
e do crime, em particular, já têm se preocupado com essa questão através de importantes
pesquisas empíricas sobre audiências, havendo, inclusive, um recente acervo de pesquisas no
que concerne, especificamente, às de custódia17. A presente pesquisa, além de se somar a esses,
pretende inovar ao focar nas particularidades existentes diante dos marcadores sociais e
jurídicos relacionados aos usos de substâncias classificadas como drogas ilícitas, o que
singulariza o material ora produzido, e evidencia a pluralidade de falas e de vivências.
13 Previsto no art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006, o chamado “tráfico privilegiado” é aquele em que a pessoa
acusada é primária e não pertence a qualquer organização criminosa, sendo reduzida a sua pena e propiciando que
o regime de cumprimento seja aberto ou semi-aberto. 14 Art. 28 da Lei nº 11.343/2006. 15 §2º do art. 28 da Lei nº 11.343/2006 16 Conforme dispõe o art. 33 da Lei de Drogas, múltiplas condutas são penalizadas como tráfico de drogas, como
o ato de “importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em
depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda
que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. 17 Dentre elas, destacam-se as pesquisa de Paiva (2015); Lemgruber, Musumeci, Benace e Brando (2016); Bandeira
(2018); Abreu (2019); Mangabeira (2019); Câmara (2019) e Toledo (2019).
22
Sob esse lumiar, esse trabalho também assumirá que os atos classificados como
“desvio” devem também ser compreendidos dentro de um processo interacionista e relacional
conforme lecionam Becker (2008) e Velho (2002), transpondo a análise do indivíduo ou de sua
conduta em sua singularidade, para o estudo da construção das suas relações com aqueles que
criam e aplicam as leis.
É nesse âmago que se justifica a necessidade de um estudo empírico e qualitativo das
audiências de custódia por flagrantes de crimes classificados como tráfico de drogas. A fim de
desvelar como se exprimem e se expressam os seus sujeitos, as relações intersubjetivas
existentes e os processos construtivos explícitos e inexplícitos das decisões proferidas nesse
instituto diante da instrumentalização da categoria “droga”. Cabe, portanto, adotar uma
perspectiva que ultrapasse a mera subsunção de fatos à norma ou a fria compilação estatística
e análise mecânica de dados.
Diante desse contexto, elegi como objetivo geral observar e analisar, em uma
perspectiva etnográfica, as audiências de custódia por crimes de tráfico de drogas realizadas no
ano de 201918, na Central de Flagrantes do Município de Natal, que alberga as comarcas de
Natal, Parnamirim, Macaíba, Extremoz, São Gonçalo e Ceará-Mirim.
Assim, elenquei como objetivos específicos: a problematização acerca das
construções, expressões e apreensões das relações comunicativas (in)existentes entre os seus
atores (BECKER, 2008); o mapeamento dos símbolos de hierarquia expressos nas vestimentas,
posições espaciais, vocabulário e expressões corporais visualizadas (KANT DE LIMA, 1995);
a identificação dos estigmas correlacionados aos usos de “drogas” (GOFFMAN, 1978) e dos
processos de sujeição criminal (no sentido de subjugação, subordinação e de autoaceitação) que
isso implica (MISSE, 2010); a avaliação qualitativa das fundamentações expressas nos termos
de audiência, identificando os critérios a que elas atendem (FONSECA, 2008); compreender o
que significa, na perspectiva dos agentes do Estado, a categoria “ordem pública” e como ela se
relaciona ao crime imputado; compendiar os termos de audiência para analisar a forma como
os discursos são documentados institucionalmente e quais aspectos da audiência são focalizados
ou omitidos; ouvir e escrever sobre as falas, sentimentos, sensações e silêncios das pessoas em
custódia e dos demais agentes nela presentes.
Considerando a necessidade de posicionar a pesquisa e a pesquisadora em um contexto
histórico, político e subjetivo, acrescento, ainda, aos objetivos a minha própria localização
18 A pesquisa de campo ocorreu em um intervalo de três meses que não estão explicitados para evitar a identificação
dos partícipes das audiências, com os quais acordei sobre a preservação dos seus nomes.
23
enquanto investigadora situada em um espaço privilegiado de conhecimento técnico-jurídico e
de experiências anteriores no campo (HARAWAY, 1995).
Outrossim, os dados colhidos apesar de locais, serão inseridos em uma conjuntura
histórica e sócio-política maior já que se correlaciona à construção do processo de
criminalização das “drogas” e à manutenção das bases verticalizadas e pouco acessíveis do
Poder Judiciário.
METODOLOGIA
A assertiva de Bloom (1991) de que “um poeta está ligado a um poeta anterior” nos
ensina que tanto a leitura, quanto a criação de um texto, nunca se dão em si e por si mesmas,
pois implicam na apropriação de uma rede textual e metodológica que as precedem. A
originalidade e a criatividade são precedidas pela inspiração, por algo que as movem. Assim,
não deveríamos deixar de reconhecer os nossos referenciais de produção, as vivências e a
conjuntura histórica e social as quais estamos inseridos para que a nossa análise e a nossa escrita
possam ser contextualizadas.
Esse trabalho, portanto, mescla as vivências de uma pesquisadora socializada no
direito e “ressocializada” na antropologia. Esse processo ocorreu quando percebi que mesmo
quem se integra ao campo jurídico, detendo acessos e conhecimentos privilegiados sobre sua
estrutura, não aproveita, suficientemente, a oportunidade de questionar o porquê das práticas já
tão naturalizadas e de desenvolver as tão emblemáticas “pesquisas participantes”, muitas vezes
por se esconder sob a retórica da “impessoalidade, da neutralidade e universalidade”
(BOURDIEU, 1989).
O empreendimento antropológico que tentei abraçar, consoante aprendi com Geertz
(1989), não se caracteriza, necessariamente, por um método, mas por uma teoria que reflete
uma postura, uma forma de pensar, de enxergar e de ouvir (GEERTZ, 1989). Postura essa que
encontra sentido conforme os paradigmas hermenêuticos situados historicamente e em um
contexto de poder – e, por vezes, de perseguição e de tentativas de deslegitimação das ciências
humanas e sociais.
Como lecionou Roberto Cardoso de Oliveira (1996), além do enxergar e do ouvir, outra
tessitura precisou ser considerada e transformada nesse processo: a minha forma de escrever.
Consoante aprendi, “o autor não deve se esconder sistematicamente sob a capa de um
observador impessoal, coletivo, onipresente e onisciente, valendo-se da primeira pessoa do
plural: nós” (OLIVEIRA, 1996, p. 27). Desse modo, ao longo desse trabalho, evitarei, quando
24
possível, os pronomes impessoais, e localizarei a posição singular dos meus pensamentos,
análises e descrições.
E para assumir os riscos de realizar uma “descrição densa”, criando “teias de
significados” e de interpretações que seriam “pontuais e provisórias” (GEERTZ, 1989, p. 4),
precisarei, ao longo do texto, reconhecer as minhas próprias limitações, tanto pela incapacidade
objetiva – e também filosófica – de enxergar o campo em toda a sua totalidade, quanto pela
forma como ele é marcado por minhas lentes e espelhos. Afinal, a própria autoridade
etnográfica e a forma como produzimos nossas escritas sobre o outro devem ser
problematizadas (CLIFFORD, 1998).
Partindo desse referencial metodológico já tão conhecido por aqueles habituados com
leituras da antropologia, mas ainda tão pouco utilizado no âmbito do direito, realizei, no ano
de 2019, pesquisa de viés exploratório e de natureza empírica no prédio da Central de
Flagrante, localizado na Avenida Duque de Caxias, no Bairro da Ribeira, da cidade de Natal –
RN, somando os dados colhidos às experiências anteriores de trabalho e de pesquisa que
desenvolvi nesse mesmo espaço, entre outubro de 2015 e abril de 2017.
Na edificação do meu acesso ao campo, agenciei contato direto com a equipe de
servidores que compõe a Central de Flagrantes de Natal, solicitando, pessoalmente, autorização
a então Diretora de Secretaria e ao Juiz Coordenador das Audiências de Custódia, que
atenderam ao pedido prontamente, sem a necessidade de formalização documental.
Não obstante, em razão da rotatividade dos juízes responsáveis por presidir as
audiências, que obedecem, nos finais de semana e em feriados, a uma escala de plantão
estabelecida pela Corregedoria de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte e, nos dias úteis,
à escala estabelecida pela própria Central de Flagrantes, eu tinha que solicitar, a cada dia de
campo, novas autorizações aos seus respectivos juízes para poder assistir e realizar as
entrevistas.
Houve uma situação, inclusive, em que uma das juízas responsáveis não autorizou que
eu realizasse entrevista com ela, mas permitiu que eu acompanhasse a audiência e entrevistasse
os demais presentes, caso eles aceitassem me responder. Essas situações me fizeram decidir
que mesmo nos casos em que fosse inviabilizada a entrevista com algum dos componentes da
audiência, eu permaneceria em campo analisando o evento e entrevistando os demais
partícipes. Apenas as situações de cancelamento ou de reaprazamento da audiência me fariam
cessar de coletar dados naquele dia.
25
Assim, para me manter informada se iriam ocorrer, ou não, audiências por crimes de
tráfico de drogas, eu telefonava, todos os dias, às 12h, para a Secretaria da Central de Flagrantes
para saber se estavam pautadas audiências por crimes dessa matéria.
Nos dias em que eu compareci a campo, tentava chegar pelo menos com 1h de
antecedência ao início da pauta diária, que começava às 14h. Ao chegar, me apresentava aos
promotores, aos defensores e às pessoas sob custódia, separadamente, para poder explicar o
objetivo e o método da pesquisa, tentando deixá-los à vontade, para que minha presença
afetasse o mínimo possível o transcurso ordinário da audiência.
Não obstante, é necessário admitir e evidenciar que a minha existência naquele espaço
enquanto pesquisadora não passava despercebida e, eventualmente, poderia provocar reflexos
nas atuações e interações ali produzidas (GOFFMAN, 2010).
Reconhecendo a formalidade que permeia o evento, não fiz intervenções no transcurso
dos ritos judiciais. Nesses momentos, utilizei como técnica a observação e o seu registro
manual em caderno de campo (SCHRITZMEYER, 2012).
As entrevistas semiestruturadas (ANEXO 1), guiadas a partir dos objetivos elencados
pela pesquisa, foram realizadas antes ou imediatamente após as audiências, a depender das
dinâmicas que o transcurso da pauta produzia e me permitia.
As entrevistas com os custodiados aconteciam em frente à cela em que eles deveriam
aguardar até o encerramento das audiências. Conforme determinado pela equipe responsável
pela segurança da Central de Flagrantes, eu tinha que ficar do lado de fora e eles, sempre, do
lado de dentro, o que nos deixava separados por grades. Apesar de eu sempre tentar me
aproximar fisicamente o máximo possível e de manter um tom de voz baixo para que outras
pessoas não escutassem nossas conversas, sempre haviam outros custodiados dividindo aquele
espaço e policiais nas proximidades que poderiam, eventualmente, nos escutar.
As entrevistas com os juízes, promotores e defensores ocorria a depender da
disponibilidade demonstrada por cada um deles, podendo acontecer antes do início da pauta,
entre uma audiência e outra, ou ao final. Em alguns casos, inclusive, consegui realizar
entrevistas em mais de um momento. Apesar de eu preferir que as nossas conversas fossem
particulares, na maioria das vezes, os juízes e promotores preferiam responder um na frente do
outro, no intervalo entre as audiências, como forma de “ganhar tempo” – expressão utilizada
por eles próprios.
A princípio, eu não havia previsto que entrevistaria acompanhantes e familiares, mas
o dia-dia em campo me levou a construir diálogos com alguns deles e a colher importantes
26
registros sobre os eventos e suas formas de assimilação, bem como, aos usos de drogas feitos,
ou não, pela pessoa que foi presa.
Conversei também com alguns estagiários, assessores, oficiais de justiça e policiais,
que apesar de não serem o foco das minhas entrevistas, eram sujeitos que transitavam durante
os eventos e teciam comentários e vivências sobre eles, que eventualmente serão acionadas ao
longo do texto.
Outrossim, foi feita uma compilação documental dos termos de audiência afim de
poder comparar as conexões (in)existentes entre o dito e o transcrito, dando destaque aos
elementos estruturais que revelam posições e hierarquias, a fundamentação das decisões e as
formas de subjetivação, quando é dado destaque a elementos que individualizam os sujeitos e
correlacionam suas características pessoais com o fato típico, bem como, a objetificação,
quando reduzem as suas falas e os reificam em categorias ou números nos documentos. Apesar
do acesso ao conteúdo dos termos de audiências ser, em regra, de domínio público, serão
preservadas as identidade dos interlocutores, como foi acordado com cada um deles.
Destarte, acompanhei presencialmente 11 audiências de custódia por crimes autuados
como tráfico de drogas, entrevistando 5 juízes, 3 promotores, 3 defensores públicos, 4
advogados e 11 custodiados. Estabelecendo, também, diálogo com 4
acompanhantes/familiares, 3 policiais, 1 oficial de justiça, 1 estagiário e 3 servidores da Central
de Flagrantes e 1 voluntário da pastoral carcerária. Cada dia de campo será individualizado e
descrito no Capítulo III consoante as audiências que os protagonizaram.
Assim, apesar de já ter avaliado em minhas pesquisas anteriores mais de 538
audiências de custódia por crimes de tráfico de drogas, irei, agora, sob um nova forma de
enxergar, de escutar e de escrever (OLIVEIRA, 1996), ressignificar minhas concepções sobre
o instituto a partir de uma metodologia etnográfica e assumir a responsabilidade de me
reconhecer e de me posicionar19 o junto ao meu objeto (WAGNER, 2010).
Por fim, reconhecendo que os campos de relação identificados na pesquisa não podem
ser apreendidos como unidades separadas e estáticas (BOURDIEU; CHAMBOREDON;
PASSERON, 2015), e que, mesmo que se busquem descrições adequadas da interação social,
elas ainda não darão uma compreensão das relações estratégicas que subjazem à interação e a
construção cultural, que ocorrem sempre dentro de arenas históricas maiores, utilizarei também
19 Não obstante, apesar de me situar ao longo dessa dissertação, não pretendo fazer dela um trabalho focado em
minhas experiências ou na minha subjetividade. Elas serão utilizadas apenas, eventualmente, como acessos
etnográficos e meios de manter a sinceridade epistemológica que almejo durante os posicionamentos críticos.
27
como técnica de pesquisa a compilação bibliográfica e a reflexão conglobante a outros
fenômenos sociais, culturais, históricos e da atualidade.
ESTRUTURAÇÃO
A pesquisa está dividida em quatro capítulos, sendo os dois primeiros de cunho teórico
e introdutório às categorias que serão trabalhadas etnograficamente nos dois últimos capítulos,
em que priorizarei a escrita etnográfica do meu campo e as reflexões dele decorrentes.
No Capítulo I, iniciarei as discussões a partir de uma retrospectiva histórica sobre a
edificação do poder judiciário no Brasil e da construção do sistema de justiça criminal
brasileiro, apontando como as escolhas que justificaram a criminalização e a punição de
determinadas condutas se correlacionam com a tentativa de manutenção das posições
hegemônicas daqueles que criam e aplicam as regras.
O capítulo inaugural também se ocupará em explicar como a perspectiva antropológica
contribui no desvelamento de processos silenciados, contrapondo com reflexões sobre
autoridade científica (CLIFFORD, 1998). Seguindo esse norte, o segundo tópico do primeiro
capítulo abordará como a apreensão institucional seletiva dos marcadores de raça provocou
reflexos em políticas criminais pautadas no poder discricionário dos estereótipos (SEYFERTH,
1993), dando destaque à apreensão da antropologia junto às ciências jurídicas apenas quando
oportuna à legitimar cientificamente a pauta política visada. Sendo necessário, nesse lume,
contextualizar as implicações que essa edificação provocou na construção de políticas de guerra
e na propagação de discursos de índole punitivista (KANT DE LIMA, 2008), como
problematizarei no terceiro ponto.
No segundo capítulo, irei discutir sobre o processo de implantação das audiências de
custódia no Brasil e no Rio Grande do Norte, apontando as ações e as reações que elas
provocaram e sofreram. Assim, darei destaque em como esses influxos foram visualizados
durante todo o meu contato com o campo, desde o ano de 2015 até 2019.
Outrossim, reconhecendo a necessidade de ir além dos números divulgados pelo
próprio Estado e das suas limitações de caráter qualitativo, irei apontar como os dados coletados
etnograficamente foram capazes de propiciar novos olhares e de dar voz a novas histórias por
trás dos números que, por vezes, as silenciam, sendo esse um dos marcos do (re)início do meu
campo, agora na antropologia social, que propiciou uma nova visão sobre os discursos
explícitos e inexplícitos sobre os indivíduos desviantes e aqueles que os julgam (BECKER,
2008).
28
Em seguida, no terceiro capítulo, frisarei as descrições etnográficas do meu campo,
assumindo que elas se originam de uma perspectiva parcial, que não impõe significados, mas
propõe novas interpretações para o alargamento da nossa compreensão e imaginação sobre
essas audiências ainda tão pouco debatidas e conhecidas no campo social.
Assim, exibirei os dados coletados a partir das entrevistas que realizei com juízes,
promotores, advogados, estagiários, policiais, familiares e pessoas em custódia, pontuando os
discursos sobre o crime de tráfico de drogas e os seus supostos agentes, as diferenças de falas
e de posturas antes, durante e depois do (des)ligar das câmeras que registram visualmente as
audiências, percorrendo o rito das audiências e os seus bastidores.
É nesse ínterim que a frase que intitula essa dissertação: “Pelo menos agora eu posso
falar, foi dita por um dos meus interlocutores ao ser questionado sobre o que ele achava da
existência das audiências de custódia, passa a ser usada como ponto de reflexão entre a
assimilação da importância da existência dos espaços pretensamente abertos à voz dentro do
poder judiciário, em cotejo com a manutenção da sua verticalização e de sensibilidades jurídicas
punitivistas e silenciadoras.
Assim, no quarto e último capítulo darei destaque às vozes, aos silêncios e aos
silenciamentos dentro dos campos de poder e de não-poder dos seus partícipes. Tangenciarei
os abismos comunicativos presenciados e quais os seus reflexos no processo de compreensão
das pessoas sob o que acabara de ocorrer naquele evento, pontuando também as divergências
existentes entre o oralizado e o transcrito nos documentos oficiais.
Portanto, a partir das falas dos meus interlocutores e dos fluxos e influxos políticos e
jurídicos que marcaram todo o percurso da minha pesquisa, irei propor uma reflexão sobre as
grades materiais e simbólicas que circundam esse campo de poder, seus interlocutores e,
eventualmente, a mim mesma.
Nesse intuito, passarei a problematizar a utilização do marcador da “garantia da ordem
pública” como chave-mestra dos decretos de prisão preventiva e a forma como o ato de “escutar
o outro” pode ser ressignificado e relativizado durante as audiências. Pretendo ainda identificar
os seus reflexos diante de uma estrutura vertical que separa, segrega e silencia e em como os
estudos e os debates antiproibicionistas podem contribuir nessas reflexões (e em tempos de
ascensão de discursos punitivistas e mitigação das ciências sociais e das humanidades).
No mais, com o pulsionar das veredas desse tema, não pretendo trazer respostas
simples ou definições estanques para questões complexas, tão pouco, esgotar toda a amplitude
da problemática perquirida, que, nem sempre, estará visível para as minhas lentes de
29
pesquisadora situada como pessoa branca, de classe média e de acesso privilegiado aos espaços
jurídicos.
Almejo, na realidade, conforme aprendi com Oliveira (2018), impulsionar uma
antropologia de conteúdo emancipatório, que proponha a crítica sobre as condições de
existência vigente e instigue novas questões e abrir outras trilhas de pesquisas que possam
contribuir com um olhar menos monocromático acerca da segurança pública, do sistema
carcerário e das decisões proferidas em sede de audiência de custódia, em especial, nas que
conglobam os diversos usos das substâncias tipificadas pelo Estado como “drogas ilícitas”, em
um processo por discricionariedades e subjetivismos nos discursos – ora ocultos e ora explícitos
– por trás da opção política pela sua criminalização.
30
CAPÍTULO I: SOBRE (RE)CONHECER O PASSADO, NOSSAS LENTES E
ESPELHOS.
Para compreender o “hoje” e poder projetar o futuro, é preciso conhecer e reconhecer
o nosso passado. É por essa razão que entendo ser capital refletir sobre o contexto histórico e
as inferências culturais, político e sociais na base formativa das instituições de poder, em
especial, do sistema de justiça criminal. Dessa forma, será possível uma maior apreensão da sua
hodierna estrutura e dos efeitos que ela pode vir a reproduzir em seus agentes, em um processo
cíclico de mútua influência nos modos de pensar e na tomadas de decisões, conforme refletiu
Mary Douglas (1998) em sua obra “Como as instituições pensam”.
No mesmo norte, Clifford Geertz (2007), em “O saber local”, destaca que há uma
forma específica de imaginar a realidade aos olhos do direito e que a representação normativa
emerge da forma como se apreende as coisas como elas “são” e de como elas “devem ser”
desenvolvendo um sentido de justiça que é local e contextual, se matizando não apenas em
graus de definição, mas também no poder que exercem frente a outras formas de pensar e sentir.
Não obstante, é preciso, ainda, reconhecer que ao tentarmos situar historicamente a
edificação de uma instituição e de sua forma específica de pensar e de enxergar a realidade,
podemos acabar nos alicerçando em abordagens que partem de uma perspectiva unilateral dos
detentores de poder. Isso ocorre porque a doutrina majoritária que respalda os estudos da
história do direito no Brasil possui uma dívida histórica no que tange à pesquisa entorno da
organização jurídica dos seus nativos, dos povos de origem africana trazidos impositivamente
e das suas comunidades quilombolas erguidas em resistência, conforme refletiu João Pacheco
de Oliveira (2010), ao propor um novo olhar sobre o nascedouro historiográfico brasileiro.
Outrossim, o já mitigado conhecimento sobre essas vivências e organizações parte, em
regra, de relatos dos homens brancos que, por vezes, foram os seus algozes, o que se reflete, no
encobrimento de um passado de resistência e de cultura não-caucasiana, produzindo perigosas
“histórias únicas”20 que também são instrumentos de poder, nos termos em que defende
Chimamanda Adichie (2009).
Talal Asad (2017, p. 12), nesse lume, também ensina que “qualquer objeto que seja
subordinado e manipulado é em parte produto de uma relação de poder, e ignorar esse fato é se
mostrar inapto à compreensão da natureza deste objeto”. (ASAD, 2017, p. 12).
20 Conforme leciona a escritora nigeriana Chimamanda Adichie, as histórias únicas são àquelas assumidas e
divulgadas como “definitivas” acerca de uma pessoa, uma comunidade ou uma nação, silenciando outras múltiplas
perspectivas.
31
Essa reflexão também pode se aplicar a edificação dos sistemas punitivos e das
pesquisas entorno deles, sendo necessário pensar em que medida (re)pousa, a legitimidade de
alguns dos seus institutos se eles partem de nascedouros democraticamente esvaziados e
permanecem silenciando as vozes dos seus destinatários.
Assim, é preciso problematizar que o estudo sobre a formação da organização
judiciária e do sistema normativo no Brasil tem, dentro da literatura jurídica, situado suas
origens a partir da colonização portuguesa, velando que, antecedente e concomitante a ela,
houve a constitucionalização consuetudinária dos povos que aqui habitavam muito antes da
chegada das frotas europeias e dos que foram trazidos forçadamente por elas. Isso decorre,
afinal, de um contato interétnico marcado por imposição, dominação e extermínio
(MUNANGA, 1999), que tenta negar, inclusive, a resistência e existência das práticas diversas
de interpretar e solucionar conflitos.
Reconhecer essa dívida histórica é um dos primeiros passos para assumir a posição
periférica impositivamente colocada para os povos silenciados, costumeiramente alvos das
políticas criminais, situados dentro dos contornos coloniais, clientelistas, latifundiários e
escravocratas que permearam a construção da judicatura e a reprodução das estruturas e
potentados vigentes.
Assim, abnegando das expectativas mais positivista apregoadas pelas análises
estritamente jurídicas dos fatos e das normas, esclareço que a perspectiva a ser adotada ao longo
dessa dissertação renega a existência de uma objetividade absoluta, pois ela exigiria um olhar
sob lentes completamente transparentes, o que não seria possível diante de toda uma construção
social e cultural dessa própria pesquisadora, que precisa ser também situada dentro dos espaços
em que foi edificado o seu conhecimento, revelando as trajetórias que moldam os filtros e
espelhos sob suas lentes no ato de enxergar e escutar o outro.
Logo, para pautar as dinâmicas que envolvem os processos históricos e as relações de
poder, exige-se também que se admita os limites das nossas próprias descrições, reconhecendo
a nós mesmos em face do nosso objeto de estudo. Nesse sentido, bem refletiu Wagner (1975)
ao abordar a tensão e o choque entre os pensamentos e expectativas do antropólogo e o respeito
aos seus interlocutores, que também possuem seus próprios anseios sobre como suas falas serão
apreendidas pelo pesquisador. Por essa razão é imprescindível a sinceridade epistemológica a
fim de não tomar o lugar de fala e nem sobrepor a sua voz sob a do outro, nos termos em que
bem argumenta Djamila Ribeiro (2017).
A relativização, a meta-reflexão e a localização do pesquisador ainda são posturas
receadas por grande parte daqueles que atuam na área jurídica.” Conforme destacaram Kant de
32
Lima e Bárbara Luppeti Baptista (2014), ao tratarem dos contratastes metodológicos e dos
obstáculos de diálogo entre a antropologia e o direito21, esse receio decorre de uma instrução
que esconde os atores jurídicos sob o manto da “objetividade” e das supostas “verdades
consagradas”.
É partindo desse norte que este capítulo dará início as discussões que serão abordadas
ao longo dessa dissertação afirmando a importância de compreender que há sempre algo para
além do horizonte que a nossa visão alcança e que as percepções que construímos e destruímos
partem de filtros permeados por relações de poder e por processos históricos e políticos, sejam
aqueles explicitados ou ocultados.
1.1 CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
BRASILEIRO.
Para contextualizar os resultados de uma pesquisa que trata sobre audiências de
custódia e, consequentemente, das instituições jurídico-penais brasileiras, é preciso
compreender os as aspectos culturais que moldaram o processo de criminalização de certas
condutas a partir de empreendedorismos morais consolidados através de uma construção
histórico-social. É partindo desse reconhecimento, que sinto a necessidade de introduzir, ainda
que brevemente, algumas considerações históricas sobre a edificação desses espaços,
reconhecendo as bases de suas forças motrizes e como elas se inserem nas dinâmicas dos seus
respectivos lastros culturais e hegemônicos.
Contudo, não vislumbro apontar “nascedouros” e, tão pouco, assumir o passado como
um eterno marcador do presente, afinal, como bem alertaram Amorim, Kant de Lima e Mendes
(2005), é preciso também ter em mente que até mesmo os traços do passado possuem seus
significados contextuais e temporais distintos quando analisados no hoje.
Assim, o acervo teórico que utilizarei para embasar as considerações aqui traçadas são
de pesquisas de historiadores, filósofos, sociólogos e antropólogos que refletem sobre os
alicerces das instituições em uma perspectiva crítica e não estática. Reflexões estas, por vezes
ignoradas ou desvalorizadas pelos estudantes de direito nas chamadas disciplinas propedêuticas
21 É por essa razão que, ao propor uma abordagem interdisciplinar, precisarei, eventualmente, esclarecer conceitos
que poderão parecer triviais para quem já detém o domínio em alguma dessas áreas, sendo também relevante
contextualizar politicamente e historicamente essas esferas para possibilitar a compreensão por parte de leitores
de diferentes campos.
33
ou de base e, eventualmente, esquecidas durante a atuação profissional através de uma
naturalização das práticas e da postura acrítica quanto as estruturas e a origem das instituições.
Assim, se torna caro rememorar que, no Brasil, durante o período colonial, a
racionalidade punitiva começou ser regida pelo ideário absolutista apregoado nas ordenações22,
que frisavam que infringir as leis seria como atingir diretamente o corpo do rei, que era
considerado a própria fonte da justiça. Conforme relembra o filósofo e psicanalista Manoel
Barros da Motta (2011) em “Crítica da razão punitiva: Nascimento da Prisão no Brasil”, essa
personificação justificava os fortes elementos de crueldade que marcavam as penas da época,
diretamente relacionadas a castigos sob o corpo.
Importante recordar, ainda, que em virtude da extensa dimensão territorial brasileira,
adotou-se um sistema de divisão e distribuição de faixas de terras, conhecidas como capitanias
hereditárias, sendo os primeiros traços de uma política agrária latifundiária, que predomina até
os tempos hodiernos. Cada “Carta” pela qual se oficializava a referida doação equiparava-se a
um instrumento normativo, pois continha verdadeiras leis emanadas pela autoridade máxima
real. Nas lições de Fábio Konder Comparato (2015), a consequência foi que a administração da
justiça coube aos, por ele denominados, “poderosos do sertão”, em que se incluíam os
donatários, coronéis, capitães-mores ou capitães generais, protagonizando um forte vínculo de
parentesco e compadrio que dificultavam a aplicação da lei de forma isonômica. Sob esse lume,
Comparato criticou que “unia-se, assim, a força militar com o poderio econômico, o que fazia
da administração da justiça uma verdadeira caricatura” (COMPARATO, 2015, p. 08).
Mesmo com a chegada dos primeiros juízes togados, os chamados “juízes de fora”,
que acabavam se tornando também proprietários de terras e coronéis, não foi possível frear a
parcialidade e a defesa de interesses particulares, sendo frequente que os Governadores
procurassem se conciliar às boas graças dos desembargadores, acrescentando aos ordenados
destes, gratificações extraordinárias denominadas propinas, reforçando a já pungente “troca de
favores de uma política tipicamente clientelista” (COMPARATO, 2015, p. 9). Nesse sentido o
sociólogo e historiador Raimundo Faoro (2001) também acrescenta que o coronelismo faz com
que o patrimonialismo23 pulverize-se de modo a converter o agente público num “cliente”,
dentro de uma extensa rede “clientelista” (FAORO, 2001, p 757).
22 Ordenações Manuelinas e Filipinas que tiveram como base o ideário absolutista então vigente, precedente desde
as ordenações Afonsinas, que também serviram de fontes do direito. 23 Conforme define Faoro (2001), o Patrimonialismo é uma forma de dominação em que quem cria as leis e
organiza o poder faz de forma análoga ao poder doméstico e a proteção individualista dos seus próprios bens.
34
Contudo, conforme bem problematizou o sociólogo Jessé Souza (2015), ao falarmos
de clientelismo e patrimonialismo na história do Brasil, não podemos recair em teses que os
naturalizem como uma “propensão colonial a corrupção”, sendo que essas traços não poderiam
nem ser tratados como uma característica exclusiva do Brasil e nem poderiam também ser
generalizados a todo o seu povo, posto que reproduzidos, principalmente, pelas elites e
permeados por “constrangimentos institucionais” (SOUZA, 2015, p 52-53).
Assim, a reflexão sobre a edificação das instituições de poder perpassa pelo
reconhecimento de quem, efetivamente, detinha a sua titularidade e ditava as “regras do jogo”
e definia “quem nele se incluía ou não” (AGAMBEM, 2010). Ocorre que as disputas por esse
espaço de controle, no Brasil, foram pautadas pela harmonização de interesses hegemônicos,
não sendo capazes de provocar grandes alterações no “núcleo rígido do direito e de suas
instituições”, nos termos em que leciona o historiador Harold Berman (2006).
O autor, ao explanar sobre edificação da tradição jurídica ocidental, argumenta que o
Direito foi ali concebido para ser “um todo coerente, um sistema integrado, um ‘corpo’,
idealizado para desenvolver-se ao longo do tempo através das gerações e dos séculos”
(BERMAN, 2006, p. 20), estando a ele ínsito mecanismos para a sua mudança orgânica, mas
já inseridos em um padrão de mudanças que preserva o seu núcleo rígido e das suas instituições.
Assim, a única forma de promover transformações significativas e estruturais seria mediante
“revoluções que reconstruíssem os valores de toda uma época”. Essas revoluções precisariam
também inferir na forma como os atores do direito o interpretam, pois para que ele possa
evoluir, ele precisa “ser visto evoluindo” (BERMAN, 2006, p. 28).
Centralizando à realidade brasileira, impelida por esse modelo ocidental desde a
colonização, o que vemos foi um processo de independência brando, pautado na conciliação
entre a família real e a elite brasileira para evitar maiores conflitos com os movimentos de
insurgência em ascensão. Assim, as mudanças que vivenciamos na nossa tradição jurídica, à
essa época, não foram frutos de nossas próprias revoluções, mas produtos importados das
revoluções liberais ocorridas na Europa e, no agora independente, Estados Unidos. Não
obstante, elas repercutiram na assimilação de importantes reflexões teóricas no que tange a
revisão das formas cruéis de aplicação da pena, ao devido processo legal e a análise da formação
da culpa – ainda que permeada por vírgulas seletivas.
Como exemplo, o Decreto de 23 de maio de 1821, trouxe, pela primeira vez, uma
oposição à prisão arbitrária, latente nas Ordenações Filipinas, que consideravam a mera suspeita
como justificativa. Assim, dentre os principais pontos que o decreto abraçou, destacam-se:
“nenhuma pessoa livre no Brasil pode ser presa sem ordem por escrito do juiz, ou magistrado
35
criminal do território, isto somente no caso de flagrante-delito”; “o processo deve começar
dentro de 48 horas peremptórias, improrrogáveis e contadas do momento da prisão” e “a prisão
deve só servir para guardar as pessoas e nunca para adoecer e flagelar”. Ainda assim, a norma
era contrastada com uma realidade de violenta reação aos movimentos de insurgência e com o
tratamento desumanizante dado aos povos escravizados e aos indígenas e seus descendentes.
Outrossim, cumpre destacar que o nascedouro da história constitucional do país foi
oriundo de uma “outorga” e não de uma “proclamação”. Isso significa que o primeiro texto
constitucional brasileiro partiu de um ato de vontade exclusivo de um governante, não havendo
efetiva participação do povo na criação dos seus direitos.
É justamente desse instrumento, chamado de Carta Constitucional de 1824, que, pela
primeira vez, foi criado o “Poder Judicial Brasileiro”, supostamente como um “poder
independente”24, mas, contraditoriamente, balizado pelo Poder Moderador e sob a forte
influência de forças políticas que flutuavam entre o liberalismo e o conservadorismo, o que
influenciava, diretamente, na forma de interpretação e aplicação das leis.
Nesse âmago, a independência dos juízes era uma disposição meramente formal, sendo
necessário pontuar que até mesmo a forma de investidura era mediante indicação e nomeação
do Imperador25. Outrossim, apenas as famílias de grande poderio financeiro possuíam meios de
enviar seus filhos à Europa para lá cursarem as Faculdades de Direito, o que elitizava
sobremaneira a magistratura em um país onde a esmagadora maioria da população sequer era
alfabetizada à época.
Apenas em 1827 foram criados os dois primeiros cursos de Ciências Jurídicas e Sociais
no Brasil, um em São Paulo e o outro em Olinda – posteriormente relocado para Recife, que
apesar de representarem um marco no desenvolvimento do direito nacional, permaneciam com
acessos bastante restritos e elitizados.
Assim, a história do judiciário brasileiro é pautada na convivência entre práticas e
ideologias antagônicas, resultado na chamada estratégia liberal-conservadora “que, de um lado,
permitia o favor do clientelismo e a cooptação; de outro introduzia uma cultura jurídico
institucional marcadamente formalista, retórica e ornamental” (WOLKMER, 2010, p. 100).
Assim, ao passo que adotava-se uma ideologia judiciária de vertente essencialmente positivista,
com ampla e moderna codificação, objetivando uma teórica igualdade na aplicação da lei,
24 Conforme previa o Artigo 151 da Constituição de 1824: “O Poder Judicial independente, e será composto de
Juizes, e Jurados, os quaes terão logar assim no Civel, como no Crime nos casos, e pelo modo, que os Codigos
determinarem.” [sic] (BRASIL, 1824) 25 Conforme dispunha o artigo 102, inciso III, da Carta Constitucional de 1824.
36
evidenciava-se o contraste da estratificação social, da exclusão de grupos étnicos e do escasso
acesso à defesa técnica.
Como exemplo histórico bastante sintomático, vê-se que enquanto a Constituição de
1824 previa a “inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos, protegendo a
segurança individual, a propriedade privada, a inviolabilidade de domicílio e a liberdade de
pensamento e de imprensa”26, antagonicamente, permaneciam o sistema escravocrata, a pena
de morte e a censura, sendo que “o formalismo jurídico ocultava uma postura autoritária e
etnocêntrica dos legisladores”. (WOLKMER, 2010, p. 100)
O Código Criminal de 1830 foi outro claro reflexo dessas contradições, abolindo
algumas penas cruéis e mantendo outras de caráter bastante seletivo. Em teoria, buscava-se
superar a tortura judiciária como mecanismo legal de “extração da verdade”27 e havia, pela
primeira vez, a substituição das penas cruéis pela pena de prisão, o que foi tido como um grande
avanço humanista na racionalidade punitiva. Ocorre que, ainda assim, o Código mantinha a
pena de morte e de degredo, principalmente para as pessoas pobres, negras e indígenas,
mantendo a possibilidade de penas corporais para escravos e ex-escravos.
Assim, os mesmos grupos excluídos da proteção constitucional e dos direitos civis
eram abraçados quanto à previsão de tipos penais a eles imputados. E, no caso dos povos
indígenas, tinham suas particularidades culturais omitidos ou totalmente descaracterizadas no
momento de aplicação da pena (SOUZA FILHO,1993, p. 29).
Mesmo após ser proclamada a República, em 15 de novembro de 1889, permaneceu-
se distante de uma quebra revolucionária de paradigmas no que concerne à horizontalização do
poder, igualdade e democracia. O arcabouço ideológico da época, que inspirou o Texto
Constitucional de 1891, foi pautado nos princípios do liberalismo individualista e na retórica
do legalismo federalista, que colocava o povo como “detentor único de poder”, mas que, na
prática, apenas assentava os segmentos oligárquicos regionais.
Dentro desse contexto, o Código Penal de 1890, inserido na ascensão dos estudos
criminológicos no país, trouxe a extinção das penas de galés, de banimento, de morte e
perpétuas, mas ainda assim era considerado rígido e patrimonialista, nos conformes do
capitalismo emergente (FAORO, 2001). É em razão dessas incongruências que o sociólogo
Marcos César Alvarez pontuou que “as elites abraçaram com entusiasmo esses novos
26 Artigo 179 e ss. da Constituição de 1824. 27 Na prática, sabemos que a tortura ainda persiste até os dias de hoje. As audiências de custódia, nesse contexto,
nascem, justamente, como um espaço de verificação da legalidade da prisão e coibição desses atos arbitrários e
violadores de direitos humanos.
37
conhecimentos pretensamente científicos de controle social, sem manifestar o mesmo
entusiasmo em relação aos valores democráticos ou da cidadania” (2016, p. 147).
Assim, assentado na “república que não foi” e na edificação de “cidades sem cidadãos”
(CARVALHO, 2005, p. 162), o real se escondia sob o formal. E nesse norte seguiu durante as
construções normativas subsequentes. Percebe-se, então, que a construção da seletividade penal
esteve diretamente relacionada à seletividade nos espaços de poder e à mitigação da
participação cidadã. O autoritarismo, em todas as suas vertentes, provocou – e ainda provoca –
a exclusão de classes e de grupos sociais que acabam se tornando, por consequência, o principal
alvo das políticas criminais.
Assim foi no autoritarismo corporativista do Estado Novo, que conferia excessivos
poderes ao executivo, permitindo legislar por decretos-lei, minorar as funções do Congresso
Nacional e intervir nas organizações representativas, sendo marcado por forte censura, prisões
políticas e centralidade que desembocava em conflitos entre a atividade policial e a legalidade.
Tão quanto foi na ditadura militar, que mitigou a independência do poder judiciário,
suspendeu garantias constitucionais caríssimas a salvaguarda do indivíduo contra prisões
ilegais, como o Habeas Corpus e a necessidade de justificação e resultou em um saldo oficial
de 434 mortes e de imensuráveis violações a direitos humanos, conforme mensurou a Comissão
Nacional da Verdade (BRASIL, 2014).
Destarte, vê-se que a edificação do sistema punitivo no Brasil foi transversalizada com
uma construção legislativa esvaziada democraticamente, por um judiciário que ao longo da
história reproduzia as estruturas verticais e potentados da sua época e por uma política criminal
seletiva e repressiva.
Nesse lumiar, é importante atentar que a base da legislação criminal que se adota
hodiernamente, é, inegavelmente, fundada em uma racionalidade ditatorial, sendo tanto o
Código Penal de 1940 quanto o Código de Processo Penal de 1941 instrumentos outorgados,
portanto autoritários. Conforme lembra Santos Júnior (2006, p. 637), ambas as codificações
refletiam a visão política que se tinha: “autoritária, moralista, individualista e patrimonialista”.
Apesar da evolução, em uma perspectiva humanitária, dos suplícios corporais28 para
penas menos invasivas, com a mudança do cárcere enquanto apenas um momento processual
antecedente a pena sob o corpo, para tornar-se a pena em si, a construção dessa mudança ainda
foi alicerçada por uma racionalidade punitiva que velava a criminalização dos empobrecidos e
28 É necessário ponderar que a abolição dos “suplícios corporais” foi meramente formal. Na prática, permanecem
até os dias os dias de hoje relatos de tortura e de linchamentos, que podem, inclusive, ser melhor observados
durante as audiências de custódia através do contato pessoal entre o juiz e o custodiado logo após a prisão.
38
a necessidade de distanciamento das margens dos centros de poder, através das máscaras do
“clamor social” e da necessidade de garantir “a paz” e a “ordem pública”29.
A prisão preventiva, assim, foi constituída sob essas mesmas bases, diante da
contradição da ascensão dos ideais de “segurança jurídica” e da “burocracia judiciária”, com a
necessidade de reafirmação de poder e de controle sob o corpo social que passou a reverberar
que a “formalidade em excesso” seria um obstáculo à segurança pública30.
Assim, é curioso observar, como ensina Kant de Lima (2008) ao estudar a construção
da verdade jurídica no sistema processual penal brasileiro, que a própria exposição de motivos
do atual Código de Processo Penal de 1941, ao tratar sobre a prisão em flagrante e sobre a prisão
preventiva, admitia que “o interesse da administração da justiça não pode continuar a ser
sacrificado por obsoletos escrúpulos formalísticos” (BRASIL, 1941).
Dessa forma, o próprio Código conferia legitimidade ao juiz para que ele buscasse
tudo o que pensasse interessar ao processo e assim formar o seu “livre convencimento”. Todos
os elementos que se encontravam registrados, incluindo os inquéritos policiais, poderiam
ganhar o mesmo “estatuto de verdade” para a sentença final e o juiz poderia, inclusive, discordar
de fatos considerados incontroversos pela acusação e pela defesa (KANT DE LIMA, 2008).
Esse Código, que é o que adotamos até os dias de hoje, nasce como fruto do Estado
Novo de Getúlio Vargas. Logo, por trás da ampliação da admissibilidade da prisão preventiva
e da instituição da chamada “prisão preventiva obrigatória”, estava um período ditatorial, que
precisava assegurar o seu poder e repreender qualquer sinal de resistência.
Dentre outras características da natureza originária do atual Código de Processo Penal,
destaca-se que a liberdade provisória somente era aplicada para crimes afiançáveis, ou quando
presente presunção de inocência, consubstanciada na possível e antevista existência de causas
de justificação, como o estado de necessidade ou a legítima defesa na conduta do agente,
conforme antiga redação do art. 310, caput, CPP; outrossim, a busca pela chamada “verdade
real”31 legitimava a iniciativa probatória do juiz, descaracterizando o sistema acusatório,
possibilitando diversas práticas autoritárias e abusivas por parte dos poderes públicos32.
29 A ideia de garantia da “ordem” se origina do ideário positivista então em ascensão, propagado nas obras
de Auguste Comte e John Stuart Mill no século XIX. 30 Conforme bem lembrou Faoro (2001), as bases contrastivas entre a burocracia e a troca de favores pessoais
foram heranças portuguesas que ajudaram a construir um estamento burocrático da nobreza, da toga e do título. 31 Essa questão será retomada e aprofundada no Capítulo IV desta dissertação. 32 Consoante leciona Regina Lúcia Fonseca (2008), a “verdade real” corresponderia a uma suposta “verdade dos
fatos”, sendo uma categoria que se opõe a chamada “verdade formal”, que é aquela construída e observável
conforme os autos processuais. Contudo, como problematiza a autora, apesar dessa noção de descoberta da verdade
ser apontada por muitos como caminho privilegiado para a realização da justiça, ela acaba, na maioria das vezes,
sendo usada como forma de legitimar práticas inquisitoriais.
39
Assim, os juízes ao ultrapassarem os pedidos e o conteúdo probatório efetivamente
trazido pela acusação, acabam por macular o contraditório e ampla defesa e colocam na posição
de “intérpretes da verdade”, sendo os únicos capazes de enxergá-la e de problematizá-la para
além do processo (KANT DE LIMA, 2010).
Nesse sentido, a ênfase inquisitorial problematizada por Kant de Lima em sua obra
Cultura Jurídica e Práticas Policiais (1989), como aquela apoiada na repressão e na disciplina,
em tese, difere do sistema processual acusatorial, baseada no contraditório. Contudo, essa
tradição inquisitiva acaba por provocar ambiguidades no nosso sistema processual, que assume
um caráter misto ao ainda permitir que na fase do inquérito, também conhecida como “fase
policial”, prevaleçam as práticas verticais. O antropólogo problematiza, ainda, que, pela
tradição, essas práticas continuam se reproduzindo, inclusive, na fase processual.
Assim, o caráter inquisitorial do Código de Processo Penal – até hoje vigente – era
assumido e latente, sendo o interrogatório do réu usado como meio de prova, e não de defesa,
podendo seu silêncio, ou seu não comparecimento em juízo ser valorado negativamente33.
Conforme será abordado ao longo desse trabalho, essa estrutura produzirá reflexos na forma de
exteriorização e de internalização das prisões preventivas, decretadas em audiência de custódia.
Em contraponto, o “modelo acusatório”, adotado a partir da Constituição de 1988,
pretensamente exige que haja uma separação entre as funções de quem acusa, de quem defende
e de quem julga. Logo, a partir desse princípio, o juiz não deveria intervir nas investigações, na
produção de provas ou ampliar os pedidos feitos pelo Ministério Público.
Não obstante, a prática tem demonstrado que ainda há fortes resquícios inquisitoriais
nas posturas tomadas por juízes, sejam àquelas que ocorrem nos bastidores 34, sejam nas
“práticas institucionalizadas”, como bem aprofunda Kant de Lima (1989).
Em seus estudos sobre as instituições judiciárias e policiais, o autor pontua que a
investigação policial, por ser uma fase administrativa e pré-processual, adota explicitamente a
lógica inquisitorial em seus “processos de produção e reprodução de certezas e verdades”
(KANT DE LIMA, 1989, p. 66), que ocorrem sem a produção do contraditório, o que não exime
que ocorram barganhas, negociações – oficiosas e/ou ilegais – durante a investigação ou na
33 Conforme a antiga redação do art. 186 do Código de Processo Penal, e ainda presente no art. 198, mas que é tido
como não recepcionado pela Constituição Federal de 1988, ou seja, como inconstitucional. 34 No dia 09 de junho de 2019 o site The Intercept Brazil divulgou conversas suspostamente estabelecidas entre
juízes e procuradores da Operação Lava-Jato em grupos do aplicativo Telegram. Apesar do conteúdo e da
veracidade das mensagens ainda se encontrar em fase de investigação policial, é possível utilizar o seu pretenso
teor como acesso sociológico de reflexão em relação aos abismos existentes entre a teoria, que clama a separação
das funções de quem julga e de quem acusa, e a prática, que demonstra a existência de um contato pessoal e
contínuo que emite julgamentos, conselhos e opiniões que não estarão registradas nos autos processuais, mas que
influenciam, subjetivamente, na sua construção.
40
escrita dos autos policiais, na chamada “armação do processo”, consoante observou o
antropólogo em Polícia, Justiça e Sociedade no Brasil (KANT DE LIMA, 1999, p. 30).
Essa habituação era comum na época da Ditadura Civil-Militar que ocorreu no período
de 1964 e 1985. A metodologia de interrogatório, as prisões arbitrárias, os sequestros, os
assassinatos e os desaparecimentos, coexistiram com a formalidade dos tribunais, sob a mesma
lógica de repressão agregada à legislação casuística dos decretos-lei e dos atos institucionais.
Durante esse período, os magistrados que optaram por manter a posição firme em
defesa dos direitos civis, não tardaram em serem tidos como ameaça ao regime35. Com a
mitigação das garantias institucionais, até o Supremo Tribunal Federal foi atingido, vivenciando
aposentadorias compulsórias, o aumento no número de ministros de 11 para 16, com a intenção
de reverter o quadro desfavorável de uma maioria que se posicionava contra os interesses do
sistema36, a partir da nomeação de novos Ministros considerados complacentes ao regime,
sendo, ao todo, 32 nomeações, que perduram até o ano de 2003, quando se aposentou o último
Ministro nomeado durante a ditadura (FURMANN, 2017).
Outrossim, importa rememorar que a Polícia Militar também foi uma das instituições
que mais sofreu impactos durante esse período, passando a ser estruturada conforme
classificação hierárquica, sendo nela integrada a Inspetoria Geral das Polícias Militares
(IGPM), subordinada ao Exército e passando as Polícias Militares de cada estado a serem
chefiadas por Oficiais (BRASIL, 1969). Mesmo com o fim do período ditatorial, a estrutura
verticalizada e hierarquizada (KANT DE LIMA, 1995) permaneceu, levando para as ruas a
mesma ideologia de militarização e de guerra das forças armadas.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, entram em voga os debates em torno
da instrumentalidade do processo penal a serviço da realização constitucional e do projeto
democrático. Não obstante, conforme leciona Lopes Júnior (2017), há de se vigiar para não
confundir a finalidade dessa instrumentalidade, que deve estar correlata à salvaguarda da
máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais e não em uma perspectiva “eficientista”,
que o coloque como instrumento político de segurança pública ou de defesa social:
Devemos ter cuidado na definição do alcance de suas metas, pois o processo
penal não pode ser transformado em instrumento de “segurança
pública”. Nesse contexto, por exemplo, insere-se a crítica ao uso abusivo das
medidas cautelares pessoais, especialmente a prisão preventiva para
35 Não obstante a perseguição ter sido menos violenta do que a das demais vítimas imediatas da ditatura,
considerando a posição social que os membros do judiciário ocupavam. 36 Conforme aduz Swensson Júnior (2006, p. 239), para reverter o quadro desfavorável, o número de Ministros do
STF foram aumentados de 11 para 16, nomeados por Castello Branco: Adalício Coelho Nogueira, José Eduardo
Prado Kelly, Oswaldo Trigueiro de Albuquerque Mello, Aliomar de Andrade Baleeiro e Carlos Medeiros Silva.
41
“garantia da ordem pública”. Trata-se de buscar um fim alheio ao processo
e, portanto, estranho à natureza cautelar da medida (LOPES JÚNIOR, 2017,
p. 70-71). (Grifos acrescidos).
Nesse pórtico, apesar da nova perspectiva proposta pela Carta de 1988, que albergou
a garantia de valiosos direitos fundamentais, a defesa do sistema acusatório e a
instrumentalidade constitucional do processo, vê-se que a sua assimilação pelos agentes de
poder, na prática, ainda resta obstaculizada em razão das fortes raízes autoritárias,
conservadoras e inquisitoriais das instituições que compõem o acervo constitucional, mas que
ainda não o apreenderam enquanto valor.
Assim, ainda é possível observar os corolários dos fenômenos inquisitoriais em tempos
de democracia maquiada, eivada de efetivos instrumentos de participação popular e de
concretização de direitos sociais, limitando o ordenamento a ideais e princípios meramente
programáticos, que só enxergam suas margens quando elas passam a representar um risco para
a manutenção do controle.
É evidenciando esse interregno histórico da construção do sistema de justiça criminal,
que pretendo problematizar os dados colhidos nessa pesquisa, expondo também os seus influxos
na forma de produção de conhecimento científico e na apreensão seletiva das discussões
antropológicas pelo direito e pelas instituições de segurança pública, conforme será abordado
no tópico seguinte.
1.2 AS RELAÇÕES ENTRE CIÊNCIA, HEGEMONIA E POLÍTICAS DE
CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA
Compreender a construção de relações em um campo institucional edificado sob bases
verticais, pressupõe a confrontação das distintas lógicas culturais e políticas que emergem em
seus discursos. Nesse sentido, consoante ensina a teoria antropológica, é preciso também tomar
cuidado para não atribuir características universais a contingentes que foram historicamente
construídos e que são permeados por vivências particulares, muitas vezes omitidas pela história
hegemônica. Seguindo esse mesmo norte, conforme preconizou Bartolomé (2006), os próprios
conceitos de diferença, de unidade, de cidadania passam a ser situados conforme a lógica
reproduzida no campo da política dominante.
Logo, é a partir do reconhecimento do interregno histórico-institucional tratado no
tópico anterior que também importa expor como os influxos científicos etnocêntricos foram
agregados aos estudos sobre o “desvio”, sobre a “ordem” e às políticas deles decorrentes. Tão
42
quanto, importa pensar como essas categorias foram utilizadas como fonte de conhecimento
articulado aos objetivos da racionalidade governamental e de suas lutas simbólicas em torno da
estipulação do que é crime, quem é o criminoso e como deve ser punido, vinculando aos
processos de construção também de quem é cidadão e de quem pode ocupar os espaços de
criação e aplicação das leis.
É preciso situar, então, que como as demais ciências, a Antropologia também foi
edificada sob uma perspectiva central e hegemônica, que, conforme pontuou Mariza Peirano,
por muito tempo, foi uma área marcada pelo exotismo do objeto de estudo e pela distância,
concebida como cultural e geográfica, que separava o grupo pesquisado do pesquisador que
deveria “desbravar” a cultura desconhecida, ora taxando o diferente de “selvagem, bárbaro e
primitivo” por estar distanciado do ideário de civilidade ocidental e ora romantizando-o e
tratando-o como puro e simples (PEIRANO, 2006, p. 71).
Reconhece-se, assim, que como os demais campos do conhecimento, a Antropologia
também foi edificada sob uma perspectiva central e hegemônica, mas a sua construção histórica,
principalmente com o desenvolvimento das reflexões da chamadas “antropologias do sul”
(KROTZ, 1997), se propôs a desconstruir essa episteme imperialista e colonial, (re)conhecendo
os erros do passado, para que fosse possível visualizá-los no presente e não repeti-los.
Michael Herzfeld, nesse sentido, pontua que “a antropologia aprendeu muito e pode,
portanto, ensinar muito” (2014, p. 18), devendo atentar para a própria ciência como objeto
etnográfico, sendo essa uma questão séria por possuir razões e conexões fundamentalmente
políticas. E é por essa razão que “a racionalidade ocidental na forma de compor e classificar a
ciência, não deveria nos passar despercebida” (HERZFELD, 2014, p. 19).
É assumindo essa necessidade de questionar os preceitos teóricos que edificam as
decisões tomadas pelas instituições, que também precisamos problematizar a apreensão seletiva
da antropologia na construção das políticas criminais a partir do final do século XIX. Propondo
uma (res)significação da sua aplicação a partir de um novo elo entre os seus referenciais teóricos
e metodológicos e a forma de se enxergar, ouvir e pensar as instituições e seus destinatários.
Assim, volvendo ao transcurso histórico abordado no tópico anterior, com o advento
dos ideais republicanos, não cabia mais a mera justificação divina e o poder real para legitimar
o governante a penalizar aqueles que atentassem contra a ordem emanada do seu poder. A
racionalidade punitiva precisou se adequar as mudanças da “modernidade”, devendo agregar
“cientificidade” as suas escolhas como forma de legitimação. Assim, a utilização das ciências
naturais, humanas e sociais foram reproduzidas como uma sanção douta também para discursos
43
de poder, desconsiderando, por vezes, aspectos da diversidade cultural e social que não fossem
pertinentes ao projeto político em ascensão (MUNANGA, 1999).
Assim, a diversidade étnica e cultural passou por uma processo de homogeneização
como forma de se adequar aos padrões de “unidade” que a “República” buscava construir.
Consoante colocou o antropólogo Sérgio Costa (2001, p. 144), uma das principais preocupações
inseridas no debate político nas primeiras décadas do século XX era “como construir uma nação
unitária e progressista partindo-se de grupos populacionais tão heterogêneos quanto ex-
escravos e seus descendentes, os diversos povos indígenas, imigrantes de diferentes origens e
‘mestiços’ de todos os tons”.
Cumpre destacar, nesse sentido, que a construção das nações contemporâneas não
refletia mais uma composição de coletivos orgânicos de indivíduos associados voluntariamente
por vínculos essenciais comuns, mas sim, “uma comunidade imaginada, construída de forma
mais ou menos contingente, tanto através da ação política e bélica, quanto por meio da narrativa
capaz de cunhar, no plano discursivo, a identidade comum” (COSTA, p. 143, 2001).
Essas “comunidades imaginadas” são problematizadas e teorizadas por Benedict
Anderson que frisou a contradição do reconhecimento da “camaradagem horizontal” criada
virtualmente ainda que, no plano prático, houvesse “desigualdade e exploração efetivas” dentro
da nação (ANDERSON, 2008, p. 34).
É diante dessa desigualdade que a dominação também precisa ser percebida como
característica inerente ao próprio conceito de Estado, passar podermos compreender os
corolários que o monopólio da coerção física ou a “violência legítima” pode vir a exercer, nos
termos em que classificou Weber (2012). Assim, foi diante dessa construção de legitimação de
uma “nação republicana” e do seu “poder de coerção” fundados sob uma suposta “racionalidade
positivista” que emergiram os ideais de “ordem e progresso” estampados na bandeira do Brasil.
É nesse contexto, que, em 1889, o então Ministro da Justiça, Francisco de Assis Rosa
e Silva, afirmou a importância de primar por “reflexões sociológicas e criminológicas de cunho
humanitário e social”, mas logo pontuou que isso serviria para “a correção e regeneração do
delinquente” (SILVA, 1889), escancarando a faceta estigmatizante, naturalizadora e
determinista que se seguiria.
Assim, é em paralelo a essa necessidade de construção positivista dessa “ordem e
progresso” que a efervescência social e política do final do século XIX e início do século XX,
período de aclamação cientificista, fez com que as ideias da antropologia criminal da escola
italiana de criminologia adentrassem nos debates jurídicos do país, sendo assimiladas as ideias
de Lombroso, Garofalo e Ferri no âmbito do Direito, Medicina, Antropologia e Psiquiatria.
44
Esses autores, consoante ensina Zaffaroni (2013), foram os responsáveis pela preconização da
ideia de um “homem delinquente”, que seria diferenciado dos demais, a ele estando impostos
estigmas comportamentais, físicos e psicológicos. Assim, essa “entidade” passa ser tratada
como um agente infeccioso do corpo social, ao passo que os juízes se transforam em “leucócitos
sociais” ao identifica-los e afastá-los.
Inserido nesse âmago, o médico, antropólogo e etnólogo Nina Rodrigues se torna um
dos principais expoentes das ideias da antropologia criminal lombrosiana, sendo seguido por
Afrânio Peixoto, Arthur Ramos e Leonídio Ribeiro. Conforme criticou Giralda Seyferth, essa
corrente refletia como os estereótipos, ainda que classificados como técnicas e métodos
científicos, eram capazes de compor um discurso a fim de legitimar posições sociais e políticas
(SEYFERTH, 1993, p. 187).
Dentro desse âmago é que as doutrinas deterministas passaram a ser aceitas em um
contexto social em que era preciso justificar a imposição da força sob condutas e
comportamentos que não estavam totalmente sob o controle do Estado.
Giralda Seyferth (1993), em seus estudos sobre raça e o poder discricionário dos
estereótipos, abordou ainda que no Brasil pós-escravidão sempre houve uma preocupação em
reforçar a inexistência de preconceito racial, mas paradoxalmente, os pressupostos de
desigualdade/inferioridade utilizados pelo discurso científico da época revelavam a
discriminação. Ao estudar a obra de Nina Rodrigues, a antropóloga destacou:
Discutindo a responsabilidade penal ou descrevendo as culturas negras da
Bahia, Nina Rodrigues fala na "impulsividade primitiva" das raças que
julga inferiores em geral e impossíveis de civilizar. Rotula os índios
simplesmente como selvagens, não afeitos ao trabalho e próximos à extinção,
e se detém mais no arrolamento do caráter e da "evolução mental" dos negros
e mestiços, fazendo longas citações de autores brasileiros, como Silvio
Romero, e europeus, como Spencer e Tarde. Para ele, os negros têm reduzido
desenvolvimento mental, espírito de sujeição, incapacidade de progredir, são
brutais, atrasados, desequilibrados fora do seu meio, têm impulso sexual
acentuado e violento, nenhuma aptidão para a civilização, mas são bons
trabalhadores braçais etc. Os mestiços, de um modo geral, considera os
inteligentes, mas associa essa inteligência à inércia, indolência, apatia,
desânimo, fraqueza, subserviência, degradação física e moral, imprevidência,
impulsividade e outros tantos atributos um tanto contraditórios e associados
ao "vício degenerativo do cruzamento entre raças desiguais" — a evolução
mental e a ordem moral dos "inferiores" vistas como incompatíveis com a raça
"superior" branca. (SEYFERTH, 1993, p. 187). (Grifos acrescidos)
Esse pensamento revela como a produção científica fazia uso sistemático de
estereótipos e da associação entre “raça” e “ocupação”. Esse discurso, como defende Seyferth,
servia para “dividir e localizar os indivíduos na sociedade — já que o princípio que rege as
45
classificações sociais é o da desigualdade biológica e cultural entre os diferentes grupos
humanos refletida, em última instância, na estratificação social” (SEYFERTH, 1993, p. 190).
É dentro desse contexto, inclusive, que se edificou o chamado movimento higienista,
que unia médicos, psicólogos, pedagogos, arquitetos, urbanistas e juristas na criação da “Liga
Brasileira de Higiene Mental”, em 1920, tendo como base teorias racistas e eugênicas, sob o
manto da cientificidade.
Agregado a isso, passa-se a se difundir que certos locais públicos eram extremamente
nocivos, naturalizando os chamados “territórios perigosos” através do incentivo as políticas de
reordenação urbana, que passaram a visar “espaços urbanos que teriam o poder de disciplinar
política, higiênica e moralmente a pobreza que, por sua natureza, é considerada como um
iminente perigo social”, consoante defendeu a psicóloga e ativista Cecília Coimbra em seus
estudos sobre a criminalização da pobreza (2016, p. 06). Não coincidentemente, eram nos
espaços denominados periferias que habitavam grande parte da população negra, que após a
abolição da escravidão não foi alvo de políticas públicas reparatórias e de distribuição de terras,
mas acabou por se tornar o principal alvo das políticas higienistas.
O fenômeno da urbanização, que, conforme bem pontuado por Amália Lemos (1994)
provocou mudanças profundas na estrutura da cidade, na economia, no meio ambiente e na
segurança pública, criando novas relações de produção, distribuição e consumo e acentuando
conflitos de classe e suas contradições, com grandes efeitos a nível da formação territorial
(LEMOS, 1994, p. 80), passa a dar novas vestes aos debates sobre as margens, que não se
limitam apenas a sua dimensão territorial/física, mas, essencialmente, sua dimensão
substancial, consoante asseveram Veena Das e Deborah Poole (2008, p. 19-52).
As autoras propõem que as margens precisam ser reconhecidas sob três abordagens, a
primeira, sob a perspectiva que as considera como “periferias percebidas como formadores de
recipientes naturais de pessoas que são consideradas insuficientemente socializadas na lei”
(DAS; POOLE, 2008, p. 29). A segunda gira em torno de questões de legibilidade e
ilegibilidade, no que concerne a identificação cidadã e as diferentes dinâmicas temporais
subjacentes às interações das pessoas com o estado e com os documentos estatatais. E a terceira
seria a que foca a margem como um espaço entre os corpos, o direito e a disciplina.
O Estado, enquanto poder posicionado ao centro, no processo de querer controlar essas
margens, passa, inclusive, a balizar e modelar as identidades nelas habitadas, defendendo a
existência de uma igualdade racial, em um país supostamente “agregador e mestiço”. Contudo,
em contraste ao discurso oficial, prevalecem os sinais diacríticos revelados nos marcadores das
condições de subalternidade dos que se encontram alijados dos meios de subsistência e de
46
realização social da liberdade, tendo seus corpos e sua cultura controlados dentro de um padrão
legal construído por pessoas brancas que ocupam os espaços de poder.
O exercício do biopoder que o estado passa a exercer sobre os corpos, individualmente
e coletivamente, marca a biopolítica de um exercício do poder soberano que implica em um
“jogo de inclusão e exclusão”, característico do estado de exceção, conforme propôs Agambem,
seria intrínseco a todo exercício de soberania. Logo, o poder do Estado sobre os corpos estaria
para além da escolha política sobre quem ele opta deixar viver ou deixar morrer e, mas como
ele cria a sobrevida, do chamado homo sacer (AGAMBEM, 2010, p. 171).
É a partir de uma observação mais aprofundada da relação dialética do Estado com
suas margens que podemos desvelar como o exercício do biopoder (FOUCAULT, 2006),
através das escolhas políticas relacionadas à qualidade de vida, saúde pública e urbanização,
agregadas a cidadania não instrumentalizada e a periculosidade atribuída aos certos espaços
insuficientemente socializados, se inserem na edificação das políticas criminais no Brasil e na
necessidade do Estado em controlar as massas que cresciam nessas margens, seja colocando-as
para de baixo do tapete, ao afastando-as dos espaços públicos e invisibilizando seus anseios
sociais, o que se materializava, por último, na segregação institucionalizada: o cárcere.
Atualizando essa questão, Mbembe afirma que a noção de biopoder ainda não seria
suficiente para a compreensão das maneiras contemporâneas em que a política, através da
guerra, faz do assassinato do inimigo o “objetivo primeiro e absoluto” (MBEMBE, 2015, p.
123), propondo o conceito de necropoder enquanto “política de morte”. Judith Butler em sua
obra Quadros de Guerra (2015) também reforça essa reflexão ao pensar as percepções entre
sujeitos mediadas por quadros interpretativos sobre as vidas que alguns julgam que importam
e àquelas julgadas como desimportantes e que, por isso, merecem morrer (BUTLER, 2015, p.
81).
Daí emergem questões socioculturais mais densas que implicam em processos de
“sujeição criminal”, categorizados por Misse como a “criminalização dos sujeitos e não
necessariamente de suas condutas”, havendo um “deslizamento de sentido da punição pelo
crime cometido para a punição do sujeito “porque” criminoso “contumaz”: para o que seria seu
incorrigível “mau-caráter”, sua subjetividade essencialmente criminosa, má” (MISSE, 2010, p.
19). Essa percepção externa, de tão reproduzida, acaba sendo assimilada pelos próprios
indivíduos que tentam assumir esses estereótipos como instrumento de poder e de dominação
dentro do seu meio.
Essas naturalizações passam a estimular novamente a ideia da “eliminação física de
criminosos comuns” (MISSE, 2010, p. 19) reforçando uma ambientação social que legitimasse
47
a existência de linchamentos, esquadrões e grupos de extermínio, o que reproduziu em um ciclo
contínuo de violência. Somado a isso, a sujeição criminal também se “territorializa”, ganhando
contornos espaciais (MISSE, 2010, p. 21) a partir da ideia de que se espera que os sujeitos que
habitam determinadas áreas sejam criminosos. O que, por vezes, acaba gerando um efeito
cíclico com o processo de interiorização dessa identidade.
É diante desse cenário que a edificação dos institutos jurídicos não pode ser analisada
em compartimento estanque aos processos de negação cultural e de etiquetamento social
provocados pela racionalidade seletiva ao punir. Apesar do Estado, em tese, não mais adotar –
explicitamente – em seus meios oficiais37 o discurso criminológico de uma pré-disposição racial
para o crime, ele continua utilizando os sinais fenótipos da raça como marcadores através do
fenômeno da criminalização da pobreza e do racismo estrutural que posiciona a população
negra e utiliza marcadores territoriais para justificar a necessidade de prisão, conforme será
observado nos dados colhidos em campo, que serão apresentados nos capítulos seguintes.
É nesse norte que o marcador da desigualdade social como produtora de criminalidade
serve ao comodismo de uma compreensão que desconsidera os aspectos raciais de uma nação
que cresceu desigualmente, assentada na escravidão e na usurpação do patrimônio dos povos
nativos.
Em face dessa contradição que permeia conexões seletivas e oportunas, vemos, desde
a origem da construção das políticas criminais brasileiras um processo que penaliza mais
severamente os povos negros, que desconsidera a cultura indígena e privilegia o “compadrio”38
dos potentados brancos se transformando em uma falsa igualdade positivada, que desconsidera
as desigualdades materiais e omite as diferenças culturais.
Destarte, através da incapacidade do discurso hegemônico admitir o quão conveniente
é a estratificação social para a reprodução do seu logro e poder, que ele cria mecanismos que
proporcionem o redirecionamento da problemática, vilanizando os que estão à margem, em um
37 Fora dos meios oficiais, ainda é possível observar a reprodução de posicionamentos racistas em falas de
representantes de poder, como a proferida pelo então deputado Jair Messias Bolsonaro em atividade no Clube
Hebraica no Rio de Janeiro em abril de 2017, que afirmou que negros quilombolas "não servem para nada", “que
o mais leve pesa sete arrobas” e que "nem para procriadores servem mais". O posicionamento acarretou em uma Ação
Civil Pública impetrada pelo Ministério Público Federal, sendo o atual Presidente da República condenado, em
primeiro grau de jurisdição, a pagar 50 mil reais de indenização por danos morais coletivos a comunidades
quilombolas e à população negra em geral. Não obstante, após recursos, a decisão foi reformada pela 8ª Turma
especializada do TRF-2 que entendeu que as declarações ocorreram no contexto da atividade parlamentar, que é protegida pela
imunidade. 38 A categoria “compadrio” aqui utilizada se refere a um dos corolários do personalismo patrimonialista (FAORO
2001), que apropria o público pelo privado, em relações de troca de favores e facilitação de acessos por aqueles
tidos como “iguais”, criando uma estamentação hierarquizante e discriminatória.
48
duplo processo de exclusão, que acarreta em uma criminalização em massa, mas só das massas,
como bem pontuou Roberto Da Matta (1997).
As leis penais marcadamente patrimonialistas acopladas com um processo penal
etiquetador – que ficará ainda mais explicitado através dos dados de campo – reverberam essa
questão e são ainda mais problematizadas quando tratadas em compasso com um Judiciário que
tem se identificado e engrenado como uma “Corporação dentro do Mercado” (SANTOS
JÚNIOR, 2017, p. 56). Essa ideia é impulsionada por um ideal de eficiência que,
desnaturalizada, representa a reificação do direito em números. Números estes que, no
paradigma punitivista, são medidos em prisões. Reverberando essa lógica, o Brasil atingiu, em
2017, a terceira maior população carcerária do mundo39. A banalização da prisão, que é vista
como “suprassumo da eficiência na intenção de neutralizar o inimigo” (SANTOS JÚNIOR,
2017, p. 370), tem um tom bem definido. E ele é escuro, é do povo negro40.
Ao passo que o Estado só enxerga quando conveniente os sinais diacríticos da
identidade negra, ao taxá-la como alvo corriqueiro da política criminal, ele cega para as
particularidades culturais dos povos indígenas, em um processo que busca a submissão e a
neutralização política-cultural, os homogeneizando e os silenciando.
Desemboca, portanto, a necessidade de se (re)discutir cidadania e ocupação dos
espaços de poder de forma, verdadeiramente, plural, diante dessas visibilidades e
invisibilidades seletivas por parte das Instituições dentro do contexto das políticas criminais,
dando espaço para os relatos de vivências das múltiplas vozes que ocupam esses espaços através
de etnografias que ajudem a escrever histórias que os documentos oficiais e a ciência do Direito,
sozinhos, não poderão revelar.
Consoante refletiu Bárbara Luppeti Baptista (2013), o direito, ao se colocar em um
patamar meramente dogmático, impalpável, objetivista e exclusivo se distancia da realidade,
precisando conglobar a pesquisa empírica para ouvir aqueles que a se destina.
A produção etnográfica, assim, deve ser incentivada para preencher as lacunas
deixadas pelas análises estritamente positivistas e, conforme defende Kant de Lima (1983), a
antropologia do direito enquanto teoria pode colaborar, inclusive, no processo de assimilação
do campo judicial. Nesse lume, as pessoas precisam ter acesso a esses espaços de uma forma
39 Conforme dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça, em janeiro de 2017 a população carcerária
brasileira alcançou os 654.372, elevando, ineditamente, o Brasil a terceira maior população carcerária do mundo,
atrás apenas dos Estados Unidos (2.145.100) e da China (1.649.804). (BRASIL, 2017). 40 Segundo o levantamento nacional de informação penitenciárias – INFOPEN, de junho de 2016, 64% da
população carcerária brasileira se autodeclarava negra.
49
que possam compreender o que neles se passa, em paralelo, esses espaços precisam ser
humanizados para que possam compreender essas pessoas em sua pluralidade.
Logo, a construção da seletividade penal não pode ser dissociada da verticalização e
branqueamento dos espaços políticos, devendo ser reforçado que a carência democrática
provoca a exclusão dos grupos que não participam do processo de criação, aplicação e
interpretação das leis e que só são lembrados como sujeitos quando colocados na posição de
alvo das políticas criminais. E é diante desse contexto que também se inserem as dinâmicas que
envolvem as políticas de repressão aos usos de drogas e os consequentes processos de
criminalização da pobreza por ela gerados.
1.3 POLÍTICAS DE GUERRA E OS DISCURSOS PUNITIVISTAS
No Brasil, o discurso oficial adotado no campo jurídico considera que os desvios
correlatos ao uso e comércio de drogas são crimes contra a “saúde pública”. A proibição e a
penalização são, então, vendidos – ou importados – como os caminhos, supostamente, mais
pragmáticos para enfrentar essa questão – que se revela, contudo, muito mais ampla e complexa.
Ocorre que o ponto de partida da lógica proibicionista, como bem problematizou o
antropólogo e jurista Marcelo Mayora Alves (2010, p. 21), traz a “a representação das drogas e
dos seus usos como um problema em si”. Assim, além de propor um direcionamento
equivocado, vela a seletividade que embasa a opção por criminalizar determinadas substâncias
e outras não. E em punir mais severamente algumas pessoas do que outras.
O próprio vocábulo “droga” é um termo polissêmico que remonta ao seu antecessor
grego Pharmakón, que podia significar remédio ou veneno, no limiar entre a dose utilizada
(REZENDE, 2000). Já na idade média, a criação do termo hoje traduzido como “droga” era
usado para definir os produtos utilizados na tinturaria, química ou farmácia41. Reconhecendo a
complexidade em que estão inseridas, coaduno com o conceito de Vargas que define as drogas
como “objetos sócio-técnicos que permanecem integralmente indeterminados até que sejam
reportados aos agenciamentos que os constituem como tais” (VARGAS, 2008, p. 41), logo, a
diferença entre as substâncias ilícitas, os farmacólogos, o chocolate e o café, seriam apenas
relacionais.
41 Em um estudo etimológico aprofundado, Rezende revela que a exata origem do termo droga é controversa e
mais de um étimo têm sido admitidos. Os mais verossímeis são: a) do baixo alemão droghe vate, nome de um
recipiente onde se guardavam ervas secas; b) do neerlandês droog, que quer dizer seco; c) do céltico, com a acepção
de má qualidade. Falam a favor desta hipótese os vocábulos droug em bretão, e droch em irlandês.
50
Consoante refletiu o filósofo e educador Tiago Magalhães Ribeiro (2018, p.249),
quando os usos das drogas passam a ser problematizados sob o manto da “cientificidade”, a
partir do início do século XX, ele passa a produzir “discursos de verdade que organizam a
atuação prática do Estado e das instituições médicas e judiciárias”. Não obstante, ciclicamente,
esses processos acabam gerando “jogos de verdade” e disputas de poder que definem as formas
de controle político institucionalizado dos seus usos, estando conectado “a administração de
indivíduos cujas condutas passaram a ser definidas como indesejáveis e passíveis de controle
estatal” (RIBEIRO, 2018, p. 249).
Exemplo emblemático de uma das primeiras obras científicas utilizadas como base
para essas tecnologias de poder e controle foi “Os fumadores de maconha: efeitos e males do
vício” produzida pelo médico Rodrigues Dória, em 1915. Nela, o autor afirma que a maconha
era uma planta utilizada predominantemente por “negros, índios, mestiços e analfabetos” sendo
“pouco ou quase nada conhecida na parte mais educada e civilizada da sociedade brasileira”
(1958, p.11), associando seu uso a “degeneração” e ao possível aumento da criminalidade por
estar presente entre as “classes perigosas” que ameaçam a “ordem e o progresso”.
Assim, é preciso questionar se a “saúde pública” seria, realmente, o fator legitimador
por trás da escolha em elencar determinadas substâncias como ilegais, principalmente se
observarmos como tantas outras substâncias nocivas ou com grau de dependência estavam no
âmbito da legalidade, como o álcool, o tabaco e até mesmo o açúcar. Certamente, uma análise
estritamente jurídica não seria suficiente para compreender a complexidade entorno dessa
problemática, mas a opção deliberada em minimizar o debate ao maniqueísmo do legal e do
ilegal é um sintoma da obscuridade que se tenta provocar quanto aos fatores culturais,
econômicos e hegemônicos que estão nas entrelinhas desse tema e da opção política com
“racionalidade seletiva” que embasa a criminalização.
O termo racionalidade seletiva aqui utilizado, remete às reflexões propostas por
Habermas (1987) acerca da subjetivação dos fins valorativos, que exclui componentes
construtivos da tradição cultural, não considerando algum deles como objeto de uma elaboração
sistemática, ou deixando alguma das esferas de valor (ciência, moral, direito, arte) ser
institucionalizada de forma insuficiente, sem efeitos estruturais para a sociedade global.
Outrossim, ele também correlaciona o termo quando se deixa uma das esferas da vida
prevalecer sobre a outra, submetendo às demais uma racionalidade que lhes é estranha.
Destarte, para entender a construção dessa racionalidade seletiva que permeia a
política de drogas no Brasil, é preciso compreender como se constroem as políticas punitivistas
que se sustentam em um ideal de “preservação da coletividade” que é de fácil aceitação para
51
uma população que busca a “paz social”, me meio a inúmeras notícias de “cenários de
emergência” (PRADO, 2016, p. 67). Entretanto, a celeuma filosófica – com reflexos sociais
palpáveis – é de como garantir a paz, quando se usa da repressão, do medo e da excessiva
violência para combater os “desvios” que também devem ser apreendidos de forma relacional
e em perspectiva.
Para tanto é preciso discutir o que está sendo punido, como está sendo punido e quem
é o destinatário efetivo dessa punição, residindo a crítica ora lançada na seletividade e
conveniência do discurso utilitarista que se sustenta na mensagem da suposta busca pela “ordem
pública”, que não revela, suficientemente, a que “público” se destina.
Assim, almejar a solidez da ordem em uma sociedade complexa, de múltiplos anseios
e desejos, acaba por velar o desejo de assegurar que as estruturas historicamente construídas
permaneçam em seu “devido lugar”, em uma conjuntura verticalizada. Nos termos em que
lecionou Wacquant (2001), é partindo dessa perspectiva hegemônica que se enfraquece o estado
social e se fortalece a “glorificação do estado penal” (WACQUANT, 2001, p. 22).
Assim, para o autor, a prisão passa a ser utilizada como meio para governar a pobreza,
porque contribui para regular os segmentos mais baixos inseridos no mercado de trabalho,
confinando a população desviada, perigosa, ou supérflua, segundo o ponto de vista da
planificação econômica e política. (WACQUANT, 2001, p. 22).
Sobre o tema, os minuciosos trabalhos teóricos produzido por Rosivaldo Santos Júnior
(2017), em “A guerra ao crime e os crimes da guerra”, e Luís Carlos Valois (2019), em Direito
Penal da Guerra as drogas, merecem destaque aos proporem críticas decoloniais às políticas
beligerantes no sistema de justiça, trazendo também perspectivas empíricas a partir de suas
vivências enquanto juízes criminais.
Assim, consoante bem pontuou Valois (2019), não é causídica e nem pontual a
importação de teorias, slogans, medidas econômicas e de segurança pública “made in USA”
que, em sua base, tinham como alvo o controle da população negra, latina e a ascensão dos
movimentos pelos direitos civis.
É nesse contexto, que as políticas de tolerância zero (zero tolerance) emergiram como
forma de controle social desses núcleos, reproduzindo teorias questionáveis como a das
“Janelas quebradas”42, que defende, basilarmente, que todo desvio de comportamento deve ser
punido, independentemente da sua gravidade, pois quem quebra uma janela hoje, poderá estar
42 No termo original “Broken Windows Theory”, é uma teoria formula em 1982 por James Q. Wilson e George
Kelling divulgada através da publicação do artigo denominado “Broken Windows: The Police and Neighborhood
Safety”.
52
cometendo crimes muito mais graves futuramente. Conforme o pertinente comentário de Santos
Júnior, essa teoria mais se assemelha a uma vidência, sendo impossível de ser comprovada
empiricamente (SANTOS JÚNIOR, 2017, p. 45).
Também ilustrando um dos reflexos das arbitrariedades da política do “zero tolerance”,
Wacquant (2001) menciona a criação da chamada “Unidade de Luta contra os Crimes de Rua”,
em Nova York, problematizando que:
Segundo a National Urban League, em dois anos essa brigada, que ronda em
carros comuns e opera à paisana, deteve e revistou na rua 45.000 pessoas sob
a mera suspeita baseada no vestuário, aparência, comportamento e – acima de
qualquer outro indício – a cor da pele. Mais de 37.000 dessas detenções se
revelaram gratuitas e as acusações sobre metade das 8.000 restantes foram
consideradas nulas e inválidas pelos tribunais, deixando um resíduo de apenas
4.000 detenções justificadas: uma em onze. (WACQUANT, 2001, p. 37).
Esse modelo, pautado em um ideal de produtividade, embasado meramente em
números e não em qualidade das prisões, foi importado pelo Brasil, deixando-se colonizar a
partir de um ideário de guerra que visava combater os povos latinos, negros e todos os demais
tidos como “outsiders”.
Passando a tratar, especificamente, da política de guerra às drogas, é preciso destacar
como esta surtiu – e ainda surte – efeitos na política externa dos Estados Unidos, sendo usada
como discurso de legitimação para interferências e intervenções, principalmente, na América
Latina43.
Travestida na necessidade de combate ao tráfico de drogas, a “war on drugs”, no
âmbito internacional, se revelou uma estratégia geopolítica para manter os exércitos americanos
posicionados perto de locais de interesse econômico e de ocupar e controlar as periferias.
Santos Júnior (2017 p. 163) ressalta que a construção da colonialidade emerge
enquanto estratégia imperialista que invade, além de territórios, as mentes através da
reprodução de suas práticas e ideologias no âmbito interno desses espaços, traduzindo-se no
chamado colonialismo interno.
Sobre esse questão, Valois (2019, p. 648) destaca que enquanto a Academia Norte-
americana denuncia constantemente “os intentos imperialistas do EUA, nas manifestações
idiossincráticas, também preconceituosas, de seus diplomatas e policiais”, os países latino
americanos reproduzem a guerra às drogas “sem se dar conta estar a serviço de uma política
preconceituosa, que os vê como a própria causa do problema”.
43 Inclusive, mediante intervenções militares diretas como ocorreu no Panamá, Bolívia e Colômbia.
53
Reconhecer as mazelas democráticas que circundam esse tema é substancial para
compreender a que(m) serve o paradigma punitivista adotado no Brasil e a consequente criação
de leis e políticas de segurança pública pautadas na lógica importada de guerra, que conforme
acrescenta Valois (2019), foi forjada “de cima para baixo” e que conta, hoje, com o aval do
judiciário, que pouco compreende acerca das drogas e muito reproduz sobre a guerra a elas.
Nesse sentido, recorda-se que a antiga legislação que tratava sobre as drogas, a Lei nº
6.368/76, foi proferida em pleno período ditatorial, que contou com o suporte norte-americano,
e seu caráter autoritário não foi suficientemente reformulado, seja com a perspectiva
Constitucional Democrática de 1988, seja por sua reformulação na Lei nº 11.343/2006.
A Lei nº 8.072/1990, também conhecida como Lei de Crimes Hediondos, foi também
mais um reflexo no endurecimento da punição, tentando, inclusive, macular a garantia de
individualização da pena ao impor, obrigatoriamente, o regime de cumprimento inicialmente
fechado aos condenados por crimes hediondos ou equiparados, como o tráfico de drogas. Essa
norma foi, posteriormente, declarada como inconstitucional pelo STF, que considerou que os
critérios para a fixação do regime prisional devem sempre estar em harmonia com as garantias
constitucionais e com a necessidade de fundamentação do regime imposto.
Garantias constitucionais essas ainda constantemente ameaçadas como ocorreu
durante a tentativa de aprovação do projeto original da “Lei anticrimes”, que tentava impor
novamente, o regime inicial fechado como regra. Ainda que o artigo que tratava dessa questão
não tenha sido aprovado pelo Congresso, outras normas bastante problemáticas incluídas “no
pacote” foram. Dentre elas, a execução provisória da pena44, que poucos meses antes havia sido
extirpada pelo STF45 que decidiu que o cumprimento da pena deve começar apenas após o
esgotamento dos recursos.
Vê-se, então, que a ideologia beligerante ainda é atual e isso se reflete nos discursos
políticos dos atuais representantes de poder, nas intervenções policiais nas favelas, nos autos
de resistência46, no abrandamento das permissões relacionadas a posse e porte de armas e nas
44 Art. 492, inciso I, “e”: [no caso de condenação] “mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em
que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou
superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do
mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos.” (grifos
acrescidos). 45 Julgamento das Ações declaratórias de constitucionalidade (ADC) nº 43, 44 e 54 em 24 de outubro de 2019. 46 As ocorrências popularmente e oficiosamente chamadas de “autos de resistência” são àquelas que tratam de
casos de homicídios praticados por policiais em que é alegada a excludente de ilicitude da “legítima defesa” em
razão de suposta resistência ocorrida no momento da prisão. Essa nomenclatura ganhou espaço dentro das próprias
práticas policiais, não havendo uma previsão legal que a defina. Em importante estudo coordenado por Misse entre
os anos de 2001 e 2011 no Estado do Rio de Janeiro, foi verificado que a esmagadora maioria dos inquéritos e
54
intervenções sob os corpos e mentes dos seus agentes, alimentando a militarização da polícia
que mais mata e mais morre no mundo.
Declarar guerra seja ao crime, às drogas, à pobreza – nas entrelinhas, aos pobres – ou,
em sua versão mais recente, ao terrorismo, suplanta o desejo de dominação através do medo,
imposto pelo poder bélico e pela reprodução de mais violência.
É por essa razão que é imprescindível estudar sobre a aplicabilidade dos instrumentos
que visam reduzir a verticalização dos espaços de poder e oportunizar a concretização de
direitos humanos e fundamentais, evitando a tortura e as prisões arbitrárias e/ou desnecessárias.
E isso necessita ser feito a partir do referencial daqueles que vivenciam esses espaços,
desmistificando as representações já cristalizadas nas instituições políticas e judiciárias sobre
os usos de drogas.
Diante dessa conjuntura, a minha vivência nas audiências de custódia por crimes de
tráfico de drogas, se tornou um campo propício de observação dessas histórias e das disputas
de poder que permeiam esse ambiente. O meu campo, que será introduzido e aprofundado nos
capítulos seguintes, me fez perceber como os juízes e promotores pouco discutiam sobre saúde
ou impactos das substâncias apreendidas e de suas ínfimas quantidades, mas muito falavam
sobre a necessidade de garantir a “ordem pública” e de “dar uma resposta a sociedade”.
Os marcadores observados pelos julgadores em suas decisões e o mal aproveitamento
das audiências de custódia como um espaço de desmistificação desses, revelavam que mais do
a mera edificação de institutos jurídicos e transformações legislativas, ainda é preciso provocar
a transformação da racionalidade seguida pelos seus agentes.
É por essa razão que o debate sobre drogas, proibição e punição precisa ser
descolonizado. E, consoante bem refletiu Milton Santos (1997), descolonizar é passar a olhar o
mundo com os nossos próprios olhos e a dar visibilidade às histórias contadas por aqueles que,
por tanto tempo, tiveram suas vozes silenciadas – ou, no caso, reduzidas a termo nos autos
policiais.
processos instaurados para a apuração dos casos registrados sob esta rubrica são arquivados, prevalecendo a
narrativa inicial apresentada pelos policiais comunicantes da ocorrência (MISSE (org.), 2011).
55
CAPÍTULO II: A IMPLEMENTAÇÃO DAS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA: ENTRE
AS VIVÊNCIAS E AS (RE)AÇÕES.
Compreender os discursos que circundam a efetivação do direito humano à audiência
de custódia no sistema jurídico brasileiro perpassa, também, pelo conhecimento das lutas
sociais que contornaram o seu reconhecimento e implantação, ocasionando múltiplas reações e
oposições de setores críticos aos seus objetivos ou descrentes quanto ao seu pragmatismo.
É nesse norte que, neste capítulo, abordarei como ocorreram as disputas pelo
reconhecimento desse direito e os influxos políticos e jurídicos sobre o tema, contrastando
também com a minha visão enquanto agente e pesquisadora inserida dentro do Poder Judiciário,
na posição de Residente Judicial na época em que ocorreram os debates sobre sua implantação.
Assim, irei discorrer como esse processo ocorreu em âmbito local e como os discursos
sobre a “crise carcerária” e a “crise na segurança pública” no âmbito do Estado do Rio Grande
do Norte permearam as percepções e sensibilidades sobre essas audiências, por exemplo.
Após, falarei da minha inserção nas primeiras pesquisas que realizei sobre o tema e de
como os dados que eu coletei eram confrontados com as minhas vivências profissionais diante
de processos relacionados a tráfico de drogas, demonstrando os dados existentes sobre a
questão, o que eles podem revelar e o que, por vezes, eles acabam ocultando em um processo
complexo que exige muito mais do que apreensões holísticas.
Ao final do capítulo, irei relatar como esses passos confluíram e foram
(res)significados no início do meu novo campo, me fazendo ter novas percepções sobre a
estrutura e sobre as posições ocupadas dentro da Central de Flagrantes do Polo Regional de
Natal.
2.1 PERCURSOS NORMATIVOS E OS IMPACTOS SOCIO-POLÍTICOS DA
IMPLANTAÇÃO DAS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA.
Conforme já introduzido na parte inaugural dessa dissertação, o direito de apresentação
da pessoa presa em prazo rápido e razoável a uma autoridade judicial foi fruto de lutas daqueles
que atuam em defesa dos direitos humanos. Essas demandas foram pautadas no Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos, aprovado em 16 de dezembro de 1966,
pela Assembleia Geral das Nações Unidas e foram reforçadas na Convenção Americana de
Direitos Humanos, também chamada de Pacto de San José da Costa Rica, em 22 de novembro
de 1969. Como o Brasil vivenciava um período de Ditatura Militar e de restrição de direitos
56
entre 1964 e 1985, os referidos tratados só foram ratificados pelo país no ano de 1992, passando
a adquirir status jurídico de norma supralegal, conforme decidido pelo STF47. Isso significa
que, hierarquicamente, caso haja conflito entre as normas, o conteúdo desses tratados tem valor
superior ao da legislação infraconstitucional, como, por exemplo, o Código de Processo Penal
e o Código Penal.
Apesar dessa previsão em tratados, as audiências de custódia demoraram décadas para
serem, realmente, implantadas no Brasil. Sendo regulamentadas apenas em 2015, após a
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347, promovida pelo Partido
Socialismo e Liberdade – PSOL, motivada pelas graves violações aos direitos humanos no
sistema penitenciário brasileiro e pelos dados divulgados pelo INFOPEN em 2014.
Essa ação resultou no reconhecimento por parte do Supremo Tribunal Federal do
“estado de coisa inconstitucional” em que vive esse sistema, que, conforme leciona Carlos
Alexandre Campos (2016, p. 20), é um “quadro prolongado de violação massiva de direitos
decorrentes de falhas estruturais, deficiências institucionais e de insuperáveis bloqueios
políticos”.
Dentre os corolários do reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional, houve
a concessão de uma medida cautelar48, que deferiu um dos pedidos feitos na ADPF, no que
tange a viabilização das audiências de custódia por parte dos tribunais do país.
Em razão dessa decisão, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ editou, em 15 de
dezembro de 2015, a Resolução nº 213, que conferiu diretrizes para a aplicação e regulação
desse direito. Em seu teor, ela usou como embasamento o art. 9º, item 3, do Pacto Internacional
de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas49; o art. 7º, item 5, da Convenção Americana
sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica)50; os relatórios produzidos pelo
47 Importa ponderar que apesar do status de norma supralegal dos referidos tratados ser o entendimento atualmente
adotado pelo STF (RE 466.343-SP), há correntes que defendem que os tratados internacionais de Direitos
Humanos possuiriam a mesma hierarquia das normas constitucionais, independentemente da votação em cada
Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros. Essa corrente
é defendida pelos juristas Flávia Piovesan, Antônio Cançado Trindade, Ada Pellefrini Grinover, Luís Flávio
Gomes e Valério Mazzouli. 48 Uma medida cautelar é reflexo de uma decisão que visa acautelar o objeto da ação, antes da decisão definitiva,
evitando que objetos pereçam ou que direitos sejam maculados durante o curso processual. 49 Artigo 9, item 3: “Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida,
sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito
de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam
julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem
o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a
execução da sentença.” 50Artigo 7. Direito à liberdade pessoal, item 5. “Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à
presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro
de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser
condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.”
57
Subcomitê de Prevenção à Tortura da ONU (2011), pelo Grupo de Trabalho sobre Detenção
Arbitrária da ONU (2014) e o relatório sobre o uso da prisão provisória nas Américas da
Organização dos Estados Americanos.
Entrementes, importa lembrar que, mesmo antes da edição da Resolução nº 213 do
CNJ, alguns tribunais já vinham regulamentando a aplicação dessas audiências de apresentação,
a exemplo do Tribunal de Justiça do Maranhão através do Provimento nº 24/201451 e do
Tribunal de Justiça de São Paulo, através do Provimento Conjunto nº 03/2015 e o próprio
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte a partir da Resolução nº 18/2015.
Ocorre que, desde essas primeiras regulamentações, também já haviam setores
engajados na oposição a sua implementação, manifestando-se ativamente através de veículos
de comunicação em massa, por notas oficiais de partidos políticos, de associações, de
instituições e/ou mediante ações judiciais.
Contudo, é preciso ressaltar as diferenças entre os discursos que eram propagados
dentro das instituições e aqueles que eram compartilhados nas redes sociais, blogs e em
programas de TV, principalmente, os voltados a cobrirem ações policiais.
Nos veículos mais abertos e populares, a ideia difundida era a de que as audiências de
custódia poderiam ser responsáveis por um suposto “aumento no número de solturas” e iriam
ser utilizadas para “reprimir ou penalizar a atividade policial”. Já nos espaços mais fechados e
técnicos, esses discursos não erem reproduzidos explicitamente, dando espaço a argumentos de
cunho operacional, orçamentário e jurídico.
Dentre estes argumentos, estavam os de índole econômica, em especial os que se
embasavam na ausência de material humano e de recursos financeiros para a implementação.
Outrossim, haviam objeções forjadas sob um caráter mais técnico, que alegavam uma possível
“incompetência” dos Tribunais de Justiça para “inovarem” no ordenamento jurídico criando
obrigações que deveriam estar previstas em lei e não em resoluções.
Esse debate tão restrito a quem domina esse conhecimento e esse vocabulário,
contornava questões sobre “legitimidade”, tentando afirmar que essa era uma matéria que
caberia, exclusivamente, a quem detinha o “poder de legislar”. Contudo, contraditoriamente,
esse discurso desconsiderava o caráter vinculante das normas sobre direitos humanos já
51 A organização não governamental Human Rights Watch – HRW (2014), reconheceu a iniciativa como uma das
soluções para que o Brasil diminua a violência no sistema prisional através da redução do número de presos provisórios,
que a ONG afirma ser uma das principais causas da superlotação das prisões e do recrutamento de membros por facções
criminosas.
58
previstas nos Tratados Internacionais, que foram ratificados, justamente, pelos espaços que
detinham esse “poder de legislar”.
Para além das insurgências de representantes políticos, houve também a manifestação
de instituições como a Associação Paulista do Ministério Público, que impetrou o mandado de
segurança nº 2031658-86.2015.8.26.0000 e a Associação dos Delegados de Polícia do Brasil,
que propôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5240/SP, ambos visando sustar a
realização das audiências de custódia.
Ao se manifestar sobre essa matéria, o Supremo Tribunal Federal nos termos do
Informativo de Jurisprudência nº 795, assegurou:
A apresentação do preso ao juiz no referido prazo estaria intimamente ligada
à ideia da garantia fundamental de liberdade, qual seja, o “habeas corpus”. A
essência desse remédio constitucional, portanto, estaria justamente no
contato direto do juiz com o preso, para que o julgador pudesse, assim,
saber do próprio detido a razão pela qual fora preso e em que condições
se encontra encarcerado. [...] Então, não teria havido por parte da norma
em comento nenhuma extrapolação daquilo que já constaria da referida
convenção internacional — ordem supralegal —, e do próprio CPP, numa
interpretação teleológica dos seus dispositivos. (Grifos acrescidos). (BRASIL,
2015, web)
Assim, o STF considerou que as resoluções dos Tribunais não representariam uma
“inovação legal”, mas estariam, na verdade, dando aplicabilidade a uma norma supralegal já
existente. Em razão disso, o julgado da ADI n.º 5240, acima transcrito, se tornou um importante
instrumento no fortalecimento da constitucionalidade e da convencionalidade52 das audiências
de custódia, servindo também de embasamento para a edição da Resolução nº 213 do Conselho
Nacional de Justiça – CNJ.
É preciso também dar o devido reconhecimento ao fato de que alguns juízes de
primeiro grau já tomavam medidas de caráter local para concretizar o direito à apresentação
dos presos em até 24h dentro do seu âmbito de jurisdição, antes mesmo dessas regulamentações
por resoluções internas, atos normativos ou acordos operacionais por parte dos Tribunais.
Como exemplo, um dos juízes que eu tive a oportunidade de entrevistar durante a
pesquisa53 disse que antes mesmo de 2015, sempre que ele tomava conhecimento de uma prisão
através da chegada de um auto de prisão em flagrante em seu gabinete, ele solicitava a
apresentação da pessoa presa no mesmo dia, ou no dia seguinte, para que ele pudesse analisar
a legalidade e a necessidade, ou não, de manutenção da prisão.
52 Controle de convencionalidade é a análise da adequação das normas e atos às convenções internacionais
ratificadas pelo Brasil. 53 Ver tópico 3.5.
59
O mesmo Juiz ressaltou que muitos colegas consideravam que apenas a leitura dos
autos dentro desse prazo seria suficiente para a análise, mas que ele sempre julgou “ser
imprescindível ouvir diretamente a pessoa presa, olho no olho, independentemente das
deficiências estruturais que havia no fórum e no setor responsável pelas escoltas”.
Essas mudanças pontuais realizadas de forma individual pelos juízes é chamada, por
Joaquim Falcão (2009) de “reforma silenciosa”, que acaba sendo orientada por uma ótica
voluntarista dos juízes que entendem estar fazendo cumprir a Constituição, ainda que na
ausência de normas específicas que regulamentem a matéria ou diante da escassez de material.
Contudo, apesar de importante, é uma mudança incapaz de suprir a necessidade de uma
implantação com aplicabilidade de âmbito nacional e que albergue a realidade do centro até as
margens do país.
Assim, é preciso também destacar que mesmo após o reconhecimento da
constitucionalidade das regulamentações dos Tribunais e da Resolução do CNJ, parte dos
teóricos do direito continuaram reiterando a necessidade de haver uma lei específica para
garantir forma e força às audiências.
É nesse norte que impende lembrar que estava em trâmite, desde 2011, o Projeto de lei
do Senado Federal de nº. 554/2011, que buscava regulamentá-las a partir da alteração do §1°
do art. 306 do CPP. Esse projeto era fruto de intensas lutas abraçadas pelo Instituto de Defesa
do Direito de Defesa, das Defensorias Públicas do país e da Rede de Justiça criminal, que, desde
2011, denunciavam que o Brasil era um dos poucos países da América Latina sem a
obrigatoriedade de uma audiência de custódia. A sua não apreciação legislativa, contudo,
revelava a falta de interesse político por parte dos deputados e senadores em tratar de assuntos
relativos a garantia de direitos humanos e a redução de encarceramentos.
Contudo, sem desconsiderar a importância de acionamentos político-legislativos como
o acima referido e todo o processo de lutas que envolveu a sua tramitação, cabe o alerta para o
perigoso discurso acerca da imprescindibilidade de uma criação legislativa para que haja a
efetivação de um mandamento que já deveria estar sendo assegurado em respeito às convenções
internacionais sobre Direitos Humanos, com caráter supralegal, e dentro de uma interpretação
constitucional sistêmica e teleológica.
Afinal, considerar ser essencial a positivação legal literal das audiências de custódia
no ordenamento pátrio, já havendo normas previstas em tratados internacionais devidamente
60
ratificados, pode também representar um retrocesso no âmago da conjuntura de proteção aos
Direitos Humanos e na evolução de um paradigma neoconstitucional54.
Até 2014, conforme destacou a Human Rights Watch (2014), 28 dos 35 países
membros das Organizações dos Estados Americanos já haviam se adequado às determinações
das normas internacionais a fim de assegurar que o ato de prisão em flagrante se submetesse ao
escrutínio judicial quanto a sua legalidade e estrita necessidade. Logo, o Brasil esteve entre os
sete últimos a tomarem medidas para a sua efetivação.
Politicamente, não foram as discussões técnicas acima discutidas que ocasionaram a
omissão do Brasil na efetivação das audiências de custódia, mas os discursos implícitos que
eles carregavam. Esses argumentos velados no âmbito institucional, eram explicitados e
compartilhados extraoficialmente em um processo de demonização sobre as audiências de
custódia.
Por trás dos argumentos técnicos e econômicos justificados nos meios oficias,
circulavam os “discursos de medo, punitivistas e encarceradores” (ZAFFARONI, 2001),
popularizados através de compartilhamentos em blogs e redes sociais, onde reverberava que as
audiências de custódia representariam “impunidade”, “mitigação da atuação das instituições
policiais” e reproduzia-se o jargão “a polícia prende e a justiça solta, a culpa é da audiência de
custódia”, como bem ressaltada na dissertação de mesmo nome, produzida pela Antropóloga
Raphaella Câmara, 2019.
Esses discursos que associam a efetividade do sistema penal ao número de prisões que
ele gera (KANT DE LIMA, 2008), desconsideram os seus aspectos qualitativos e a proteção
aos direitos humanos. É por essa razão que se torna pertinente impulsionar as pesquisas que
possam contribuir para a formulação de uma visão crítica, racionalizada em dados inseridos em
um contexto jurídico, social e antropológico. Ou, como aspirava Boaventura de Souza Santos
(2007), buscar a “reinvenção da emancipação”, como desafio teórico, político e epistemológico.
Nesse norte, importa frisar a existência de importantes estudos que respeitam esses
aspectos pluridimensionais, como a já mencionada pesquisa realizada por Câmara (2019) entre
os anos de 2017 e 2018, sobre as audiências de custódia no Município de Natal. A pesquisadora,
em sua dissertação de mestrado em Antropologia pela UFRN, realizou um estudo etnográfico
aprofundado sobre a representação dos atores envolvidos nesses eventos e abordou episódios
de violência policial relatados pelos custodiados.
54 O neoconstitucionalismo, enquanto evolução ao pós-positivismo, é um paradigma hermenêutico que
compreende que as normas devem ser interpretadas sob critérios de ponderação que respeitem todo o bloco de
constitucionalidade, o que incluí os tratados de Direitos Humanos.
61
Outrossim, há também a relevante pesquisa realizada por Ana Luiza Bandeira (2018),
que foi a base da sua dissertação de Mestrado em Antropologia Social pela USP. A partir de
uma etnografia realizada nas audiências de custódia do município de São Paulo, a pesquisadora
tratou das percepções morais acerca da violência policial, das disputas sobre o conceito de
vítima e sobre os mecanismos de silenciamentos existentes naquele ambiente.
Também em São Paulo, Fábio Lopes Toledo (2019) defendeu sua tese denominada “O
flagrante ganha voz”, em que ele estudou o significado da apresentação presencial logo após a
prisão em flagrante a partir de pesquisa participativa e entrevistas com magistrados.
No Mato Grosso, o Professor Clark Mangabeira, da UFMT, desde 2015, acompanha a
implantação das audiências de custódia na Comarca de Cuiabá, supervisionando pesquisas
quantitativas e qualitativas que buscam avaliar os resultados práticos na vida dos custodiados.
Em artigo denominado “Em um dia qualquer: violência, simpatia e carisma pelas tramas das
audiências de custódia em Cuiabá”, Mangabeira (2019), apresenta também uma visão
etnográfica dos bastidores dessas audiências através das imagens construídas dos flagranteados
e das relações que compõe a realidade do seu campo.
Na Universidade Federal Fluminense, em seu Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Direito, João Vítor Abreu (2019) desenvolveu pesquisa empírica sobre as práticas
decisórias na Central de audiências de custódia do Rio de Janeiro, problematizando como a
“sensibilidade” esperada pelo CNJ ao promover o contato pessoal em uma audiência dos
operadores do direito com a pessoa presa, pode também reforçar, na mesma proporção, o
preconceito dos operadores contra determinados segmentos da população.
Outrossim, importante mencionar o pioneiro livro sobre o tema, de autoria de Caio
Paiva (2015), defensor público que relaciona as práticas vividas nas audiências de custódia e a
dificuldade de aceitação do instituto em razão das raízes autoritárias do processo penal
brasileiro que subsistem até hoje.
Há ainda grupos de estudos que estão desenvolvendo observatórios dessas audiências,
como ocorre atualmente no Núcleo Penitenciário do Programa Motyrum, projeto de pesquisa e
extensão interdisciplinar, em que atuam alunos de diversos cursos de graduação da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Devendo ser destacado também o trabalho da
ONG Conectas – Direitos Humanos, que fez um monitoramento presencial e quase diário das
audiências de custódia ocorridas no Fórum Criminal da Barra Funda – SP, compendiando
material crítico e revelador da perpetuação da violência nesses eventos, a partir da obra “Tortura
Blindada”, lançada em 2017. Outrossim, sobreleva-se a atuação do Centro de Estudos de
Segurança e Cidadania – CESEC, fundado pela Universidade Candido Mendes, responsável
62
pela publicização do livro “Liberdade mais que tardia: as audiências de custódia no Rio de
Janeiro”, escrito pelos pesquisadores Lemgruber, Musumeci, Benace e Brando (2016), que
realizaram, além de estudos quantitativos, pesquisa qualitativa sobre as dinâmica das
audiências, com ênfase nas relações entre os operadores jurídicos e destes com os custodiados.
O incentivo a essas pesquisas corroboram no processo de conscientização da
população acerca das audiências de custódia, que se torna elementar diante da carência na
publicização de dados reais e conectados com a classificação e gravidade de cada crime. Assim,
não basta expor percentuais, sem que se oportunize o desenvolvimento do senso crítico acerca
desses números e de como eles se revelam a depender de cada tipo penal e das suas múltiplas
vivências que os singularizam.
Para além da compilação estatística é preciso ouvir também aqueles que experienciam
esses eventos, principalmente, os que são os principais destinatários da sua existência: as
pessoas sob custódia e as suas famílias – que podem, um dia, ser a de qualquer um de nós. A
ausência de representantes dessas categorias nos espaços em que são debatidas questões sobre
as audiências de custódia é facilmente perceptível e sintomática.
Em audiências pública, realizada no dia 09 de julho de 2019, foi discutido o Projeto
de Decreto Legislativo nº 317/2016, proposto pelo Deputado Eduardo Bolsonaro, que objetiva
sustar os efeitos do inteiro teor da Resolução nº 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça, que
dispõe sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas,
ou, nas palavras em que sintetizou o próprio autor do projeto: “acabar com as audiências de
custódia” (CANAL DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2019, web).
Nessa audiência, estiverem presentes como convidados: Domingos Sávio Dresch da
Silveira, Subprocurador Geral da República e Coordenador da 7ª CCR - Controle Externo da
Atividade Policial e Sistema Prisional Ministério Publico Federal; Fábio Tofic Simantob,
Presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa IDDD; Jayme de Oliveira Presidente da
Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB; Luís Geraldo Sant'ana Lanfredi,
Representante do Conselho Nacional de Justiça CNJ; Marcelo Rocha Monteiro, Procurador de
Justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro; Pedro Paulo Coelho, Presidente da Associação
Nacional dos Defensores Públicos – ANADEP; Wilson Witzel, Governador Estado do Rio de
Janeiro e Nafêz Imamy Sinício Abud Cury, Comandante do 24º Batalhão de Polícia Militar
Polícia Militar do Distrito Federal.
Apesar de ser um grupo de advindos de instituições bastante heterogêneas, vê-se que
não houve qualquer representante da comunidade carcerária ou de suas famílias, tão pouco,
63
cientistas sociais ou antropólogos que pudessem compartilhar um outro tipo de vivência
diferente da dos atores institucionais.
Ao analisar as falas expressas nessa audiência pública, ficou evidente que, com
exceção do relator Eduardo Bolsonaro e do Procurador de Justiça Marcelo Rocha Monteiro,
que se posicionaram explicitamente pela “abolição das audiências custódia” (CANAL DA
CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2019, web), todos os demais convidados ou defenderam o
instituto ou sugeriram readequações através de reformas pontuais a depender da corrente que
cada um seguia.
Eventuais adequações, de fato, precisam ser pautadas com base nas múltiplas vivências
dos atores institucionais, mas sem excluir as vozes e as necessidades dos indivíduos a quem as
audiências de custódia se destinam enquanto instrumento de garantia dos direitos humanos. Em
um Estado que se diz “Democrático e de Direito”, as instituições não podem permanecer
servindo apenas aos interesses de um grupo hegemônico, por mais verticais que sejam as suas
estruturas.
Conforme pondera Frederico de Almeida (2015) as disputas por essas reformas
representam um campo mais amplo de intervenção sobre as instituições de Justiça e que,
geralmente, partem de dentro, ou seja, conforme os interesses dos seus próprios técnicos e que
nem sempre se confundem com o interesse do destinatário do direito que a instituição visa
assegurar.
Entrementes, esse processo de disputas foi acentuado no ano de 2019 a partir da
proposição do chamado “Pacote anticrime”, proposto pelo então Ministro da Justiça Sérgio
Moro. Esse pacote, teve o seu projeto inicial duramente criticado por juristas que apontaram
uma série de inconstitucionalidades existentes nos seus dispositivos e por cientistas sociais que
ressaltaram o seu teor punitivista e encarcerador.
Após amplas discussões no Congresso Nacional, o projeto sofreu emendas que
acabaram resultando na expressa previsão das audiências de custódia no Código de Processo
Penal, com a obrigatoriedade de que elas se realizem em todo país, sob pena de relaxamento da
prisão em virtude dessa irregularidade e de responsabilização dos agentes que forem omissos
ou derem causa a sua não realização.
Contudo, apesar do avanço normativo que o Pacote, agora convertido na Lei
n.º 13.964/2019, propiciou quanto a esse quesito, ele também trouxe questões controversas que
podem, inclusive, ser consideradas inconstitucionais como a vedação a concessão de liberdade
provisória para os casos em que é verificada reincidência, organização criminosa armada ou
milícia e porte de arma de uso restrito.
64
Outrossim, conforme abordado no tópico 1.3, o STF já possui posicionamento firmado
quanto a inconstitucionalidade de lei que vise proibir a liberdade provisória de forma genérica,
pois ela retira do magistrado a oportunidade de analisar, conforme cada caso, se estão presentes
os pressupostos da necessidade, ou não da prisão cautelar. A própria Lei de drogas e a Lei de
crimes hediondos já tiveram artigos invalidados por preverem prisões automáticas e forma
genérica.
Assim, percebe-se que os percursos normativos da implantação das audiências de
custódia ainda continuam em constante movimento, havendo ainda uma pluralidade de opiniões
sobre a sua a aplicação que ameaçam até a sua permanência.
Dentro dessas insurgências, a Associação Nacional dos Membros do Ministério
Público - CONAMP, impetrou a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6305, no dia 22 de
janeiro de 2020, que resultou em uma decisão que suspendeu a eficácia do §4º, do artigo 310
do CPP, que prevê a ilegalidade das prisões de pessoas que não fossem apresentadas em
audiência de custódia.
Nos autos dessa ação que tramita no Supremo Tribunal Federal, o Ministro relator
considerou que em razão da complexidade e relevância do objeto, seriam realizadas audiências
públicas para a “oitiva de membros do Poder Público e da sociedade civil que possam contribuir
com conhecimentos técnico e jurídico sobre o tema”. Sendo esse o atual status que a questão
se encontra.
Assim, ainda não há, até então, consolidações que possam delinear a aplicação integral
e obrigatória das audiências de custódia por todo o Brasil. Isso ocorre em razão dos constantes
influxos políticos sobre sua percepção e pelos impactos sociais provocados através da sua
existência e resistências.
Inclusive, desde o início da pandemia do Covid-19, as audiências de custódia estão
com sua realização suspensa na maior parte dos Estados do Brasil, ocorrendo a análise das
prisões em flagrante apenas através da leitura dos autos policias e sendo maculada a observação
de práticas de tortura.
Vê-se, assim, que mesmo com previsões em Tratados Internacionais, com
determinações do Supremo Tribunal Federal para a sua realização, com regulamentação
mediante Resoluções dos Tribunais e do CNJ e, agora, até mesmo com a recente previsão
expressa no Código de Processo Penal, as audiências de custódia ainda não estão amplamente
consolidadas, não chegam nas pequenas cidades e sendo facilmente sobrepujadas.
É por essa razão que é preciso investigar e expor, em âmbito local, como essas
audiências, efetivamente, se edificam, compreendendo-as como espaços não monolíticos e que
65
se tornam relacionais a partir das sensibilidades e moralidades adotadas por seus constituintes,
sofrendo reflexos de pressões externas que podem alterar sua dinâmica.
2.2 AS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA NO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE E
OS INFLUXOS DOS DISCURSOS SOBRE “CRISES”.
Como dito na parte introdutória deste capítulo, o Estado do Rio Grande do Norte55
esteve entre os primeiros do Brasil a regulamentarem a implantação das audiências de custódia,
partir da publicação da Resolução nº 18/2015 do TJRN, em 16 de setembro de 2015 e que entrou
em vigor em 09 de outubro de 2015, antes mesmo da Resolução nº 213 do CNJ.
O principal resultado dessa regulamentação foi a criação da Central de Flagrantes do
Município de Natal56, que atualmente, se estende também para alguns municípios da sua região
metropolitana57, englobando, correntemente, as prisões que ocorrem também em Parnamirim,
Macaíba, Extremoz, São Gonçalo e Ceará-Mirim.
Conforme determinado no teor dessa regulamentação, reformulada pela Resolução n.º
41/2017 de 13 de dezembro de 2017, a autoridade policial passou a comunicar imediatamente,
por meio do correio eletrônico, à Central de Flagrantes quando ocorre uma prisão,
encaminhando os autos também ao Ministério Público, à Defensoria Pública ou ao Advogado
constituído.
Ao chegarem as informações na Secretaria da Central, após registrar o dia e a hora do
recebimento, os servidores fazem a respectiva autuação no sistema eletrônico próprio do Poder
Judiciário, chamado Sistema de Automação Judicial - SAJ, juntando certidão atualizada de
antecedentes criminais da pessoa sob custódia, certificando o local onde a pessoa está detida e
agendando a sua audiência.
A pauta diária de audiências de custódia é composta pelos autos de prisão em flagrante
recebidos até às 15 horas, os que são recebidos após esse horário são automaticamente incluídos
na pauta de audiências do dia seguinte. As audiências acontecem a partir das 14h de cada dia e,
a depender da quantidade de autos remetidos, poderão ocorrer até às 20h58. Apesar dessa
55 Importante destacar que este estudo congloba apenas o Poder Judiciário Estadual. Não serão tratados dados
relativos à Justiça Federal, apesar dela também possuir competência para o julgamento de crimes de tráfico de
drogas internacional. 56 Após a resolução nº 04/2020 do TJ, a Central de Flagrantes do Município de Natal também passou a ser chamada
de “Central de Flagrantes do Polo Regional de Natal”. 57 Em 06 de setembro de 2017, a Resolução nº 35/2017 do TJRN, ampliou as audiências de custódia para as
Comarcas de Extremoz, Parnamirim, Macaíba, Ceará-Mirim e São Gonçalo do Amarante. 58 Inicialmente, havia a previsão de que as audiências poderiam acontecer até às 18h, contudo, a prática diária
demonstrou que esse período não condizia com a realidade dos dias em que haviam muitas prisões. Assim, a partir
66
previsão, muitas vezes presenciei elas se estendendo até quase meia noite como forma de tentar
garantir o direito de apresentação dentro do prazo de 24h. Na prática, apenas em situações
excepcionais a audiência fica remarcada para a pauta seguinte.
Nos casos em que há arbitramento de fiança pelo Delegado de Polícia, ou seja, quando
o próprio delegado estipula um valor para que a pessoa presa possa pagar e assim responder em
liberdade, não há audiência de custódia, mas apenas uma análise da legalidade do ato do
delegado por parte do juiz59.
No período em que realizei a pesquisa, cada magistrado responsável por atuar na
audiência era designado conforme os sistema de rodízio estabelecidos pela Central nos dias de
semana ou na escala de plantão estabelecido pela Corregedoria para finais de semana e feriados.
No rodízio semanal, havia o revezamento dos juízes atuantes nas varas com competência
criminal, de violência doméstica e familiar contra a mulher e nos juizados criminais, ao passo
que nos rodízios dos finais de semana e feriados poderiam ser juízes que atuassem em qualquer
matéria.60
Consoante os dados obtidos junto à Secretaria da Central de Flagrantes, desde 08 de
outubro de 2015, data da sua implementação, até 30 de abril de 201961, ocorreram 9.848 prisões
em flagrante. Em 1.963 dos casos houve arbitramento de fiança e em 7.885 ocorreram
audiências de custódia.
Das 7.885 audiências de custódia, em 4.401 (55,81%) emitiu-se decretos de prisão e
em 3.426 (44,19%) foram emitidos alvarás de soltura. O que demonstra que o percentual de
casos que resultam em prisões preventivas é superior ao que resulta em solturas.
Tabela 1. Estatísticas fornecidas pela Central de Flagrantes de Natal concernentes ao ínterim de
outubro de 2015 à abril de 2019.
da Resolução n° 41/2017 de 13 de dezembro de 2017, ficou previsto que as audiências poderiam ocorrer até às
20h, o que muitas vezes também acaba sendo ultrapassado. O principal dilema enfrentado nesses casos, que será
melhor detalhado nos próximos capítulos, é o longo período em que as pessoas sob custódia acabam ficando sem
se alimentar. Essa foi uma reclamação constante que eu pude presenciar durante as minhas entrevistas. 59 Essa, inclusive, é uma das razão para o número de audiências de custódia ser menor do que o número de prisões
em flagrante, pois parte delas já são avaliadas pelo próprio Delegado de Polícia. 60 Importante atualizar que após a resolução nº 4 de 2020, que criou polos regionais para as audiências de custódia,
as normas relacionadas ao rodízio de juízes foi alterada. Consoante o §4º do art. 1º da Resolução, compõem a
escola de audiência: “I - juízes que voluntariamente aceitem exercer a função; II - juízes que integram a região do
respectivo polo; e III - juízes convocados conforme escala elaborada pelo Grupo de Monitoramento e Fiscalização
do Sistema Carcerário do Estado do Rio Grande do Norte Carcerária (GMF/RN), se não for preenchida de acordo
com os incisos anteriores.” 61 Últimos dados fornecidos pela Central de Flagrantes a esta pesquisadora.
67
MESES/ANO AUDIÊNCIAS ALVARÁS MANDADOS FIANÇAS ARBITRADAS
NA DELEGACIA
OUTUBRO/2015 118 54 65 34
NOVEMBRO/2015 164 110 54 51
DEZEMBRO/2015 170 97 73 65
JANEIRO/2016 135 63 72 79
FEVEREIRO/2016 174 82 92 86
MARÇO/2016 175 84 91 80
ABRIL/2016 174 57 117 92
MAIO/2016 193 95 98 102
JUNHO/2016 152 58 94 48
JULHO/2016 91 41 50 45
AGOSTO/2016 188 90 98 30
SETEMBRO/2016 144 67 79 31
OUTUBRO/2016 196 75 94 48
NOVEMBRO/2016 153 67 86 43
DEZEMBRO/2016 139 56 83 75
JANEIRO/2017 158 98 60 30
FEVEREIRO/2017 131 57 74 36
MARÇO/2017 150 79 75 37
ABRIL/2017 202 84 115 35
MAIO/2017 139 49 94 39
JUNHO/2017 154 72 85 32
JULHO/2017 150 67 86 26
AGOSTO/2017 152 61 92 34
SETEMBRO/2017 153 49 106 23
OUTUBRO/2017 177 79 98 40
NOVEMBRO/2017 138 74 65 37
DEZEMBRO/2017 130 57 77 24
JANEIRO/2018 161 71 96 47
FEVEREIRO/2018 212 86 131 31
MARÇO/2018 279 117 167 54
ABRIL/2018 222 77 148 39
MAIO/2018 209 91 121 53
JUNHO/2018 219 98 122 43
JULHO/2018 206 96 114 38
AGOSTO/2018 223 101 124 47
SETEMBRO/2018 233 92 144 50
OUTUBRO/2018 256 66 124 46
NOVEMBRO/2018 284 90 159 36
DEZEMBRO/2018 209 94 117 38
68
JANEIRO/2019 216 91 127 32
FEVEREIRO/2019 245 95 154 29
MARÇO/2019 270 110 162 38
ABRIL/2019 241 129 118 40
TOTAL DE AUDIÊNCIAS:
7.885 3.426 4.401 1.963
Fonte: Dados fornecidos pela Coordenadoria da Central de Flagrantes em junho de 2019.
Contudo, há algumas questões que precisam ser aprofundadas dentro dos dados
divulgados pelo TJRN, que, sem os devidos recortes, acabam por mascarar algumas realidades
incluídas em categorias que transcendem o decreto, ou não, de uma prisão após a audiência.
Assim, dentro dos casos em que há concessão de alvará de soltura, geralmente
publicizados como “casos que resultaram em liberdade”62, há as situações em que houve o
decreto de medidas cautelares diversas da prisão63, que foram instituídas pela Lei nº
12.403/2011 como alternativas ao cárcere quando não estivessem preenchidos critérios de
necessidade e adequação, ainda que haja indícios de materialidade e de autoria.
Importa refletir, nesse âmago, que tanto a prisão quanto as medidas cautelares diversas
são instrumentos que cerceiam parte da liberdade do indivíduo como forma de acautelar o
processo penal. Logo, mesmo as cautelares diversas sendo menos gravosas do que o cárcere,
elas não poderiam ser incluídas dentro dos dados de “medidas que resultaram em liberdade”
como a Corregedoria Geral de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte costuma divulgar.
Também há de se destacar que dentro desses mesmos índices de “liberdade”, há as
situações que foram consideradas prisões arbitrárias, resultando em relaxamento. Não
aprofundar os dados para divulgar a quantidade de prisões em flagrantes consideradas ilegais
vela também a importância da divulgação do instituto da audiência de custódia como meio de
se garantir a que não haja excessos policiais e de prevenção a tortura.
Apesar desses recortes não serem detalhados pelo Poder Judiciário do Estado do Rio
Grande do Norte, que ainda possui um sistema de aferição de dados muito comedido, eu pude
constatá-los na pesquisa quantitativa que realizei em relação aos primeiros 18 meses de
funcionamento da Central de Flagrantes. Dentro do meu recorte de pesquisa, que albergava os
crimes de tráfico de drogas, eu verifiquei que dos 218 “casos que resultaram em liberdade”
62 Essa é a nomenclatura adotada pela própria Corregedoria de Justiça ao divulgar os dados oficias, dividindo-os
em apenas duas categorias: “Casos que resultaram em liberdade” e “casos que resultaram em prisão”. 63 O rol de medidas cautelares diversas da prisão está previsto no art. 319 do Código de Processo Penal. Entre elas,
as mais frequentes são o comparecimento periódico em juízo, a proibição de acesso ou frequência a determinados
lugares, a proibição de ausentar-se da comarca, o recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga; a
internação provisória; a fiança e a monitoração eletrônica.
69
naquele ínterim, 63,7% correspondiam a imposição de medidas cautelares pessoais diversas da
prisão e em 17,4% deles, a prisão foi relaxada por ser considerada ilegal (PEIXOTO, 2019).
Figura 1. Gráfico da proporção dos dados qualitativos nominais dentro do quantitativo dos “casos que
resultaram em liberdade” nos crimes tipificados na Lei nº 11.343/06.
Fonte: Dados obtidos através de pesquisa direta nos termos e pautas de audiência através Sistema de Automação
Judicial – SAJ.
Nota: Gráfico produzido pela própria autora.
A partir do gráfico acima, é possível perceber que em aproximadamente 2/3 dos casos
que resultam em liberdade, na verdade, correspondem a uma liberdade mitigada, com
obrigações processuais impostas aos custodiados, como o comparecimento periódico em juízo,
a proibição de acesso ou frequência a determinados lugares, a proibição de ausentar-se da
comarca, o recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga; a internação
provisória; a fiança e a monitoração eletrônica.
Outrossim, preciso ainda destacar que comparando os dados gerais que eu obtive
naquela época com os dados mais recentes fornecidos pela Secretaria da Central de Flagrantes,
vê-se que, proporcionalmente, o número de audiências que resultaram em prisão preventiva
aumentou de 52,7% (abril de 2017) para 55,8% (abril de 2019).
É justo esclarecer também que no ínterim da pesquisa anterior, a Central de Flagrantes
só comportava as audiências dos crimes que eram de competência da comarca de Natal e que,
no período da pesquisa atual, ela passou a abranger mais cinco comarcas. Contudo, mesmo com
a sua expansão para uma parte da região metropolitana, o processo de interiorização ainda
ocorre de forma bastante lenta em razão da estrutura deficitária da maior parte das comarcas do
interior que, em sua maioria, são varas únicas, possuindo apenas um juiz para lidar com
processos de todas as matérias.
Assim, durante todo o meu período de pesquisa inicial, as audiências se limitavam
apenas à Capital do Estado. Agora, na nova fase do meu campo, foi possível conglobar as
38
42139
Esmiuçando os casos que resultaram em "liberdade" nos crimes previstos na
Lei nº 11.343/06 entre out./2015 e abr./2017.
Relaxamento de Prisão
Liberdade Provisória
Medidas cautelares diversas
70
comarcas de Extremoz, Parnamirim, Macaíba, Ceará-Mirim e São Gonçalo do Amarante, que
integram o Polo Regional de Natal, o que engrandeceu bastante a minha percepção sobre a
forma como os marcadores territoriais são observados pelos juízes e pelos próprios custodiados.
Outro importante passo da interiorização das audiências de custódia no Estado, ocorreu
em 12 de fevereiro de 2020, quando foi divulgada a resolução nº 04/2020 do TJ, que instituiu
polos regionais para a realização de audiências de custódia também nas comarcas de Mossoró,
Caicó e Pau dos Ferros. Contudo, elas tiveram a sua implementação paralisada em razão da
Pandemia do Covid-19, não havendo perspectiva de início das atividades no ano de 2020.
Por não haver registro de dados sobre o número de prisões preventivas antes de outubro
de 2015 no Rio Grande do Norte, não é possível mensurar, em números, o impacto da
implantação das audiências no aumento ou na redução das prisões cautelares. Ainda assim,
escutei bastante ao longo dos últimos cinco anos discursos – desvinculados de qualquer análise
científica – que reverberavam que as audiências de custódia, supostamente, aumentariam a
criminalidade e a sensação de insegurança porque libertariam as pessoas presas pela polícia.
Percepção essa, também observada e trabalhada por Câmara em sua etnografia (2019).
Esse discurso, reproduzido, inclusive, por profissionais da segurança pública e da seara
jurídica, se encaixa na perspectiva utilitarista que mede a efetividade do sistema de justiça
através do número de prisões que ele gera. Contudo, ele entra em contradição se avaliarmos
que o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo e, nem por isso, sua
população tem se sentido mais segura. O que denota que encarcerar mais não implica,
necessariamente, na redução dos índices de criminalidade.
Outrossim, mesmo não sendo possível quantificar em âmbito local o impacto que essas
audiências causaram no número de prisões, em âmbito nacional é caro reconhecer que o número
de prisões preventivas aumentou consideravelmente, sendo que em 2002 havia 80.235 pessoas
reclusas antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória (SANTOS JÚNIOR, 2017,
p. 59), e em junho de 2019, conforme levantamento do Conselho Nacional de Justiça, esse
número chegou 337.126 (BRASIL, 2019), um incremento de 320%.
Assim, “se sentir seguro”, se revela uma categoria bastante aberta e porosa. Enquanto
uns têm medo da violência das ruas, outros poderão ter medo da violência cometida pelo próprio
Estado ou viverem amedrontados por ambos os tipos. Gilberto Velho, nesse sentido, afirma que
“o que se chama, às vezes toscamente de sensação de insegurança, nos leva a uma sociologia
ou antropologia do medo” (VELHO, 2005, p. 3). Pondera, ainda, que as experiências diretas ou
indiretas com as diferentes formas de violência irão implicar em alterações nas expectativas e
71
padrões de sociabilidade, que nem sempre serão lineares. Essas sensações provocariam, então,
movimentos de enclausuramento e de rejeições para com o outro.
Essas sensações acabam sendo utilizadas como objetos políticos para segregação, que
pretendo problematizar algumas das associações que foram feitas entre as chamadas crises na
segurança pública e no sistema carcerário do Estado do Rio Grande do Norte com o processo
de implantação das audiências de custódia, que sofreu intensas críticas em razão de ter sido
criada no mesmo período em que ocorreram as maiores rebeliões no sistema carcerário potiguar
e em que os índices de criminalidade violenta local chegaram ao seu auge.
Desde março de 2015, através do Decreto nº 25.019, o Poder Executivo Estadual vem
prorrogando, sucessivamente, a decretação de calamidade no sistema prisional, destacando a
necessidade de adotar “medidas de emergência”64. Contudo, o histórico de violações já vinha
sendo denunciado e exposto bem antes disso, havendo documentos que evidenciam que desde
o ano de 2007 o número de mortes violentas dentro dos presídios estaduais já chamava atenção
nas inspeções judiciais (BRASIL, 2013, p. 48-49). O crescimento das violações e mortes dentro
dos muros do cárcere, evoluiu junto ao índice geral de mortes violentas, o que fez com que o
Estado reconhecesse também a “crise na segurança pública”.
Destarte, apesar dos alertas lançados quanto à realidade carcerária potiguar já
perdurarem por anos, foi apenas quando os seus reflexos começaram a ultrapassar as grades e
os muros dos estabelecimentos prisionais, através de rebeliões, fugas e atentados a transportes
coletivos, bancos e prédios públicos que a questão começou a virar uma pauta política e
midiática.
O Estado de Calamidade declarado em 2015 foi corolário desses eventos de
insurgência que já ultrapassam os muros dos presídios. A partir desse ano a pauta do sistema
carcerário do Rio Grande do Norte começou a entrar em discussão em Comissões Parlamentares
de Inquérito no Congresso, na mídia local e nacional e em inúmeras audiências públicas.
Contudo, ainda que a pauta ganhasse espaço nesses cenários, pouco se falava em
construção de políticas públicas de forma dialógica, não havendo a criação de espaços
efetivamente deliberativos sobre as questões denunciadas. Egressos do sistema prisional e as
famílias das pessoas presas sequer eram chamados a participar dos já escassos espaços de debate
institucional sobre esse tema.
64 Em 17.03.2015, através do Decreto nº 25.017, foi declarada situação de calamidade do Sistema Prisional do Estado do
Rio Grande do Norte. Em 16.09.2015, em 15.03.2016, em 15.09.2016, em 04.03.2017 e em 29.08.2017, a situação foi
prorrogada, sucessivamente, por mais 180 dias, totalizando 2 anos e meio de reconhecimento do Estado da Situação
calamitosa vivenciada e da necessidade de adotar “medidas de emergência”. (Todos os decretos estão disponíveis no
Diário Oficial do Estado do RN publicado nas respectivas datas).
72
Adentra, novamente, a reflexão sobre a mitigação dos espaços de voz da população
carcerária diante desse quadro caótico. Os que já eram considerados, outsiders, à margem e sem
voz mesmo quando em liberdade (BECKER, 2008, p. 153), passam, no cárcere, a vivenciar
uma nova faceta do silenciamento. A suspensão dos direitos políticos ativos, para além de um
consectário da pena, se revela na falta de representatividade desse grupo, que para além da
cidadania em seu viés formal, perde a cidadania em seu sentido material, ao ser eivado da sua
voz na sua busca por direitos. Em tese, alega-se que os seus direitos são preservados a partir da
assistência individual por parte dos seus advogados ou defensores públicos, mas pouco se fala
sobre seus desejos e anseios pessoais e coletivos dentro da comunidade com a qual se
sociabilizam dentro das prisões65.
No Estado do Rio Grande do Norte essa situação ficou visível a partir das demandas
da população carcerária, formuladas através de cartas, reivindicações das famílias e protestos
pacíficos, como greves de fome, formuladas nos anos de 2014 e 2015. Após não haver resposta
da Administração Pública diante das manifestações até então consideradas “pacíficas”, deu-se
início uma onda de rebeliões.
Nesse cenário, os anos de 2016 e de 2017 se tornaram tristes marcos da realidade
caótica do sistema carcerário no Estado do Rio Grande do Norte. Em 2016, foram registradas
31 mortes violentas dentro das prisões potiguares (VELASCO; D'AGOSTINO; REIS, 2016) e
mais de 367 fugas (G1RN, 2016)66. O cenário de superlotação, de depredações, insalubridade
e de fortalecimento das facções permaneceu, agregado a ataques extramuros, que paralisaram
o funcionamento de órgãos públicos. Já em janeiro de 2017, o palco da tragédia foi a
Penitenciária Estadual de Alcaçuz, que vinha, há anos, sofrendo sérios problemas estruturais,
de insalubridade e de disputas de poder entre facções criminosas. Com capacidade para 620
presos, abrigava aproximadamente o dobro na época do massacre67.
65 E quando o Estado invisibiliza suas margens, elas criam meios autônomos de se expressar, se expor e se impor
(DAS; POOLE, 2008), abrindo espaço para que as organizações “paralelas” as enxerguem e as forneçam espaço e
voz. Sobre esse tema, Karina Biondi, em Políticas prisioneiras e gestão penitenciária (2017), abordou como o
Primeiro Comando da Capital, o qual ela identifica como “movimentos”, veio a ter parte das suas ações guiadas a
partir do exercício da Justiça, da legislação e das operações da segurança públicas e, ciclicamente, passou a também
produzir impactos sobre elas, incitando, através de suas ações, impactos nas gestões das prisões. 66 Dados informados pela Secretaria de Justiça e Cidadania do Rio Grande do Norte - SEJUC ao Jornal G1 (G1RN,
2016). Disponível em: http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2016/12/sejuc-confirma-fuga-de-19-
presos-do-presidio-de-parnamirim-no-rn. Acesso em: 08 mai. 2019. 67 Os números são imprecisos. Nem a própria administração penitenciária sabia mensurar ao certo o número de
pessoas presas, não havendo um sistema informacional e integrado de dados que possibilite precisão nesses
números. Em força tarefa denominada “Defensoria sem Fronteiras” coordenada pelo Colégio Nacional de
Defensores Públicos (Condege), Ministério da Justiça e Cidadania e Defensoria Pública da União (DPU), foi
constatado que havia mais processos que presos em Alcaçuz, havendo pessoas que constavam na lista de presos,
mas que não estavam lá, nem na relação dos mortos e nem na relação dos fugitivos. (ESCOLA SUPERIOR DA
DEFENSORIA PÚBLICA, 2017)
73
Após ser iniciado o que ficou conhecido como o Massacre de Alcaçuz 68, a polícia
militar demorou 13h para entrar no Presídio. Durante todo esse período de ação das pessoas
encarceradas e de omissão do Estado, ocorreram, segundo os dados oficialmente divulgados69,
27 óbitos, sendo 15 deles por decapitação, sendo registradas 56 fugas. Esses confrontos também
ultrapassaram os muros das penitenciárias, impulsionando a disputa por territórios e por
membros nos bairros mais vulneráveis da cidade.
É relevante lembrar da onda terror que foi propagada pelas redes sociais durante essas
ocorrências, gerando correntes de vídeos, imagens e áudios dos motins e dos ataques, agregadas
a muitas das chamadas Fake News70, que agravaram ainda mais a desinformação da população
e a sensação de terror provocada pelo exagero e política do medo, que acabam por fortalecer as
organizações criminosas e as organizações institucionalizadas que se beneficiam dessa onda de
terror e de sensacionalismo.
Outra problemática relacionada ao pânico popular potencializado pelas mídias sociais
nesse contexto foi a demonização da população carcerária holisticamente, gerando discursos de
ódio, fortalecendo a ideologia punitivista, associando a justiça à punição (KANT DE LIMA,
2008) e impulsionando uma “comoção” supostamente legitimadora da violação de garantias
constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa71.
Essa contextualização sobre a situação carcerária do Estado do Rio Grande do Norte e
os seus reflexos na política de segurança pública, importa, na minha concepção, para que
aqueles que não vivenciaram esses momentos possam compreender como os discursos gerados
diante dessa instabilidade aumentaram a demonização das audiências de custódia e
reverberaram nos índices das prisões em flagrante nesse Estado, sobretudo, em Natal e na
Região Metropolitana, campo desta pesquisa.
68 Na versão difundida pela administração carcerária e repercutida pela imprensa, o conflito ocorreu quando os
custodiados da Penitenciária José Coutinho Madruga, também chamado de Pavilhão 5, supostamente filiados à
Facção Primeiro Comando da Capital, conseguiram invadir a sala da direção da unidade e o espaço onde agentes
guardavam armas, se munindo para invadir e atacar o Pavilhão 4, onde havia membros da facção rival, chamada
Sindicato do Crime. Concomitantemente, ocorriam protestos do lado de fora dos presídios feitos por familiares
preocupados em busca de notícias e cobrando uma intervenção rápida para evitar um massacre, o que não se
efetivou. 69 Há relatos de vítimas do massacre e de suas famílias que denunciam haver muito mais mortes do que as
anunciadas oficialmente. 70 Notícias falsas/fabricadas com alto poder de propagação viral na comunicação. 71 Consoante refletiu Sophia Prado essa assimilação vinculada a divulgação de uma “situação de emergência”,
influencia o sentimento de total desapreço pelas garantias penais e processuais penais, buscando-se, “estratégias
de aumento do custo do crime, o que é lido, simploriamente, como sinônimo de ampliação da pena, do número de
condutas criminalizadas, bem como de criação de novos requisitos para se obter a liberdade” (PRADO, 2016, p.
67), sendo vergastados novos institutos de cunho garantistas e desencarceradores.
74
Eu senti diretamente esses reflexos durante o trabalho de campo que realizei nos anos
de 2016 e 2017, constatando que durante as tentativas do Estado retomar o controle, aumentou-
se o número de prisões em flagrante consideradas ilegais nas audiências de custódia,
principalmente, as autuadas em crimes previstos na Lei de drogas (PEIXOTO, 2018), seja por
ausência de indícios de materialidade ou de autoria, ou por práticas abusivas das autoridades
policiais, como invasões a domicílio ou prisões genéricas e em massa.
Sendo constatada a ilegalidade dessas prisões e, aumentando, consequentemente, o
número solturas, as audiências de custódia se tornaram, novamente, um alvo de críticas dos
setores que acreditam que a efetividade da segurança está ligada ao número de prisões. Quando,
na realidade, o número de prisões desnecessárias foi um dos fatores responsáveis pelas
rebeliões, disputas faccionais, aumento no índice de mortes e instabilidade na segurança.
E é diante dessa conjuntura de grandes impactos e pactos que a violência provoca, que
é preciso reconhecer, em uma perspectiva sistêmica e dialógica, que a realidade da segurança
pública e a realidade carcerária não podem ser separadas em compartimentos estanques.
Nesse sentido, consoante avaliou a Human Rights Watch (2014) as audiências de
custódia “possuem potencial para reduzir a criminalidade ao evitarem prisões desnecessárias,
que poderiam sobrecarregar ainda mais o sistema carcerário a provocar o fortalecimento de
facções e a reprodução da violência” (HRW, 2014). Elas representariam, então, um importante
mecanismo para diminuir esse ciclo, podendo ajudar a coibir a violação de direitos humanos
dentro e fora das grades.
Logo, restando situado o processo de implantação das audiências de custódia na
Central de Flagrantes do Município de Natal, é possível compreender melhor a necessidade de
sua efetivação para tentar sanar a realidade prisional sobrecarregada e desumanizante que há
mais de uma década vem se edificando no Estado.
E é reconhecendo que o crime de tráfico de drogas é um dos que mais resulta em
prisões preventivas no Rio Grande do Norte72, que se faz necessário estudar como ocorrem as
avaliações sob essas prisões a partir dos marcadores sob o consumo, comércio, territórios e
perfis que as circundam.
72 Apesar do TJRN não divulgar dados que singularizem as prisões preventivas no Estado, na pesquisa que eu
realizei entre outubro de 2015 e abril de 2018, primeiros 18 meses de funcionamento das audiências de custódia
na Central de Flagrantes de Natal, observei que 20,4% do quantitativo total de prisões preventivas decretadas
nesses eventos foram por crimes de tráfico de drogas (PEIXOTO, 2018).
75
2.3 A QUERELA DAS PRISÕES POR TRÁFICO DE DROGAS PARA ALÉM DOS
NÚMEROS.
Para compreender como se exterioriza o instituto das audiências de custódia é preciso,
primeiramente, reconhecer que a sua percepção e vivência serão relacionais e distintas a
depender do delito imputado. Um flagrante de um homicídio, um flagrante de violência
doméstica, um flagrante de um furto simples e um flagrante de tráfico de drogas não podem ser
equiparados dentro de dados estanques, pois atingem bens jurídicos diversos73 e em distintas
proporções. Por isso, a avalição do instituto não pode omitir as singularidades que existem a
depender do suposto desvio, havendo alterações nos discursos e nas posturas adotadas e
moralidades acionadas em audiência consoante a espécie do crime.
É por essa razão que esse estudo elegeu como recorte avaliar como ocorrem as
audiências de custódia de crimes de tráfico de drogas e como operam os marcadores e os
estigmas que diferenciam o consumo e a mercancia a partir da perspectiva dos seus múltiplos
atores. Também é salutar tentar compreender como a categoria da “garantia da ordem pública”
é acionada como fundamento das decisões que mantém a prisão, ainda que em casos em que a
conduta desviante não atingiu com violência direta os demais membros da sociedade.
A princípio, cumpre esclarecer que não há no TJRN mecanismos de pesquisa e de
divulgação dos dados das audiências com recortes relativos à natureza do crime. Assim, todos
os dados divulgados oficialmente por esse Tribunal e pela imprensa nos últimos anos refletem
uma realidade conglobante que homogeneíza o peso que é dado para todos os tipos de prisões
e para todos os resultados advindos das audiências.
Ao revés, a vivência mostra que existem múltiplos fatores que podem pluralizar esses
eventos, principalmente, quando se trata de um crime como o tráfico de drogas, onde há
discricionariedade na interpretação sobre a ocorrência de traficância ou do porte para consumo
pessoal. Bem como, uma generalização para com as múltiplas figuras que podem caracterizar
o tráfico, estando em um mesmo patamar as condutas de importar, exportar, remeter, fabricar,
adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar,
prescrever, ministrar, entregar a consumo, ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem
autorização74.
73 Bens jurídicos são os objetos, materiais ou imateriais, que, devido a sua importância sociocultural são cabíveis
de proteção para o direito. No caso do tráfico ou uso de drogas, o bem jurídico protegido é a saúde pública. Em
crimes de homicídio, o bem jurídico tutelado é a vida. Já no caso de crimes de furto ou roubo, o bem jurídico
protegido é o patrimônio. 74 Consoante dispõe o art. 33 da Lei 11.343/2006.
76
Assim, conforme eu já podia observar durante o meu período de Residente Judicial, os
processos de diferenciação do tráfico de drogas para o porte de drogas para consumo pessoal
eram bastante subjetivos, sendo comum que muitas pessoas ficassem meses – ou até mesmo
anos – em prisão preventiva.
Em alguns desses casos eu pude presenciar, no momento da sentença ou durante a
apreciação recursal, a desclassificação do crime para a figura do porte de drogas para consumo
pessoal (Art. 28 da Lei 11.343/2006), no qual as sanções seria apenas advertência sobre os
efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade ou medida educativa de
comparecimento à programa ou curso educativo.
Outros casos em que eu pude observar com frequência eram aqueles em que durante a
sentença tinham a pena reduzida em razão do acusado ser primário e não pertencer a nenhuma
organização criminosa, o que caracterizaria a figura do §4º do art. 33 da Lei de Drogas75,
conhecida como “tráfico privilegiado”. Ou seja, eu via essas pessoas passando todo o curso
processual encarceradas, para, ao final, serem condenadas por algo que sequer comportava uma
pena de prisão em regime fechado.
Bastante sintomáticas eram também as prisões de mulheres por tráfico de drogas, que
é o crime que mais encarcera corpos femininos no Brasil, segundo o INFOPEN-Mulheres de
2018. As condutas de armazenar, transportar ou trazer consigo eram as responsáveis pela maior
parte das prisões de mulheres, em razão da lei e das decisões judicias colocarem no mesmo
patamar interpretativo, condutas de diferente potencialidade e hierarquias dentro do tráfico.
Na pesquisa que realizei referente aos primeiros 18 meses de funcionamento da central
de flagrantes de Natal, constatei que das 82 audiências de custódia por prisões em flagrante de
mulheres por crimes previstos na Lei nº 11.343/2006 ocorridas nesse ínterim, 12% foram
consideradas ilegais. Sendo esse percentual duas vezes maior do que o das prisões arbitrárias
de homens presos por tráfico, que, na época, correspondiam a 6% dos casos.
Esse recorte de gênero e de natureza do crime elucidaram algo que eu já observava
empiricamente em minha prática criminal: muitas mulheres também são presas em operações
policiais apenas por estarem em contato com um ambiente em que permeia situações correlatas
ao tráfico de drogas, muitas vezes sem terem sequer envolvimento direto com o fato. E isso se
tornava ainda mais nítido quando elas são mulheres negras e pobres.
75 § 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois
terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre
organização criminosa.
77
O ponto é que todas as questões acima relacionadas já podem ser avaliadas nesse contato
inicial propiciado pelas audiências de custódia. Mas mesmo assim, foi comum ver os juízes
mantendo a prisão cautelar, ainda que tivessem a consciência de que ela seria mais gravosa do
que a eventual condenação, ou escondendo a fundamentação atrás do marcador genérico da
“necessidade de garantia da ordem pública”.
Para além dessas questões mais técnico-jurídicas, haviam marcas e vivências relatadas
pelos custodiados, seus familiares e defensores que uma análise quantitativa ou meramente
dogmática não seria capaz de exprimir. Assim, a querela das drogas se mostrava muito mais
complexa por ser relacional, o que acaba sendo utilizado quase sempre em desfavor do
indivíduo a depender da sua classe social e meio em que vive.
Consoante abordei no tópico 1.3, o proibicionismo não foi – e dificilmente será – capaz
de eliminar totalmente os usos das substâncias classificadas como ilícitas. Entrementes, o ato
de proibir é capaz de gerar efeitos de diversas ordens, dentre eles a desinformação e a
glamourização (ALVES, 2010, p. 214). Há ainda diversos tabus que impedem que esse assunto
seja debatido amplamente e democraticamente, considerando, inclusive, as vozes dos seus
usuários.
O lastro cultural do uso de drogas, nesse âmago, sofre um processo de degeneração
face às imagens criadas pela censura oficial, que limita o amplo debate no âmbito social e até,
mesmo, no âmbito acadêmico. Assim não podemos trabalhar essa temática enquanto negarmos
os elementos políticos, sociais, culturais e identitários capazes de pluralizar, distanciar,
marginalizar, etiquetar ou negar o outro. Esses processos costumam ser permeados por
marcadores sociais denominados estigmas, atribuídos àqueles que não se encaixam no que,
hegemonicamente, se pré-estabelece como padrão.
A título de introdução, Goffman (1985) foi um dos principais responsáveis pela
edificação desse conceito, perquirindo os processos de adaptação da identidade ao convívio
social. Ele denominou a identidade pessoal de identidade real, que é cotejada com a identidade
virtual, que se refere às máscaras que colocamos diante dos espaços ou grupos em que tentamos
nos inserir.
O estigma, nesse contexto, seria, uma identidade deteriorada, o que representaria a
dissonância dos estereótipos criados pela sociedade para os atributos de um indivíduo, que passa
a ser entendido como desviante, sendo aquele que não se adequa ao ideal de moralidade e
hierarquia e que representa “defeitos nos esquemas motivacionais da sociedade” (GOFFMAN,
1978, p. 121-122).
78
Assim, a própria produção desses estigmas passa a representar uma das forma de
controle dos corpos dos indivíduos “desviantes”, produzindo efeitos cíclicos. Ao passo que os
estigmas são adotados no próprio processo de criminalização e de punição. Contudo, essa visão,
às vezes, não é compartilhada pelos próprios usuários de drogas e por aqueles que cometem
condutas que se enquadram nas situações de tráfico. Porém, como observou Misse (2010), ao
tratar do conceito de sujeição criminal, em algumas situações esses traços acabam sendo
adotados por eles, afim de reforçar o que é esperado daquela posição e, eventualmente, até
garantir maior destaque no meio.
Esse processo contribui, então, no reforçar da criação e difusão de mais estigmas, que
são frequentemente utilizados no ato de julgar. Em campo, aliás, pude observar diversos deles
sendo reproduzidos durante o transcurso das audiências e realização das entrevistas. Adiantarei
aqui alguns deles para que seja possível entender a problemática dessa questão.
Por exemplo, em uma entrevista que realizei com uma defensora, ela pontuou que um
dos custodiados que ela estava defendendo, “não tinha cara de usuário de cocaína”, pois “não
havia nenhuma ferida em seu nariz”.
Já em uma das audiências que participei, após o custodiado ser retirado da sala, o juiz
disse: “Ele está muito gordinho para ser usuário de crack e ninguém sobrevive tantos anos
fumando isso... Se o que ele diz fosse verdade, ele já teria morrido.” Essas percepções pessoais,
que nunca constavam por escrito nos documentos oficiais, se mostravam cruciais para o juiz
interpretar, naquele momento, que não se tratava de porte de drogas para consumo pessoal, mas
sim de tráfico de drogas.
Em outra situação, o juiz questionou o fato de um custodiado andar com uma balança
de precisão em sua mochila e dizer que era apenas usuário, ele falou: “Essa desculpa foi
criativa, quem é que leva uma balança na hora de comprar drogas? Vai ter coragem de duvidar
do peso que o traficante diz?”.
Apesar de, no Brasil, não haver qualquer delimitação de peso e quantidade que
diferencie a figura do artigo 28, que trata sobre o porte para consumo pessoal, da figura do
artigo 33, que trata das múltiplas espécies de tráfico da Lei de drogas, cada juiz costuma
interpretar as quantidades que julgam excessivas de acordo com as suas “regras da
experiência”, expressão utilizada comumente por eles.
Durante uma das audiências de custódia que acompanhei, o juiz confrontou o
custodiado com a seguinte frase: “O senhor quer que eu acredite que 20 saquinhos de pó são
para consumo pessoal?”. Enquanto o custodiado respondeu: “Isso dá só para três dias e eu
não vou me arriscar para comprar só 5 saquinhos.” Esse diálogo me fez pensar se estariam os
79
magistrados, realmente, conscientes sobre esses fatores que não são explicados nos livros
jurídicos.
Valois (2019, p.450) - que além de pesquisador, é também juiz criminal – assume essa
deficiência formativa dos magistrados, mas pondera que não é só na prática judicial, em si que
isso é preocupante. Para ele, na prática policial, a discricionariedade segue com raros limites,
reprisando uma guerra que não é contra produtos, mas contra pessoas.
Nesse sentido, os estigmas, por exemplo, também são constantemente repetidos
quando se faz correlações aos territórios onde o crime foi cometido ou a possível participação
dos custodiados em alguma facção criminosa.
Uma das defensoras públicas que eu entrevistei disse que “Dependendo das gírias que
eles usam e do jeito que eles andam, a gente já sabe a qual facção eles pertencem”. No mesmo
sentido, uma das Promotoras de Justiça entrevistadas disse: “Se a sobrancelha tem dois cortes,
é sinal que ele é do Sindicato do Crime, se a sobrancelha tem três cortes, ele é do PCC. Existem
algumas tatuagens também que nos deixam em alerta.”
Em entrevista realizada com um juiz ele admitiu: “Se ele vem de uma região dominada
por facção, tem que prender para deixar o exemplo.” Outra promotora, em entrevista, também
assumiu:
A gente considera sim o lugar da onde vem a pessoa, se eu disser que não, eu
estaria mentindo. Se a pessoa mora em um bairro dominado por facções ou
se tem uma boca de fumo na porta de sua casa, é claro que acusação de tráfico
de drogas vai ser valorada de forma diferente.
Assim, pude perceber como o peso, o olhar, as sobrancelhas, o nariz, os objetos que
eles carregavam, a idade que eles tinham, a região onde residiam, o vocabulário, o modo de
andar e o tempo que eles afirmavam ser usuários eram traços observados durante as audiências,
mas que não eram transcritos na fundamentação das decisões.
Já quando eu ia realizar as entrevistas com os usuários, as perspectivas sobre os usos
já eram bem mais detalhadas. Eles me respondiam quando tinham começado a utilizar, se eles
se consideravam dependentes químicos76 ou usuários recreativos, me falavam se tinham o
desejo de parar ou não, me detalhavam a quantidade de drogas que usavam quando iam a uma
festa ou quando estavam dentro de casa, me explicavam qual era a sensação, que variava a
depender da droga e a depender do ambiente que eles usavam e, até mesmo, assumiam que não
eram usuários e que estavam traficando para poder sobreviver.
76 Quando alguns dos meus interlocutores não compreendiam o que era uma pessoa sob dependência química, eu
explicava que era quem sentia constante necessidade de usar as drogas, não conseguindo parar com facilidade. A
maioria, em seguida, perguntava se era como um “viciado” e eu respondia que sim.
80
Os múltiplos usos dessas substâncias apenas demonstravam como os seus impactos
poderiam ser relacionais e que não cabiam em definições estanques como as que eram
constantemente reproduzidas pelos agentes estatais com quem eu dialoguei. Consoante pondera
Denis Russo Burgierman (2011) para algumas pessoas o consumo, por exemplo, pode ser algo
inofensivo, um passatempo que pode facilmente ser mantido sob controle, já outras podem
sofrer danos irremovíveis ou ter dificuldades para manter o hábito sob controle
(BURGIERMAN, 2011, p. 135).
No caso do tráfico, da mesma forma, é preciso reconhecer que nem todas as pessoas
que compartilham ou comercializam drogas são pessoas violentas ou envolvidas em outros
tipos de crime. O processo de análise da necessidade e da adequação de uma prisão deveria
estar apto a reconhecer essas diferenças e não a encaixotá-las dentro das mesmas categorias,
etiquetando-as com estigmas que fogem a ideia de dialogismo e do contato que as audiências
de custódia se propõem.
Cada uma das histórias que eu pude ouvir, tão ricas em detalhes, contrastava com as
poucas palavras que eram ditas durante as audiências e transformadas em autos judiciais. Elas
também destoavam, inclusive, das conversas que eu acompanhei entre os custodiados e com
seus defensores.
Os números que eu tinha coletado na minha pesquisa anterior e todos os termos de
audiência que eu pude analisar, jamais revelariam as informações que eu pude colher a partir
do contato pessoal e direto com os meus interlocutores.
Não obstante, a minha trajetória me ajudou a ir a campo de forma mais habituada ao
seu vocabulário e aos seus rituais, me ajudando a observar com mais atenção as lacunas que me
incomodavam anteriormente. A principal delas era a do fundamento utilizado em 88% das
decisões que decretavam prisões preventivas nas audiências de custódia por crimes de tráfico
de drogas: “a necessidade de garantia da ordem pública”. E em 72% dos casos que acompanhei
essa era a única fundamentação utilizada.
Diante dos sintomáticos dados coletados na minha pesquisa anterior, ilustrados no
gráfico abaixo, passei, então, a indagar aos promotores e os juízes como eles percebiam essa
categoria e como ela se encaixava no crime de tráfico de drogas77.
77 As respostas serão abordadas junto aos dados etnográficos expostos no Capítulo III deste estudo.
81
Figura 2. Gráfico com as fundamentações utilizadas nas decisões que decretaram prisão preventiva em
crimes de tráfico de drogas, entre o período de out./2015 a abr./2017.
Fonte: Dados obtidos através de pesquisa direta nos termos e pautas de audiência através Sistema de Automação
Judicial –SAJ. Índices divulgados na Monografia “Crise carcerária, rebeliões e prisão preventiva: Interfaces e
complexidade nas audiências de custódia por crimes de tráfico de drogas em Natal/RN” (PEIXOTO, 2018).
Nota: Gráficos produzidos pela própria autora.
As múltiplas respostas dadas pelos juízes e promotores me fez atentar para uma outra
necessidade, a de entender o desvio dentro de um processo interacionista. A obra de Becker
(2008), nesse sentido, é crucial para entender a necessidade de estudos que transponham a
análise do indivíduo ou de sua conduta em sua singularidade, para o estudo da construção das
suas relações, propondo um novo olhar sobre aqueles que criam as regras e as aplicam, passando
a questionar também esses atores, afinal, “se alguém é isento de estudo, isso significa que as
suas pretensões, teorias e afirmações de fato não estão sujeitas a escrutínio crítico” (BECKER,
2008, p. 197).
Assim, eu pude perceber que a “garantia da ordem pública” era uma categoria aberta
que poderia ser usada como chave-mestra para justificar qualquer prisão. As respostas mais
recorrentes que eu escutei sobre o que eles consideravam quando utilizavam a “ordem pública”
foram “a gravidade do crime” e ao “risco de reiteração criminosa”. Apenas um dos juízes
82
entrevistados afirmou não utilizar em qualquer hipótese a “ordem pública” como
fundamentação, argumentando ser ele demasiadamente subjetivo.
Nos casos em que a “gravidade do crime” era alegada eu sempre questionava como
ela era medida em um crime cometido sem violência, como o tráfico de drogas. Alguns juízes
argumentavam que era pela própria disposição legal que o colocava como um crime análogo ao
hediondo. Outros diziam que era pelo tráfico ser a mola propulsora de outros tipos de violência.
E alguns diziam que era pela quantidade de drogas apreendidas. Já quanto ao chamado “risco
de reiteração”, a maioria respondia que era através da análise da ficha criminal do custodiado,
mas que o local onde eles moravam também poderia ser analisado.
Esses argumentos revelam que não é apenas a conduta em si que é observada. Existe
toda uma rede de pensamentos e fatores externos que moldam as decisões tomadas pelos juízes.
Assim, as decisões proferidas durante as audiências de custódia poderiam variar não apenas
pela forma como ocorreram os fatos, mas pela perspectiva que os seus atores terão sobre eles.
Ocorre que, muitas vezes, essa perspectiva acaba sendo construída apenas sob o olhar
dos autos policiais, desconsiderando a voz da pessoa que acabou de ser presa. Quando isso
ocorre, resta desnaturalizada a própria audiência de custódia, que pressupõe o ver e o ouvir do
outro.
Assim, é necessário ir além dos autos policiais para compreender quando ocorrem
essas situações arbitrárias. A fala do custodiado, em um dos casos78, foi crucial na percepção
da Promotora, que pediu o relaxamento da prisão por ter considerado que polícia agiu
irregularmente.
É diante dessas particularidades e de das demais que serão abordadas etnograficamente
nos próximos capítulos, que é preciso reiterar que o debate acerca da efetividade da audiências
de custódia não pode ser minorado ao estudo sobre suas previsões legais ou a mera constatação
de que existe uma estrutura física onde ela se realiza. Não podem as discussões se limitarem,
tão pouco, ao número de casos que resultam em “prisão” ou em “liberdade”. E é nesse norte,
que passarei, agora, a expor a minha nova forma de observar, escutar e de escrever sobre esses
espaços.
78 Ver tópico 3.2.
83
2.4 O (RE)INÍCIO DO CAMPO: NOVOS OLHARES E ESCUTAS SOBRE O
ESTRUTURAL E A ESTRUTURA.
Ao longo da minha atuação enquanto residente judicial e pesquisadora vinculada à
Escola de Magistratura do Estado do Rio Grande do Norte e a Universidade Federal do Rio
Grande do Norte tive a oportunidade de atuar diretamente em uma vara criminal, inserida no
Gabinete de um Juiz, auxiliando-o no processo de elaboração de decisões e sentenças, bem
como, ajudando-o na organização das audiências de instrução e julgamento e, quando era me
era designado, atuava durante as audiências de custódia.
Também tive a oportunidade de poder receber e dialogar com famílias, vítimas,
pessoas acusadas, delegados, promotores, advogados e defensores, o que me fez criar uma rede
de contatos e ouvir múltiplas visões de diferentes pontos e posições.
Apesar de não carregar o peso da caneta - ou da assinatura digital – que finalizava um
ato e eternizava o nome de quem o assinava, eu podia sentir uma parcela da responsabilidade
que é ter em mãos uma parte do poder de decidir sobre a liberdade, ou não, de um indivíduo.
Bem como, podia sentir o quão emblemático era redigir parte da história de alguém em uma
decisão que ficaria eternamente registrada em um processo judicial e publicizada em diários
eletrônicos disponíveis na internet79.
Eu sentia que qualquer despacho, decisão, relatório, termo de audiência ou sentença
que eu ajudava a redigir não era capaz de refletir a totalidade do processo judicial, quiçá de
todas as múltiplas vidas ali envolvidas que transcendiam as posições e papéis ali ocupados. Os
textos eram como fragmentos de outros textos também fragmentados e forjados sob uma
“verdade processual” que era tão ilusória e relacional quanto a suposta “verdade real”
(FONSECA, 2008), certamente, inatingível.
Ainda assim, eu cuidava para sempre tentar fazer relatórios detalhados e fundamentar
todo o percurso decisório através de uma linguagem que, na época, eu julgava ser acessível,
mas que, hoje, posso ver o quão técnica e distante da cognoscibilidade popular ela era.80
Como Residente, eu ocupava uma posição dúbia e confusa de pesquisadora e de parte
inserida naquele ambiente. Ao mesmo tempo em que eu tentava estudar a forma como eram
construídas as decisões, eu também tinha que construí-las seguindo uma lógica pré-estabelecida
e respeitando os limites impostos pelo Juiz com quem eu trabalhava. As categorias de
“neutralidade” e “objetividade” eram constantemente cobradas em ambas as posições que eu
79 Com exceção dos processos que tramitam em segredo de justiça. 80 Essa questão será melhor problematizada no tópico 4.1 sobre os abismos comunicativos.
84
estava ocupando, e eu, ingenuamente, acreditei por alguns momentos que eu estava sendo capaz
de atingir o distanciamento que eu julgava ser necessário.
Não obstante, no período em que comecei a atuar junto às audiências de custódia e a
realizar meu laboratório judicial81, essas questões adquiriram novos contornos e as sensações
de incômodo e de incompletude se intensificaram diante dos limites da minha pesquisa
meramente jurídica e supostamente neutra.
O que eu presenciava durante as audiências de custódia divergia bastante daquilo que
era colocado no papel e que, geralmente, era construído a partir de modelos pré-elaborados que
podiam ser adaptados conforme o resultado das audiências. Além de sintéticos, a maior parte
dos termos de audiência continham decisões com fundamentações genéricas e de conteúdo
aberto, ainda que o seu processo de tomada de decisão às vezes tivesse sido complexo e
embasado em múltiplos processos polifônicos e dialógicos durante a audiência.
Os dados que eu coletei a partir da análise de 538 termos de audiência de custódia por
crimes tipificados na Lei nº 11.343/2006 (Lei de drogas ou SISNAD) entre os meses de outubro
de 2015 e abril de 2017, foram importantes para identificar o percentual de audiências e de
prisões de crimes dessa natureza, traçando um comparativo entre esse recorte o os dados globais
divulgados nas estatísticas oficias. Outrossim, a leitura e a análise do conteúdo desses termos
também me oportunizou avaliar as suas fundamentações e constatar alguns padrões, tecendo
comentários e críticas jurídicas.
Contudo, apesar do meu trânsito facilitado naquele espaço, do livre acesso aos sistema
de automação judicial e aos termos de audiência – o que facilitava sobremaneira a minha
pesquisa em relação a que ora apresento como dissertação de mestrado – todos os dados que eu
divulguei na época ainda não eram suficientes para expor os aspectos e marcadores que eu
observava empiricamente ao assistir as audiências.
Agregada a isso, havia a minha frustração em ver os abismos entre a versão dos fatos
que estava escrita nos autos e as histórias compartilhadas pelas pessoas sob custódia, seus
defensores e família, tão quanto a perspectiva externada oralmente pelo Ministério Público,
pelos servidores e juízes. Travestidas pelas formalidades exigidas, haviam vozes, histórias e
relações que estavam além das registradas pelas câmeras ou pelos autos.
Assim, a perspectiva antropológica trouxe novos significados ao meu campo, novas
cores a minha forma monocromática de enxergar o mundo e os sujeitos com quem interajo e,
como em um espelho invertido, o que eu comecei a ver no outro passou a se refletir sobre mim.
81 Laboratório judicial é o nome dado a pesquisa empírica realizada durante o período prático da Residência
Judicial.
85
Esse arcabouço, até então novo para mim em razão da minha formação sob bases
epistemológicas essencialmente positivistas, fez com que eu me desconstruísse na forma de
pesquisar, escrever e enxergar. As formas tradicionais de fazer pesquisa advindas da minha
experiência com o direito se revelaram bastante deficitárias por não englobarem
suficientemente os aspectos reais e simbólicos que eu observava ao acompanhar as audiências
de custódia nos meus primeiros dois anos de campo durante a Residência Judicial.
Assim, foi readequando a minha postura e o meu olhar que resolvi pesquisar
novamente naquele ambiente buscando agora dar a devida importância aos aspectos que no
passado eu não considerei ou não tive espaço para tanto. Mas confesso que estava equivocada
se em algum momento eu pensei que estaria repetindo alguma experiência pretérita: o meu
campo já não era mais o mesmo e eu também já não era mais a mesma, como já dizia a apotegma
de Heráclito de Éfeso: “ninguém pode adentrar em um mesmo rio duas vezes”.
Antes, eu era vista como alguém que fazia parte daquela estrutura. Agora, apesar do
meu rosto ser familiar, eu não pertencia mais àquele ambiente. Era uma observadora externa,
mas que dominava o idioma ali falado. E o meu conhecimento técnico sobre a forma de acionar
os meus direitos e defender os direitos dos outros era algo que eu percebia que era sempre
sopesado pelos agentes do Estado com quem eu dialogava ou observava.
Durante o meu campo, inclusive, resolvi ativar minha carteira da OAB, eu precisava
de uma entidade forte para me proteger caso eu sofresse com alguma postura arbitrária que
tentasse limitar meu acesso às audiências. Esse tipo de postura não ocorreu diretamente
comigo82, mas eu já estava ciente das dificuldades anteriormente vivenciadas pela pesquisadora
e antropóloga Raphaella Câmara que nos anos de 2017 e 2018, realizou pesquisa sobre as
audiências de custódia no município de Natal. Em um dos seus dias de campo, a pesquisadora
foi ameaçada e maltratada por um agente penitenciário no Centro de Detenção Provisória (que
fica anexo a Central de Flagrantes), no momento em que realizava entrevista com um outro
policial. (CÂMARA, 2019, p. 25). A experiência da colega, inclusive, fortaleceu a minha ideia
de delimitar meu campo, unicamente, à Central de Flagrantes e não frequentar, nesse momento,
as instituições policiais, considerando que são espaços com administração distinta.
Apesar da cordialidade de todos que lá me recebiam, era nítido que muitos se sentiam
preocupados com alguém os estudando em uma perspectiva que eles sentiam ser tão mais
profunda. Coletar dados, números e documentos parecia menos invasivo do que perguntar a
opinião deles sobre aquele espaço e as suas experiências.
82 Houve apenas um dia de pesquisa em que a juíza que estava presidindo as audiências se recusou a falar comigo,
argumentando falta de tempo. Não obstante, consegui assistir a audiência e entrevistar os demais participantes.
86
A curiosidade sobre o meu novo campo de pesquisa era unânime. “Por quê a
antropologia?” “O que faz um antropólogo?” “Você vai analisar minhas emoções também?”
“Mas seu trabalho não é defender bandido, ou é?”
Dizer que eu observava posições, comunicações, percepções e estruturas era mais
ameaçador do que dizer que eu elaborava estatísticas. Inclusive pude sentir minha posição
política sendo sempre testada para que os interlocutores pudessem sopesar as palavras antes de
proferi-las. Isso ocorria, principalmente, nos meus diálogos com os policiais e com os
advogados.
No meu primeiro dia de campo não assisti diretamente nenhuma audiência de custódia.
A minha visita inicial objetivava sentir o que mudou naquele ambiente e agenciar contatos com
os servidores responsáveis pela organização dos eventos e com o Juiz que atualmente dirigia a
Central de Flagrantes.
Chegando na rua em que é localizado o prédio da Central de Flagrantes, pela primeira
vez, estacionei do lado de fora e não no estacionamento privativo dos servidores, juízes,
promotores, defensores públicos, policiais e residentes judicias. Nunca antes havia reparado na
câmera de segurança que havia sido instalada em frente ao prédio, apesar de agora, ela aparecer
estar em bastante evidência.
A estrutura física do imóvel praticamente não havia mudado, salvo algumas pequenas
revitalizações. Era o mesmo prédio neoclássico, pintado na cor branca, de três andares,
localizado na Avenida Duque de Caxias, no Bairro da Ribeira, um dos mais antigos da cidade
de Natal, Capital do Rio Grande do Norte.
Figura 3. Visão frontal do prédio da Central de Flagrantes, dando destaque a câmera de segurança
instalada em frente.
Fonte: Lênora Peixoto, 2019.
87
Curiosamente, a edificação que hoje sedia a Central de Flagrantes foi construída, na
verdade, para ser o “Grande Hotel de Natal”. Desenhada pelo arquiteto francês Georges Henry
Mournier em 1935 e executada entre os anos de 1937 e 1938, foi um dos espaços mais
importantes da cidade no período da Segunda Guerra Mundial, acomodando generais,
diplomatas, engenheiros e governadores.
Pela primeira vez, pude refletir como a mesmas vigas outrora utilizadas para o lazer e
o conforto da alta classe potiguar de autoridades de todo o mundo, hoje era apenas uma carcaça
improvisada para uma finalidade totalmente distinta – e com um público alvo bem diverso
daquele que costumava frequentar aquele ambiente.
A constante lembrança da finalidade precípua daquele prédio, como um irônico
fantasma, permaneceu comigo em todos os meus dias campo e em todas as vezes que escutei
os comentários dos partícipes das audiências sobre aquela estrutura e as sensações que ela
gerava. Consoante ensina Geertz (2008, p. 165), em “O saber local”, o modo como as formas e
os espaços são sentidos variam culturalmente e conforme as experiências pessoais e coletivas
ali vividas. Logo, os elementos estéticos, mesmo se tratando de um mesmo espaço, podem
provocar sensibilidades diversas em razão da transmutação da sua finalidade e daqueles que as
vivenciam.
Figura 4. Planta original do Grande Hotel, desenhada em 1935.
Fonte: Rostand Medeiros – Instituto histórico e geográfico do Rio Grande do Norte – IHGRN.
88
Figura 5. Divulgação do Grande Hotel na década de 1940.
Fonte: Rostand Medeiros – Instituto histórico e geográfico do Rio Grande do Norte – IHGRN.
Voltando ao presente, notei que apesar do prédio pouco haver mudado em relação ao
período em que realizei minhas pesquisas anteriores, a porta pela qual eu nele adentrava não
era mais a mesma. Como eu havia dito, antes, eu entrava pelo estacionamento oficial, um local
guarnecido com ampla segurança composta por diversas câmeras, guarita e policiais. Agora,
como qualquer outra pessoa da população que não atuasse diretamente naquele espaço, eu
entrava pela porta da frente. Era curioso pensar que, em um espaço que teve a sua essência
totalmente invertida, o glamour – ou melhor, o privilégio – hoje, estaria em adentrar pela porta
dos fundos.
Na parte interior, uma porta giratória com detector de metais contrastava com a
arquitetura clássica do prédio histórico. Ao passar por ela, sem maiores problemas, fui
cumprimentada pela recepcionista com um “boa tarde, doutora, a senhora irá advogar em
alguma audiência? Poderia, por gentileza, me dizer o número da sua OAB?”.
Eu respondi que, apesar de ser advogada, não estava ali exercendo a profissão, mas
como pesquisadora. Simbolicamente, fiz questão de deixar meu cadastro registrado o meu CPF,
ao invés do número da minha carteira da OAB. Posso tentar presumir que a recepcionista, que
não me conhecia até então, me achou com “cara de advogada”, talvez pela postura segura com
que eu adentrei naquele espaço já conhecido. Ou talvez pela minha aparência de mulher branca,
loira e vestida conforme as formalidades condizentes ao espaço que eu já era habituada.
Pouco tempo depois, entrou uma senhora vestida com um vestido florido de algodão
de cumprimento abaixo do joelho e uma sapatilha. Ela tinha um olhar um pouco confuso e
perdido naquele salão de entrada. A recepcionista não a chamou de “doutora” e nem pediu o
número da sua OAB.
89
Após passar pela recepção, adentrei nas dependências do prédio e me dirigi,
primeiramente, até a Secretaria para conversar com a então diretora Maria83. Ela havia assumido
o posto recentemente, então, eu me apresentei e falei da pesquisa anteriormente desenvolvida
durante a minha especialização e da nova pesquisa que estaria desenvolvendo, agora no campo
da Antropologia Social.
Maria se mostrou bastante solícita, me informando sobre a nova coordenação, me
fornecendo a escala dos juízes e demais informações que seriam importantes para a organização
das minhas idas a campo. Perguntei se poderia telefonar todos os dias para saber se haveriam
audiências de custódia por crimes de tráfico de drogas na pauta e ela concordou, deixando o
telefone da secretaria como um canal aberto para a nossa comunicação.
Após, me reapresentei para todos os servidores e para a equipe de responsáveis pela
segurança. Dois sargentos, lotados na Central de Flagrantes, coordenavam a segurança
institucional das audiências. Os policias que eram responsáveis pela custódia das pessoas presas
em flagrante eram enviados pela própria Polícia Militar e ficavam, geralmente, ao lado das duas
celas designadas às pessoas presas, na porta da frente e na porta da garagem do prédio e também
junto das viaturas que os transportava. Dentro da sala de audiência ficavam dois policias que
eram da equipe lotada na própria Central de Flagrantes.
Todos me receberam muito bem e fizeram diversas perguntas sobre a minha pesquisa.
Percebi que, no meu primeiro dia, eu mais respondi do que questionei, o que foi bastante válido
para tentar construir um ambiente de confiança e para compartilhar conhecimento sobre a
antropologia, que eles não estavam muito familiarizados.
Em seguida, me dirigi até a sala do programa Novos Rumos e conversei com a
coordenadora Agnes que me explicou que o programa Novos Rumos faz parte da Estrutura do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte e foi instituído pela Resolução nº
014/2009. A esse programa compete incentivar boas práticas relativas à execução penal no RN,
atuando e criando parcerias que favoreçam o melhoramento do sistema penitenciário e da
execução penal; fomentando a criação da Associação de proteção e assistência aos condenados
– APAC no Estado; incentivando a aplicação de penas e medidas alternativas no âmbito do
poder judiciário potiguar e prestando auxílio às ações do Grupo de Monitoramento e
Fiscalização do Sistema Carcerário do RN.
Agnes me fez vários relatos sobre a importância das audiências de custódia também
como um espaço para “conscientizar os custodiados e familiares sobre como procurar
83 Como forma de preservar a identidade de todos os partícipes, independentemente da posição que ocupassem, os
seus nomes foram alterados.
90
assistência jurídica, psicológica e médica, principalmente no caso de dependentes químicos”.
Ela me explicou que, apesar de não haver, até então, atendimento psicossocial antes ou depois
das audiências, os servidores e voluntários que atuam junto com o programa Novos Rumos
conversam com os custodiados e promovem o aconselhamento e encaminhamento para projetos
onde há oportunidades de emprego e profissionalização.
A coordenadora relatou ainda que o programa funciona graças a uma equipe de
servidores, estagiários e voluntários que passam por uma capacitação para poder aplicar
questionários com os custodiados, mas que o seu sonho seria implantar uma equipe
multidisciplinar naquele espaço84. Ela disse que já encontrou algumas dificuldades com os
voluntários que se negam a fazer algumas perguntas por evitarem debater questões de gênero e
sexualidade com os custodiados. Eu perguntei qual era postura adotada quando eles tomavam
ciência desse tipo de conduta e ela me disse que eles, normalmente, encaminham o voluntário
para outras atividades.
Tive a oportunidade de conversar com uma das voluntárias que estava aplicando os
questionários naquele dia, uma jovem chamada Catarina. Ela me disse que era formada em
direito e que estava estudando para concursos públicos. Participar como voluntária da pastoral
carcerária era uma oportunidade de computar horas de exercício de atividade jurídica e também
pontuar como títulos em alguns concursos. Questionei se ela havia passado por algum curso de
capacitação e ela disse que haviam rodas de conversas e encontros para preparação dos
voluntários. Eu perguntei se ela gostava do trabalho desenvolvido e se tinha algum receio. Ela
disse que não sentia medo em aplicar os questionários e conversar com os custodiados e com
suas famílias, “esse não é um ambiente de ameaças, mas sim de escuta”. Ao fim, ela avaliou
como muito importante a atuação da pastoral carcerária como forma de orientação aos
custodiados.
Após, conversei em particular com César, o Juiz responsável pela coordenação da
Central de Flagrantes, que também me recebeu de forma bastante cortês e solícita.
Primeiramente, ele me fez algumas perguntas sobre a minha pesquisa e sobre o campo da
Antropologia Social.
Após, ele passou a me contar o histórico das audiências de custódia e a ponderar sobre
suas vantagens e deficiências. Afirmou que, em um primeiro momento, considerava que a
84 Em novembro de 2019, três meses após a finalização do meu campo, deu-se início a um processo de capacitação
de uma equipe multidisciplinar psicossocial que atuaria na Central de Flagrantes de Natal com o objetivo de
estabelecer fluxos de cuidado a pessoas em situação de vulnerabilidade que são levadas à custódia. Contudo, o
projeto acabou sendo paralisado desde o início da pandemia de COVID-19, que suspendeu as audiências de
custódia.
91
“autoridade judiciária” a qual a Convenção Americana de Direitos Humanos tratava poderia se
referir ao delegado de polícia, mas como na prática ele não estaria exercendo essa função, ele
compreendia porque o CNJ se viu compelido pelo Supremo a criar uma resolução que
determinasse a realização e audiências de custódia presididas por juízes.
César fez diversas comparações do modelo brasileiro com o norte-americano,
chegando a destacar que nos EUA era possível fazer até 100 audiências de uma vez e que ele
já tinha tido a oportunidade de assistir a uma delas presencialmente.
Eu argumentei que quando as audiências eram feitas em massa, alguns casos
particulares poderiam passar despercebidos. Ele contrapôs que alguns casos já são muito
corriqueiros na prática judicial e que para o bem do próprio custodiado era melhor que
pudessem ser analisados da forma mais célere possível.
Compartilhei com ele alguns dos dados que colhi nas minhas pesquisas anteriores
sobre a grande incidência do fundamento da “garantia da ordem pública” nas decisões que
decretavam prisões preventivas e questionei a sua opinião sobre o uso desse termo.
O magistrado disse que não via problemas em usar a “garantia da ordem pública” como
fundamentação desde que acompanhada de outros critérios de materialidade e autoria.
Questionei, então, sobre a sua compreensão acerca do significado daquela categoria, ele disse
que que era o “risco de reiteração criminosa” e a necessidade da prisão “servir de exemplo
para a comunidade a qual o custodiado estaria inserido”. Ele citou como exemplo: “se o
custodiado é morador da favela do mosquito, for pego com drogas e for solto, todos vão achar
que dá para andar com drogas por lá facilmente, mas se ele ficar preso, as pessoas vão ver
aquilo como algo que é errado e que é punido”.
Eu perguntei se, então, a comunidade a qual o custodiado habitava influenciava de
alguma forma nas decisões. Ele disse que “nos locais considerados mais perigosos a atenção
do juiz deve ser redobrada pela potencialidade delitiva”. E que a população não pode
“continuar achando normal cometer crimes”.
Perguntei também a César se eu poderia ser autorizada a tirar fotos do espaço e das
audiências. Ele disse que, por ele, sim, mas que eu preservasse a identidade de todos, pois “os
juízes e promotores poderiam sofrer perseguições e ameaças de facções se identificados”. Ele
me alertou também que eu deveria pedir autorizações específicas a cada juiz que estivesse
presidindo as audiências.
Como ele ainda tinha outros compromissos naquela tarde, tivemos que encerrar a nossa
conversa. Ele me desejou boa sorte e disse que estaria a disposição para sanar eventuais dúvidas.
Me despedi de todos e encerrei a minha primeira visita do (re)início do meu campo.
92
Nesse primeiro dia, mesmo sem ter assistido a qualquer audiência, pude fazer um bom
reconhecimento espacial e me atentar a novos elementos e espaços que, antes, eu não costumava
ali frequentar. Entre eles, estava a varanda externa do prédio, em que eu percebi haver uma
grande aglomeração de pessoas. Após questionar algumas delas, descobri que se tratavam de
familiares que estavam aguardando o resultado da audiência. Um pouco confusa, perguntei
porque eles não entravam e aguardavam sentados. Eles me disseram que apenas uma pessoa de
cada família era autorizada a entrar.
Em outro dia de campo tive a oportunidade de questionar a equipe responsável pela
segurança se aquela informação procedia e um dos agentes me disse que sim, que era uma
norma para evitar a circulação de muitas pessoas no prédio. Eu perguntei onde eu poderia ter
acesso a essa norma e ele me disse que ela não estava regulamentada em Portaria, mas que eles
tinham autonomia para aplicá-las conforme dispunha a resolução que disciplinava as audiências
de custódia.
Não pude deixar de me lembrar de uma das famosas fotografias do antigo “Grande
Hotel” de Natal, em que a elegante varanda onde outrora confraternizavam as famílias
hospedadas, agora dava lugar ao desconforto, a angústia e ao medo dos familiares dos
custodiados, que, sem cadeiras, banheiro ou água, aguardavam, em pé ou sentados ao chão,
ansiosos pelo resultados das audiências. Às vezes, ocupavam o mesmo espaço equipes
jornalísticas que ansiavam por entrevistas sobre alguma audiência de maior repercussão
midiática.
Figura 6. Varanda do Grande Hotel em 1940.
Fonte. Fotografia por Hart Preston. Revista Time-life.
93
Todos esses traços me faziam começar a perceber alguns aspectos simbólicos
relevantes naquela estrutura. Por mais que ela estivesse localizada em uma região
geograficamente central da cidade, o seu acesso ainda era bastante restrito. Mães e esposas
precisavam disputar para saber quem iria poder esperar dentro do prédio e eventualmente
assistir a audiência caso fosse autorizado pelo juiz que a presidisse.
As regras sobre as vestimentas continuavam válidas não sendo permitido a entrada de
pessoas com saias curtas, shorts, bermudas e roupas com transparências. Contudo, essa norma
não se aplicava ao próprio custodiado, que assistia a audiência com a mesma roupa com que
havia sido preso. Muitas vezes, no caso dos homens, sem sandálias e sem camiseta.
Em vez dos confortáveis quartos de hotel que guarneciam a estrutura no século
passado, haviam, agora, apenas duas pequenas celas onde todos os custodiados eram colocados.
Nos dias em que havia mulheres custodiadas, não se misturavam os gêneros em um mesmo
espaço. Quando havia um grande número de audiências, uma parte dos custodiados aguardava
dentro do carro/viatura para não superlotar a cela.
A OAB e a Defensoria Pública dispunham de salas particulares em que era possível
receber os custodiados. A sala da OAB era extremamente apertada, um espaço 2x2, cabendo
apenas uma mesa pequena e duas cadeiras. A sua porta sempre permanecia entreaberta com os
policiais em frente. A sala da DPE possuía um espaço um pouco maior e mais confortável. Os
policiais não entravam com o custodiado durante as conversas, mas ficavam atrás de uma janela
de vidro transparente por onde podiam observar tudo que acontecia ali dentro. Em nenhuma das
duas havia privacidade total entre o custodiado e o seu defensor.
Nos momentos em que realizei as entrevistas com os custodiados, eu ficava em frente
às celas, conversando por entre as grades. Os policiais me alertavam para eu não me aproximar
muito para evitar pegar doenças, principalmente gripe ou tuberculose. Eu não seguia os
conselhos e sempre me aproximava o máximo possível para conseguir ouvi-los e conseguir
falar sem que outras pessoas escutassem. Às vezes, contudo, era inevitável que alguns colegas
de cela ouvissem. Uma vez, um deles até interferiu em uma das perguntas que eu fiz sobre a
identificação racial de um interlocutor, dizendo: “pô, cara, tu é preto sim”. Assim, a quantidade
de pessoas dentro da cela ou de policiais à espreita influía no aproveitamento das entrevistas,
já que os interlocutores se sentiam mais à vontade para contar as suas histórias quando tinham
alguma sensação de privacidade.
Outrossim, quando eles realmente acreditavam que eu não pertencia à estrutura do
poder judiciário, eles se abriam muito mais. Por essa razão, eu sempre me apresentava como
94
pesquisadora e estudante da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e explicava que a
minha pesquisa era sobre como as pessoas enxergavam e se sentiam diante daquele espaço.
As posições ali ocupadas eram bem delineadas e às vezes, seguiam uma lógica
institucional para a expressão dos posicionamentos. Às vezes eu conseguia sentir claramente a
diferença do momento em que eu estava conversando com a pessoa do juiz ou com o juiz que
havia na pessoa e isso também valia para os promotores, defensores e policiais ali presentes.
Muitos posicionamentos eram falados como se pertencessem a instituição e não,
necessariamente a eles (DOUGLAS, 1998). Uma das juízas que eu entrevistei, ao perceber que
estava me respondendo de forma mais descontraída, me pediu para que reescrevesse o que ela
havia acabado de dizer, para que soasse mais formal, já que, segundo ela, uma juíza não poderia
falar daquele jeito tão coloquial.
Na ocasião, eu havia perguntado o que ela achava da estrutura do prédio e ela,
instantaneamente respondeu: “uma porcaria”. Ao perceber que eu estava anotando a resposta,
ela riu da forma casual com que acabou de falar, me pediu desculpas e solicitou que eu
escrevesse uma resposta mais condizente para um juíza, afirmando: “a estrutura não é
adequada para o conforto e a segurança de nenhum dos presentes.”
Percebi a mesma preocupação com a posição em que ocupava, por parte de uma das
promotoras que eu entrevistei, que sempre me respondia fazendo referência à instituição
“Ministério Público” e ao que ela julgava ser consolidado um dos seus deveres institucionais
de agir “in dubio pro societate”. Essa expressão em latim significa que, havendo dúvidas sobre
a autoria e a materialidade do crime, o posicionamento deveria ser “a favor da sociedade”.
Essa categoria, que também foi rememorada por outros dois promotores que
entrevistei, entra em conflito com o princípio constitucional conhecido como “in dubio pro reo”
corolário da presunção de inocência, significando que, na dúvida, deve-se julgar pela inocência
do acusado. A pessoa presa em flagrante levada até a audiência de custódia, ainda se encontra
em uma fase pré-processual, não podendo sequer ser considerada acusada ou ré. Contudo, ao
ser retirado o benefício da dúvida, ela parece também estar excluída da categoria “societate” a
qual os membros do Ministério Público fazem referência.
Nesse sentido, as reflexões de Da Matta (1997) se tornam pertinentes sobre quem é
considerado “pessoa” e quem é tratado como “indivíduo” quando se julga quem se encaixa e
quem deve ser excluído na categoria “sociedade”.
Ainda que eu me deparasse com a “retórica de impessoalidade, de neutralidade e de
universalização” (BOURDIEU, 1989, p. 215), presente nas respostas dos agentes de Estado que
tentavam opinar conforme uma suposta lógica institucional ou valor consolidado de sua
95
respectiva classe, ao assistir as audiências e ouvir as conversas que ocorriam nos bastidores, se
tornava muito mais visível a influência de múltiplas moralidades e de como a vivência de cada
um deles também influenciava em seus posicionamentos e expressões de poder.
Esses acessos etnográficos que eram observados a cada dia do meu campo serão agora
aprofundados nos dois capítulos seguintes, em que passarei a expor e a problematizar o
conteúdo das entrevistas e os marcadores que diferenciavam cada audiência e cada ator.
96
CAPÍTULO III: AS AUDIÊNCIAS E OS SEUS PERSONAGENS: ANTES, DURANTE
E DEPOIS DO (DES)LIGAR DAS CÂMERAS.
Mensurar as dimensões do meu campo e reconhecer onde se localizava o seu início,
o seu meio e o seu suposto fim, foi uma das tarefas mais complexas que tive ao longo desta
pesquisa. Compreender que ela não nascia do meu encontro com um espaço totalmente
desconhecido foi o primeiro passo para eu perceber que o meu ponto de partida advinha de um
conhecimento pretérito que eu carregava desde as minhas primeiras pesquisas nas audiências
de custódia, em 2015, e que aquilo influía nas minhas leituras sobre as dinâmicas ali presentes.
Contudo, esse mesmo conhecimento prévio que abria os meus olhos para enxergar
movimentos e situações que poderiam passar despercebidos para alguém que nunca tivesse
atuado naquele ambiente, também era capaz de me cegar para novas dimensões que antes eu
não era capaz de observar, em razão de só agora eu poder ocupar espaços que em que eu nunca
havia antes me posicionado. Assim, o meu segundo passo esteve em entender que meu novo
ponto de visão iria diferenciar a minha forma de ler aquele ambiente e também a forma como
os seus agentes me observariam e iriam interagir com a minha presença.
As novas interações com aquele espaço passaram a produzir novos objetos de sentido
e novas leituras sobre o ritual das audiências de custódia, seus atores e suas dinâmicas. Mais
do que o rito formalmente programado, as relações dos envolvidos com aquele espaço
produziam efeitos desde antes do horário agendado e do ligar e do desligar das câmeras que
registrariam o evento, repercutindo, inclusive, após o seu término formal, já que uma parte dos
custodiados só tomava ciência do resultado da própria audiência após ela ser encerrada e não
durante o seu transcurso.
Assim, as formas com que o “tempo” foi acionado durante o meu campo foram
plúrimas, se diversificando a cada audiência conforme as ordens de quem a presidia e dos
anseios dos seus atores. Conforme ensinou Garapon (1999, p. 53), o tempo do processo não é
um tempo ordinário, mas um conjunto de sinais, ritos e prescrições, sendo a ordem do ritual
judiciário indica que “cada um em seu lugar e cada coisa a seu tempo” (Garapon, 1999, p. 62).
Sobre a temporalidade que só encontra sentido dentro de um domínio ritualizado de
sua própria expressão, a antropóloga e jurista Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer (2007, p. 118),
em suas vastas pesquisas e produção acerca do Tribunal do Júri, refletiu:
Apesar de cada júri exibir, enquanto forma dramática, uma estrutura
atomística – cada julgamento é quase um mundo em si mesmo –, o que, a
princípio, facilitaria o acompanhamento de sua dinâmica, mal as sessões
terminam seus participantes não as retêm com clareza objetiva, mas com
97
lembranças difusas, pois, como qualquer forma expressiva, o júri só tem
vida plena em seu próprio presente, aquele que ele mesmo cria. (Grifos
acrescidos)
Apesar de bem distinta de um tribunal do júri, cada audiência de custódia também era
um mundo em si mesma. Ocorrendo em uma fase pré-processual, elas possuíam um ritmo
particular e, apesar de haver uma regulamentação geral, não eram tão homogêneas quanto ao
seu formato. A ordem com que são feitos os pedidos do Ministério Público e da Defesa
permanece a mesma das audiências de instrução e julgamento: o Promotor deve falar primeiro
e do Defensor depois por uma questão de garantia do contraditório e da ampla defesa. Apesar
de não haver um tempo delimitado para as falas, os juízes acabam controlando-as através de
gestos e palavras, explicitando o que para ele é pertinente, ou não, a ser dito/escutado, o que
também é revelador da estrutura hierárquica e dos elementos de poder.
A forma como ocorrem os procedimentos externos relacionados a escolta dos
custodiados e a chegada dos defensores e de novos advogados também alterava o ritmo e a
ordem das audiências. Não sendo a pauta um documento com uma ordem cronológica fixa.
Em razão desses influxos espaciais e temporais, passei a considerar como relevantes
e constituintes daquele momento as observações que eu fazia desde o momento da minha
chegada até o momento da minha saída do prédio da Central de Flagrantes. Sendo necessária
a descrição do meu percurso naquele ambiente para materializar também a construção da minha
nova relação espacial e como ela implicou na relativização temporal das audiências de
custódia.
Assim, nos dias em que eu confirmava através de contato telefônico com a Secretaria
Judiciária que haviam audiências por crimes de tráfico de drogas incluídas na pauta, eu me
programava para comparecer a Central de Flagrantes às 13h da tarde, o que correspondia a 1h
antes do horário agendado para iniciar a programação das audiências.
Após adentrar no prédio e me identificar na recepção, eu me dirigia até a Secretaria
para cumprimentar os servidores, para confirmar qual juiz estaria presidindo as audiências e
para ter acesso a alguns dados dos casos pautados, como, por exemplo, o número do processo,
o nome das pessoas autuadas e se elas seriam assistidas pela Defensoria Pública ou por um
advogado particular. Esse embasamento inicial me ajudava a saber a quem eu deveria me
dirigir e a programar as minhas entrevistas.
Contudo, apesar de coletar os dados relativos a identificação dos partícipes, eu optava
por não ter acesso prévio as informações lavradas no “Auto de Prisão em Flagrante (APF)” que
chegava da Delegacia de Polícia, para que assim eu evitasse qualquer tipo de contaminação da
98
minha percepção sobre os fatos, sobre as falas e as posturas analisadas, que poderiam ser
maculadas a partir de um ponto de vista contido em um documento que eu não presenciei a sua
lavratura e não entrevistei os seus autores.
Após coletar as informações básicas sobre os casos que eu iria acompanhar, eu me
dirigia para o grande salão que ficava em frente à sala da Secretaria e à sala da Defensoria
Pública. Esse espaço era compartilhado entre aos advogados, estudantes e estagiários que
aguardavam o início das audiência e também entre os poucos familiares a quem era permitida
a entrada no prédio85.
O amplo ambiente continha algumas cadeiras acolchoadas, paredes brancas e um
quadro de feltro verde protegido por uma redoma de vidro com as resoluções e leis que
regulamentavam a Central de Flagrantes e em que era afixada a pauta de audiências por algum
servidor quando ela era definida ou quando fosse atualizada.
Sentados ou em pé, aguardavam homens e mulheres de cabeça baixa, face
avermelhada, olhar distante e pernas que balançavam impacientemente. Ao conversar com as
pessoas que apresentavam esse perfil, eu logo podia confirmar que eram familiares ou
acompanhantes que estavam aguardando as audiências e, talvez, a oportunidade de conseguir
falar com a pessoa que estava sob custódia. Em todos os dias em que compareci a Central de
Flagrantes, pude perceber que a maioria desse grupo de pessoas era composta por mulheres.
Dentre as seis que pude entrevistar ou brevemente cumprimentar, duas eram mães, duas eram
atuais companheiras, uma era ex-companheira e uma era cunhada.
Em um primeiro momento, eu não almejava entrevistar esse núcleo, mas passei a
compreendê-los também como constituintes de cada um daqueles eventos pois eles possuíam
percepções e assimilações próprias sobre o que as audiências de custódia significavam e, às
vezes, informações preciosas sobre os fatos que levaram até a prisão em flagrante e sobre a
forma com que os custodiados conviviam, ou não, com os usos de drogas. Assim, passei a
solicitar autorização das famílias para que as nossas conversas, que, inicialmente, eram apenas
informais, também pudessem virar dados nessa pesquisa.
Contrastando com a postura tensa, deslocada e triste daquele núcleo, havia também,
no mesmo grande salão, jovens estudantes descontraídos, olhando para os seus celulares, lendo
livros jurídicos ou conversando e rindo entre si.
85 Conforme abordado no tópico 2.4, no dia da minha primeira visita ao campo, tomei conhecimento que era
permitido adentrar na Central de Flagrantes apenas um familiar por pessoa presa. Ficando concentrados do lado
de fora todos aqueles que não puderam entrar no prédio.
99
Um grupo que também se distinguia dos demais era o dos advogados e das advogadas
presentes. Eles estavam sempre carregando pastas ou bolsas de um material similar a couro,
vestindo trajes elegantes e formais, geralmente acompanhados de um blazer e aparentavam
sempre estarem incomodados com o calor, em um ambiente sem a climatização necessária para
aquele tipo de roupa, ainda mais em uma das capitais mais quentes do país. Eles revisavam
papéis, falavam ao telefone ou conversavam com os acompanhantes dos custodiados para sanar
dúvidas, obter esclarecimentos sobre os fatos ou, até mesmo, para negociar valores.
Apesar de tantos grupos distintos e de conversas paralelas, o espaço não era barulhento
em razão de haver sempre um controle sobre o tom da voz. Eu também quase nunca o
presenciei lotado, pois ele se dinamizava conforme se iniciavam ou eram finalizadas as
audiências.
Seguindo o corredor que levava ao lado esquerdo do prédio, havia a pequena sala que
era considerada como o espaço de atendimento da OAB. Ela ficava localizada em frente a uma
das celas onde aguardavam parte das pessoas sob custódia. Ao lado dessa cela, havia o espaço
em que a equipe de segurança ficava a serviço e aguardava as determinações advindas do juiz
ou juíza que estivesse presidindo a audiência. Imediatamente em seguida, havia uma segunda
cela que possuía o mesmo objetivo da primeira e oportunizava a divisão dos custodiados por
gênero ou caso houvesse alguma rivalidade entre as pessoas em custódia. Desse modo, o espaço
destinado a segurança era um local central com capacidade de observar esses dois ambientes e
a também sala em que ocorriam as audiências.
Essa sala, que era a única do prédio destinada a esse fim, era composta de duas portas
distintas. Uma delas ficava ao lado do espaço destinado ao acento do magistrado ou magistrada
e do seu assessor, residente ou estagiário que digitariam os termos de audiência. Por ela
também adentravam os oficiais de justiça, os servidores da secretaria e, eventualmente, os
auxiliares responsáveis por servir água e café. A segunda porta ficava em frente ao espaço
destinado ao custodiado e por ela entravam os estudantes de direito, os acompanhantes das
pessoas presas e o próprio custodiado sob a escolta de dois policiais que ficavam em pé, cada
um em um lado diferente da cadeira destinada a ele.
A sala era pequena, apertada e fria, sendo impossível o trânsito de mais de uma pessoa
simultaneamente entre os seus pequenos corredores entre as cadeiras e paredes. Haviam cabos
de energia emaranhados logo abaixo da mesa, onde eram conectados todos os computadores,
cabos de rede e a impressora. Uma câmera de segurança ficava localizada no lado superior
esquerdo atrás da mesa do juiz, possibilitando uma visão completa da sala e também da tela do
computador principal. Em frente a ele, havia outra câmera, estilo webcam, em que eram
100
gravadas as audiências. Não haviam microfones externos, estando a mesa, geralmente, ocupada
com computadores e materiais de trabalho dos promotores e advogados, além dos seus copos
de água de café.
Haviam quatro cadeiras na lateral direita destinadas aos estudantes de direito e aos
acompanhantes autorizados a assistirem as audiências. Nos dias em que essas cadeiras estavam
lotadas, alguns juízes me impediram de assistir as audiências pela falta de espaço para que eu
pudesse me sentar. Se alguém, exceto os policias, ficasse em pé, poderiam colocar em risco a
segurança do espaço e comprometer a movimentação no momento da escolta realizada na
entrada e na saída do custodiado.
As imagens abaixo – editadas para preservar a identidade dos partícipes das
audiências – foram capturadas em um dos meus dias de campo e podem ser acionadas como
elementos ilustrativos da descrição acima, ainda que incapazes de abarcar a sua sinestesia
sufocante. Em uma sala sem janelas, com sensações térmicas que oscilavam rapidamente entre
o frio e o calor, a depender da quantidade de pessoas e da e da frequência com que sua porta
se abria, somavam-se múltiplas fragrâncias que mesclavam distintos perfumes e odores
corporais, um leve toque de mofo e de poeira e o reconfortante cheiro de café, tão
característicos das repartições públicas.
Figura 7. Sala em que ocorrem as audiências de custódia. Perspectiva vista por trás da cadeira onde se
senta o(a) juíz(a).
Fonte: Lênora Peixoto. Imagens editadas para preservar a identidade dos partícipes. 2019.
101
Figura 8. Sala em que ocorrem as audiências de custódia. Perspectiva vista por trás da cadeira em que
os custodiados se sentam.
Fonte: Lênora Peixoto. Imagens editadas para preservar a identidade dos partícipes. 2019.
Apresentado um pouco desse espaço, que pode ter múltiplas leituras a depender da
perspectiva que o observador vier a ocupar, irei apresentar um pouco do meu olhar sobre os
onze eventos que acompanhei, registrando-os etnograficamente, apesar de ser tão difícil traspor
em palavras as reações, interações e um ambiente que também são compostos por estruturas
simbólicas, elementos imateriais ou “materiais sociais”, como bem refletiu Schritzmeyer
(2012, p. 217).
A autora, ao refletir sobre suas descrições etnográficas pondera como é complexo e,
até mesmo, inquisidor86 tentar registrar e analisar “olhares que se procuram e se evitam, sutis
movimentos de lábios, sobrancelhas que se arqueiam e se franzem [...] corpos que caminham
ou permanecem estáticos”, bem como coadunar “entonações de voz interligadas a uma
gestualidade, que por sua vez, relaciona-se a um texto e a um contexto de contínua troca de
mensagens”. Contudo, ela contrabalanceia que o seu próprio texto, é, na verdade, uma
“apropriação” e uma “remodelação” dos aspectos daquele ritual interessantes ao seu trabalho,
86 Schritzmeyer faz uma referência, nesse ponto, a obra de Carlo Ginzburg “O inquisidor como antropólogo”, onde
tudo era registrado com meticulosa precisão pelos escrivães do Santo Oficio, ponderando se não estaria ela
também, através das descrições meticulosas extorquindo das sessões do Júri os estereótipos que a interessavam.
(Schritzmeyer, p. 228)
102
sendo uma “significação” da sua própria interação com o seu objeto de estudo
(SCHRITZMEYER, 2012, p. 229).
É nesse âmago que, mesmo diante de limitações, precisamos investir nas descrições
etnográficas, assumindo que elas se originam de uma perspectiva parcial, que mais do que
impor significados, almejam propor novas interpretações que poderão ser somadas as que serão
formuladas pelos nossos leitores.
Logo, apesar de já ter uma vivência naquele espaço e de já ter estudado nas minhas
pesquisas anteriores mais de 538 termos de audiências de custódia por crimes de tráfico de
drogas, foram nas 11 audiências de custódia nesse trabalho relatadas que eu pude repensar
minhas concepções sobre o instituto e o impacto que ele exerce em seus partícipes em uma
relação cíclica de multiconstituição (DOUGLAS, 1998).
A partir do campo exercido no entorno dos onze eventos que acompanhei, trabalharei
com os relatos de onze custodiados, de seis familiares, de cinco juízes, de seis promotores, dois
defensores públicos, seis advogados, de três policiais, de dois oficiais de justiça, de um
estagiário e de três servidores da Central de Flagrantes. Por questões éticas, utilizarei nomes
fictícios para me referir a cada um dos interlocutores e não farei referências às datas que cada
audiência ocorreu, apenas mencionando quando elas aconteciam nos mesmos dias em razão de
parte dos atores institucionais, como os juízes e promotores, serem os mesmos.
Conforme os dados que registrei em meu caderno de campo, transcreverei os meus
deslocamentos nas audiências de custódia, que ultrapassavam a pequena sala acima ilustrada,
apontando o meu processo de percepção da não limitação espacial, documental e temporal
desses eventos, bem como, as interações e posturas dos seus personagens neles e sobre eles.
3.1 A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA DE RENATO.
No meu segundo dia de campo, ao chegar no Prédio da Central de Flagrantes, constatei
através da pauta afixada no quadro verde de feltro que haviam cinco audiências agendadas,
mas que apenas uma seria por crime autuado como crime de tráfico de drogas. Perguntei a um
dos servidores se já havia a informação de quem seria o advogado ou defensor público
responsável pela defesa e ele me disse: “Nessas audiências de tráfico, quase sempre, vai ter
advogado particular, as facções sempre pagam ou eles sempre conseguem dinheiro para
pagar”.
O inquiri se havia alguma indicação nos autos de que o custodiado pertencia a alguma
facção e ele me disse que “esse tipo de coisa não fica registrada, mas é fácil de perceber
103
depois”. Intrigada, questionei quem poderia fazer esse tipo de identificação e ele me respondeu
que “muitas vezes, eles mesmos dizem, tanto para marcar território como para se protegerem
e não ficarem na mesma cela de uma facção inimiga”.
No decurso da nossa conversa, adentrou à secretaria um advogado que fez o seu
cadastro na defesa de Renato87, o custodiado da audiência que eu iria acompanhar. O servidor
com quem eu falava anteriormente olhou para mim e acenou com a cabeça, balançando as
sobrancelhas de forma a tentar demonstrar que aquele cadastro de um advogado estava
confirmando a opinião que ele tinha acabado de me repassar.
Já no grande salão, me apresentei aquele advogado, chamado Rubens, que estava
sentado ao lado de seu colega Marcos, ambos atuando na defesa daquele caso. Falei para eles
um pouco sobre a minha pesquisa e do meu programa de mestrado. Após aceitarem ser
entrevistados, perguntei se gostavam de fazer audiências de custódia e qual era a sua avaliação
geral sobre elas. Rubens, então, destacou:
Infelizmente, as audiências de custódia não cumprem o seu papel, são apenas
uma mera formalidade, os juízes se sentem obrigados a fazê-las, tem alguns
que até se dedicam mais, mas tem outros que só querem acabar logo. Eles
não escutam os advogados. Não consideram o que a gente fala. É mera
formalidade. Não há compromisso com a lei, só com a ânsia da população
por resultados e prisões.
Marcos, acrescentou:
O problema começa antes do início das audiências de custódia. Começa no
momento da prisão. Ou a gente muda a polícia, oportunizando qualidade
técnica de investigação e de atuação ou esse quadro de violações nunca
mudará. Vivemos em um país tomado pela discriminação e muitos parecem
não notar como um dia na cadeia já muda a vida de uma pessoa para sempre.
Questionei se eles se sentiam seguros naquele espaço e eles me responderam que sim,
apesar de ressalvarem a falta de conforto e de privacidade para conversar com os custodiados
e familiares. Aproveitei a conexão e quis saber o que eles achavam sobre a estrutura da Central
de Flagrantes. Rubens disse que era “uma falta de respeito com a advocacia possuir uma sala
tão pequena e sem qualquer privacidade para conversar com o cliente”. Marcos asseverou
que “é, claramente, um espaço que não foi pensado para aquele fim. Eu prefiro falar com o
cliente na delegacia do que aqui”.
Ao afunilar sobre as prisões por tráfico de drogas, Rubens relatou:
São prisões para gerar números. Eles prendem para mostrar resultado,
sendo a maioria das prisões originadas de flagrantes e não de processos
minuciosos de investigação para desbancar os grandes traficantes.
87 Todos os nomes contidos na pesquisa foram alterados no intuito de preservar a identidade dos interlocutores,
conforme acordado com cada um deles.
104
Invadiram a casa do nosso cliente para procurar uma arma após uma
denúncia, acharam menos de 100 gramas de maconha e já o prenderam como
se traficante fosse.
Eu perguntei se eles tinham conhecimento de quando o cliente fazia parte, ou não de
alguma facção criminosa. Rubens me respondeu que sempre preferia não saber. Marcos disse
que essa informação só se tornava relevante para eles se fosse para a própria proteção do
próprio cliente.
Com a chegada de Elis, acompanhante de Renato, os advogados tiveram que pausar a
minha entrevista para atendê-la e para sanar algumas dúvidas. Quando eles encerram o
atendimento, que aconteceu no próprio salão, eu aproveitei para me apresentar a ela e para
fazer algumas perguntas, deixando-a à vontade para recusar, caso ela não se sentisse
confortável.
Elis era uma mulher jovem, que aparentava ter entre 25 e 30 anos. Ela se identificou
como “ex-mulher” do custodiado e mãe de duas de suas quatro filhas. Perguntei se era a
primeira vez que ela comparecia a uma audiência de custódia e ela me respondeu que sim.
Indaguei se alguém havia explicado para ela o objetivo daquele momento e ela disse que o
advogado havia dito que: “é para ver se ele vai permanecer preso ou não”. Vendo seu
semblante bastante aflito, eu perguntei como ela estava se sentindo naquele momento. Ela disse
que o sentimento era de “medo e de decepção”, acrescentando que “achava que ele não se
envolvia mais com as coisas desse mundo”.
Indaguei se ele era usuário de drogas e ela me respondeu que sim. Perguntei sobre a
profissão e escolaridade dele, ela me respondeu que ele tinha ensino fundamental completo e
que trabalhava alugando carros, tendo uma renda de um salário mínimo e meio. Questionei se
ela sabia porque ele havia sido preso e ela me respondeu que tinha sido “por causa de uma
filmagem que ocorreu em uma festa há dois dias atrás, daí a polícia foi na casa dele e
encontrou drogas lá”. Inquiri se havia ocorrido algum tipo de violência durante a abordagem
e ela disse que não tinha tomado conhecimento.
Nossa conversa foi interrompida com a informação de um policial de que a audiência
de Renato, que estava agendada para ser a primeira, agora seria realizada por último em razão
do custodiado encontrar-se com tuberculose e da juíza temer que ele “contaminasse a sala e
passasse a doença para todos os outros que entrariam depois”.
Sabendo que agora eu teria bastante tempo até o horário da audiência, tentei antecipar
a minha entrevista com Renato, contudo, fui informada pelo agente responsável pela segurança
105
que ele estaria aguardando a audiência dentro da viatura, porque não poderia ficar na mesma
cela que os demais em razão da sua doença e pelo risco de contaminação dos demais.
Eu questionei se, pelo fato dele encontrar-se doente, ele não deveria ter um tratamento
preferencial e ser um dos primeiros a serem atendidos, ao invés de ficar aguardando horas em
um ambiente desconfortável. O policial me respondeu que se tratava de uma decisão da Juíza
e não dele.
Impedida de realizar a entrevista com Renato dentro da viatura, fui tentar estabelecer
contato com a Juíza que estaria presidindo as audiências naquele dia para me apresentar antes
de ser iniciada a pauta e para combinar de realizar a entrevista com ela no momento em que
ela julgasse ser mais oportuno. Contudo, após entrar dentro da sala de audiências e falar um
pouco sobre o teor da minha pesquisa, a Juíza Helena, me disse que não teria tempo para
entrevistas e que me aconselhava a não assistir a última audiência em razão do custodiado
encontrar-se com tuberculose. Eu argumentei que já havia tomado conhecimento, mas que,
mesmo assim, optava por assistir, caso me fosse permitido. Ela disse que eu estaria “assumindo
o risco”.
Aquela foi a primeira vez em que uma juíza havia se recusado a ceder uma entrevista
acadêmica para mim. Fiquei um pouco desconfortável com a situação e preocupada com a
qualidade dos dados que obteria naquele dia. Ainda assim, optei por aguardar a audiência e
entrevistar os demais componentes que me dessem abertura.
Após quase 4h de espera para a realização daquela que seria a última audiência da
pauta, adentrei à sala no momento em que a juíza solicitou a um servidor que providenciasse
máscaras. Após o servidor retornar ao recinto com uma caixa delas, a juíza as distribuiu para
todos os presentes, exceto para mim, apesar de ainda haver várias unidades disponíveis.
Antes do ligar das câmeras que registrariam a audiência, a Promotora de Justiça
designada para aquele ato adiantou alguns detalhes do caso para a Juíza com base nos autos
policiais, informando-a que o custodiado era foragido em outro processo, que haviam sacos
plásticos em sua residência e 131g de Cannabis Sativa, conhecida mais popularmente como
“Maconha”.
Enquanto os advogados se posicionavam em suas cadeiras, a Promotora e a Juíza
conversavam sobre assuntos pessoais relacionados as suas famílias, demonstrando bastante
conhecimento sobre a vida uma da outra. Em determinado momento o assunto mudou para o
risco de contaminação da tuberculose, o que fez que a juíza solicitasse ao servidor que a
audiência ocorresse com as portas abertas e com o ar-condicionado desligado.
106
O advogado Rubens pediu licença para requerer que a juíza autorizasse Elis, a ex-
companheira do custodiado, a assistir a audiência. A juíza anuiu ao pedido apesar de ressalvar
o risco de contágio naquele espaço. Quando a acompanhante adentrou na sala, a magistrada a
ofereceu uma máscara para a sua proteção, me fazendo constatar que o item não era exclusivo
daqueles que faziam parte da audiência. Entrementes, permaneci como a única pessoa sem
máscara na sala, o que eu entendi como uma possível tentativa de me pressionar a desistir de
acompanhar aquela audiência.
Renato adentrou a sala acompanhado de dois policiais. Ele usava o mesmo tipo de
máscara que todos os presentes. A juíza questionou ao agente de segurança porque o custodiado
não estava usando uma máscara “mais potente” e foi informada que aquele era o único tipo
disponível na secretaria. Apesar de estar visivelmente incomodada, a juíza ligou as câmeras e
deu início ao ritual da audiência.
Ela confirmou os dados pessoais do custodiado, pedindo para que ele acenasse com a
cabeça caso eles estivessem corretos. Após, perguntou sobre a sua profissão e renda. No mesmo
sentido que a sua acompanhante havia me relatado antes, ele disse trabalhar em uma loja de
aluguel de carros e que sua renda era de uma salário mínimo e meio mensalmente,
acrescentando que tinha quatro filhas para alimentar.
Seguidamente essas breves perguntas, a juíza disse que passaria a se dirigir apenas ao
advogado e que os agentes de segurança já poderiam retirar o custodiado da sala. O advogado,
nesse momento, afirmou que tinha algumas perguntas a fazer para Renato. A juíza, então, disse:
“O Doutor já conversou com o seu cliente antes da audiência, agora, o senhor mesmo já pode
falar o que ele te disse”.
O procedimento que estava sendo adotado nessa audiência de custódia era diferente
de todas as outras que eu já havia acompanhado durante a minha prática judicial. Nunca antes
eu tinha presenciado a retirada do custodiado de forma tão breve e sem o espaço para as
perguntas da defesa e do Ministério Público. Ao retirarem ele da sala, a juíza afirmou que
“quanto menos ele falasse, menor seria o risco de contágio para todos aqui presentes e os
advogados, de qualquer forma, têm legitimidade para falar por ele”.
O advogado Marcos, visivelmente incomodado com a situação, começou a sua fala
questionando a legalidade da prisão em razão da polícia ter adentrado ao domicílio do seu
cliente dois dias depois de ter tido acesso ao vídeo em que o custodiado aparecia em uma festa,
supostamente, portando uma arma. Ele aludiu que não havia situação de flagrância que
justificasse aquela prisão e que a quantidade de drogas encontradas no domicílio de Renato
seriam para o seu consumo pessoal. Ressaltando também que não houve a comunicação da
107
prisão a família e nem ao advogado, que havia tomado conhecimento apenas na manhã daquele
dia e não na noite anterior.
A juíza pediu para o advogado que se restringisse as questões relacionadas a
legalidade da prisão, pois ela não poderia analisar “questões de mérito” em uma audiência de
custódia.
O advogado respondeu em um tom de voz mais incisivo que as questões que ele estava
levantando eram questões relacionadas a prisão em flagrante, que teria ocorrido de forma ilegal
por se tratar de um evento ocorrido há dois dias e que a análise da classificação do crime
implicaria na necessidade, ou não, da prisão.
Naquele momento, se iniciou um embate entre os presentes que passaram a discutir o
que seriam questões pertinentes, ou não, para serem discutidas naquele momento. A postura
corporal e o tom de voz de ambos se mostravam mais impacientes e agressivos, apesar do uso
contínuo dos pronomes de tratamento formais como “Excelência”, “Doutor”, “Senhor e
“Senhora”.
Encerrada a fala de Marcos, a Juíza asseverou: “A promotora agora vai pontuar os
pedidos dela e peço para que, depois, o Doutor possa formular sinteticamente os seus”.
Assim, dirigida a palavra a Promotora, ela disse que pedia a homologação da prisão
em flagrante e a determinação da prisão preventiva sob o fundamento da necessidade de
garantia da ordem pública, ressaltando a reincidência do custodiado e o fato dele encontrar-se
foragido.
O advogado Rubens, por sua vez, pediu o relaxamento da prisão em flagrante em
razão dela ter sido ilegal e a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, considerando
que ele tem endereço fixo.
A Juíza concluiu pela homologação do flagrante, argumentando que o crime de tráfico
de drogas seria crime permanente, o que justificaria a entrada no domicílio a qualquer tempo.
Ela ressaltou que o inquérito tinha caráter inquisitivo e que não houve qualquer ilegalidade no
procedimento. Por fim, fundamentou que o crime de tráfico de drogas era considerado um
crime grave e que haviam elementos suficientes para indicar a traficância, como a existência
de uma prensa, um caderno, sacos plásticos e quantidades fracionadas de dois tipos de drogas
diferentes. Somado a isso, havia o vídeo do custodiado portanto uma arma em uma festa, o que
demonstrava a gravidade concreta dos crimes por ele produzidos, devendo ser decretada a sua
prisão para fins de garantia da ordem pública.
Após a sua fala, a juíza encerrou a audiência dizendo que seu assessor iria redigir o
termo e que daria depois para cada um ler e assinar.
108
Após o desligar das câmeras, o debate acalorado entre ela e o advogado Marcos se
transformou rapidamente em uma conversa amena sobre o clima chuvoso na cidade e sobre o
trânsito. A Juíza pediu para Marcos que não a interpretasse mal, pois ela estava muito cansada
e estressada com a falta de estrutura da sala de audiência para receber alguém com tuberculose.
O advogado disse com um sorriso no rosto que “a doutora não precisa nem se justificar, eu
compreendo totalmente. Gosto de fazer audiência com profissionais como a senhora, dá para
ver pela sua postura é uma Juíza Criminal mesmo”. Helena respondeu que “apesar de eu ser
uma juíza criminal de carreira, eu não gosto de trabalhar com tanta violência.”
Elis, a ex-companheira de Renato, que acompanhou em silêncio toda a audiência,
levantou a mão e perguntou se podia falar uma coisa. A juíza acenou que sim e Elis falou com
a voz meio embargada: “Doutora, estou muito preocupada porque o Renato está com essa
doença e ele já tem AIDS, como ele vai continuar o tratamento se ele estiver dentro da prisão?”
A Promotora Michele perguntou a Elis se ele já estava tomando o “coquetel” e ela
disse que sim, através do SUS. Ela disse que iria remeter um ofício à Secretaria de Saúde de
Parnamirim e à Secretaria de Segurança Pública do Estado para que fosse garantido o
tratamento dele dentro do presídio o qual ele fosse encaminhado. Michele pediu para Elis levar
a receita do medicamento até a unidade prisional e que, se precisasse, poderia ir até o Ministério
Público de Parnamirim.
A juíza, que já havia impresso o termo de audiência, disse que iria editá-lo para fazer
constar essa informação e solicitar que fosse dada atenção a esse fato no transcurso do processo.
Passei a refletir sobre como aquela informação acerca do estado de saúde do
custodiado poderia ter sido relevante para a avaliação da necessidade da prisão se tivesse sido
dita no momento oportuno pelo próprio custodiado, a quem foi negado o direito de fala durante
sua própria audiência de custódia. Os seus advogados a quem a juíza disse que teriam
“legitimidade para falar por ele”, sequer sabiam daquela informação e não a utilizaram para
tentar justificar a necessidade de uma prisão domiciliar, por exemplo.
Ao sair da sala de audiências, me dirigi até o responsável pela segurança para informar
que iria gostaria de entrevistar o Senhor Renato para fins de pesquisa acadêmica. Ele me alertou
para não chegar muito perto, sob o risco de poder ser contaminada. Quando cheguei em frente
a cela, Renato estava assinando o termo de audiência que acabara de ser entregue pelo Oficial
de Justiça.
Eu me apresentei para ele, falei sobre a minha pesquisa e perguntei se ele se sentia
confortável para conversar comigo naquele momento. Sem olhar diretamente nos meus olhos,
ele me respondeu que sim. Eu perguntei se ele havia lido o documento que ele tinha acabado
109
de assinar e ele me disse que não, mas que o oficial tinha lhe dito o resultado: “ele disse que
deu ruim para mim”.
Eu perguntei sobre o que ele tinha achado da audiência e ele disse: “eu queria ao
menos ter tido a oportunidade de falar para contar a minha versão. Eu não tive como me
defender, eu não estou mais nessa vida, aquela arma era para a minha proteção, eu não estou
vendendo mais”.
Eu perguntei se era a primeira vez que ele participava de uma audiência de custódia e
se ele sabia para que ela servia. Ele me respondeu que sim e falou que da primeira vez que ele
havia sido preso, há 11 anos, isso não existia. Eu perguntei se ele tinha achado importante essa
mudança, ele respondeu: “É importante porque antigamente a gente ficava muito tempo preso
e agora a gente pode ter a oportunidade de sair mais rápido, mas, infelizmente, não rolou para
mim”.
Perguntei como ele se identificava em relação a sua pele, ele me respondeu que se
considerava pardo. Questionei se ele era usuário de drogas lícitas ou ilícitas e me disse que
consumia álcool, maconha e, à vezes, cocaína desde que tinha 15 anos.
Indaguei o que ele tinha sentido no momento da audiência e ele disse: “fiquei
chateado por não poder me defender”. Eu perguntei o que ele sentia no momento da nossa
conversa e ele disse: “vergonha e tristeza”. Eu disse que não estava ali para julgá-lo e que ele
não precisava sentir vergonha.
Pela primeira vez desde o início da nossa conversa, ele olhou em meus olhos e me
perguntou se poderia me pedir uma coisa. Eu disse que, se estivesse dentro do meu limite de
atuação, sim. Ele, então, prosseguiu: “A senhora pode orar por mim? Preciso que a minha
alma seja perdoada, porque amanhã eu não irei acordar para ver o sol, não tenho mais
motivos para viver”.
Nem a minha bagagem acadêmica nem a jurídica eram capazes me proporcionar
qualquer preparo para uma questão tão delicada, que demandaria treinamento psicoterapêutico
adequado. Contudo, apesar de eu ficar desconcertada, eu tinha que oferecer uma resposta que,
ainda que atécnica, seria a mais empática que eu poderia oferecer naquele momento.
Com base nas informações que eu havia escutado dele em audiência, falei que ele
tinha quatro motivos para viver, as quatro filhas. Argumentei que elas não iriam querer que ele
pensasse assim e que estariam o aguardando depois que ele saísse. Disse também que minhas
orações não seriam tão poderosas quanto as que ele mesmo poderia fazer todos os dias para se
reconectar com a vida.
110
Ele me respondeu: “Será uma vergonha para as minhas filhas ter o pai preso de
novo”. Tentei ressaltar que a prisão era algo temporário e que a morte era uma sentença
definitiva. Com a voz já bastante embargada, Renato acrescentou: “Doutora, eu tenho AIDS e
estou com tuberculose, vou morrer de qualquer jeito”. Já me faltavam palavras diante daquela
situação, mas tentei acalmá-lo dizendo que ele estava acompanhado de um bom advogado e
que conseguiria ser tratado lá dentro do presídio. Acrescentei que a Elis também estava lá,
lutando por ele e dando apoio e encerrei a nossa conversa o agradecendo pela entrevista e
pedindo para ele não desistir dele mesmo.
Renato também me agradeceu e ressaltou a importância de eu ter conversado com ele
naquele momento, dizendo que iria sempre orar por mim. Eu agradeci novamente e me despedi
daquela que foi uma das entrevistas mais intensas que eu já havia realizado até então.
O policial Andrei, que estava sentado na sala ao lado, se dirigiu até a mim enquanto
eu saia e demonstrou ter ouvido a minha conversa com Renato ao dizer:
Se a senhora se sentiu impactada com apenas uma conversa como essa,
imagine a gente que tem que lidar com isso todos os dias. Não temos amparo
psicológico nem para a gente, mas temos que ser o suporte de outras pessoas.
Além dos presos, a gente tem que amparar os outros agentes, as famílias e as
vítimas. Imagine o peso que eu levo para casa todos os dias.
Perguntei se era comum ele acompanhar situações como aquela e ele acenou que sim.
Lamentei toda a falta de assistência social e psicológica naquele espaço88, tanto para os agentes,
quanto para os custodiados e suas famílias. Disse que me sensibilizava com o fato dele se
dispor a ouvir quem precisava e que, certamente, eu iria sentir um pouco da angústia e
impotência que ele sente quando chegasse em minha casa.
Ele me disse: “Olha, vocês podem achar que não, mas debaixo de uma farda, também
bate um coração”. Eu sorri com os olhos já marejados e cansados, me despedi e agradeci a
receptividade. Precisei de alguns dias para assimilar todas as informações que colhi naquele
meu segundo de campo que esteve bem fora das balizas que eu mesma havia estabelecido.
As entrevistas que eu realizei naquele dia não conseguiram se moldar ao meu
planejamento e seguiram as sensações e sentimentos dos interlocutores. Me coloquei
inteiramente em uma posição de escuta e isso permitiu que os diálogos, eventualmente,
tomassem rumos inesperados.
88 Até o final da realização do meu campo, em agosto de 2019, não havia no Polo Regional da Central de Flagrantes
de Natal qualquer equipe técnica multidisciplinar atuando naquele espaço. Em novembro de 2019, o TJRN
informou que haveriam treinamentos de equipes para atender as pessoas em situação de vulnerabilidade que fossem
levadas a audiência. Contudo, a implantação do trabalho restou paralisada em razão da pandemia de COVID-19
que suspendeu a realização presencial das audiências de custódia desde março de 2020, não havendo previsão de
retorno no corrente ano.
111
O rito formal dessa audiência de custódia também seguiu um roteiro que eu nunca
antes havia presenciado, com a limitação da fala do custodiado sob o argumento de “reduzir
os riscos de contaminação” e com a sua retirada da sala logo após a confirmação da
classificação, não havendo sequer o questionamento relacionado a ocorrência de tortura ou de
arbitrariedades durante a prisão.
Os fortes momentos de tensão entre um dos advogados e a juíza, que tentava
constantemente limitar a fala da defesa para pontos objetivos sobre o flagrante, deram lugar a
conversas amenas e a troca de elogios entre eles, logo após o desligar das câmeras.
A intervenção da ex-esposa do custodiado, já após o desligar das câmeras, informando
sobre a doença de Renato e da necessidade de tratamento, ocasionou em alterações no termo
de audiência que já estava editado e na produção de novos documentos por parte da promotora
e da juíza que decidiram notificar a secretaria de segurança e a de saúde sobre os fatos relatados.
Isso me fez pensar na importância da abertura daquele espaço também para a escuta
das famílias, relegadas à varanda do prédio e tantas vezes impedidas de assistir as audiências.
A presença de uma equipe multidisciplinar que acolhesse essas pessoas e elaborasse um
relatório psicossocial a ser entregue previamente aos magistrados e promotores poderia
contribuir em encaminhamentos mais efetivos. Se Elis não estivesse ali, Renato não seria
encaminhado para o tratamento de saúde necessário.
Exemplo de equipes como essa, podem ser observados no Mato Grosso, como a
desenvolvida pelo Projeto Renascer. O programa, segundo Mangabeira (2019, p. 2-3), visa:
(...) promover a inclusão do flagranteado nas redes municipal e estadual de
saúde, trabalho e educação como tentativa de prevenir e combater a
reincidência, em especial no caso dos réus primários com alvará de soltura.
(...) Antes da audiência, a dinâmica do Projeto Renascer opera na tentativa
de, primeiro, qualificar a situação do flagranteado de maneira a auxiliar o juiz
na sua decisão, e, segundo, como “meio de passagem” entre a carceragem do
fórum e a audiência, um local de apaziguamento do flagranteado conforme
delineado na voz de um dos psicólogos atendentes: “aqui, o custodiado pode
chorar, colocar pra fora o que está sentindo, e resumir a sua situação”. O ponto
nevrálgico dos atendimentos é a detecção de doenças infectocontagiosas, das
situações de risco em que os flagranteados se encontram (se usuários de
drogas, se possuem documentação civil etc.), o primeiro atendimento
psicológico para análise do histórico do sujeito, a fim de servir de base para
decisões mais apuradas do juiz, e o exame de corpo de delito, para constatar
ou não qualquer violência que o custodiado tenha sofrido.
Ainda nesse contexto, outro momento que me chamou atenção, foi ver Renato
tomando conhecimento sobre a manutenção da sua prisão por meio de um papel entregue
através das grades da cela pelo Oficial de Justiça, sem maiores explicações sobre o que ocorreu
112
após ele sair da sala de audiência. A sensação de desestabilização do custodiado, por mim
presenciada, poderia ter sido amenizada se o resultado tivesse sido informado e esclarecido
diretamente pela juíza, pelo seu advogado ou, caso houvesse, por uma assistente social ou
psicóloga.
O fato de eu poder transitar por vários espaços da Central de Flagrantes, conhecendo
os bastidores para além do rito formal das audiências de custódia, me fez perceber que elas
eram constituídas e assimiladas através de percepções que iam muito além do seu ínterim
oficial e de roteiros pré-estabelecidos.
E nesse norte, os demais dias de campo que se seguiram trouxeram novos aspectos e
circunstâncias diferenciadas que me propiciaram executar melhor as entrevistas com todos os
partícipes e abriram espaço para que eu adentrasse em novas salas, conhecendo também a
dinâmica de funcionamento da Defensoria Pública.
3.2 AS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA DE ANTÔNIO, JOÃO E ALBERTO.
No meu terceiro dia de campo, fui informada por telefone que haviam duas audiências
autuadas como “tráfico de drogas” pautadas. Ao chegar na Central de Flagrantes, soube que
havia sido incluída mais uma, totalizando três audiências em um dia. Como não haviam
advogados constituídos até então, os casos seriam acompanhados pela Defensoria Pública.
Ao anotar os dados, percebi que duas das audiências, as dos custodiados Antônio e
João possuíam a mesma numeração processual, o que indicava que as prisões haviam
acontecido juntas e, possivelmente, em razão do mesmo fato. Elas seriam as primeiras a serem
realizadas naquele dia, enquanto a do custodiado chamado Alberto estava pautada para ser a
quinta e última, devendo ocorrer já no horário da noite.
Me dirigi até a sala da Defensoria Pública, onde fui recebida por Hugo, um jovem que
aparentava ter entre 20 e 25 anos. Ele estava sentado em uma cadeira atrás de um gabinete,
acompanhado de uma pilha com cinco processos. Quando eu entrei, ele analisava atentamente
um deles e fazia anotações em seu computador. Apesar de estar bastante atarefado, se mostrou
disponível para me atender.
Ele se apresentou como o estagiário da DPE responsável pelas atividades da
Defensoria na Central de Flagrantes e disse que trabalhava lá todos os dias úteis da semana
entre 13h e 17h. Perguntei quem seria o defensor ou defensora que atuaria nas audiências e ele
me disse que nunca tinha essa informação previamente: “Eu só descubro quando eles chegam.
113
Normalmente, há uma escala, mas como eles fazem muitas permutas entre si, eu nunca sei
quem virá.”
Perguntei qual era o trabalho que ele desempenhava e ele me disse que analisava todos
os autos de prisão em flagrante, pesquisava se havia antecedentes criminais ou mandados de
prisão em aberto e fazia um relatório com os pontos mais importantes para poder embasar a
atuação do defensor, também o auxiliando durante as audiências até às 17h.
Enquanto conversávamos, a Defensora Pública Margarida adentrou à sala. Me
apresentei a ela e falei um pouco sobre a minha pesquisa. Gentilmente, ela elogiou a iniciativa
e disse que eu poderia acompanhar os atendimentos que ela faria com os custodiados antes do
início das audiências.
Agradeci e perguntei se poderia também fazê-la algumas perguntas. Com a sua
anuência, a primeira questão que eu coloquei foi se ela avaliava positivamente a implantação
das audiências de custódia. Ela disse que sim e que aquilo era fruto de um intenso processo de
lutas da própria Defensoria Pública. Afirmou que sempre defendeu uma análise rápida sobre a
necessidade da prisão e sobre a existência de arbitrariedades ou de tortura.
Eu perguntei se ela gostava de fazer esse tipo de audiência e ela respondeu que
dependia do juiz ou da juíza que a presidisse, pois “alguns deles possuem afinidade e
habitualidade com a matéria criminal, mas tem uma parte que não faz o menor esforço em
ouvir a argumentação da defesa, o que torna o nosso trabalho muito desmotivador.”
Após, indaguei se ela se sentia segura realizando esse tipo de audiência e o que ela
achava da estrutura da Central de Flagrantes. Margarida me respondeu que ela se sentia segura,
mas que o prédio ainda poderia melhorar bastante, podendo dispor de espaços para assistência
psicológica e social dos custodiados. Ela também acrescentou que a sala da DPE poderia ter
mais privacidade. Perguntei se os seus assistidos89 costumavam contar tudo para ela e se ela
aconselhava que eles se posicionarem durante a audiência. Ela disse que:
Geralmente eles respondem a tudo que eu pergunto, pois sabem que isso
facilitará na hora da sua defesa. Se eles dizem algo que eu sei que vai soar
inverossímil ou que poderá prejudicá-los, eu explico as consequências para
eles analisarem se vale a pena, ou não, falar. Eu prezo, acima de tudo, para
que eles se sintam bem durante a audiência, ainda que seja difícil.
Por fim, questionei se fazia alguma diferença para ela saber se eles pertenciam, ou
não, a alguma facção. Ela disse que “de forma alguma, trato todos de forma igual”. Eu
perguntei se ela sentia alguma distinção no tratamento por parte dos juízes e promotores quando
89 Por se tratar de um órgão público, a Defensoria Pública opta por chamar seus beneficiários de “assistidos” e não
de “clientes”, vergastando a lógica mercantilista contida nesse último termo.
114
o crime era de tráfico de drogas. E ela respondeu: “bastante! É um dos crimes que mais gera
prisões no Brasil. O que eu observo é que o tipo penal acaba pesando mais do que o fato em
si”. Após essa fala, Margarida pediu minha licença para demandar ao estagiário que fosse
informar ao chefe do setor de segurança que ela já havia chegado e que poderia levar,
individualmente e seguindo a ordem contida na pauta, cada um dos custodiados que seria
assistido pela DPE.
Após fazer esse pedido, ela se dirigiu novamente a mim e complementou a sua
resposta:
Os crimes ligados ao tráfico são permeados por estigmas. Infelizmente, os
juízes sempre acham mais prudente manter preso um provável traficante do
que garantir a liberdade de um provável usuário. A lógica parece ser inversa
aquela que nos é ensinada de que na dúvida, deve-se sempre decidir pela
opção menos danosa.
Poucos minutos depois, dois policiais trouxeram Antônio, o primeiro assistido da
audiência que eu iria acompanhar. Ele era franzino, bastante jovem, de pele negra, vestindo
uma calça jeans, sandálias de dedo e uma blusa folgada. A defensora pediu para que os agentes
o dirigissem até a cadeira que ficava em frente à sua mesa e para que eles se retirassem depois.
Assim que Antônio se sentou, ainda usando algemas, os agentes saíram da sala e passaram a
aguardar do lado de fora, em frente a uma janela transparente de vidro por onde observavam
tudo que acontecia naquele recinto.
Após se apresentar, a Defensora perguntou se aquela era a primeira audiência de
custódia que Antônio participava e ele a respondeu que não. Logo em seguida ela perguntou
como tinha ocorrido a prisão. Ele explicou que estava atuando como “moto-taxi” e que deu
uma carona para o seu colega, “eu não sabia que ele estava com aquelas coisas na bolsa”.
Margarida perguntou se ele tinha documentação, pois não haviam dados do seu RG e
CPF identificados nos autos do processo. Ele a explicou que nunca teve carteira de identidade,
que apenas tinha uma certidão de nascimento. Naquele momento, ele ficou com a voz bastante
trêmula. A defensora pediu para ele ficar calmo e disse que ela estava ali para tentar ajudá-lo.
Ela perguntou sobre a outra audiência de custódia que ele já havia participado e ele disse que
era adolescente na época. Ela explicou que aquilo que ele havia participado, apesar de ser
parecido, não era uma audiência de custódia, mas que o juiz poderia fazer perguntas sobre essa
situação para ele.
Margarida questionou, ainda se ele trabalhava, e ele balançou a cabeça em sentido
negativo. Ela perguntou se ele estudava e ele também acenou negativamente. Ela arguiu o
115
motivo dele não estudar, já que tinha apenas 18 anos, e ele respondeu: “eu tinha muitos
inimigos na escola e tinha medo de ir”.
Como se tivesse falado algo que não deveria, ele olhou para os policiais na janela e
começou a se mostrar bastante desconfortável em estar ali, alongando seu pescoço, balançando
seus ombros e movimentando incessantemente uma de suas pernas. Com um olhar atento
àquela postura, Margarida disse que ele não era obrigado a responder as perguntas que ela fazia
e nem as que o juiz iria fazer. Ele perguntou se o juiz poderia obrigá-lo a falar e ela disse que
não, que seria ele quem teria o poder de escolher o que iria dizer e se gostaria de dizer. Após
olhar para o relógio, a Defensora acenou para que os policiais retirassem Antônio da sala e
trouxessem o próximo assistido.
João, que havia sido preso na mesma situação em que Antônio, foi o segundo a entrar
na sala da DPE. Ele também era jovem, de pele ainda mais retinta do que a de Antônio, era
magro e estava vestindo uma regata branca, uma calça preta e um par de tênis.
Ao perguntar sobre as circunstâncias da prisão, ele respondeu:
Olha, eu não vou mentir para a senhora, não. Eu tô tendo que vender mesmo,
mas eu quero muito sair dessa vida. A moto não foi roubada, não, eu a
comprei por duzentos reais. Se eu puder, eu faço serviço comunitário, eu
pago fiança, eu só preciso de uma oportunidade, doutora.
Margarida explicou que nessa audiência não caberia fiança e nem era o caso de avaliar
se caberia serviço comunitário ainda. Ela perguntou se o rapaz que estava com ele estava
apenas dando uma carona ou se estava participando da venda das drogas. João respondeu que
ele e Antônio estavam “fumando juntos”, mas que só quem vendia era ele. Logo em seguida,
ele perguntou quanto tempo ficaria preso. Suas duas pernas balançavam incessantemente,
demostrando um aparente nervosismo.
A Defensora disse que não havia como prever e que essa audiência era para decidir se
ele responderia ao processo preso ou em liberdade, mas que só em seu julgamento é que seria
decidido se ele seria culpado ou inocente, e isso só ocorreria daqui há alguns meses. Ela
também o explicou que ele não era obrigado a responder as perguntas que o juiz fizesse, tendo
o direito de permanecer em silêncio.
Não havendo mais perguntas, Margarida sinalizou para os policias o levarem e
trazerem o próximo assistido. Após acompanhar as entrevistas de outros dois custodiados de
audiências que fugiam ao meu objeto de pesquisa, aguardei a entrada de Alberto, que também
havia sido preso por um suposto flagrante de tráfico de drogas. Ele também era um homem de
pele negra, aparentava ter 30 anos e vestia uma calça comprida e uma camisa social
quadriculada. Após a apresentação da Defensora, ele explicou que estava em uma festa na noite
116
anterior curtindo com os amigos e que um policial decidiu revistá-lo, encontrando 12 gramas
de cocaína, um canudo e um saquinho com ele.
Margarida questionou se ele era apenas usuário e ele disse que era “viciado” em
cocaína e em maconha. Ela o questionou como ele fazia para manter o “vício”, e ele afirmou
que ganhava R$ 600,00 por mês em trabalhos informais e que desse dinheiro usava R$ 200,00
para comprar em drogas.
Diferente da forma como Margarida interagiu com os demais custodiados, ela olhava
com uma certa desconfiança para Alberto, como se algo em sua versão a incomodasse. Ela
explicou que, se ele não quisesse, não estaria obrigado a responder as perguntas que seriam
feitas pelo Juiz ou pela Promotora. Posteriormente, sem maiores questionamentos, ela acenou
para que os policiais o retirassem da sala.
Quando ele foi levado, ela me disse que não confiou na versão de que ele era
dependente de cocaína, “ele não tem nem o olhar e nem o nariz de quem consome com
frequência”, ela disse.
Um policial bateu a porta para informar que havia chegado um advogado particular
para Antônio, o custodiado da primeira audiência. Agradeci toda a receptividade de Margarida
e me retirei da sala da sua sala para tentar conversar com o Advogado recentemente habilitado.
Contudo, ao chegar no grande salão que ficava em frente a Secretaria e a Sala da DPE,
me deparei com uma mulher, que logo descobri ser a mãe de Antônio, conversando em um tom
de voz incisivo com o homem que policial apontou ser o advogado que acabara de chegar.
Senti que aquele não era um bom momento para conversar com eles e aguardei até eles se
afastassem. Para a minha surpresa, vi que a senhora entregou uma nota de R$ 50,00 para o
advogado e que ele se despediu, andando em direção a saída da Central de Flagrantes.
Um pouco confusa, me aproximei daquela mulher que se apresentou como Inês. Ela
era uma mulher magra, de pele negra e tinha 40 anos de idade. Me apresentei para ela e falei
um pouco sobre a minha pesquisa. Após, perguntei se o advogado havia explicado para ela
para que serviam as audiências de custódia. Ela, então, me disse:
Aquele senhor não é nosso advogado, eu nem sei por que ele veio aqui e
ainda me fez pagar 50 pila para ele. Eu estou injuriada. Uma moça me ligou
perguntando se eu iria precisar de um advogado e eu disse que não tinha
dinheiro para pagar, ela disse que ele viria aqui negociar um bom valor
comigo. Ele chegou e disse que custava R$ 600,00 para ele acompanhar o
Toinho na audiência. Eu disse que não tinha esse dinheiro, daí ele se chateou
e disse que eu tinha que pagar o deslocamento dele e me cobrou R$ 50,00.
Agora eu que não tenho mais como pagar a feira da semana.
117
Eu expliquei para ela que o filho dela poderia ser assistido pela Defensora Pública e
que ele já tinha sido até atendido por ela. Ela disse que aquele seria o único jeito. Questionei
novamente se ela sabia para que servia a audiência de custódia e ela disse que não sabia. Eu
expliquei, brevemente, que seria o momento de analisar se o filho dela iria responder ao
processo preso, em liberdade, ou cumprindo alguma medida determinada pelo juiz.
Perguntei se ela sabia em que circunstâncias o filho dela havia sido preso e ela
respondeu: “Ele é viciado desde os 12 anos, deve ter sido por isso”. Ela acrescentou que ele
tem problemas psicológicos e que tem muito medo que ele fique preso e que o matem dentro
da prisão. Ao perguntar qual era o sentimento que ela estava vivenciando naquele momento,
ela respondeu em apenas uma palavra: “revolta, eu sempre fui uma boa mãe, eu não merecia
passar por isso, não”.
Quem também estava aguardando a audiência era a cunhada do custodiado João,
chamada Marília. Após me apresentar, perguntei se alguém havia explicado o que eram as
audiências de custódia e se ela sabia para que serviam. Ela disse que ninguém a explicou e
disse nunca ter escutado falar antes. Após dar a mesma explicação que eu dei para Dona Inês,
perguntei se ela sabia por que João havia sido preso e ela disse que não havia tomado
conhecimento. Ao questionar se ele tinha contato com drogas, Marília disse não saber
responder e que só estava lá por que a irmã dela, que era namorada do João, não teve condições
de comparecer.
Naquele momento, um policial veio me informar que as audiências iriam começar e
eu me dirigi até a sala em que elas ocorreriam. Ao adentrar, me apresentei ao Juiz Anderson
que iria presidi-las e a Promotora Angélica que também já se encontrava na sala. Ambos se
mostraram solícitos a minha presença e aceitaram ser entrevistados ao final das audiências.
O Juiz pediu a um servidor para chamar o advogado de Antônio e ele disse que já
tinha o procurado por todo o prédio e não o havia localizado. Como Dona Inês não estava
presente na sala para esclarecer a situação, já que o Juiz não havia autorizado a presença dos
familiares, eu falei que tinha tomado conhecimento através da mãe de Antônio que o Advogado
havia desistido em razão de uma falha na comunicação entre eles, sendo bem eufemística. O
Juiz se mostrou bastante chateado com a postura do advogado e mandou o servidor chamar a
Defensora Pública.
Após 10 minutos, ela adentrou na sala e disse que não haveria problemas em defender
Antônio pois já tinha atendido ele. Entrementes, Antônio, que já havia sido escoltado até a sala,
disse que nunca tinha visto a Defensora antes. Ela disse: “era eu quem estava naquela salinha
com você, lembra?” Mas ele respondeu que não lembrava.
118
O Juiz perguntou se ele aceitava ser defendido por Dra. Margarida e ele acenou que
sim. Ao começar a audiência, Anderson explicou a Antônio o que a audiência de custódia era
o momento de analisar se tudo ocorreu da forma correta durante a prisão e se ele deveria
aguardar o processo preso, ou não. Após, ele fez algumas perguntas para confirmar as
informações cadastrais contidas no processo e perguntou se ele tinha algum documento. A
Defensora Margarida respondeu que ele tinha certidão de nascimento e comprovante de
residência. O Magistrado perguntou se Antônio havia sofrido alguma violência durante a prisão
e se ele se importaria de responder algumas perguntas. Antônio respondeu: “Não sofri
violência, mas posso falar tudo que eu sei, vai depender do que o senhor perguntar.”
Com uma feição um pouco desconfiada, o Juiz questionou novamente se ele tinha o
interesse, ou não, de falar. E ele respondeu “depende, umas coisas sim e outras não.”
Mostrando-se impaciente e com a voz mais áspera o magistrado pontuou: “aqui ou você fala
tudo ou não fala nada”. Antônio, então, rebateu: “então não vou falar nada.”
Após uma longa respiração, o Magistrado e pediu para que os policias retirassem
Antônio da sala. A Promotora Angélica e a Defensora Margarida se entreolharam com um ar
desconfiado e nitidamente incomodadas.
Angélica disse que não estava esperando aquela postura por parte do custodiado, pois
já estava convencida pelos autos de que não haviam motivos suficientes para pedir sua prisão,
mas que, agora, tinha ficado confusa, pois desconfia que ele está escondendo algo.
A Defensora contra-argumentou dizendo: “Não podemos interpretar o silêncio dele
de forma negativa, ele deve ter agido assim por medo de alguma retaliação”.
A Promotora disse: “Eu sei, mas que ficou bem suspeito, ficou. De qualquer forma,
vou pedir a homologação da prisão com aplicação de medidas cautelares diversas, pois está
claro aqui nos autos da delegacia que as drogas estavam apenas com o outro.”
A Defensora, por seu turno, se posicionou pelo relaxamento da prisão e pela concessão
de liberdade provisória, argumentando que a prisão havia sido ilegal. O Juiz, nesse caso,
decidiu consoante ao pedido da defesa, relaxando a prisão por considerar que não havia
qualquer demonstração de traficância por parte de Antônio e concedeu a liberdade provisória.
Após, foi iniciada a audiência de João, que entrou na sala escoltado pelos dois
policiais. O Juiz se apresentou para ele e explicou o objetivo da audiência. Depois de ter
confirmado alguns dados cadastrais, perguntou se ele teria sofrido alguma violência durante a
prisão. João respondeu que não. Após, Anderson o perguntou se ele teria interesse em falar
alguma coisa e de responder as perguntas feitas por eles. João respondeu que queria falar tudo
e que “caminhava ao lado da verdade”.
119
O Juiz perguntou qual era a versão dele para os fatos, e ele disse:
A droga era minha mesmo, era eu quem estava pilotando a moto, eu tenho
que vender porque é a única coisa que eu posso fazer hoje para ganhar
dinheiro. Se eu tivesse oportunidade, eu trabalhava com outra coisa. Se o
Doutor me arrumar um emprego em uma obra, eu vou lá e trabalho, eu só
vendi porque era o jeito mesmo. Os policiais não fizeram nada de errado
comigo, estavam só fazendo o trabalho deles.
Após, o Juiz perguntou se a Defensora e a Promotora tinham alguma pergunta a fazer
e elas disseram que não. O Juiz, então, pediu para que os policiais tirassem João da sala.
Quando ele saiu, a Promotora disse:
Olha, ele trazia consigo 59 pedras de crack e 7 papelotes de cocaína, além
disso ainda estava com uma moto roubada, não tenho como pedir a liberdade
dele. Em razão da necessidade de garantia da ordem pública, peço a
homologação do flagrante e a decretação de prisão preventiva.
A Defensora argumentou:
O custodiado é réu primário e não tem indícios nos autos de que ele participe
de qualquer organização criminosa, se, eventualmente ele for condenado e
for aplicada à figura do tráfico privilegiado a pena dele será em um regime
aberto ou semiaberto. Logo, não há necessidade de manter ele preso
preventivamente até o dia do julgamento, sob o risco do cautela ser mais
dura do que a própria pena. Portanto, peço que seja homologado o flagrante
com a concessão de liberdade provisória ou aplicação de medidas cautelares
diversas.
Após a fala da Defensora, o Juiz disse que a tese de que a medida cautelar não poderia
ser pior do que a própria pena já havia “caído por terra” desde a criação da Lei Maria da Penha
e que “segundo as regras da experiência” era melhor manter o rapaz preso mesmo, com o
fundamento na “garantia da ordem pública”.
Como ainda iriam transcorrer duas audiências até que fosse realizada a última, que
seria a de Alberto, decidi sair da sala para entrevistar Antônio e João.
Ao conversar com Antônio perguntei se ele já sabia do resultado da sua audiência e
ele me respondeu que ainda não e me perguntou: “No que é que deu, Doutora?”. Eu disse que
o oficial de justiça logo iria informá-lo do resultado e evitei ser a pessoa que repassaria a notícia
para ele, pois poderia gerar um tumulto em relação aos outros custodiados que estavam na
mesma cela e que também aguardavam uma resposta.
Eu perguntei se ele havia compreendido o motivo daquela audiência e se ele a achava
importante. Ele me respondeu que “não havia entendido nada”. Perguntei se ele confiava na
Defensora Pública e ele disse que sim. Questionei porque ele havia dito que não se lembrava
de já ter conversado com ela e ele me disse, rindo, que havia esquecido. Ao perguntar sobre a
120
sua etnia, ele me disse: “sou negro, né?”. O questionei sobre a escolaridade e ele disse ter
ensino fundamental completo. Perguntei se ele fazia uso de drogas e ele disse que sim, desde
os 12 anos de idade. Perguntei se ele se considerava dependente delas e ele balançou a cabeça
afirmativamente. Enquanto conversávamos, o oficial de justiça foi intimá-lo da decisão.
O oficial disse que ele iria responder ao processo livre. E ele deu um grande sorriso e
assinou o documento sem ler. Eu perguntei porque ele não havia lido o papel que ele tinha
assinado e ele disse que o que importava para ele era saber que iria para casa.
Perguntei qual era o sentimento dele naquele momento e ele disse “gratidão”. Ele
olhou para o Policial e perguntou se poderia sair logo, senão iria perder a missa das 19h. O
policial disse: “Então uma hora é irmão Antônio e na outra é mano Antônio?” Todos na cela
riram da fala do policial, que também demonstrou descontração e riu com eles.
Encerrado a minha entrevista com Antônio, comecei a conversar com João. Ele estava
animado com a possibilidade de poder responder ao processo também em liberdade, já que
ainda não tinha sido informado do resultado de sua audiência.
Em nossa conversa, ele me disse que se sentiu muito bem em falar a verdade, que
sabia que a audiência de custódia era importante porque ele teria o direito de ser ouvido. Disse
que usava drogas há muitos anos, mas que não era “viciado”. Afirmou confiar na Defensora e
disse que se fosse dada oportunidade ele mudaria de vida.
Quando o oficial de justiça o informou que ele permaneceria preso, ele demostrou
bastante tristeza em seu olhar e também assinou a última página da decisão sem ler. Eu
perguntei se ele tinha ficado surpreso com a decisão e ele me disse que sim: “Eu achava que
teria uma nova chance, a senhora sabe quanto tempo eu vou ficar preso?”.
Eu respondi que dependeria de muitos fatores, mas que haveria prioridade de
tramitação por ele se encontrar preso, em uma linguagem mais simplificada, expliquei: “o
processo vai correr mais rápido”. Eu perguntei qual era o sentimento dele naquele momento
e ele respondeu que estava “decepcionado” e pediu para eu dizer para a cunhada dele que
dissesse para a irmã que ele a amava e que ela o esperasse.
Fui chamada pela Defensora para assistir a audiência de Alberto que iria começar.
Após o procedimento de identificação e de explicação sobre o que seriam as
audiências de custódia, o juiz perguntou se ele estava disposto a responder algumas perguntas
e ele acenou que sim. A primeira questão foi para que ele dissesse como ocorreu a prisão.
Alberto disse: “Eu estava curtindo a noite com uns amigos, daí quis comprar umas
coisas para me divertir mais. Quando os policiais chegaram, pediram para me revistar e
encontraram o material na minha bolsa.”
121
A promotora perguntou porque ele carregava uma balança de precisão em uma festa.
Ele respondeu que já havia sido enrolado uma vez na hora de comprar, daí levava a balança
dele para conferir. O Juiz perguntou se ele tinha coragem de discordar da balança de quem
vendia e de pesar de novo na frente deles. Ele disse que “os caras não veem problema nisso”.
Após, a promotora perguntou “há quanto tempo você cheira?” e ouviu que “desde que eu
tinha 15 anos”.
O juiz perguntou com o que ele trabalhava e ele disse vender milho em festas. O juiz
perguntou se ontem ele “estaria vendendo”. O seu tom de voz deixou uma certa ambiguidade
no ar, denotando que a pergunta havia duplo sentido. Alberto, demonstrando tensão,
respondeu: “ontem, eu estava apenas curtindo”.
O Magistrado sinalizou para que os policiais tirassem ele da sala. A promotora disse
que considerando a existência de antecedentes criminais na ficha, iria pedir a homologação da
prisão em flagrante e a decretação da prisão preventiva como “garantia da ordem pública.” Já
a Defensora pediu que fossem aplicadas medidas cautelares diversas da prisão.
Sinalizando que iria acolher o pedido do Ministério Público, após desligar as câmeras,
o Juiz fez diversos comentários sobre a audiência: “Essa desculpa foi criativa, quem é que leva
uma balança na hora de comprar drogas? Vai ter coragem de duvidar do peso que o traficante
diz? Seria muita ousadia. E ele ainda quer que a gente caia nessa, faça-me o favor.”
A Promotora acrescentou: “Se a cocaína era só para ele consumir por que ele
precisava de tantos canudos?”.
O Juiz lembrou o posicionamento de João durante a segunda audiência e afirmou:
“Eles falam que se pudessem não estavam nessa vida, mas eu não acredito que pobreza
justifique crimes. Quando eu viajei para a Tailândia, a maior parte da população lá era bem
pobre, mas eu podia andar tranquilamente com o celular na rua.”
Eu pedi licença e perguntei se poderia fazer algumas perguntas naquele momento. O
Juiz me respondeu que sim. Perguntei se ele avaliava a implantação das audiências como algo
positivo e ele me disse que “sim, mas que precisa haver maior organização na distribuição
dos juízes responsáveis.” Perguntei se ele achava que ouvir a pessoa sob custódia melhorava a
percepção sob os fatos, ele respondeu: “em relação a ocorrência de tortura, sim, mas em
relação a acusação a gente tem que ter muito cuidado, pois estamos ouvindo apenas um lado.”
Perguntei o que ele costumava considerar na hora de decidir sobre a prisão ou sobre a liberdade
nas audiências de custódia por crimes de tráfico de drogas. Ele respondeu: “quantidade,
variedade, a existência de instrumentos como balanças, saquinhos, muito dinheiro trocado, se
há antecedentes criminais e as próprias circunstâncias de como ocorreu o flagrante”.
122
Questionei, por fim, o que significava, para ele, a “garantia da ordem pública” que
foi utilizada para justificar a prisão anterior. E ele respondeu: “Ela é para assegurar que aquela
conduta reprovada não se repita”.
Ao fazer as mesmas perguntas para a Promotora, ela me respondeu:
Eu acredito que as audiências de custódia poderiam ser melhor
aproveitadas. Esse seria um momento interessante para fazermos
negociações, como as que ocorrem nos Estados Unidos. Isso poderia
diminuir o número de processos e também poderia agilizar o nosso trabalho.
Uma coisa que eu não entendo é porque essas audiências precisam ser tão
longas, se a gente não está aqui para debater o mérito dos fatos e apenas
analisar a legalidade.
Sobre a segurança e estrutura da Central de Flagrantes ela disse que precisava
melhorar muito. Ao questionar se ouvir o custodiado mudava a percepção dela sobre os fatos
ela disse que não mudava o posicionamento dela e que os autos vindos da delegacia e a ficha
de antecedentes criminais eram os fatores que moldavam a sua posição.
Tive que encerrar a minha conversa com a Promotora para poder conversar com o
Alberto antes que ele fosse retirado do prédio da Central de Flagrantes.
Ao chegar até a frente da sua cela, ele estava com um aspecto bem abatido, pois já
havia tomado ciência do resultado da audiência. Eu perguntei o que ele tinha achado da
audiência e ele respondeu:
Olha, eu não falei a verdade sobre a questão da violência. Os policias me
trataram como um animal, ralaram meu joelho no chão, forçaram minha
cabeça e pediram para eu falar coisas que não aconteceram.
Eu perguntei o motivo dele não ter falado a verdade sobre isso e ele disse: “Eu tenho
muito medo da polícia, me sinto mais seguro com a galera da minha comunidade do que aqui
nesse lugar”. Depois eles mandam me arquivar e colocam até uma arma na minha bolsa.
Eu perguntei se ele era realmente usuário de drogas e ele me disse que sim, mas que
só consumia em festas. Que não era viciado pois poderia parar se ele quisesse. Eu perguntei se
ele gostaria de falar como estava se sentindo e ele disse: “Eu tenho medo, tenho muito medo
de morrer na cadeia.”
Como já havia passado das 19h, os policiais pediram para eu encerrar a minha
entrevista e disseram que tinham que levar os custodiados que permaneceriam presos. Eu
agradeci a entrevista do Alberto e o desejei boa sorte, encerrando meu terceiro dia de campo.
123
3.3 A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA DE ÍTALO
No meu quarto dia de campo, fui informada de que estava agendado na pauta de
audiência um caso autuado como tráfico de drogas. Ao chegar na Central de Flagrantes, fui até
a Secretaria coletar dados sobre o processo e sobre o custodiado chamado Ítalo. Ao analisar os
dados, percebi que já havia um advogado cadastrado, chamado Arthur.
Ao me dirigir até o grande salão, perguntei aos três homens que se encontravam
sentados se algum deles seria o Dr. Arthur. Um deles me acenou positivamente e me
cumprimentou com um aperto de mão. Me apresentei para ele e falei um pouco sobre a minha
pesquisa, propondo fazer algumas perguntas para ele.
Ele aceitou e elogiou a importância de estudar o funcionamento das audiências de
custódia, pois, certamente, ainda há muito a melhorar. Perguntei o que ele achava que poderia
ser aprimorado e ele disse: “Seria importante que os Juízes ouvissem mais os advogados e
respeitassem os nossos argumentos durante as audiências. A impressão que eu tenho é que
eles tem vontade de analisar os autos como faziam antes, sem ter que ouvir ninguém.” Inquiri
o que ele achava da estrutura física do prédio e ele disse:
Comparado ao que era antes de 2015, ter um prédio como esse já é um
avanço, mas precisa melhorar muito. Não há qualquer privacidade na sala
da OAB e é impossível os advogados aguardarem lá e poderem usar uma
mesa para adiantar algum trabalho. O custodiado não se sente seguro para
falar conosco já que a porta fica entreaberta com um policial a espreita. Isso
dificulta muito. Eu prefiro muito mais conversar na delegacia do que aqui.
Perguntei se ele já conhecia o seu cliente e ele me disse que sim, que já tinha feito
uma defesa em outras causas. Perguntei quem havia entrado em contato com ele e ele me
respondeu que havia sido a família de Ítalo.
Um policial interrompeu a nossa entrevista dizendo que a sala da OAB já estava
liberada para o Advogado conversar com o cliente. Eu perguntei se poderia acompanhar a
conversa, mas Arthur, negou o meu pleito argumentando que a sala era muito pequena e que o
custodiado poderia se sentir desconfortável.
Então, resolvi ir para a sala de audiências me apresentar ao Juiz Bernardo que estaria
presidindo aquela audiência e a Promotora Violeta que estava designado naquela semana. O
juiz me recebeu com bastante educação e pediu um café para mim. Falei sobre a pesquisa que
estava desenvolvendo e ele disse que conhecia algumas pessoas da Antropologia que tinham
tido forte atuação durante a rebelião que ocorreu em Janeiro de 2017 em Alcaçuz.
124
Um servidor bateu a porta e informou que já estava tudo pronto para iniciar a
audiência de Ítalo. O juiz autorizou que os policiais o escoltassem e pediu para que o Advogado
fosse chamado. Após ligar as câmeras, iniciou a audiência apresentando todos os presentes ao
custodiado, explicando que a audiência seria para avaliar a legalidade da prisão e a necessidade,
ou não, de mantê-la.
O juiz pediu para o seu assessor fazer as perguntas de identificação. Ele confirmou
nome completo, número do CPF, data de nascimento, endereço e número de telefone. Após,
perguntou sobre a profissão de Ítalo, que respondeu que era “pastorador de carros e
flanelinha”90. Por fim, o assessor perguntou se ele usava alguma substância ilícita e ele
respondeu que não.
O juiz retomou a sua fala e perguntou como tinha ocorrido a prisão e se tudo havia
ocorrido “dentro dos conformes”. Ítalo disse que levou um tiro de raspão “sem necessidade”.
O magistrado perguntou se ele fez exame de corpo de delito e ele acenou que sim. Após, ele
pediu para que Ítalo narrasse o que tinha ocorrido e ele disse, olhando em sua direção, com tom
de voz enérgico: “tudo isso foi um grande engano”, argumentando:
Eu estava sentado na calçada da minha casa e tomando suco de maracujá.
Só tinha eu na rua. Só que tem uma bocada na esquina, daí eu ouvi a polícia
chegar já apontado armas e gritando. Na hora eu me assustei e tentei correr
para dent’de casa, só que quando os homens me viram, mandaram eu parar,
quando eu senti o tiro eu me joguei no chão. Eles me revistaram e perceberam
que eu estava de tornozeleira. Daí acharam que eu estava fazendo alguma
coisa errada. Eles me mostraram uns bagulhos que tinham achado no beco
e disseram que era para eu assumir, eu disse que não iria assumir porque
aquilo não era meu. Eles davam tiros para me assustar e me obrigar a dizer
que eu era do dono daquela boca. Mas nada daquilo era meu. Tá muito
errado isso daí.
O juiz Bernardo perguntou se o beco era o da casa de Ítalo. Ele respondeu: “Não, fica
em frente à minha casa”. A promotora disse: “aqui nos autos da delegacia está escrito que foi
encontrado na sua casa: 19,58g de cocaína, uma munição, um rádio comunicador, uma
balança e três capas de revólver .38.”
Ítalo, então, arguiu: “Lá em casa mesmo não, isso aí estava tudo no beco”. A
promotora insistiu que o beco pertenceria a casa de Ítalo e o Advogado pediu autorização ao
Juiz para que Ítalo desenhasse onde ficava o beco e onde ficava a casa dele na rua.
Com a anuência, Ítalo fez dois traços paralelos em uma folha de papel e apontou que
sua casa ficava na ponta de um dos traços e o beco na ponta do outro traço. Sem dar muita
90 Alguém que vigia os carros estacionados na rua, afim de evitar furtos e arrombamentos. Em contraprestação,
espera-se uma gorjeta pelo serviço prestado.
125
atenção ao desenho, a promotora perguntou se era ele quem estava tomando de conta daquele
beco e Ítalo respondeu, em um tom mais impaciente, que não, que “estava só pegando um ar
na calçada.”
O Juiz questionou sobre o motivo dele usar tornozeleira e ele disse: eu estou pagando
um porte de arma e uma droga. O Juiz disse “então o senhor já tem experiência”. As pernas
de Ítalo não paravam de se mexer.
O advogado interviu dizendo “Dr. o meu cliente estava cumprindo a pena de forma
correta e não pode ser julgado por causa de um crime que ele já estava pagando”. Após,
perguntou a Ítalo, novamente, informações sobre a localização da casa.
A promotora disse que o advogado estava sendo repetitivo nas perguntas e que a
situação já estava bem clara. A esposa do custodiado que estava assistindo a audiência levantou
a mão e perguntou se poderia falar para explicar melhor a localização da casa. O Juiz disse que
não e que aquilo não faria mais diferença e pediu para os policiais retirarem Ítalo da sala para
eles poderem decidir.
A promotora pediu a homologação do flagrante com conversão em prisão preventiva,
argumentando que a postura do custodiado ao fugir da polícia demonstrou que ele tentou se
evadir da responsabilidade e que apesar do material não estar dentro da casa dele, estava nas
imediações.
O Advogado, ao seu passo, disse que não havia materialidade no fato e também não
havia qualquer indicação de autoria por parte de Ítalo, pedindo o relaxamento da prisão por ele
ser considerada ilegal, bem como a concessão de liberdade provisória.
O Juiz disse que concordava com os argumentos da Promotora em relação a
necessidade de homologar o flagrante e que considerando a existência de antecedentes
criminais, deveria ser decretada prisão preventiva por conveniência processual. Após desligar
as câmeras disse: “a gente tem que ter atenção em dobro quando o crime ocorre nesse tipo de
comunidade.”
O Advogado agradeceu a atenção do juiz e da promotora e se despediu de ambos após
assinar o termo de audiência. Eu o acompanhei para observar se ele levaria o resultado da
audiência até Ítalo. O advogado foi diretamente até a cela em que ele estava e o chamou
dizendo: “Eles decidiram pela prisão, mas eu acho que a gente consegue derrubar com um
Habeas Corpus”. Ítalo perguntou se a culpa tinha sido dele e se ele havia gaguejado. O
advogado disse que achava que não tinha ficado claro onde estava a droga. Ítalo perguntou se
tinha alguma coisa que ele poderia fazer por ele e ele disse que tentaria “derrubar a decisão”
e que, mesmo que ele não conseguisse, achava que ele poderia ser absolvido depois.
126
Depois que eles se despediram, perguntei a Ítalo se eu poderia conversar com ele e ele
me disse que sim. Eu expliquei que era estudante da UFRN e que fazia uma pesquisa sobre a
importância das audiências de custódia e como a população as compreendia. Perguntei para ele
se ele havia entendido o seu objetivo e o que tinha achado. Ele disse:
Eu acho importante a gente poder falar, tá ligada? Da primeira vez que eu
fui preso eu não vi nenhum Juiz. Pelo menos agora eu posso falar, só não sei
se eles vão ouvir. Eu acho que eu expliquei errado ou eles não entenderam
que o bagulho não era meu. Agora eu vou pagar por uma boca que nem
minha era. Mó vacilo.
Eu perguntei se ele havia se ferido durante a prisão e ele me mostrou a marca do tiro
de raspão que ele levou na lateral da cintura. Ele disse: “essa foi por pouco, eu poderia ter
morrido por um troço que nem meu era.” Indaguei se ele confiava na atuação do advogado e
ele me respondeu que sim, que ele já estava com ele de vários “corres” anteriores.
Perguntei para ele a sua renda mensal, ele disse que fazia uns R$ 700,00 por mês.
Questionei sobre sua identificação racial e ele disse: “minha mãe é branquinha, mas eu puxei
mais ao meu pai, devo ser pardo, não sei se me consideram negro”. Nesse momento, um rapaz
que estava dentro cela com ele, interferiu dizendo: “pô, cara, tu é preto sim” e todos os outros
que estavam na sala riram. Ítalo, então, disse: pode escrever que eu sou negro, então.
Para que os demais companheiros de cela não ouvissem a entrevista, comecei a falar
em um tom de voz mais baixo e o questionei sobre o uso de drogas e ele disse que havia parado
já fazia uns dois anos. Ao perguntar por que ele havia cessado ele disse que “estava fazendo
mal”.
Perguntei qual era o sentimento que ele tinha naquele momento e ele respondeu:
“fome, estou sem comer desde ontem.” Eu perguntei não havia sido disponibilizado almoço
para ele e ele respondeu que não. Finalizei a entrevista perguntando se ele achava que a cor da
sua pele ou o fato dele morar naquele bairro havia influenciado na sua prisão.
Ele me respondeu: “Se fosse um boy da zona sul sentado perto de uma boca de lá,
talvez eles não tivessem me prendido e nem atirado em mim. Mas o que eu acho que mais do
que a cor da pele o que me marcou mesmo foi essa tornozeleira.”
Agradeci a atenção e fui tentar conversar com sua esposa, Eliane, que ainda se
encontrava sentada no grande salão. Depois da minha apresentação de práxis, ela me disse que
o que mais a chateava era porque Ítalo estava fazendo “tudo direitinho”. Ela disse que depois
dele ter cumprido a prisão anterior, “ele nunca mais tinha mexido com coisa errada”, mas ela
sabia que morar naquele bairro iria complicar eles mais cedo ou mais tarde. “Meu sonho era
ir para a zona sul, sabe?”.
127
Questionei se ela achava o bairro que ela morava perigoso e ela ponderou:
Não tem muito assalto lá, mas tem muito confronto... Seja entre grupos rivais
ou com a polícia. E todo mundo tem medo de um dia ser preso injustamente.
Só em a gente morar lá e perto de uma quebrada, a gente já sofre preconceito,
acho que foi por isso o Ítalo foi preso.
Perguntei, por fim, se ela tinha entendido para que servia a audiência de custódia e se
achava importante esse momento. Ela respondeu: “Para a gente, não serviu de nada, né?
Ninguém entendeu o que ele falou e agora ele vai ficar preso. Que Deus proteja a nossa
família”
Ao perceber que ela estava muito abalada e trêmula, preferi não continuar insistindo
na entrevista. A agradeci, disse que entendia o seu sentimento e desejei boa sorte para ela e
para Ítalo, encerrando o meu dia de campo.
3.4 AS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA DE VICTOR, GUSTAVO, DANIEL E SIDNEY.
No meu quinto dia de campo, cheguei à Central de Flagrantes sabendo que ocorreriam
três audiências de custódia autuadas como “Tráfico de Drogas”. A primeira seria do custodiado
Daniel, que estava acompanhado de advogado. A quarta e a quinta audiência da pauta seriam
de Victor e de Gustavo, que estavam cadastrados com o mesmo número de processo, o que me
fez perceber que a prisão deveria ter ocorrido no mesmo momento. Victor estaria acompanhado
de advogado e Gustavo iria ser assistido pela Defensoria Pública.
Me dirigi até a sala da Defensoria Pública e fui apresentada pelo estagiário a Defensora
Angélica, que me recebeu de forma cortês, aceitando responder as minhas perguntas e
autorizando que eu acompanhasse o atendimento que ela iria fazer ao custodiado Gustavo e a
todos os demais, caso eu também tivesse interesse.
Ao me responder sobre a avaliação sobre implantação das audiências de custódia ela
respondeu:
Foi algo extremamente positivo. É muito diferente presenciar a fala das
pessoas presas do que ler a versão que fica registrada nos autos policiais.
Antigamente, a análise dos juízes era mecânica e as audiências de custódia
vieram para humanizar esse processo. Eu já vivenciei diversas situações em
que a fala do custodiado mudou completamente a percepção sobre o que
estava escrito e propiciou que tomássemos medidas que resguardassem até a
vida e a saúde deles. E no que concerne à prevenção a tortura, tenho certeza
que os policiais que costumavam abusar do seu poder diminuíram a violência
nas ocorrências por que agora eles sabem que o juiz vai ver as marcas na
pele da pessoa que chega aqui na custódia.
128
Ao perguntar se ela se sentia segura e o que achava da estrutura da Central de Flagrantes,
ela respondeu que considera a segurança do local razoável e que a estrutura boa, mas poderia
melhorar se fosse em um espaço pensando para essa finalidade.
Questionei se ela achava que os assistidos confiavam nela e contavam tudo que era
necessário. Ela respondeu: “Isso é muito relativo, geralmente eles confiam na minha atuação,
mas preferem não contar algumas coisas como forma de proteção ou até mesmo por vergonha
ou medo de ser julgado.” Perguntei se ela os aconselhava a falar durante a audiência e ela disse
que explicava que eles não eram obrigados, mas que era importante que eles esclarecem como
foi o momento da prisão para ficar mais fácil de identificar se ocorreu alguma arbitrariedade.
Tentei aferir se mudava em alguma coisa ela saber se eles pertenciam a alguma facção
e ela me disse que para ela isso não pesava, mas que o juiz poderia perceber a depender da
localidade que a pessoa morava e de adotar algumas gírias que são bem específicas. Perguntei
se ela percebia alguma diferença na avaliação dos juízes quando se tratava de crimes previstos
na Lei de drogas, ela refletiu:
Os crimes relacionados a drogas são os que mais sofrem com os pré-
julgamentos dos juízes. Se a pessoa for pega com 50g de maconha dentro de
uma escola particular ou universidade, o juiz vai dizer que era para consumo
próprio, mas se for em alguma comunidade e se o custodiado for preto, o juiz
vai aplicar o art. 33 e manter a prisão. Infelizmente, esse é um padrão que a
gente observa muito por aqui.
Quando Gustavo adentrou a sala da DPE, ele estava descalço, usava um short e uma
blusa regata. Ele tinha a pele branca e várias tatuagens nos braços, pernas e pescoço. A
Defensora se apresentou e explicou o motivo da audiência de custódia. Ela perguntou qual era
a profissão dele e ele respondeu que era mecânico. Em seguida, ela questionou se ele já havia
sido preso antes e ele sim, quando era adolescente. Ao questionar se ele usava drogas, ele disse
que não usava mais.
Ela disse que ele não seria obrigado a falar durante a audiência, caso não quisesse, mas
que seria uma boa oportunidade para ele explicar a versão dos fatos. Gustavo, então, disse: “Eu
vou falar tudo, Doutora, a carteira de identidade estava rasgada, mas ela é a minha original
mesmo. É que eu fiquei nervoso e não lembrei o nome completo da minha mãe.”
A Defensora ficou um pouco confusa com a fala dele e disse que não havia acusação de
uso de documento falso e sim de tráfico de drogas. Demonstrou bastante surpresa, Gustavo
arguiu:
Eu não tinha droga nenhuma comigo, lá na delegacia eles perguntaram se eu
conhecia um rapaz que também foi preso na mesma confusão e eu disse que
129
nunca tinha visto ele antes. Eu acho que eles pensam que a gente estava junto,
mas eu não sei nem quem ele é. A droga deve ser dele.
Angélica disse que seria importante ele explicar tudo como ocorreu a Juíza e sinalizou
para que os policiais trouxessem o próximo assistido.
Saí da sala de audiência para tentar conversar com o advogado de Daniel, já que aquela
seria a primeira audiência a ser realizada. Contudo, o advogado ele me disse que estava bastante
ocupado e que não poderia me atender. O policial responsável pela segurança da Central nos
chamou para nos acomodarmos na sala de audiência, porque a Juíza pretendia começar mais
cedo.
Quando entrei na sala de audiências, me apresentei a Juíza Safira e a Promotora Jade.
Elas pediram para eu falar um pouco sobre a minha pesquisa e, após me ouvirem, elogiaram a
iniciativa e aceitaram ser entrevistadas durante os intervalos entre uma audiência e outra.
Após os policiais entrarem na sala escoltando Daniel, a juíza ligou as câmeras e deu
início a audiência. Ela começou fazendo perguntas que confirmassem se os dados cadastrados
no processo estavam corretos. Após, perguntou a profissão, a renda e a escolaridade de Daniel,
ele respondeu que era ajudante de pedreiro, que ganhava uma média de mil reais por mês, e que
tinha estudado até o 9º ano do ensino fundamental. Ela questionou se Daniel já havia sido preso
ou processado, o que negou. Em seguida, a magistrada perguntou sobre o uso de drogas e ele
respondeu que não.
Após essas perguntas iniciais, a Juíza perguntou se ele queria dizer alguma coisa sobre
o momento da prisão. Daniel falou que estava dirigindo seu gol branco e que na frente havia
um outro carro de cor escura. Os policiais pediram para ele parar o carro e ele viu que o veículo
da frente jogou uma mochila pela janela na mesma hora, por essa razão os policiais ficaram
achando que a mochila havia sido jogada por ele.
A juíza perguntou se ele reconhecia o tablete de cocaína, os celulares e a balança de
precisão encontrados dentro do carro. E ele respondeu que aquilo não estava no carro, estava
dentro da mochila achada na rua.
A Promotora disse que todos os policiais haviam informado que a mochila tinha sido
localizada dentro do veículo e não na rua.
O advogado questionou os depoimentos dados pelos policiais em delegacia e disse que
havia inconsistência nos documentos juntados nos autos. A Juíza questionou se alguém faria
mais alguma pergunta a Daniel e o advogado e promotora disseram que não. Safira pediu aos
policiais que retirassem o custodiado da sala para que fossem feitos os pedidos.
130
A promotora requereu a homologação do flagrante com a conversão em prisão
preventiva e o advogado, por sua vez, requereu o relaxamento da prisão e a concessão de
liberdade provisória.
A juíza afirmou que não havendo qualquer irregularidade na prisão em flagrante, ela a
homologaria e que diante da periculosidade e gravidade do crime de tráfico de drogas, “que
atua como grande financiador das facções criminosas” ela decreta a prisão preventiva como
“garantia da ordem pública”, que restaria “inequivocamente abalada com a soltura do autor
do delito”.
Após a promotora e o advogado assinarem o termo de audiência, o advogado se retirou
da sala para informar o resultado da audiência a Daniel. Quando o advogado saiu, a Promotora
disse a Juíza, “temos que ter muito cuidado com esse advogado porque a fama dele não é nada
boa”. “Eu conheço bem esse tipo”, a Juíza respondeu.
Como haviam ainda outras duas audiências antes de começar a de Victor e de Gustavo,
me retirei da sala para tentar conversar com Daniel. Encontrei o seu advogado no corredor e
perguntei se ele já tinha conversado com o seu cliente sobre o resultado da audiência. Ele me
respondeu que sim e que era melhor ele explicar do que o Oficial de Justiça. Eu questionei o
que ele achava das audiências de custódia e qual era a opinião sobre a estrutura da Central de
Flagrantes e da Sala da OAB, ele respondeu:
As audiências de custódia são uma grande evolução processual, mas os juízes
precisam também adaptar o seu pensamento para evoluírem junto com essas
mudanças. Muitos ainda preferem ficar presos aos autos e não escutam o que
é dito durante a audiência de custódia. Tem alguns deles com quem eu prefiro
nem argumentar muito, pois parece que para eles a palavra do advogado e
nada são a mesma coisa.
Perguntei quem havia informado a ele sobre a prisão de Daniel e ele disse que tinha sido
a família. Questionei se ele tinha conseguido conversar com o cliente antes da audiência e ele
me respondeu que sim. Finalizei questionando o que ele achava da estrutura e ele respondeu
que “a Central de Flagrantes é muito organizada, seus servidores e policiais são muito
respeitosos, mas a estrutura é extremamente precária”. Agradeci a atenção dele e me dirigi até
as celas para conversar diretamente com Daniel.
Chegando lá, me apresentei e perguntei o que ele tinha achado da audiência e se havia
compreendido a sua finalidade. Ele respondeu: “é para o juiz saber se eu estou certo ou se eu
estou errado, mas fiquei muito chateado por que eles entenderam que eu estava errado e eu
não tenho nada a ver com o que aconteceu.”
131
Eu tentei explicar que eles não estavam julgando ainda se ele era culpado ou inocente,
que apenas estavam avaliando se tinha ocorrido alguma arbitrariedade ou violência durante a
prisão e se deveria aguardar o processo preso ou em liberdade.
Daniel disse que não tinha sofrido violência, mas que agora estava se sentindo muito
mal. Eu perguntei o que ele sentia e ouvi: “fome, estou morrendo de fome, com muito calor,
agoniado e cansado”. Questionei qual tinha sido a última vez que ele havia se alimentado e
Daniel respondeu que tinha sido no final da tarde do dia anterior e que já deveria fazer 24h que
estava sem comer. Eu disse que iria avisar ao policial para ver o que poderia ser feito em relação
a isso.
Após, fui entrevistar o Victor, que estava na mesma cela que Daniel. Perguntei se aquela
era a sua primeira audiência de custódia e ele me respondeu que sim, perguntei se ele sabia para
que ela servia e Victor disse que já tinha visto antes na televisão. Indaguei se ele achava aquele
momento importante, e ouvi: “Pelo menos eu vou ter uma oportunidade de dizer a minha
verdade, que eu fui vítima de um engano”.
Perguntei por que ele achava que os policiais tinham interpretado que ele estaria
envolvido com o crime, ele disse: “eu estava no lugar errado na hora errada”. Questionei se
ele achava que o bairro favorecia esse tipo de ocorrência policial e Victor me disse
“infelizmente, sim”. Sondei se ele sentia mais medo dos traficantes do bairro ou da polícia e ele
respondeu baixinho: “da polícia, com certeza! Quando eles me prenderam me deram dois
chutes na cabeça”. Perguntei se estava ferido e ele disse que achava que não. Ao fim, questionei
qual era o sentimento naquele momento ou que era: “medo do que está por vir”.
Após agradecê-lo, fui até a cela em que estava Gustavo, me apresentei e indaguei se
ele sabia para que servia a audiência de custódia, ele respondeu que a defensora o havia contado.
Em continuidade, perguntei se ele confiava na defensora e fui respondida que “sim, é
importante o Estado fornecer esse tipo de assistência porque ele não teria dinheiro para bancar
um advogado”.
Perguntei se ele tinha sofrido alguma violência no momento da prisão e ele disse:
“Muita violência psicológica. Eu fiquei morrendo de medo de uma tragédia, tinha um policial
com um revólver que tremia a mão todinha, meu maior medo era que ele atirassem em mim
sem querer”.
O indaguei sobre a influência do local onde ele estava em relação ao que ocorreu. Ele
afirmou: “eu moro no bairro Santa Catarina, todo mundo tem preconceito com a Zona Norte,
mas eu nunca antes tinha sofrido um “baculejo” por lá na minha vida. Só foi eu pisar em Mãe
Luíza que isso aconteceu”.
132
Indaguei como sobre a sua identificação racial ou cor de pele e ele disse que era branco.
Perguntei qual era o sentimento naquele momento e ele respondeu: “muito medo de eu pagar
por um crime que eu não cometi.”
Quando terminei de conversar com Gustavo, me dirigi até um dos policiais que estava
ao lado das celas e perguntei se havia possibilidade de trazer alguma coisa para os custodiados
comerem porque eles estavam reclamando de muita fome. O policial me respondeu que,
infelizmente, eles não eram autorizados a dar porque havia uma recomendação dizendo que
seria proibido. Eu perguntei se isso estava expresso em alguma portaria e ele me disse que eram
“normas de segurança interna”.
Outro policial que estava sentado, me alertou que iria começar a audiência do custodiado
Victor, eu agradeci a informação e entrei novamente na sala de audiências, onde já estavam
sentados Victor e o seu advogado.
A juíza começou a fazer as perguntas iniciais para confirmar as informações do cadastro.
Alguns risos surgiram na sala entre os estudantes de Direito quando a Juíza perguntou a Victor
de onde ele era natural e o mesmo não compreendeu a pergunta. A juíza adaptou o
questionamento para indagar onde ele nasceu e ele respondeu: “na minha casa, em Mãe
Luíza”91 o que ocasionou novamente novos risos na sala.
Demonstrando certo constrangimento, Victor pediu desculpas e disse que estava
nervoso. A Juíza disse que ela havia compreendido e que ele não se preocupasse. Ela perguntou
se ele usava algum tipo de droga e ele respondeu que tinha parado de fumar maconha há três
meses. Ela questionou se ele já havia sido preso ou processado e ele respondeu que não. Após,
inqueriu se houve algum problema que ele gostaria de comentar durante a prisão e ele também
respondeu que não.
Ao ouvir a última resposta de Victor, o seu Advogado logo questionou o que ele havia
escutado do policial no momento em que foi preso. Victor, então, respondeu que ouviu o
policial dizer para outro: “vou jogar as drogas para esses dois”.
A promotora perguntou se ele conhecia a outra pessoa que foi presa na mesma ocasião
que ele e ele respondeu que não conhecia.
Nesse momento, a promotora pediu a juíza para que chamasse o outro custodiado porque
achava melhor ouvir os dois juntos. A juíza disse que achava que a sala não comportaria em
razão do tamanho os dois custodiados de uma vez e que aquilo atentaria contra as regras de
91 Mãe Luiza é um bairro da cidade de Natal.
133
segurança, mas ele iria pedir para os policiais retirarem Victor e trazerem Gustavo para que
todos possamos decidir depois de ouvir os dois.
Após a troca dos custodiados, a juíza se apresentou para Gustavo e seguiu o mesmo
procedimento relacionado a confirmação dos dados, perguntando, ao final, se havia ocorrido
algum problema durante a prisão.
Gustavo, então, explicou que estava na praia com uma garota e decidiu levá-la até a
porta da sua casa. Mas quando subiu as escadarias de Mãe Luíza se assustou com várias pessoas
correndo. Em um primeiro momento, ele havia achado que era um arrastão, mas logo percebeu
que eram policiais. Um deles pediu para ele encostar as mãos na parede de uma casa e fez a sua
revista. Ele achou que estava sendo preso porque estava andando com um documento sem foto
e quando o policial perguntou o nome completo da mãe dele ele se confundiu e errou, porque
estava nervoso.
A Promotora perguntou por que ele tinha sido apreendido quando era adolescente. Ele
respondeu:
Foi por roubo, doutora. Mas eu não faço mais essas coisas. Eu juro que eu
mudei. O meu pai, quando era jovem, ele também vivia errado, mas quando
eu nasci, ele saiu dessa vida e mudou. Eu só entendi porque meu pai mudou,
no dia que eu me tornei pai também. Daí, pelo meu filho, eu não faço mais
nada de errado, eu não quero que ele tenha um pai que ele não possa se
orgulhar.
A Defensora perguntou se o Policial havia dito porque o estava levando para a delegacia.
Victor respondeu que o policial disse que era para “averiguação”.
A juíza perguntou se alguém ainda tinha alguma pergunta a fazer e todos disseram que
não. A juíza pediu para que os policiais retirassem Gustavo da sala e passou a palavra a
Promotora.
A Promotora pediu a homologação da prisão com a concessão de medidas cautelares
diversas da prisão tanto para Victor quanto para Gustavo, considerando que ambos tem
endereço fixo e também por que haveria uma grande possibilidade deles serem absolvidos
depois, já que ela não estava muito convencida da autoria naquele momento.
O advogado de Victor e a Defensora de Gustavo pediram o relaxamento da prisão e a
concessão de liberdade provisória. A juíza decidiu conforme o pedido da promotora,
determinando que eles comparecessem mensalmente perante a autoridade judiciária e sempre
que convocados; não mudassem de residência, sem prévia autorização do juízo processante e
não se ausentassem por mais de 8 dias da cidade sem comunicar ao juízo.
134
Quando todos achávamos que já havia sido encerrada a pauta de audiências daquele dia,
um servidor adentrou a sala de audiências e informou que havia chegado mais um auto de prisão
em flagrante da delegacia e que o custodiado já estava presente.
O nome dele era Sérgio e estava acompanhado de uma advogada. Ao entrarem na sala,
a juíza fez as perguntas de práxis e questionou se ele usava alguma droga. Ele disse que era
viciado em cocaína.
A juíza questionou se havia ocorrido algum problema durante a prisão e ele disse que
não. Contudo, a advogada pediu licença e pediu para ele contar exatamente o que aconteceu
antes dele ser preso. Sérgio, então, disse:
Eu não estava no erro, eu nem em casa estava. Quando eu cheguei tinha uns
policiais lá e acharam a droga que eu guardava dentro do fogão. A minha
mãe ficou desesperada, porque ela não sabia que eu guardava nada lá e ela
que abriu a porta para eles entrarem. Mas eu juro que era tudo para eu
consumir, eu compro tudo direitinho uma vez por mês e anoto tudo no meu
caderno, vocês podem conferir, mas eu não vendo nada. É tudo para mim.
A Juíza perguntou por que os policiais tinham ido até a casa dele e ele respondeu:
Eles deviam estar com raiva de mim porque eu briguei com um vizinho que é
policial quando eu estava em um bar, daí esse vizinho disse que “ia me pegar
depois” e deve ter enviado os homens dele lá em casa.
Após perguntar se a Promotora e a Defensora tinham mais alguma pergunta a fazer e
elas acenarem negativamente, a Juíza pediu para que os policias retirassem Sidney da sala.
Assim que ele saiu, a Promotora falou:
Esse tipo de flagrante absurdo está ficando cada vez mais frequente. Os
policiais sequer relataram o que o custodiado estava fazendo antes, para que
justificasse eles terem entrado no domicílio. Não há qualquer descrição fática
que justifique essa invasão. Sei que todos ficam chateados quando o MP pede
relaxamento de prisão, mas no Estado de Direito a gente tem que seguir a lei
e o policial tem que saber fazer o trabalho da forma correta!
A Advogada concordou com a Promotora e explicou que aqueles policiais já estavam
ameaçando o custodiado há algum tempo. Ela disse que não costumava fazer audiência na área
criminal, mas que tinha aceitado esse caso porque sabia que se tratava de uma injustiça. Ao se
dirigir a Juíza, ela disse que, consoante o pedido da promotora, ela também requeria o
relaxamento da prisão e a concessão da liberdade. A Magistrada anuiu com o pedido de ambas
e relaxou a prisão, declarando a liberdade provisória a Sidney.
Ao final das audiências, ela me autorizou a começar a minha entrevista. Eu comecei
perguntando sobre como ela avaliava a implantação das audiências de custódia. Ela respondeu
que achava que seria melhor, mais prático e menos custoso se cada juiz pudesse realizar as
135
audiências dos seus respectivos processos, assim não correria o risco dos juízes terem que atuar
em matérias que eles não têm habitualidade.
Perguntei o que ela achava da estrutura da Central de flagrantes e ela respondeu: “Uma
porcaria”. Contudo, ao perceber que eu anotei a resposta da mesma forma como ela havia
pronunciado, ela pediu para eu alterar a resposta para uma que fosse “condizente a uma juíza”.
Ela então respondeu: “A central de flagrantes não está suficientemente equipada e isso decorre
de uma deficiência de recursos e de pessoal, que são corolários de um processo de
aparelhamento do Estado que prejudica diretamente os Três Poderes.”
Perguntei se ela achava que ouvir a pessoa sob custódia melhorava a percepção sob os
fatos e ela respondeu que sim e que “até o tom de voz com que eles falam faz diferença para
mim”. Perguntei o que ela avaliava para decidir sobre a prisão ou sobre a liberdade nas
audiências de custódia por crimes de tráfico de drogas e ela respondeu:
Eu observo tudo, a quantidade, a variedade, a localidade, os objetos, se a
pessoa portava arma e principalmente o passado deles. Encontrar réus
primários aqui está cada vez mais raro. Como a versão do flagranteado é
sempre diferente da versão dada pela polícia é preciso tomar cuidado para
não nos enganarmos.
Por fim, perguntei o que ela considerava como “garantia da ordem pública” e ela
respondeu que era a “periculosidade que o crime trazia para o meio social e capacidade dele
ser vetor de outros crimes.” Agradeci a atenção e me retirei da sala para poder entrevistar o
último custodiado antes que os policiais o liberassem.
Chegando até a cela, me apresentei a Sidney e perguntei se ele havia compreendido qual
era o objetivo daquela audiência. Ele respondeu: “eu não entendi para que ela serve”. Eu
expliquei que era para analisar se a prisão tinha acontecido da forma correta, se ele teria sofrido
algum tipo de violência e se ele deveria aguardar todo o processo preso ou em liberdade.
Perguntei para ele há quanto tempo ele era usuário de drogas e ele respondeu que fazia
seis meses que havia começado a usar. Inquiri quais drogas ele costumava usar e ele respondeu
que “apenas cocaína”. Perguntei se ele se considerava dependente e ouvi de Sidney que “não,
isso não sou não”.
Questionei se ele confiava na advogada para falar por ele e ele respondeu que “ela é
uma menina de bom coração, eu boto fé nela”. Perguntei se ele já havia sido informado do
resultado da audiência e ele respondeu que sim, que a advogada tinha dito a ele e que ele tinha
assinado “o papel” que o oficial entregou. Questionei se ele havia lido o conteúdo do papel que
ele assinou na delegacia e o que ele havia assinado hoje e ele respondeu que não sabe ler e que
136
não tinha terminado nem o ensino fundamental. Questionei sobre a sua identificação racial,
ouvindo como resposta: “acho que sou branco”.
O perguntei sobre o que estava sentindo antes de começar a audiência e ele respondeu:
“muito medo de ir para a cadeia”. Eu perguntei se ele tinha mais medo do traficante que vendia
as drogas ou da polícia. Reflexivo, Sidney respondeu: “Eu tenho medo dos dois”.
Por fim, perguntei o que ele gostaria de fazer assim que saísse daquele prédio e ele
respondeu: “comer, estou morrendo de fome.”
3.5 AS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA DE PEDRO E DE FERNANDO.
No meu último dia de campo na Central Flagrantes, acompanhei as audiências de
Pedro e de Fernando. Ao chegar na Secretaria, fui informada que ambos seriam assistidos pela
Defensoria Pública e decidi ir até a sala da DPE aguardar a chegada do defensor designado.
Entretanto, até o horário em que as audiências começariam, ainda não havia chegado ninguém.
Em razão do atraso, o Juiz Wagner, designado para presidir as audiências daquele dia,
resolveu realizar primeiro todas aquelas em que os custodiados estivessem sendo defendidos
por advogados particulares, deixando as audiências de Pedro e de Fernando por último.
Como eu teria bastante tempo até as audiências começarem, solicitei autorização dos
policiais para antecipar a minha entrevista com os custodiados, recebendo o consentimento da
equipe. Ao chegar em frente à cela, me apresentei, primeiramente, para Pedro. Haviam várias
escoriações em seu corpo e ele estava vestindo apenas uma bermuda, estando sem camiseta e
sem chinelos. Ele me disse ter 25 anos, trabalhar em um lava-jato e que se considerava negro.
O perguntei se aquela era a primeira vez que participava de uma audiência de custódia e ele
me respondeu que sim, que já havia sido preso uma vez em 2013, mas que, naquela ocasião:
“só teve uma audiência mesmo e foi um tempão depois”.
Eu expliquei que elas eram recentes, que haviam começado em 2015, e perguntei se
ele já tinha ouvido algo a respeito e se sabia qual era o seu objetivo. Ele me respondeu que
nunca tinha ouvido e que não sabia para o que servia. Então, eu o expliquei que seria para
analisar se a prisão ocorreu da forma correta, se houve algum tipo de violência e se ele poderia
responder em liberdade ou se aguardaria ao processo preso.
Após, questionei se ele teria sofrido algum tipo de agressão por parte dos policiais.
Com o olhar em direção, ele me disse que não. Contudo, sua resposta contrastava com as várias
marcas presentes em seu corpo. Eu disse que ele poderia falar comigo sobre o que houve, mas,
falando baixinho, arguiu: “olha, é melhor deixar isso quieto”. Eu imaginei que ele estivesse
137
com medo de ser ouvido por algum dos policias que estavam próximos e não o pressionei a
falar. Mas existem sinais que não precisam ser verbalizados para serem compreendidos.
O questionei sobre o motivo da prisão e ele disse que era porque tinha “torado a
tornozeleira”. Curiosa, perguntei se tinha sido acidentalmente ou se ele quis. Com um leve ar
de sorriso, ele me disse que foi um pouco dos dois. Questionei sobre a acusação de tráfico de
drogas e ele disse olhando para o lado: “melhor não falar sobre esse assunto, moça”. Senti
certa resistência quando eu tocava em alguns temas relativos ao momento em que ocorreu a
prisão e preferi não insistir.
Perquiri qual era o nível de escolaridade dele e ele respondeu que tinha ensino médio.
Ao questionar se ele era usuário de drogas, ouvi sobre seu uso frequente de maconha, mas com
o objetivo de relaxar. Inquiri se ele se considerava dependente e ele me respondeu que não. E
que, se quisesse, conseguiria parar.
Perguntei se ele confiava no sistema de justiça e ele disse: “só confio na justiça de
Deus”. Sobre a sua defesa, perguntei se ele confiava na atuação da Defensoria Pública e ele
disse: “é o jeito, não tenho dinheiro para um advogado.”
Ao final, questionei como ele estava se sentindo naquele momento e ele disse “eu não
tenho medo de nada, o que tiver de ser será”. Mesmo verbalizando que não sentia medo, o
olhar desconfiado, os ombros curvados para frente como se quisesse estar de braços cruzados
e a forma como ele se recusava a me responder me faziam suspeitar do contrário. Desejei boa
sorte na audiência e chamei o custodiado Fernando que dividia a mesma cela que ele.
Fernando me disse ter 38 anos, se identificou como negro e afirmou que trabalhava
fazendo bicos. Ele usava uma camisa social, com os botões abertos, uma calça jeans escura e
comprida e uma sandália. Ao questionar se já havia sido preso anteriormente, me respondeu
que já havia respondido por tráfico. Perguntei se da primeira vez que ele foi preso havia
ocorrido audiência de custódia e me respondeu que não. Então, inquiri se ele sabia para que ela
servia e ele balançou a cabeça negativamente. Após eu falar a mesma explicação que disse a
Pedro, perguntei se ele achava que aquilo seria importante. Ele disse: “é importante para a
pessoa contar a versão dela sobre o que aconteceu, né?” Eu acenei que sim e questionei se ele
teria sofrido alguma violência durante a abordagem policial. Ele balançou a cabeça
negativamente.
Perguntei se ele usava algum tipo de droga e ele respondeu que usava cocaína e crack
todo dia desde que tinha 20 anos. Questionei se ele se considerava, então, dependente, e ele me
disse que sim: “já tentei muito, mas nunca consegui parar por muito tempo”. Perguntei o que
ele sentia ao consumir essas substâncias, “elas me deixam ligado, mas às vezes elas me deixam
138
nervoso também e não caem muito bem”, me contou. Inquiri como ele estava se sentindo
naquele momento e ele disse que “apesar de tudo, estou com o coração tranquilo.”
Após conversar os custodiados, me dirigi até a sala de audiências, mas os policiais me
disseram que eu não poderia entrar porque a sala já estava lotada. Pedi, então, para conversar
com o juiz e tentar convencê-lo a autorizar a minha presença, propondo o revezamento com os
estudantes que já estavam presentes.
Ao entrar, falei sobre a minha pesquisa e solicitei acompanhar as audiências de Pedro
e de Fernando, o juiz, que sabia que eu já tinha sido residente judicial, autorizou a minha
presença e propôs que eu me sentasse ao seu lado e ao lado da sua assessora para que eu pudesse
acompanhar sem ficar em pé no corredor e atrapalhar a movimentação dos policiais que fariam
as escoltas dos custodiados.
Me senti um pouco nostálgica ao lembrar dos tempos em que eu sentava naquele mesmo
local, mas incumbida da função de digitar os termos de audiência e de assessorar os juízes.
Aquela posição me conferia uma certa centralidade visual por estar posicionada no meio da
mesa principal e em frente a cadeira em que sentariam os custodiados. Entrementes, ao pensar
nisso, a sensação de nostalgia deu lugar a sensação de receio de que os custodiados pensassem
que eu fazia parte daquela estrutura e que ficassem constrangidos por terem me fornecido
entrevistas.
Em razão disso, solicitei ao magistrado que, se fosse possível, antes de começar as
audiências, que ele explicasse aos custodiados que eu era uma pesquisadora, para que não
achassem que eu estava trabalhando com ele ou a serviço do Tribunal. Ele compreendeu a
situação e disse que eu não me preocupasse.
Mesmo já tendo passado das 16h da tarde, a Defensoria Pública ainda não havia
enviado nenhum dos seus membros até aquele momento. O juiz decidiu, então, que seria
pertinente nomear um defensor dativo ad hoc92. Já sabendo que eu era advogada, a primeira
pessoa para quem ele olhou após chegar a essa conclusão foi para mim, me propondo que eu
realizasse a defesa das próximas audiências.
A atuação como defensor ad hoc, em regra, é um múnus público93, decorrente de um
dever ético-profissional ao qual o advogado não tem a liberdade de recusar. Mas como eu
estava atuando como pesquisadora naquele momento, não quis confundir os meus papéis e
perguntei, respeitosamente, ao juiz se não haveria outro advogado disponível no prédio.
92 A expressão “ad hoc” significa “para esta finalidade” e é bastante utilizada na prática jurídica quando um juiz
nomeia um advogado para atuar como defensor em um ato específico. 93 Munus, em latim, significa encargo, dever, ônus, função. Trata-se de obrigação decorrente de acordo ou lei.
139
Apesar de poder ter sido uma experiência interessante, também por questões éticas,
não achei prudente me valer da posição de pesquisadora para, com tanta facilidade, angariar
um “cliente”, que seus custos de representação pagos pelo Estado posteriormente. O
magistrado compreendeu o meu ponto e pediu para a sua assessora ver se o advogado da
audiência anterior já tinha se ausentado. Caso ele ainda estivesse no prédio, solicitou que ela o
chamasse. Poucos minutos depois, a assessora retornou acompanhada do advogado Artur, que
aceitou o encargo prontamente e disse que já havia atuado como defensor ad hoc em outras
ocasiões.
Contudo, quando o Juiz deu início a audiência de Pedro, a Defensora Pública Rosa
chegou e pediu desculpas pela demora, explicando que tinha retornado naquele mesmo dia de
sua licença médica e não havia sido informada que estava escalada para as audiências de
custódia. O magistrado avisou que em razão do atraso, a audiência de Pedro seria realizada
pelo advogado Artur, que acabara de ser nomeado defensor ad hoc, mas que ela deveria
aguardar para atuar na defesa do custodiado seguinte, o Fernando.
Ao dar início a audiência de Pedro, o juiz o apresentou todos os presentes, explicando
a função que cada um desempenharia naquela audiência, destacando a minha presença ali
enquanto pesquisadora, conforme eu havia solicitado.
Ele explicou que para que servia a audiência de custódia e perguntou se ele tinha
sofrido alguma violência durante a abordagem policial. Pedro balançou a cabeça em sentido
negativo, mas seu corpo, coberto de escoriações, revelava mais do que o seu gesto.
Atento, o Juiz perguntou como ele tinha conseguido tantas feridas e por que a região
superior do seu olho esquerdo estava roxa. Ele disse que tinha sido no momento da prisão. O
magistrado pegou o celular e tirou fotos do custodiado, pedindo para que elas fossem juntadas
ao processo e que constassem no termo de audiência.
Ele perguntou se Pedro havia visto alguma característica dos policiais que
participaram da sua prisão e ele disse que não, que estava com a cabeça baixa o tempo todo. O
juiz disse que o mais difícil nessas situações era fazer a identificação dos policiais, mas que a
Polícia tem a obrigação de registrar os responsáveis por cada ocorrência.
A Promotora pontuou estar percebendo que Pedro estava tremendo de frio. Ela disse:
“Não tem condições de ninguém ficar em frente a esse ar-condicionado sem camisa.”. A
assessora do juiz perguntou se poderia desligar o ar-condicionado e todos concordaram.
O Juiz passou a fazer perguntas para confirmar os dados cadastrados no processo e
perguntou sobre os antecedentes criminais de Pedro, dizendo que ele havia sido condenado por
140
furto e que havia um processo com mandado de prisão em aberto autuado como roubo. Pedro
disse que só sabia do furto, que desconhecia o processo de roubo.
Diferente das demais audiências em que os juízes pediam para retirarem os
custodiados da sala na hora das falas dos promotores e defensores, o Juiz Wagner permitia que
eles permanecessem até a hora do resultado, para que ele mesmo pudesse explicar a decisão.
Passando a palavra a promotora, ela pediu a homologação da prisão e a decretação de
prisão preventiva com base na garantia da ordem pública, considerando que ele já tinha um
mandado de prisão em aberto – caso em que ele rompeu a tornozeleira eletrônica.
O advogado, por sua vez, argumentou que a baixa quantidade de drogas, equivalente
a apenas 6g de cocaína, demonstrava que tratava-se de porte de drogas para consumo pessoal,
que por sua baixa lesividade, não justificaria uma prisão preventiva. Requerendo, portanto, a
liberdade provisória.
O Juiz disse que iria homologar o flagrante e determinar a prisão preventiva por
conveniência da instrução processual, considerando que ele já havia rompido a tornozeleira
uma vez e que já tinha mandados de prisão em aberto.
O Magistrado perguntou se o custodiado havia compreendido e Pedro o questionou:
“Quantos anos eu peguei?”. O Juiz explicou que aquela não era a audiência que dizia se ele
seria considerado culpado, ou não, era apenas para saber se ele iria aguardar preso até a próxima
audiência. O Juiz entregou a ele o termo de audiência para que ele assinasse e perguntou se ele
tinha mais alguma pergunta e ele disse que não. Quando os policiais vieram retirá-lo da sala,
Pedro se despediu e agradeceu ao juiz.
Após a porta se fechar, o Magistrado disse: “Perceberam que mesmo eu decretando
a prisão ele ainda me agradeceu quando saiu? Isso foi por que eu o tratei com respeito e ele
retribuiu. Infelizmente, já ouvi muitas reclamações de que tem quem nem olhe na cara deles”.
O advogado Artur se despediu de todos os presentes agradecendo ao Juiz Wagner a
oportunidade de poder atuar como dativo. Ele levou consigo uma cópia do termo de audiência
em que o juiz arbitrava os seus honorários por ter atuado naquele ato. Quando ele saiu, a
Defensora Rosa adentrou a sala e pediu desculpas novamente pelo desencontro de informações.
Quando Fernando já estava devidamente sentado, o Juiz deu início a audiência
apresentando todos os presentes. Ela se dirigiu aos os estudantes de direito e a mim e disse que
se tivéssemos alguma dúvida, poderiam conversar com ele no final da audiência.
Ele explicou para que serviam as audiências de custódia e falou da sua importância
para a proteção aos Direitos Humanos e no combate à tortura. Após sua exposição, ele
141
perguntou se Fernando havia sofrido alguma violência durante a prisão, ouvindo a sua resposta
negativa.
Nesse momento, o juiz olhou em minha direção e disse em um tom explicativo:
Nas primeiras audiências de custódia que eu realizei, haviam muitas
notificações de violência policial, hoje em dia, raramente nós temos. Acho
que essa redução decorreu justamente da existência das audiências de
custódia.
Ao fazer as perguntas relacionadas a classificação do custodiado, o Juiz percebeu que
não havia “identificação civil ou criminal” no processo, ou seja, faltavam documentos que
comprovassem qual era a identidade de Fernando. O Juiz perguntou se ele não tinha algum
documento em casa ou na casa de alguém e ele disse que não.
O Magistrado questionou a sua idade e ele disse que tinha 38 anos. Um pouco
incrédulo, o juiz pediu desculpas e disse que ele aparentava ter mais de 50 anos. Em seguida,
inqueriu se ele fazia uso de drogas. Fernando respondeu que era viciado em crack e em cocaína.
O juiz disse em um tom irônico “você está com um peso bom para quem é dependente desse
tipo de droga”.
Sem mais perguntas, a promotora requereu a homologação da prisão e conversão em
prisão preventiva como garantia da ordem pública. A Defensora Pública, por sua vez, disse:
“Nada tenho a declarar, ele preenche os requisitos da prisão”. Nesse momento, o Magistrado
demonstrou um pouco de surpresa com o pedido da Defensora e pediu para ela repetir. Ela
disse: “como ele não está identificado civilmente, a medida mais prudente é manter a sua
prisão preventiva.”
O Juiz disse que a questão da “identificação”94 era, realmente, crucial naquele
momento e que ele deveria permanecer preso pela “conveniência da instrução processual” e
também como “garantia de aplicação da lei penal”95.
O Juiz perguntou se ele havia entendido e ele balançou a cabeça positivamente. Após
entregar o termo de audiência para a promotora, a defensora e o custodiado assinarem, o
magistrado encerrou a audiência e os policiais retiraram Fernando da sala.
94 A chamada “identificação criminal” refere-se a necessidade de coletar informações consideradas confiáveis e
válidas que singularizem a pessoa presa que não possuir documentos capazes de demonstrar a sua identificação
civil e, assim, evitar que ela seja confundida com outra pessoa. 95 Tanto a “conveniência da instrução processual” como a “garantia de aplicação da lei penal” são fundamentações
previstas no Código de Processo Penal capazes de justificar a necessidade de uma prisão preventiva. Na prática,
elas costumam estar presentes quando o custodiado não apresenta documentos que o identifiquem civilmente, não
possua residência fixa, já tenha histórico de fugas ou descumprimento de medidas cautelares ou esteja ameaçando
as investigações, vítimas ou testemunhas.
142
O Juiz e a promotora se mostraram bastante solícitos em responder as minhas
perguntas, mas a Defensora disse que não teria condições pois tinha muitas tarefas para resolver
e que “caiu de paraquedas” na Central de Flagrante.
Ao conversar com a Promotora Aurora, perguntei qual era a avaliação que ela fazia
sobre as audiências de custódia e ela respondeu: “É um instrumento válido, mas que precisa
de estrutura para acontecer da forma correta. Eu não sinto prazer em fazer essas audiências
aqui na Central de Flagrantes, mas reconheço que elas são importantes”.
Eu perguntei quais eram os problemas que ela observava na estrutura e ela disse:
Considera todo o ambiente deficiente. É um espaço desumano e frio. Aqui
não se respeita as particularidades das mulheres. Nosso banheiro fica em
frente a uma das celas e como lá dentro não possui lugares suficientes para
os custodiados se sentarem, eles ficam deitados no chão. É impossível usar
um vestido ou uma saia aqui dentro. E se houver uma custodiada mulher que
foi presa usando essas roupas, ela vai ter que aguardar em pé o tempo todo,
é desumano. E quase não tem espaço para a gente se mexer dentro da sala
de audiência.
Questionei se ela considerava que ouvir a pessoa sob custódia melhorava a percepção
sobre os fatos e ela disse: “O contato pessoal é importante porque ajuda a esclarecer melhor
a situação, mas se eu tiver dúvida, vou decidir conforme um membro do Ministério Público
tem que agir, a favor da sociedade, por que é assim que está consolidado na instituição”.
Sobre o que ela considerava na diferenciação entre tráfico de drogas e porte para
consumo pessoal ela elencou: “nós consideramos o local do crime, a existência de objetos
como balanças, saquinhos, papelotes e também a quantidade e a variedade de drogas”.
Por fim, perguntei o que ela entendia como garantia da ordem pública e ela disse que
era, para ela, era “uma forma de prevenção e de dar uma satisfação à sociedade sobre crimes
graves”. Agradeci a atenção da Promotora e me despedi dela para poder iniciar a minha
entrevista com o Juiz.
Sobre a sua avaliação sobre a implantação das audiências de custódia, afirmou:
As audiências de custódia são muito importantes por que é por meio delas
que podemos ter o contato pessoal com a pessoa presa e podemos avaliar
questões muito importantes que a frieza dos autos e distanciamento do papel
não permitem.
Quanto questionei se ele se sentia seguro ao realizar as audiências, respondeu:
Não me sinto seguro porque existe uma câmera que está instalada dentro da
sala de audiências sob o pretexto de garantir alguma segurança, mas na
verdade serve para nos vigiar. Não sinto um local como um ambiente seguro
e amigável para o magistrado, pois não é o seu ambiente de trabalho
ordinário, é uma central onde o juiz exerce um trabalho temporário com uma
143
série de imposições de medidas de segurança, mas que servem, na verdade,
para limitar os direitos dos custodiados.
Ao falar da câmera, ele se referiu, àquela que ficava no teto, atrás da mesa do juiz e
garantia uma visão frontal do seu computador e teclado. Perguntei o que ele achava que poderia
melhorar nas audiências e ele disse:
Deveria haver uma maior valorização do magistrado, porque ali havia uma
potencialização do serviço de segurança. A sensação que se tem é que o
magistrado está aqui a mercê do serviço de segurança e, inclusive, há o
vazamento de decisões que são desfavoráveis aos interesses das corporações
policiais. Há um clima desagradável nesse sentido.
Questionei se ele achava que a possibilidade de ouvir o custodiado presencialmente
alterava a forma de decidir e ele disse que melhorava muito e enriquecia a decisão,
acrescentando:
Por que aqui não é somente o que se diz, mas como é dito. 70% da linguagem
é para além das palavras, é o gestual, é o tom de voz, é o olhar. Tudo isso
interfere na decisão, a gente pode fornecer um provimento jurisdicional
muito mais enriquecido e de uma maneira muito mais sólida e aprofundada
do que somente com o que está dito ali pelas autoridades policiais.
Sobre o que ele considerava ao diferenciar o tráfico do consumo pessoal, ele disse que
considerava a quantidade da droga aliada as circunstâncias em que houve a prisão, o local, se
havia dinheiro, balança de precisão e outros utensílios utilizados na traficância de drogas como
elementos importantes para formular a convicção de que se tratava apenas de um usuário ou
de um traficante.
Por fim, ao perguntar o que ele compreendia como garantia da ordem pública, ele
analisou:
O conceito de ordem pública é muito vago e permite a visão punitivista
prender ao seu bel prazer. Se formos entender efetivamente o que é a ordem
pública e não a distorção que o punitivismo promoveu nela é um fato que
realmente vem a tentar a ordem pública de maneira que cause um tumulto
social, mas não um fato isolado em si. Mas a banalização do conceito se dá
por ser um conceito indeterminado e vago, que permite que utilizem dele
como uma forma de antecipar a condenação.
Agradeci imensamente a entrevista tão rica em detalhes e ensinamentos e me despedi,
naquele que seria o meu último dia de campo. Passei na Secretaria para agradecer a todos e saí
da Central de Flagrantes já ansiosa para retornar e poder debater os resultados da pesquisa
quando ela estivesse, finalmente, concluída.
144
Apesar de ali terem sido encerradas as minhas observações presenciais, as análises de
todos os dados coletados e a formulação das observações sobre as falas, posições e símbolos
foi um processo que precisou ser amadurecido durante meses.
Impendia que eu assimilasse como a linguagem verbal e não-verbal estavam
integradas na conduta comunicativa. Afinal, consoante Goffman (1985) ensina, observar as
posturas adotadas e dramatização dos papéis ali exercidos poderia produzir sentidos tão quanto
os processos de simples codificação.
As diferentes formas com que os Juízes conduziam as audiências de custódia e as
maneiras com que cada profissional ali atuava, me mostravam que, apesar de haver
similaridades na linguagem e nos embasamentos técnicos em comum, eu não poderia conceber
como homogênea a forma de pensar e de se posicionar de todos eles.
Isso não me impedia, entretanto, de identificar alguns mecanismos de legitimação da
dominação, involuntários ou não, (BOURDIEU, 1989, p. 14) através da reprodução de
discursos que etiquetavam os custodiados conforme a região por eles habitada, a presença de
tatuagens, cortes nas sobrancelhas e, principalmente, na fundamentação aberta da necessidade
de garantir a ordem pública.
Outrossim, a posição ocupada – de julgar, de defender e de fiscalizar ou acusar – de
fato, interferia na construção de diferentes “sensibilidades jurídicas” (GEERTZ, 2007), que se
correlacionavam aos interesses defendidos e aos fazeres específicos de cada profissional.
Como refletiu Geertz, o sentimento sobre o que é justiça é variável não apenas em graus de
definição, mas também no poder que ele exerce frente as formas de pensar e de agir.
Um dos exemplos mais nítidos dessa consonância de posicionamentos conforme a
categoria, era observado nos posicionamentos favoráveis dos defensores à existência das
audiências de custódia e na cobrança que todos eles externaram em relação ao desejo de terem
suas teses, verdadeiramente, ouvidas e consideradas pelos juízes. Outrossim, as dificuldades
em comum vivenciadas por quem ocupa a posição da defesa do custodiado, faz com que eles
tenham percepções similares sobre as audiências de custódia e sobre a estrutura da Central de
Flagrantes.
Muito foi falado pelos advogados da necessidade dos juízes “terem experiência na
área criminal”, demonstrando que a atividade jurisdicional habitual que cada um deles exerce
também cria saberes próprios e influencia em posturas distintas durante as audiências.
A reprodução desses saberes oriundos da experiência, contudo, às vezes também
podia estar pautada em empreendimentos morais (BECKER, 2008) sobre a gravidade dos fatos
a partir do perfil da pessoa em que foi presa e pelas suas condutas pretéritas. Sendo tênue a
145
linha que separa a utilização da experiência como meio de percepção de singularidades ou
como meio de reprodução de generalizações.
Nesse norte, a partir das falas acima transcritas, pude também observar que a
construção da sensibilidade jurídica sobre a gravidade do crime de tráfico de drogas, por vezes,
aparece permeada por etiquetamentos, territorializando áreas como “potenciais” para a
ocorrência de tráfico e utilizando-as, inclusive, como justificativa para a manutenção da prisão
no intuito de “servir de exemplo para a comunidade a qual o custodiado estaria inserido”.
Nem sempre esses posicionamentos ficavam evidentes durante o transcurso formal da
audiência. Mas a partir das entrevistas, junto a observação das conversas e dos gestos realizados
nos “bastidores”, descortinava-se o que estava por trás do vocabulário técnico e inacessível –
que eu também reproduzia quando digitava os termos de audiência nos meus tempos de
residente e estagiária.
Consoante refletiu Fonseca (2005) em sua obra “Igualdade à brasileira: cidadania
como instituto jurídico no Brasil”, embasada em pesquisa empírica e realização de entrevistas
com juízes, a decisão judicial muitas vezes não é parte de um raciocínio dedutivo, mas decorre
de uma escolha prévia determinada pela ideia de verdade preexistente ao processo, formulada
através dos autos policiais.
Assim, apesar de se propor como um espaço polifônico e supostamente horizontal,
em razão de ainda não estar formada uma acusação formal contra o custodiado, a estética do
ambiente já revela que cada posição ali ocupada remete a poderes diferentes. O juiz, sentado
na parte central ponta da mesa, simboliza que é ele que está coordenando aquele evento e, de
fato, é ele quem controla o tempo, dita a necessidade, ou não, de cada fala e aceita ou rejeita a
presença de ouvintes.
O custodiado, sentado na outra ponta da mesa, poderia, em tese, estar em uma posição
de igualdade com o juiz, mas os policiais em pé ao seu lado, limitando a sua movimentação,
bem como o uso de algemas, demonstravam a diferença que havia entre uma ponta e outra da
mesa.
Outro fato a ser apontado, eram os copos de vidro e as xícaras de porcelana em que
eram servidos a água e o café dos juízes, promotores, advogados, assessores e estagiários
contrastando com os copos de plástico em que era servida apenas água para o custodiado. Certa
vez, ouvi que aquela medida era para evitar que eles fossem arremessados. Via-se, assim, que
mesmo sem uma acusação formal, ocupar aquela cadeira já carregava o peso de ser considerado
um risco para os demais.
146
Outrossim, as vestimentas utilizadas pelos juízes, promotores, advogados e defensores
também marcava a posição deles ali dentro e contrastava com as roupas simples ou com as
peças ausentes, que compunham e marcavam o corpo dos custodiado. Apesar daqueles não
serem usadas vestes talares96, como togas, becas, túnicas ou cordões, eles estavam
diferenciados pelo uso de terno e gravata, por parte dos homens, e de blazer por parte das
mulheres. A temperatura do espaço, inclusive, era pensada para esse tipo específico de
vestimenta, sendo um ambiente bastante frio, o que fazia com que os custodiados, sem camisa,
descalços e de bermuda ficassem bastante desconfortáveis.
É partindo dos relatos de campo acima transcritos que passarei a refletir as audiências
de custódia, não apenas como um direito ou política pública construída a partir de leis, mas
também a partir de como os profissionais agem e, consoante preconiza Adriana Vianna (2002,
p. 37) assumindo que “não podem ser compreendidos a partir do enunciado – discursivo,
institucional – de sua existência, mas das ações concretas que produzem, bem como das ações
que anunciam idealmente, mas não necessariamente realizam”.
Logo, o espaço supostamente polifônico e dialógico de interação, como preconiza
Spivak (2010, p. 12), não se concretiza quando um dos sujeitos é lido como subalterno97e tem
o seu do poder de falar e direito de ser escutado minorados.
Para além de um ponto de visão estático, a imersão em campo, que ultrapassa as
barreiras entre o ligar e desligar das câmeras que registravam aqueles eventos, me ajudou a
problematizar melhor como os processos de fala, de escuta, do silenciar e de ser silenciado
ocorriam nesses eventos. São essas interações – e a ausência delas – que serão discutidas no
capítulo seguinte, dedicando-se também, a análise das relações de poder e das suas
consequentes grades físicas, materiais e simbólicas.
96 A palavra “Talar” vem do latim e significa “calcanhar”, fazendo referências as longas vestes que alcançavam
até os calcanhares. Essas pessoas, geralmente ocupavam funções consideradas de grande prestígio e respeito. 97 Para Spivak, o termo subalterno descreve “as camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos
específicos de exclusão dos mercados da representação política e legal e da possibilidade de se tornarem membros
plenos no estrato social dominante”. (SPIVAK, 2010, p. 12)
147
CAPÍTULO IV: AS VOZES E OS SILÊNCIOS NOS SEUS CAMPOS DE (NÃO)
PODER.
Para introduzir o capítulo final dessa dissertação, irei acionar um importante momento
acadêmico que, mais do que marcar a minha transição entre o direito e a antropologia, me
ajudou a (res)significar a minha forma de me comunicar, de escutar e de pensar a minha
produção e atuação em ambas as áreas.
Ao apresentar o meu projeto de pesquisa durante a banca de seleção do Mestrado em
Antropologia Social, fui confrontada com a seguinte observação pontuada por uma das minhas
avaliadoras: “A grande questão aqui é que eu não compreendo a maior parte do vocabulário
utilizado no seu projeto, você terá que explicar todas essas categorias jurídicas utilizadas para
que possamos analisar a sua proposta adequadamente”. As outras duas avaliadoras que faziam
parte da banca concordaram e também destacaram a dificuldade em entender, inclusive, o que
seriam as próprias audiências de custódia, objeto central do meu campo.
Constatei, naquele momento, que eu estava reproduzindo a mesma linguagem
inacessível que tanto me incomodava durante meus tempos de graduação e durante toda a minha
prática profissional. Após me desculpar e de lamentar o ocorrido, eu respondi que se três
grandes professoras universitárias, doutoras e renomadas em suas respectivas áreas, não
conseguiam compreender suficientemente essas terminologias e esse instituto jurídico, era
possível pensar a aflição dos homens e mulheres que ouviam, sob esse mesmo vocabulário, as
decisões que têm em mãos a sua liberdade ou o seu cárcere.
A minha resposta acabou se tornando a justificativa da necessidade da minha pesquisa.
Mas foi a observação das minhas avaliadoras que me inspirou a ter mais atenção com as
dinâmicas e com as lacunas comunicativas que passariam a permear todo o meu campo,
observações, entrevistas, análises e escrita.
É por essa razão que, apesar de soar anacrônico fazer descrições etimológicas de
palavras, irei pedir licença para evocar que o vernáculo “audiência” advém do termo em latim
“audire”, que significa “ouvir”, pressupondo o ato de falar e de ser escutado por uma pessoa ou
por uma coletividade que, em regra, são dotados de autoridade para tomada de alguma decisão
ou deliberação.
Conforme pondera a historiadora Isabel Graes (2005, p. 99), o termo “audiência”, em
português, começou a ser utilizado no Brasil para se referir ao encontro do soberano com os
seus súditos, não sendo interpretado, à época, como um direito, mas como um dever para com
o monarca, único legitimado a convocá-las.
148
Contudo, na teoria de um pretenso “Estado Democrático de Direito”, ela passaria a ter
um novo significado, tornando-se um veículo de abertura dos Espaços de Poder para a voz do
seu constituinte originário: o povo98. As audiências feitas no âmbito do Judiciário passariam a
possuir, então, status de grande relevância para o esclarecimento processual, para o exercício
da ampla defesa e também para assegurar que o seu transcurso seja “justo” e “eficiente".
Nesse lume, a base das audiências de custódia estaria em assegurar que a legalidade
de uma prisão que acabou de acontecer pudesse ser avaliada por uma autoridade judicial que,
mais do que meramente examinar papéis, deveria escutar a versão dada pela pessoa presa. Esse
contato, também propiciaria a observação de abuso ou prática de tortura durante a ocorrência,
possibilitando o encaminhamento para mecanismos de assistência e de proteção e ponderação
sobre eventuais situações ou necessidades particulares, como a existência de uma gestação, ou
de filhos dependentes.
Teoricamente, o olhar, o falar e o escutar, face-a-face, seriam, então, marcadores
fundamentais desses eventos, a “ratio essendi” (razão de ser) da audiência de custódia,
conforme reforçou o Superior Tribunal de Justiça ao decidir sobre a impossibilidade da sua
realização mediante videoconferências afirmando que elas atentariam contra a natureza do
próprio instituto99. O que acabou sendo facilmente relativizado nos tempos da pandemia do
Covid-19.
Após a vivência em campo descrita no capítulo anterior, ler esses aspectos teóricos me
remete a uma sensação de vazio e incompletude, por ser difícil associá-los com a prática acima
transcrita. Talvez por isso eu tenha escrito tantos verbos conjugados no futuro do pretérito.
Ao acompanhar presencialmente como se desenvolvem esses eventos supostamente
de “audire”, ou seja, de “fala” e de “escuta”, eu acabei me deparando, na verdade, com inúmeros
casos em que imperava o silêncio, seja o voluntário ou aquele ocasionado por outros sujeitos
ou sujeições.
As diversas formas em que pude perceber esses momentos me fizeram compreendê-
los em categorias distintas: havia o silêncio advindo de uma imposição físico-estrutural, o
silêncio em razão do medo, o silêncio pela falta de compreensão sobre o que estava sendo
questionado e também o silêncio como agência. Ao longo desse capítulo aprofundarei cada um
deles conforme os casos em que acompanhei.
98 A Constituição Federal de 1988 dispõe no parágrafo único do seu artigo 1º que “todo poder emana do povo”,
elencando-o a posição de constituinte originário do Estado nação a partir do direito a escolha de seus representantes
e da sua participação. 99 Informativo Judicial nº 663, proferido em 11 de dezembro de 2019.
149
Também não pude deixar de sentir que a análise das falas e a aplicação de
questionários, que eu acreditava serem os grandes diferenciais da minha nova metodologia de
pesquisa, foram redimensionados ao me deparar com essas categorias e com os abismos
comunicativos ali existentes, passando a entendê-los também como símbolos e constituidores
simbólicos. Eventualmente, eles transmitiam mais mensagens do que as falas oriundas de
repetições, quase que automáticas, do que já estava escrito em um relatório, termo, formulário
ou de um discurso previamente preparado ou orientado.
Reconheci, então, como era mais simples e confortável apenas analisar os termos de
audiência com os quais eu trabalhava outrora, simplesmente coletando fundamentações escritas
e recortando os seus resultados e pondo-os em planilhas para demonstrar o número de prisões,
solturas e medidas cautelares diversas. Ir a campo, foi uma tarefa muito mais desafiadora, me
fazendo ter que visualizar mais do que o tangível e material. Eu precisava enxergar os elementos
de poder em cada um das lacunas entre o dito, o transcrito e o que era silenciado.
É diante dessas percepções que, nesse capítulo, irei discorrer sobre os abismos
comunicativos e os processos de silenciamento observados em campo, tratando também das
diferenças que eu observei entre o que ficava registrado nos documentos oficiais e o que eu
presenciava durante as audiências.
Ao fim, interpretarei os dados etnográficos conforme os campos de poder, ou de
ausência dele, que perpassam pela mitigação cidadã e pela violação a direitos básicos,
consoante pude presenciar ao longo da pesquisa na Central de Flagrantes.
4.1 ABISMOS COMUNICATIVOS E OS PROCESSOS DE SILENCIAMENTOS
Ao propor a construção de uma racionalidade comunicativa a favor de uma ética
discursiva em prol da conciliação de interesses “universalizáveis”, Habermas (1997, p. 91)
também ponderou que sem igualdade de posições, não seria possível dialogar sob as mesmas
condições.
A construção de consensos éticos obtidos através do diálogo acaba se tornando
distante da realidade brasileira e da lógica vertical, fechada e litigiosa em que se ergueu o nosso
Poder Judiciário. Ainda que surjam novos institutos que tentem reverter esse paradigma, é
preciso que eles caminhem junto a uma mudança das sensibilidades dos seus agentes e da
possibilidade de abertura para a mútua-compreensão entre eles e os demais partícipes, inseridos
na esfera pública de ampla cidadania.
150
Contudo, me apropriando do termo utilizado por Oliveira (2018), o que pude
presenciar em campo refletiu, na verdade, em múltiplas situações de “exclusão discursiva”,
que, segundo o autor estariam associadas:
[...] à desvalorização da voz ou da opinião de segmentos significativos da
cidadania, tidos como hipossuficientes não apenas no que concerne à falta de
meios para levar suas causas adiante, mas também no desconhecimento de
seus direitos e, portanto, na falta de condições para fazer escolhas e tomar
decisões por si mesmos. (OLIVEIRA, 2018, p. 11)
Logo, enquanto a grande maioria dos custodiados não tiver sequer o acesso ao
conhecimento sobre os direitos aos quais eles titularizam e, tão pouco, compreenderem a
finalidade dos instrumentos que eles têm a sua disposição, as audiências de custódia
permanecerão distantes de sua materialização enquanto espaços polifônicos e pretensamente
dialógicos.
É preciso esclarecer que essa “premissa dialógica” das audiências de custódia não se
confunde com a possibilidade de fazer acordos de não persecução penal100, reparação de danos,
delações ou de conciliar interesses com as eventuais vítimas. Apesar de um dos juízes e de uma
das promotoras entrevistadas terem manifestado interesse de, no mesmo evento, realizar todas
essas ações, não é para essa finalidade que a audiência de custódia, atualmente, é
regulamentada.
A abertura comunicativa dessas audiências consistiria no diálogo entre o promotor, o
juiz, o custodiado e a sua defesa, exclusivamente, sobre o momento em que ocorreu a prisão e
se, diante das suas circunstâncias e gravidade, haveria necessidade, ou não, da sua manutenção
preventiva. Logo, como já abordado anteriormente, a escuta e a visualização presencial da
pessoa que está sob custódia, serviriam para aguçar a percepção do juiz e do promotor, para
além dos autos policiais e concedendo um espaço de defesa para a pessoa sob custódia. O que
poderia evitar – e coibir – prisões arbitrárias, violentas e desnecessárias.
Entretanto, acompanhar presencialmente as onze audiências de custódia transcritas no
Capítulo III, me fez notar o distanciamento entre seus sujeitos, apesar da sua proximidade
física. Outrossim, a partir das entrevistas com os custodiados, ficou evidente a falta de
compreensão em relação aos acontecimentos daquele evento, o desconhecimento do seu
objetivo e a alienação sobre os seus resultados e suas consequências.
100 Incluído pela Lei nº 13964/2019, o Acordo de não persecução penal pode ser proposto pelo Ministério Público
ao investigado quando ele houver confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem
violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 anos, desde que necessário e suficiente para reprovação
e prevenção do crime, conforme dispõe o Art. 28-A do CPP.
151
Nem todos os juízes se mostraram igualmente dispostos a esclarecer para que serviam
as audiências de custódia e, mesmo aqueles que se esforçavam em explicar, por vezes, não se
faziam compreender. Isso se tornava evidente quando, ao final, haviam perguntas como
“quantos anos eu peguei?” ou “fui condenado?”. Questionamentos estes que também
remetem a acepção geral que a população constrói sobre o judiciário, assimilando-o como um
espaço de aplicação de penas (KANT DE LIMA, 2008).
Outrossim, a linguagem reproduzida quase que mecanicamente durante o ritual era
composta por termos oriundos de um vocabulário técnico-jurídico que era inacessível a maior
parte dos custodiados, que tinham que utilizar os seus advogados como tradutores do resultado
ou, às vezes, recorriam até a mim durante as nossas entrevistas, pedindo que eu explicasse o
que aconteceu e o que estaria por vir, sendo bastante frequente indagações similares a que me
foi feita pelo custodiado Antônio ao me perguntar “e no que é deu, doutora?” (Tópico 3.2).
Consoante leciona a educadora Bell Hooks (2008), é preciso reconhecer o lugar da
linguagem nas relações de poder e a forma como o domínio sobre ela pode gerar desigualdades,
apagamentos e silenciamentos. Assim, a comunicação precisa ser pensada em uma perspectiva
didática e libertadora, o que acaba sendo obstaculizado nas instituições que insistem em ainda
em usar expressões do século XVIII, a partir do uso de palavras em latim e de um linguajar
dito “tradicional” que acaba fechando-as em si mesmas.
Sobre essas instituições, Bourdieu (1996) ressalta que por muito tempo, a sua
legitimidade não estava no entendimento, mas na sua eficácia simbólica através da
compreensão contextual, citando, como exemplo, a crença na legitimidade da missa em latim,
que os fiéis não compreendem, mas acreditam. Contudo, é preciso lembrar que o texto da
CF/88 exigiu, como um imperativo democrático, a motivação de todos os atos oriundos do
Poder Público, devendo as decisões estarem devidamente fundamentadas e, antes de tudo,
cognoscíveis para aqueles que titularizam os direitos em questão.
Não obstante, conforme refletiu Neves (2008), ainda permanecem no nosso contexto
constitucional, normas meramente simbólicas (NEVES, 2008). As disposições, por mais
louváveis que se apresentem no plano teórico, não correspondem, necessariamente, a
concretização de direitos, mas, sim, a uma “função política de reprodução da ordem social e
de legitimação da dominação” impondo “sistemas de classificação sob a aparência legítima de
taxinomias filosóficas, religiosas e jurídicas” (BOURDIEU, 1989, p. 14)
Essa ausência de assimilação dos custodiados e de seus familiares sobre o objetivo da
audiência de custódia criava novas lacunas comunicativas e limitava o acesso ao exercício do
direito de uma forma plena, ao passo que eles não sabiam o que poderiam acionar naquele
152
espaço. Afinal, conforme preconizou Abreu (2018), a mera previsão de direitos, por si só, não
será capaz exprimir a cidadania e tão pouco, a autoidentificação enquanto cidadão capaz de
usufruir desse espaço enquanto titular.
Nesse lumiar, a frase “Pelo menos agora eu posso falar, só não sei se eles vão ouvir”,
dita pelo custodiado Ítalo, foi uma das percepções mais emblemáticas que ouvi durante as
minhas entrevistas e, em razão disso, a utilizei como título dessa dissertação e categoria de
reflexão.
Por mais que ela soe contraditória, ou até mesmo inócua, por contrapor a possibilidade
de fala com a sua não acepção ou escuta por parte do outro, ela revela que a mera existência
da audiência de custódia enquanto espaço em que é permitido o esclarecimentos dos fatos pelo
próprio custodiado, pode possuir, em sua perspectiva, significado. Principalmente, ao permitir
que se emane uma voz outrora silenciada ou minorada aos discursos reproduzidos nos autos
policiais.
Entrementes, apesar de Ítalo insistir, durante a sua audiência (tópico 3.3), em
esclarecer que as drogas e o material encontrados pela polícia não estavam dentro de sua casa
e sim em um beco localizado do outro lado da rua, o juiz e o promotor optaram por não
considerar a explicação oralizada e até mesmo desenhada por ele. Ambos reforçaram que,
“conforme relatado nos autos policiais”, a droga tinha sido localizada no seu quintal.
Após a audiência, durante a nossa conversa a cela onde ele estava, Ítalo demonstrou
aflição e se culpou, achando que não havia conseguido explicar adequadamente a situação,
lamentando o fato de estar sendo preso por algo que não o pertencia.
O sentimento contrastante de Ítalo, entre a satisfação em finalmente ter a oportunidade
de falar – o que lhe foi negado durante a abordagem policial – mas de ter dúvidas se ele,
realmente, seria ouvido, reflete um pouco do cotejo entre a teoria e a prática das audiências de
custódia enquanto espaços de fala e de escuta.
Esse mesmo sentimento foi vivenciado ainda mais intensamente pelo custodiado
Renato, que foi totalmente impedido de falar para “não contaminar o ambiente” em razão da
sua tuberculose.
Ao suprimir a fala Renato, a juíza do caso não teve como saber através dele, que havia
uma condição particular de saúde que demandaria tratamento contínuo e que poderia,
eventualmente, justificar uma prisão domiciliar. Só após a audiência já ter sido encerrada e da
ex-companheira de Renato pedir para se manifestar, é que a juíza tomou conhecimento que ele
era acometido de AIDS. Só assim, ela e a promotora tiveram condições de determinar que os
órgãos de saúde e penitenciários adotassem medidas voltadas à proteção da sua saúde. Percebe-
153
se que apenas realizar o evento, sem oportunizar a fala dos seus partícipes, não garante a
proteção de direitos que as audiências de custódia se propõem.
Outrossim, me chamou atenção a audiência de custódia de Antônio em que o juiz, o
perguntou se ele teria o interesse de falar e ouviu como resposta “depende, umas coisas sim e
outras não.” O magistrado demonstrando bastante impaciência, asseverou que ou ele falava
tudo ou não falaria nada, fazendo, assim, com que Antônio optasse por silenciar.
Nesse lume, as situações em que foram marcadas pelo silêncio voluntário ou
impositivo também se mostraram como transmissoras de mensagens. Como propõe Bell Hooks
(2008), é preciso refletir e aprender com espaços de silêncio tão quanto os com espaços de fala.
Assim, percebi que os silenciamentos observados eram advindos de múltiplas origens. Sejam
elas imposições estruturais, corolários do medo, de receios político-ideológicos, da falta de
compreensão ou até mesmo de condições fisiológicas.
No que concerne a essas imposições estruturais, vi como a parte física da Central de
Flagrantes se mostrou silenciadora e reprodutora de uma estrutura desigual em diversos
momentos de minhas entrevistas. O espaço que antes era um renomado e confortável hotel (ver
o tópico 2.4), onde os seus hospedes poderiam relaxar e exercerem livremente sua autonomia,
agora restringia e intimidava – em diferentes proporções – todos aqueles que o frequentavam,
impositivamente, ou não.
Todos os advogados com quem eu pude conversar destacaram o seu descontentamento
com a estrutura do prédio, principalmente, com a pequena sala da OAB, em que eles realizavam
o contato pessoal com o cliente: “Não há qualquer privacidade, é impossível conversar sem
ser ouvido pelos policiais que ficam pastorando a porta, o nosso atendimento muitas vezes
acaba sendo prejudicado”, frisou um deles.
Outrossim, nos diálogos com os defensores públicos, alguns relataram situações em
que se sentiram incomodados com os olhares fixos dos policiais, o que acabava também
constrangendo o custodiado, que não conversava tão abertamente com eles.
Durante o atendimento da defensora pública Margarida com o Antônio (tópico 3.2),
ficou nítido o nervosismo do custodiado ao ver que os policias poderiam estar escutando o que
ele dizia através da frecha que havia na parte inferior janela de vidro transparente.
Um dos juízes entrevistados também relatou se sentir intimidado por aquele espaço
não ser o seu local de trabalho habitual, havendo uma série de imposições de medidas de
segurança que serviam, na visão dele, para limitar direitos. O mesmo juiz reclamou também da
câmera afixada no teto logo atrás da sua mesa, alertando que aquele objeto poderia ser utilizado
154
para vigiar e controlar a sua atividade, em um contexto de demonização das audiências de
custódia por parte, principalmente, dos policiais.
O custodiado Pedro (tópico 3.5) também mostrou nítido desconforto durante as nossas
entrevistas em razão da cela ser próxima ao local em que ficavam os agentes de segurança, o
que o impediu de responder algumas das minhas perguntas. Eu sabia que o receio de Pedro era
completamente plausível, pois pude constatar, em minha entrevista com o custodiado Renato,
que, facilmente, um dos agentes havia nos escutado.
Foi também durante a audiência de custódia de Pedro que o silenciamento pelo medo
se exteriorizou através das marcas em seu corpo que não condiziam com as palavras que saiam
da sua boca. Fazendo com que o juiz reforçasse suas perguntas até ele admitir que as escoriações
foram oriundas da prisão, sendo a violência policial também um mecanismo de abafar a sua voz
nesses eventos.
Outrossim, o silenciamento pelo medo também era observado quando eles evitavam
falar alguma coisa que viessem a comprometer outras pessoas. Contudo, a decisão de não querer
falar algo que pudesse prejudicar terceiros nem sempre advém, necessariamente, do medo ou
de ameaças. Em outra análise, esse tipo de silêncio também pode ser interpretado como uma
agência do indivíduo que escolheu, voluntariamente, não falar motivado por respeito,
compromisso ou como estratégia deliberada para sua autoproteção.
A filósofa Beel Hooks ao refletir sobre o silêncio como estratégia de sobrevivência,
relata como muitos indivíduos de grupos oprimidos aprendem a reprimir ideias, pois desde a
escravidão já era sabido que “dizer a coisa errada podia levar à punição severa ou à morte.”
(HOOKS, 2019, p. 327). Se o Poder Judiciário, enquanto instituição, não transmite segurança
e se apresenta como ambiente hostil para o indivíduo em custódia, ele não gozará do direito a
voz por temer que aquilo, de alguma forma, possa ser utilizado contra ele.
Alguns aspectos fisiológicos, como o frio e a fome, também foram relatados como
algo que os fazia se sentirem mal durante a audiência, os prejudicava na capacidade de
expressão e os desorientava no processamento das informações. Essas sensações revelavam que
mesmo em um espaço destinado a “custódia” – supostamente de proteção – havia a mitigação
a direitos humanos.
Os silenciamentos advindos da limitação das falas dos advogados por parte dos juízes
também foram bastante abordados durante as entrevistas. Ao perguntar a uma das defensoras
se ela gostava de fazer audiências de custódia, ela me respondeu que “dependia de quem era o
juiz”, afinal, mesmo ela afirmando não ter nada pessoal contra qualquer um deles, haviam
alguns que a faziam se sentir como se todas as suas teses fossem “inúteis” em razão dos
155
“posicionamento pré-concebido deles”. Ela relatou, ainda, que alguns juízes a silenciavam
explicitamente pedindo para ela “resumir a fala” ou para “limitar-se a fazer o pedido”.
Situação semelhante foi compartilhada por um advogado que disse que dependendo
de quem fosse o juiz, ele nem tentava argumentar muito, pois já sabia que, para ele, “a palavra
do advogado e nada eram a mesma coisa”. Esse mesmo advogado avaliou as audiências de
custódia como “uma grande evolução processual, mas os juízes precisam também adaptar o
seu pensamento para evoluírem junto com essas mudanças. Muitos ainda preferem ficar presos
aos autos e não escutam o que é dito durante a audiência de custódia.”
Nesse sentido, alguns advogados afirmaram acreditar que essa postura era um
resquício da época em que os juízes apenas analisavam os autos sem precisar ouvir a defesa.
Um advogado, nesse norte, pontuou: “A impressão que eu tenho é que eles têm vontade de
analisar os autos como faziam antes, sem ter que ouvir ninguém.”
Para além desses relatos advindos dos meus interlocutores, pude confirmar,
presencialmente, alguns desses processos de silenciamentos da defesa, principalmente, ao ver
alguns dos juízes pedindo para eles serem céleres na hora de fazer o pedido ou interrompendo-
os durante as suas falas para frisar que “não estavam julgando o mérito” ou para “se limitar a
questões relacionadas ao flagrante”.
Esses momentos deixavam evidente que o juiz detinha total poder e controle sobre o
que caberia, ou não, ser falado naquele momento. O espaço de fala, ao invés de ser lido como
um direito, acabava simbolizando apenas uma concessão de quem senta na ponta da mesa e na
cadeira, literalmente, mais confortável do recinto.
Se os defensores sentiam que o direito à ampla defesa era mitigado a partir das
limitações impostas às suas falas, muito mais sintomáticos se tornavam os silenciamentos que
eu pude observar relacionados diretamente às pessoas sob custódia que, em tese, deveriam ter
a sua voz protagonizada nesses eventos.
Além das situações de Renato, Antônio e Ítalo, pude observar, de forma geral, que as
perguntas direcionadas aos custodiados se limitavam a preencher um check-list sobre a sua
identificação, confirmando algumas das informações contidas nos autos policiais.
Já as perguntas feitas sobre a ocorrência de abuso de autoridade ou de tortura durante
a abordagem policial nem sempre ficavam evidentes, pois uma parte dos juízes
eufemisticamente perguntava: se tudo ocorreu “dentro dos conformes”, se aconteceu “alguma
coisa errada” ou se havia “algo a relatar sobre o procedimento adotado”. Somente dois
magistrados usaram a palavra “violência” na formulação do questionamento e apenas o juiz
Wagner, durante a audiência de custódia de Pedro (4.1.5) procedeu com encaminhamentos em
156
relação ao que foi noticiado, ao tirar fotos, juntar aos autos e encaminhar cópias ao Ministério
Público e Corregedoria de Polícia.
Quando perguntei a um outro juiz porque a questão relacionada aos possíveis abusos
durante a prisão era formulada de forma tão aberta, ouvi como resposta que era para “não
induzir a uma resposta”. Não obstante, o que ocorria era uma espécie de coibição a fala de uma
possível vítima em razão da formulação de uma pergunta não cognoscível.
Outrossim, importante pontuar que em apenas duas das audiências que assisti – ambas
presididas pelo mesmo juiz – foi permitido que o custodiado permanecesse na sala de audiências
até o momento em que foi proferida a decisão. Nesses dois casos, o resultado foi proferido
diretamente para cada um deles, demonstrando haver uma preocupação com a compreensão
daquela decisão.
Já nas outras nove audiências que acompanhei, os juízes pediram para que os policiais
retirassem os custodiados da sala logo após o término das perguntas a eles dirigidas, impedindo-
os de assistirem ao transcurso de suas próprias audiências.
Nestes casos, o resultado foi informado apenas após a audiência ser encerrada,
geralmente pelos advogados ou pelos oficiais de justiça no momento em que levavam o termo
de audiência para eles assinarem.
Durante a intimação do custodiado, em que era solicitada a assinatura do termo, não
vi, em nenhum dos casos que acompanhei, os custodiados lendo ou pedindo para alguém ler o
que ali estava escrito.
Quando eu perguntei o motivo deles terem assinado sem ler, essas foram algumas das
respostas que obtive como resposta “Mesmo que eu lesse, eu não iria entender”; “A minha
advogada deve ter lido, ela vai me explicar depois”; “Eu deveria ter lido mesmo, né? É
perigoso assinar essas coisas sem ler...” e “Eu estava tão nervoso que só fiz o que ele me
pediu...”. Ainda mais sintomático, foi quando quatro dos custodiados disseram que foi em razão
deles não serem alfabetizados.
Quando o custodiado é alienado das motivações e das consequências de uma decisão
judicial, ele poderá sofrer múltiplos prejuízos. O primeiro deles é ser privado de conhecer as
motivações que acarretaram a restrição da sua liberdade decisão; o segundo é desconhecer os
limites daquela decisão e as formas de combatê-la e o terceiro é correr o risco de descumprir
uma ordem judicial por interpretá-la de forma equivocada e ser duplamente penalizado, como
acontece, frequentemente, com as pessoas a quem são aplicadas medidas cautelares diversas
da prisão e acabam deixando de ir até a secretaria para registrar o comparecimento mensal
porque sequer entenderam como isso deveria acontecer.
157
Assim, contraditoriamente, o direito a voz acaba sendo minorado em um ambiente
criado com o objetivo de fortalecê-lo. E vê-se mitigado o acesso à informação e à compreensão
sobre as decisões que resultarão em sua liberdade ou prisão. Esses abismos comunicativos e
processos de silenciamento observados durante as audiências revelam também como o
Judiciário decide quem serão os “visíveis e invisíveis – ou audíveis e inaudíveis”, consoante
refletiu a antropóloga Adriana Vianna (2014, p. 54). Reverberando no sistema de exclusão
também pontuado por Boaventura de Sousa Santos (2007), que critica a aplicação do direito
como um produto do domínio hierarquizado que segrega e cria formas de “não existência.”
Veena Das em sua obra “Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário”
(2006), acrescenta ainda que a violência não existe apenas em oposições rígidas de “vítima e
agressor”, mas se materializa em relações do cotidiano, sendo, por vezes naturalizada. Talvez
por isso muitos não consigam se espantar com a violência provocada por aspectos físicos,
arquitetônicos, estéticos e organizacionais que silenciam e hierarquizam vozes. É por isso que
o antropólogo necessita de sensibilidade para parar perceber os “dizeres do silêncio” (DAS,
2006).
Assim, mais do que meros desentendimentos, esses abismos comunicativos se
expressam como verdadeiras rachaduras democráticas e violência institucional. São atos de
desrespeito e de negação à cidadania desses indivíduos. São agressões simbólicas aos seus
direitos e são também instrumentos de poder e de opressão. Como destacou Fonseca (2008, p.
45-46), essa postura já tão naturalizada e reproduzida mecanicamente “é reflexo da imposição
da norma pela força e pelo reforço da autoridade que enuncia a norma, do argumento de
autoridade e das medidas arbitrárias e repressivas.”
Seguindo esse norte, merecem destaque as reflexões de Chimamanda Adichie (2009)
em conferencia acerca dos perigos das construções de “histórias únicas” sobre o outro e da
usurpação do direito a voz:
Há uma palavra da tribo Igbo que eu lembro sempre que penso sobre as
estruturas de poder do mundo, e a palavra é "nkali". É um substantivo que
livremente se traduz: "ser maior do que o outro." Como nossos mundos
econômico e político, histórias também são definidas pelo princípio do
"nkali". Como são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são
contadas, tudo realmente depende do poder. Poder é a habilidade de não só
contar a história de uma outra pessoa, mas de fazê-la a história definitiva
daquela pessoa. (ADICHIE, 2009, web)
Assim, Adichie (2009) problematiza que as estruturas de poder definem as histórias
que serão contadas, como serão contadas e o impacto que essa perspectiva única pode ter na
criação de estereótipos e na reificação de vivências plúrimas.
158
Esse processo de criação de uma “história única” anda lado-a-lado com a
homogeneização e com a opressão das memórias subalternas, daqueles que não possuem
espaço de registro de suas vozes e perspectivas, seja pela falta de interesse político sobre suas
vozes, seja pela falta de acesso aos instrumentos que façam suas palavras ecoarem.
É nesse lumiar que a produção antropológica contribui no desvelar de histórias orais
geralmente silenciadas ou que são registradas parcialmente nos documentos oficiais,
questionando a produção de “verdades jurídicas” e a sua linguagem técnica objetificadora em
face as múltiplas subjetividades dos atores que vivenciam e compõem o processo.
É por essa razão que o abismo entre o que é oralizado e o que resta transcrito nesses
documentos também merece ser objeto de análise, pois corroboram com o processo de
deturpação de vozes e de dinâmicas que são reificadas em códigos que não revelam toda a
dinâmica do que ocorreu durante as audiências de custódia.
Nessa toada, é oportuno pensar em como esses documentos de eventual registro
histórico podem deteriorar ainda mais a identidade do custodiado (GOFFMAN, 1978, p. 121-
122) e prejudicar o exercício do contraditório e da ampla defesa em âmbito recursal. É por essa
razão que no próximo tópico problematizarei as limitações e implicações dos chamados
“termos de audiência” como transcrições seletivas e pré-moldadas das audiências de custódia.
4.2 REDUZINDO A TERMO: ENTRE O ORALIZADO E O TRANSCRITO
Visualizar as audiências de custódia desde os seus preparativos até a intimação do
custodiado sobre os seus resultados, me fez problematizar como os “termos de audiência”, em
que são registradas as falas, os pedidos e a decisão sobre a legalidade da prisão e a necessidade
da sua manutenção, podem reduzir discursos, posturas e demais signos visuais à códigos
textuais que, por vezes, destoam ou simplificavam uma complexidade de elementos
compositores daquele evento e do processo de formação do convencimento dos juízes.
“Reduzir a termo”, ou seja, registrar por escrito algo que está sendo comunicado de
forma oral, é, realmente, uma tarefa delicada e o seu próprio nome já revela como ele é incapaz
de abranger a totalidade comunicativa que as audiências de custódia compreendem. Consoante
aponta Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2014), essa expressão é inspirada no equivalente “to
narrow down a case”101 presente nos tribunais estadunidenses e servem como forte mecanismo
101 A tradução literal seria aproximada a “estreitar” ou a “reduzir” um “caso”.
159
de filtragem, excluindo tudo aquilo que não puder ser diretamente vinculado aos “mecanismos
de enquadramento judicial” (OLIVEIRA, 2014, p. 60).
Assim, essa redução, muito mais do que uma técnica de escrita, é construída a partir
de uma racionalidade moldada para além de uma transcrição ou análise do momento presente.
Para a sua composição, existem elementos considerados que transpõem as falas. Classifico
esses elementos como: o que já está roteirizado nos modelos e nas minutas; aquilo que é
resgatado das narrativas policiais (JESUS, 2005) e o que é decidido conforme sensibilidades
jurídicas episódicas (EILBAUM, 2012); e o que é selecionado de forma a se enquadrar em
modelos e em formulações jurídicas predefinidas.
Segundo as observações de Maria Gorete Marques de Jesus (2005), em sua tese “O
que está no mundo não está nos autos”, as narrativas dos policiais que realizam a prisão em
flagrante moldam e filtram toda a descrição da ocorrência, influindo diretamente na atividade
jurisdicional subsequente.
Os elementos resgatados dos autos encaminhados da delegacia, são lidos antes do
início da audiência pelo profissional responsável por “preparar” o termo – geralmente o
assessor, o residente ou o estagiário do juiz – e, frequentemente, são transcritos nas minutas
dos termos de audiência para adiantar informações. Alguns desses elementos são relativos
apenas a qualificação do custodiado ou o material apreendido. Mas, os mais problemáticos são
aqueles que são pré-redigidos já na fundamentação da decisão antes mesmo do início da
audiência.
No que concerne às sensibilidades jurídicas episódicas, noção trabalhada por Lúcia
Eilbaum (2012) em sua obra “Só por formalidade”, são aquelas que para além da noção de
“sensibilidade jurídica” proposta por Geertz, entendida como a relação estabelecida pela
sociedade entre fato e lei, são aquelas manipuladas em função de interesses diversos, podendo
variar de acordo com o caso em concreto.
Já os elementos selecionados de forma a se enquadrarem em formulações jurídicas
pré-definidas, seriam aqueles que, como em um jogo de encaixe, são colocados como
fundamentação de categorias do direito que, muitas vezes, já estão redigidas previamente nos
termos de audiência, e ficam esperando a subsunção da norma ao fato, seguindo uma lógica
inversa a subsunção “do fato à norma”, como pregaria o paradigma positivista.
Consoante refletiu Das e Poole (2008) ao tratarem dos processos de produção de
legibilidades e ilegibilidade dos sujeitos, todo o procedimento de escrita que permeia a
produção documental é também um instrumento de poder e do controle estatal, que determina
aquilo que deve ser apresentado ou ocultado. Peirano (2006), nesse sentido, também assevera
160
que os documentos revelam e põe em ação o próprio poder público e o seu conteúdo também
“legaliza e oficializa o cidadão, tornando-o visível e passível de controle para o Estado”
(PEIRANO, 2006, p. 26).
A forma como o Estado faz essas leituras sobre os seus componentes, visualizando-os
e conformando-os a conteúdos de documentos, também acaba revelando quem, e em que
medida, são os agentes “visíveis ou invisíveis”, “audíveis ou não audíveis”, nos termos em que
refletiu Adriana Vianna (2014) ao criticar a suposta existência de uma “racionalidade neutra”
no judiciário.
Além de um objeto de interesse científico, abordar essas questões é algo que me afeta
pessoalmente, pois já ocupei a posição de preparação e de digitação de termos de audiência de
custódia na época em que eu atuava como residente judicial. Essa experiência me fez
compreender a inviabilidade de, em um curto espaço de tempo, registrar aos mínimos detalhes
todos os sinais ali transmitidos. Essa limitação prática, contudo, não me tornava ingênua quanto
aos processos de enquadramento e de escolha sobre o que deveria, ou não, estar sendo apontado
naqueles registros.
Saber e sentir o quanto aqueles termos não representavam a realidade das audiências
e os elementos de poder ali existentes foi, inclusive, um dos principais fatores que me
motivaram a realizar esta pesquisa etnográfica.
Contudo, uma sensação de incompletude similar à que eu sentia durante a elaboração
dos termos também esteve presente durante a escrita dessa pesquisa. Aqui, nesse trabalho, eu
também realizei transcrições do que eu presenciava nas audiências, traduzindo falas, imagens e
símbolos conforme o meu olhar. Mas apesar de também reconhecer as limitações dessa minha
nova forma análise, eu podia ver grandes diferenças na forma de edificar a redação de um termo
de audiência para a observação e a escrita de uma etnografia, ainda que, de certa forma, ambos
registrassem o “mesmo objeto”.
Na escrita etnográfica das audiências de custódia, eu me posiciono e deixo evidente e
o meu ponto de visão e o meu lugar de fala, explicitando a metodologia adotada e assumindo,
pessoalmente, a responsabilidade pelas minhas leituras, transcrições e pela preservação da
identidade dos meus interlocutores, não me escondendo por trás de uma suposta objetividade
tão idealmente conclamada pela dogmática jurídica (BAPTISTA, 2013).
Noutro passo, quando a mim competia a redação dos termos de audiência, eu não
possuía o poder sobre a caneta – ou sobre o certificado digital – que os assinava. Naqueles
documentos, eu não redigia conforme a minha perspectiva, mas, sim, conforme o entendimento
do juiz que me instruía e que me autorizava sobre o que eu poderia, ou não, digitar. A minha
161
atuação estava moldada pelos filtros da dogmática e da práxis judiciária, e, principalmente,
pelos posicionamentos do chefe a quem eu estava subordinada.
Conforme mencionei, a própria constatação de que esses documentos possuem uma
edição pré-pronta já é um elemento passível de análise. A utilização de modelos para a
elaboração das chamadas “minutas” é uma prática comum no Poder Judiciário e serve como
instrumento para acelerar a produção e dar vazão a demandas repetitivas ou corriqueiras.
O Sistema de Automação Judicial – SAJ, utilizado pelo Poder Judiciário do Estado do
Rio Grande do Norte, possui um acervo de modelos criados por seus membros e compartilhados
entre eles para facilitar a elaboração de sentenças, decisões, despachos, ofícios, mandados,
relatórios e os próprios termos de audiência, sejam elas de conciliação, instrução ou de custódia.
Além dos modelos compartilhados comunitariamente para todas as varas e daqueles
registrados junto à lotação da Central de Flagrantes, cada juiz pode também criar os seus
próprios arquivos, desde que estejam em conformidade com a resolução que disciplina o
procedimento das audiências de custódia.
A redação desses documentos jurídicos é dotada de formalidades, de vocabulário
próprio, de elementos técnicos, de símbolos, de carimbos que revelam poderes, posições e teses
que podem marcar e rotular os indivíduos, gerando consequências de diferentes ordens e pesos,
seja no campo processual, no da deterioração de identidades e de restrições à liberdade.
Dentre as consequências no campo processual, destaco que o teor desse documento
não ficará, necessariamente, abandonado nos autos. Ele poderá ser revisitado pelo juiz a quem
competir a instrução e o julgamento, em uma reanálise sobre a legalidade e a necessidade da
prisão102, e também poderá, eventualmente, ser objeto análise por um desembargador ou um
Tribunal, durante a apreciação recursal, caso seja interposto algum recurso ou remédio
processual, como um habeas corpus, por exemplo.
Assim, ao serem omitidas ou condensadas as falas dos custodiados e as teses dos seus
advogados nesses documentos, poderá haver como consequência a mitigação ao direito
fundamental à ampla defesa.
Já no campo da deterioração de identidades, é importante lembrar que os termos de
audiência também servirão como registros públicos e históricos daquele evento, podendo
infligir marcas sobre a pessoa presa conforme as narrativas ali ressaltadas.
102 O §2º do artigo 3-B do Código de Processo Penal, incluído pela Lei nº 13.464/2019 dispõe que “as decisões
proferidas pelo juiz das garantias não vinculam o juiz da instrução e julgamento, que, após o recebimento da
denúncia ou queixa, deverá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso, no prazo máximo de 10
(dez) dias.”
162
Logo, qualquer análise futura desses eventos estará sempre condicionada ao processo
de escolha do redator sobre o que era relevante, ou não, estar ali registrado. Além disso, a curto
prazo, o teor dos termos também pode gerar consequências problemáticas se forem
compartilhados pela imprensa, por blogs ou redes sociais. Veículos estes que acabam rotulando
o custodiado conforme a decisão ali contida, utilizando de discursos que condenam ou absolvem
antecipadamente, sem que tenha havido ainda qualquer instrução probatória e julgamento de
mérito sobre os fatos.
Isso ocorre, geralmente, em razão de grande parte da população ainda desconhecer
para que servem as audiências de custódia, apesar delas terem se tornado um assunto frequente
na mídia desde o ano de 2015, após o STF e o CNJ determinarem a sua implantação103.
Todos os custodiados e familiares que eu entrevistei, por exemplo, afirmaram ou
demonstraram não saber para que servia aquele momento. Alguns deles, mesmo após ouvirem
a explicação dada pelos seus advogados e pelos juízes, permaneceram confusos, me
perguntando, durante as nossas entrevistas se já haviam sido “condenados” e/ou “quantos anos
duraria aquela pena”.
Uma das razões da dificuldade de compreender o instituto, ainda que com tentativas
de explanações, pode estar na dificuldade de desvincular a ideia de justiça com a de punição,
como bem demonstrou Kant de Lima (2008). Logo, as instituições judiciárias não conseguem
ser pensadas como espaços de concretização de direitos, mas de penalização por desvios, pois
é esse o campo frequentemente vivenciado por esse núcleo de pessoas e cobrado pela sociedade.
Assim, conforme tratado no tópico anterior, esse abismo comunicativo advém de uma
linguagem técnica, elitista e pouco didática, reproduzida por todos os profissionais que atuam
naquele cenário, distanciando os titulares do direito do próprio conhecimento sobre ele, em uma
exclusão discursiva (OLIVEIRA, 2018), reprodutora da respectiva “ordem” social.
Da mesma forma, as múltiplas realidades levadas a audiência são conformadas à
categorias jurídicas, “vocabulários de motivos” que compõem um regime de validação (JESUS,
2005) e a uma estética que marcam posições, hierarquias, a vida e a liberdade das pessoas.
No que tange a estética utilizada na construção dos termos, vê-se que os seus signos
e símbolos estão posicionados de forma a marcar elementos de poder, externados através de
brasões, carimbos, da ordem em que ficam dispostos os nomes dos partícipes, do encadeamento
das falas e no destaque dado a palavra final, que é decisão do magistrado sobre a manutenção,
ou não, da prisão do custodiado.
103 Ver capítulo II.
163
Para apresentar como se revelam esses elementos, farei uma análise da estrutura dos
termos que pude coletar, destacando os seus pontos de confluência e de divergência a depender
de quem o redige. Após, farei algumas observações mais específicas sobre o conteúdo de
alguns deles, comparando com as observações colhidas presencialmente durante meu campo.
A título ilustrativo, dois dos termos coleados poderão ser visualizado no Anexo 2 desta
dissertação, estando ocultadas as informações que possam identificar os sujeitos da audiência.
No viés estrutural, vê-se que na parte superior das folhas, inaugura-se o documento
com a imagem centralizada do timbre do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do
Norte, definindo a qual órgão e a qual poder público estão vinculadas aquelas audiências. No
canto superior direito, há um espaço dedicado ao número de folhas que ajudará o leitor a saber
as delimitações do documento. Essa numeração, geralmente, não está presente nos documentos
digitais, sendo mais comum aos processos físicos para evitar que alguma página seja
extraviada.
Logo abaixo, há um campo criado automaticamente pelo SAJ contendo as
informações já cadastradas em seu sistema pela Secretaria Judiciária. A primeira delas é a
identificação processual por meio do número do auto de prisão em flagrante, que será mantido
como número do processo de instrução e de julgamento104, após, segue a expressão
“autuado”105 antes do nome completo da pessoa presa. Em alguns modelos de termos de
audiência há a expressão “flagranteado”, o que é criticado por alguns juízes por gerar uma
espécie de presunção que a prisão em flagrante aconteceu de forma legal. Em seguida, fica
descrita a capitulação do crime, que é registrada conforme a capitulação dada em delegacia.
Dividindo a primeira e a segunda parte do cabeçalho, há o nome “TERMO DE
AUDIÊNCIA”, centralizado e em caixa alta, seguido do número da resolução que fundamenta
as audiências de custódia. Após, alinhado à esquerda da folha, vem expressa a data e a hora da
audiência e, abaixo, seguindo essa respectiva sequência, vem o nome completo do juiz, do
representante do Ministério Público, do advogado e do custodiado, sendo este, geralmente,
destacado em letras maiúsculas e/ou em negrito.
Apesar do teorético ideal de horizontalidade pregado por essas audiências, a ordem
com que os nomes dos partícipes estão posicionados em seus termos pode revelar também
104 Quando o juízo das garantias, efetivamente, entrar em vigor e for regimentado pelo TJRN, poderão haver
alterações no que concerne a essas numerações para evitar que o juízo da instrução tenha acesso aos elementos
pré-processuais. 105 Quando o modelo de termo de audiência é copiado de uma audiência de instrução comum, o nome “autuado”
pode ser trocado por acusado ou réu, o que não é apropriado em razão de ainda não haver uma denúncia formal
164
hierarquias medidas a partir do grau maior, ou menor, de controle sobre o evento, formulação
de pedidos e do direito a fala.
Assim, o juiz, que é o responsável por presidir, controlar a duração e tomar as decisões
é sempre o primeiro a ser mencionado nos documentos. O representante do Ministério Público,
a quem compete fazer os primeiros pedidos, sofrendo pouco ou nenhum controle sobre a sua
voz durante as audiência, tem seu nome colocado em seguida. Cabe a terceira posição à defesa,
que costuma ter o seu tempo de fala e os seus pedidos sob maior controle. E, por último, é
colocado o nome do custodiado, que é o componente que mais sofre silenciamentos durante o
transcurso da audiência, apesar de ser ele o titular dos direitos discutidos naquele evento criado,
especialmente, para a sua oitiva.
Apesar de haver algumas pequenas diferenças estéticas entre os modelos utilizados
por cada juiz, em regra, os termos seguem adotando a seguinte ordem narrativa: a “Qualificação
do custodiado”; “Legitimação da defesa técnica”; “Alegações do autuado”; “Manifestação do
Ministério Público”; “Manifestação da defesa” e, ao fim, a “Decisão”.
No ponto relativo à “Qualificação do custodiado”, o texto é pré-redigido pelo
estagiário, servidor ou assessor, conforme os elementos trazidos nos autos advindos da
delegacia. Os juízes, a partir desses dados, iniciam a audiência fazendo, sequencialmente, as
perguntas relativas a identificação em uma espécie de check-list do que já se encontra escrito
no termo, tentando suplantar quando há alguma lacuna e, eventualmente, fazendo mais algumas
perguntas que eles considerem relevantes para completar a classificação.
As informações que são apuradas nesse momento são, em regra, a nacionalidade, o
estado civil, a profissão, a naturalidade, a data de nascimento, o nome dos pais, o número do
RG e do CPF, o endereço, o número do telefone, se a pessoa possui filhos menores de idade e
o nível de instrução. Alguns juízes acrescentam, ainda, perguntas sobre a renda auferida por
mês sobre o uso de drogas ou existência de alguma doença ou incapacidade.
O tópico relativo à legitimação da defesa técnica registra que o custodiado tem a
consciência sobre quem é seu defensor e de que está conferindo a ele poderes para representá-
lo. Logo, esse tópico se torna equivalente a um documento de procuração para aquele ato
específico. Caso já haja algum documento anexado aos autos com esse mesmo objetivo, o
tópico pode ser dispensado.
No item concernente as alegações do autuado deverá ser redigido se o custodiado
sofreu alguma violência ou presenciou alguma arbitrariedade durante a sua prisão e caso o
custodiado tenha interesse em responder as perguntas, será também o espaço onde deverão ser
escritas suas falas.
165
Em seguida, nos tópicos denominados “manifestações do Ministério Público” e
“manifestações da Defesa”, elencam-se as suas respectivas teses sobre a legalidade, ou não, da
prisão e se ela deverá ser mantida ou substituída por medidas cautelares diversas. Como
corolário do direito à ampla defesa, os promotores de justiça devem fazer os seus pedidos
primeiro para que possa ser garantido que o advogado ou defensor público só se manifeste após
ter tomado ciência de todas as alegações e acusações levantadas pelo órgão ministerial contra
o seu cliente ou assistido.
A última parte da estrutura do termo de audiência é a mais longa do documento em
razão do dever constitucional de motivação das decisões. É nela em que o juiz irá fundamentar
a sua decisão consoante os elementos contidos nos tópicos anteriores e com base na legislação
aplicável. Apesar de haver mudanças no conteúdo dessas fundamentações, há um padrão
geralmente seguido quanto aos dispositivos jurídicos que serão acionados.
Durante a análise da legalidade da prisão, de conteúdo mais técnico, costumam ser
levantadas disposições da Constituição Federal e do Código de Processo Penal106, podendo
haver explanações sobre as garantias fundamentais, como a informação do direito ao silêncio,
da comunicação da prisão à pessoa que o custodiado indicar, ao direito de assistência por um
advogado, à identificação dos responsáveis pela prisão e interrogatório nas Notas de Culpa,
entregues ao autuado e se houve alguma violência ou arbitrariedade que deslegitimasse a prisão
em flagrante. A partir desses pressupostos é argumentado se a prisão ocorreu de forma legal,
ocasionando a sua homologação, ou ilegal, acarretando em seu relaxamento.
Após, passa-se para a análise sobre a necessidade, ou não, de manutenção da prisão.
Esse momento independe do resultado da avaliação anterior, o que possibilita que uma prisão
em flagrante homologada poderá ser acompanhada de uma liberdade provisória ou de medidas
cautelares diversas, da mesma forma que uma prisão em flagrante relaxada poderá ser
acompanhada de um decreto de prisão preventiva.
Para que seja feita essa avaliação, são considerados os pressupostos legais que tratam
da materialidade delitiva (elementos mínimos que demonstrem que o crime ocorreu) e dos
indícios de autoria107. Em caso positivo, é feita uma análise sobre a necessidade e a adequação
da prisão conforme à gravidade do crime, às circunstâncias do fato e às condições pessoais do
autuado, ponderado se seriam cabíveis “medidas cautelares diversas”108.
106 São usados na fundamentação, geralmente, o artigo 5º, incisos LXI, LXII, LXIII e LXIV da Constituição
Federal e os artigos 304, 305 e 306 do Código de Processo Penal. 107 Previstos no artigo 312 do CPP 108 Consoante dispõe o artigo 282 do CPP.
166
Caso seja interpretado que a prisão preventiva é a medida mais adequada, será
utilizado para embasar a decisão algum dos fundamentos legais previstos no artigo 312 do CPP.
São eles: a garantia da ordem pública, da ordem econômica, a conveniência da instrução
criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal.
Apesar das audiências de custódia serem individuais, há juízes que optam por redigir
dentro de um mesmo documento as decisões concernentes a mais de um custodiado quando a
prisão ocorre conjuntamente. No meu campo, isso foi observado durante as audiências de
Antônio e de João (tópico 3.2) e de Vítor e de Gustavo (tópico 3.4).
Ao final, há o espaço para a assinatura dos presentes, que segue a mesma ordem da
identificação abordada anteriormente. Alguns juízes utilizam de assinaturas digitais exaradas
automaticamente quando o certificado digital está acionado ao computado. Quando as
assinaturas se dão de forma manual, geralmente, os juízes fazem uso de carimbos que
legitimam ainda mais a sua posição. Tanto o juiz, o promotor e os defensores, além da
assinatura feita na última página, rubricam também as demais para expressar que tiveram
ciência do conteúdo de todas elas e evitar que ocorram alterações posteriores em alguma delas
sem o seu consentimento.
Em meu campo, pude presenciar que a forma como a assinatura dos custodiados era
exarada correspondia a um processo bem diferente dos demais partícipes. Com exceção das
audiências de Pedro e de Fernando (tópico 3.5), onde o juiz permitiu que os custodiados
permanecessem em sala até o resultado da audiência ser proferido oralmente e entregue,
pessoalmente pelo juiz, para que eles assinassem, todos os demais custodiados foram intimados
do resultado da audiência por um oficial de justiça através das grades de suas celas.
Presenciei que, ao invés de eles folhearem todas as laudas, eles abriam diretamente na
última, exarando a sua assinatura ou pressionando a sua digital apenas nela. Isso implicava na
não ciência sobre o que havia sido escrito no tópico referente as suas “alegações”, que sempre
estavam transcritas ainda na primeira folha.
Em minha análise sobre o conteúdo dos termos de audiência, pude notar que nos casos
em que a prisão em flagrante era considerada ilegal e nos casos em que havia a concessão de
liberdade provisória ou a determinação de medidas cautelares diversas da prisão, os juízes
costumavam fundamentar mais extensamente e cuidadosamente a sua decisão do que nos casos
em que eles optavam por manter o cárcere.
É como se houvesse uma preocupação maior em explicar o motivo das pessoas
estarem sendo soltas nas audiências de custódia do que explicar o porquê de estarem sendo
mantidas presas. Esse receio ficou nítido na fala de uma das representantes do Ministério
167
Público que explicou detalhadamente, não apenas para o juiz, mas também se dirigindo aos
dois policiais presentes, os motivos pelos quais ela estava se pronunciando pela ilegalidade de
uma das prisões e pedindo o seu relaxamento (tópico 3.4).
Essa preocupação talvez seja uma forma de tentar justificar e legitimar a atuação do
Poder Judiciário e do Ministério Público em face a constante reprodução do jargão de que “a
polícia prende e a justiça solta e é tudo culpa das audiências de custódia” (CÂMARA, 2019),
ainda que os números revelem que as prisões permanecem maiores do que as solturas, sendo
essa porcentagem ainda maior quando as prisões ocorrem por crimes de tráfico de drogas.
Outrossim, apesar das audiências de custódia terem sido implantadas como uma forma
de proteção aos direitos humanos ao possibilitarem a análise da legalidade dos atos policiais e
permitir que o juiz enxergue presencialmente os corpos dos custodiados e, idealmente, escute
as suas vozes, durante o meu campo pude notar como as narrativas policiais, dotadas de fé
pública, acabavam sendo consideradas em um patamar superior ao das falas dos custodiados e
dos seus defensores.
Uma das promotoras entrevistadas, inclusive, foi contundente ao afirmar que a fala do
custodiado “pouco influía na sua percepção” e que o convencimento dela era formado “pela
leitura dos autos que vinham da delegacia” (tópico 3.2).
Isso restou evidente ao observar como os membros do Ministério Público embasavam
seus posicionamentos, majoritariamente, conforme o que estava disposto nos autos oriundos
da delegacia e nas narrativas policiais (JESUS, 2005). Outrossim, também já era sabido que
por mim que as minutas dos termos de audiência ficavam preparadas com base nos elementos
trazidos naqueles autos.
Nesse norte, a autora problematiza ainda que a perspectiva contida nos documentos
advindos da delegacia acabam sendo imbuídas de certa imunidade, permitindo que os policiais
desempenhem suas funções com ampla margem de atuação (JESUS, 2005, p. 245). Conforme
argumenta a socióloga, o campo de imunidade das narrativas policiais reforça o poder desses
agentes e vela eventuais irregularidades, vícios procedimentais e até mesmo atos de violência
que podem ocorrer durante as prisões, sendo por isso tão necessárias as audiências de custódia
enquanto espaços que possibilitem a entrada de novas narrativas109 sobre o fato na análise da
autoridade judicial (JESUS, 2005, p. 245-246).
109 Kant de Lima (1989), em pesquisa acerca das práticas policiais, problematiza que a construção dos autos
oriundos de delegacias, são permeadas por negociações e por vezes barganhas oficiosas sobre o que será, ou não
registrado, conforme expressa a categoria “armação do processo”, vigente no cotidiano da esfera policial.
168
Sob essa perspectiva, ainda que existentes no âmbito formal, as audiências de custódia
não serão efetivadas no plano material se as narrativas advindas dos registros policiais,
marcadamente inquisitoriais, continuarem sendo, na prática, o único objeto de análise dos
Promotores e Juízes, em uma atuação reprodutiva, de mera leitura de autos, de invisibilização
e de silenciamento.
Mariana Raupp (2005), nesse norte, critica como os “operadores do direito” não
problematizam o fato das prisões ocorrerem frequentemente em determinadas regiões da
cidade e com base nos mesmos padrões de abordagem policial. A reflexão feita pela socióloga
converge com o etiquetamento geográfico que eu pude observar durante as audiências.
Essa categoria era explicitada quando a localidade onde ocorreu a prisão ou a região
em que o custodiado habitava eram pontos acionados pelos juízes em suas decisões e também
nos seus posicionamentos externados durante as nossas entrevistas. Inclusive, eles,
explicitamente, os utilizavam como argumento para justificar a “necessidade de garantia da
ordem pública” e para distinguir se o crime seria de tráfico de drogas ou de porte para consumo
pessoal.
Assim, como defendeu Raupp, esses discursos apontam para a seletividade na justiça,
principalmente nos casos relacionados aos usos de drogas, possuindo eficácia simbólica para
legitimar a criminalização das classes populares (RAUPP, 2005).
Apesar do meu interesse em poder fazer recortes de classe em minha pesquisa para
poder trabalhar melhor como essas distinções se apresentam a depender do grau de instrução e
da renda das pessoas presas em flagrante por crimes de tráfico de drogas, das onze audiências
que pude assistir, todas foram de custodiados que se autodeclararam pobres.
Nenhum deles possuía emprego formal, renda fixa, curso técnico e apenas um deles
havia concluído o ensino médio. Quatro deles afirmaram sequer serem alfabetizados. Ainda
mais expressivo foi notar que todos aqueles que tiveram a prisão preventiva decretada
habitavam em regiões categorizadas como “violentas” na perspectiva dos juízes e dos
promotores110 e, geralmente, reconhecidas sob o “domínio” de alguma facção criminosa.
A audiência de custódia Ítalo, narrada no tópico 3.3, é um exemplo importante de
como os marcadores geográficos são acionados na construção da percepção sobre os fatos.
Durante a sua fala em audiência, Ítalo alegou estar sentado na calçada da sua casa quando foi
abordado pela polícia que o prendeu e atribuiu a ele a posse de 19,58 gramas de cocaína, uma
110 Também lamento não terem ocorrido durante todo o meu período de campo audiências em que as custodiadas
fossem mulheres, o que iria possibilitar uma análise de gênero e ainda mais interseccional.
169
munição, um rádio comunicador, uma balança e 3 capas para armas .38 encontradas em um
beco que ficava próximo a sua residência.
Apesar de Ítalo afirmar que aquele beco não fazia parte da sua casa e de tentar apontar,
inclusive mediante o uso de desenhos, que ele estava localizado do outro lado da rua, a
promotora pediu a homologação do flagrante e decretação da prisão preventiva, argumentando
que a postura do custodiado ao fugir da polícia demonstrava que ele tentava se evadir da
responsabilidade e que apesar do material não estar dentro da casa dele, estava nas
“imediações”.
O juiz concordou com os argumentos lançados pela promotora e, após desligar as
câmeras, ainda frisou que eles deveriam ter “atenção em dobro quando o crime ocorre nesse
tipo de comunidade.”
O fato de Ítalo residir próximo a um local em que havia comercialização de drogas foi
decisivo para a compreensão do juiz de que os materiais encontrados pela polícia naquele
espaço a ele pertenciam, malgrado ele afirmar, reiteradamente, que as drogas sequer estavam
na sua residência.
Ao analisar o termo dessa audiência, é sintomático perceber como todo o debate
relativo a localização das drogas foi totalmente ocultado do teor daquele documento, que
também não fez menção a fala de Ítalo no que concerne aos tiros dados pelos policiais como
forma de obrigá-lo a dizer que as drogas pertenciam a ele. No tópico em que deveria ser
transcrita a sua fala, estavam "colocadas a termo” apenas as seguintes palavras:
Alegações do autuado: Disse ter sofrido agressões por parte dos policiais
que efetuaram a sua prisão e que realizou o exame de corpo de delito.
Na parte relacionada a manifestação da Defesa que, oralmente, também ressaltou que
não haviam indícios suficientes de autoria em razão dos objetos não terem sido encontrados
em sua residência, resumiu-se:
Manifestação do Advogado: Requereu o relaxamento da prisão, por não
estarem presentes os requisitos do flagrante. Na hipótese de homologação do
flagrante, requereu a concessão da liberdade provisória mediante a aplicação
de medidas cautelares, tendo em vista a primariedade do autuado, ter o mesmo
residência fixa e trabalho definido. (Grifos originais do documento)
A decisão do juiz não fez qualquer menção ou deu qualquer encaminhamento as
alegações de agressão ditas por Ítalo. Quanto a fundamentação sobre a homologação do
flagrante e a determinação da prisão preventiva sintetizou:
170
No caso dos autos, os elementos de prova - prova documental e testemunhal -
demonstram a materialidade delitiva, mormente termo de exibição e
apreensão da droga encontrada no interior da residência do flagranteado,
acostado aos autos em folha não numerada; além do laudo preliminar de
constatação, também juntado aos autos. Presentes também indícios suficiente
de autoria.
Malgrado a quantidade de droga apreendida não seja grande (três pedras de
crack), os outros objetos encontrados na residência do autuado, quais sejam
uma balança de precisão; diversos saquinhos de dindim, cerca de R$550,00
(quinhentos e cinquenta reais) fracionados; além de diversas munições de
distintos calibres; revelam indícios de que ITALO estava guardando drogas
para comercialização.
Ressalto, também, que o autuado é reincidente, pois está com três processos
de execução penal ativos (extrato anexado aos autos), embora em situação de
"suspensos" (não consta informação do motivo da suspensão).
A prática do tráfico e comércio de substâncias entorpecentes é suficiente
para prejudicar a ordem pública, requisito autorizador do decreto da
custódia preventiva.
Diante do exposto, converto a prisão em flagrante de ITALO em prisão
preventiva, nos termos dos artigos 310, II, 312 e 313, inciso I, todos do Código
de Processo Penal. (Grifos sublinhados originais do texto e grifos em negrito
acrescidos) (Nome do custodiado substituído).
Vê-se que não houve qualquer discussão na fundamentação sobre os argumentos
esposados pela defesa e pelo próprio custodiado. Ao revés, foi escrito, simplesmente, que a
droga havia sido encontrada “na residência do autuado” e que, “apesar da pequena quantidade
encontrada, a existência de outros materiais revelava indícios de que ele estava guardando as
drogas para fins de comercialização”.
Outrossim, foi apontado que a prática do tráfico já era suficiente, “por si só”, para
prejudicar a “ordem pública”, não explicando como o indivíduo e o caso em concreto influem
na construção dessa categoria e vinculando-a ao próprio tipo penal. Esse tipo de fundamentação
generalizante cria uma perigosa naturalização em uma categoria que já é demasiadamente
aberta e sujeita a discricionariedades.
Portanto, é possível problematizar que os processos de “construção da verdade”
apresentados nos termos de audiência pouco revelam sobre as narrativas produzidas pelos
custodiados e por sua defesa, não havendo também análises minimamente técnicas sobre os
efeitos práticos que a quantidade de drogas apreendida poderia provocar para a sociedade ou
para o próprio indivíduo.
Esse aspecto também é observado e problematizado por Fonseca (2008) ao criticar
que:
[...] a tendência do campo jurídico brasileiro é construir o seu saber de forma
descontextualizada e tornar ocultas e implícitas as representações sociais que
171
informam as práticas jurídicas. Por esta razão, tais categorias passam a ser
naturalizadas e mecanicamente reproduzidas sem reflexão consciente e sem
explicitação. Não aparecem sequer para os operadores do campo de forma
explícita, de maneira que eles mesmos naturalizam suas práticas e não sabem
explicá-las, na maior parte das vezes, a não ser por um discurso justificador,
que não leva à compreensão das normas reguladoras do sistema nem à
conseqüente normalização da sociedade, ou seja, dos jurisdicionados.
(FONSECA, 2008, p. 45-46)
Importante destacar, nesse sentido, que durante as audiências que eu acompanhei, a
quantidade de substâncias apreendidas era muito pequena. Sendo a maior delas a apreensão
mencionada na audiência de Renato, onde foram encontrados 133 gramas de maconha em sua
residência. Contudo, os juízes e promotores sempre justificavam, durante as entrevistas, que a
quantidade de drogas não era um elemento a ser analisado isoladamente e que a definição sobre
a traficância estava vinculada a outros fatores.
Ocorre que apesar desses “outros fatores” serem expressos oralmente durante as
entrevistas, nos termos de audiência pouco, ou nada, se discorria sobre eles, fazendo, no
máximo, menção a outros objetos apreendidos como saquinhos de dindim (também chamados
de sacolé), cédulas de dinheiro (às vezes referidas como “dinheiro trocado”), papéis de seda
(às vezes referidos como papelotes) e balanças de precisão.
Entrementes, a “reincidência” na prática de crimes, que não necessariamente eram de
tráfico, era um recurso muito presente durante as fundamentações, sendo mais fácil de ser
apontado pelo seu caráter objetivo, em que se bastava fazer menção a lista extraída pelo próprio
Sistema de Automação Judicial.
Vê-se que, ao avaliar tanto a região que o custodiado habita, quanto a sua “ficha”,
utilizando esses argumentos para embasar o posicionamento sobre os indícios de traficância e
sobre a necessidade de manutenção da prisão, o julgador está dando enfoque as “etiquetas” que
pairam sobre aquele indivíduo e não sobre a eventual conduta que se conformaria a um crime,
o que revela o deslizamento de sentido da punição pelo crime cometido para a “punição do
sujeito porque criminoso contumaz” (MISSE, 2010, p. 19).
Abreu (2019) em sua pesquisa nas audiências de custódia no Rio de Janeiro,
problematizou a inversão da “sensibilidade” esperada pelo contato pessoal nesses espaços,
criticando que ela também pode ser usada para reforçar preconceito dos operadores contra
determinados segmentos da população, quando veem seus marcadores visualmente.
Retomando os ensinamentos de Becker (2008), percebemos como a categorização do
desvio está relacionada a forma como a pessoa do julgador etiquetará o suposto desviante.
Logo, o “desvio” ou o “crime” não se referem a uma mera subsunção de um fato a uma norma,
172
mas a uma consequência de rótulos colocados sobre indivíduos, que são construídos através de
valores que circundam o julgador e a cultura jurídica a qual ele se insere.
Apesar da construção interacionista que expõe esses rótulos ficar ainda mais nítida
em uma análise oriunda da observação presencial das relações, das vozes e das dinâmicas
externadas nas audiências de custódia, o estudo dos seus registros oficiais, como os termos de
audiência de custódia, conforme aqui apontado, também são veículos importantes no desvelar
das etiquetas criadas pelas relações de poder, que deliberam o que é importante ser ouvido, ser
assimilado, ser visibilizado e ser registrado.
Seja através do realce negativo a determinados marcadores que pairam sob o
indivíduo, seja pela síntese da sua voz ou ainda pela valorização da reprodução da palavra
escrita advinda da delegacia em detrimento daquelas que se presencia.
Todo esse conjunto de balizas, de molduras, de realidades e de restrições materiais e
simbólicas revelam relações e estruturas ainda verticalizadas, que separam, silenciam e
segregam para além de grades físicas, também encaixotando, enlatando, conteineririzando e
encarcerando corpos e mentes.
4.3 ATRÁS DAS GRADES FÍSICAS, MATERIAIS E SIMBÓLICAS
Quantas grades haviam para além das barras de ferro que compunham os portões das
duas pequenas celas da Central de Flagrantes? Durante as minhas visitas, pude ver e sentir
elementos que caracterizavam balizas, barreiras, freios e cercas como constituidores simbólicos
e materiais de todo aquele cenário, dos seus personagens e dos discursos ali reproduzidos.
E, assim, tornou-se, no mínimo, irônico lembrar que a palavra “custódia” significava
proteção, segurança, responsabilidade e guarda de corpos. Corpos estes que costumavam chegar
em audiência já enquadrados pelo senso comum como corpos culpados, desimportantes e, por
isso, merecedores de punição e não passíveis de luto (BUTLER, 2015, p. 81), ainda que sequer
tivessem sido acusados ou julgados judicialmente111.
Apesar dela ser o sentido oficial do termo “custódia”, a palavra “segurança” não foi
mencionada pelos interlocutores custodiados em qualquer momento das nossas conversas,
111 Após as audiências, através das redes sociais Facebook e Instagram, eu acompanhava as fotos dos custodiados
expostas em publicações feitas por perfis dedicados a “notícias policiais”, parte dessas fotos parecia ter sido tirada
na própria delegacia ou no momento da ocorrência, expondo o rosto e o nome da pessoa presa, atribuindo a ela a
autoria do crime e enaltecendo a atividade policial em razão da “captura”.
173
estando presentes, noutro norte, expressões que revelavam desestabilização física e emocional
como o medo, a fome, o frio, o anseio da morte e até mesmo o desejo por ela.
Por motivos distintos, aqueles que, mais do que “meros corpos”, ali representavam
posições – como os juízes, os promotores e os advogados – também afirmaram não se sentirem
seguros naquele ambiente. Seja pelos policiais que os escutavam à espreita das portas e das
janelas; pelas salas apertadas; pela estrutura do prédio que para aquela finalidade não foi
pensada; pelas câmeras de segurança estrategicamente localizadas; pelo banheiro em frente a
cela em que ficavam os custodiados; por não ser o seu habitual espaço de trabalho; por aquela
equipe de servidores não ser a que eles estavam acostumados; ou pelo medo de contraírem
doenças durante aquele breve contato.
A sensação de liberdade minorada e de vulnerabilidade, sentidas em diferentes
proporções pelos meus interlocutores, e até por mim mesma enquanto pesquisadora, revelaram
como as “grades” eram plúrimas, relacionais e desproporcionais a depender das posições ali
ocupadas e dos direitos que estavam sofrendo restrições.
Não pretendo fazer qualquer comparação desarrazoada entre a experiência de quem
está atrás de grades físicas, que impositivamente impedem a locomoção dos seus corpos, com
qualquer outra restrição que seja menos invasiva do que essa. A intenção, na verdade, é abrir
espaços para reflexões sobre como as audiências de custódia, criadas a partir de um ideal
desencarcerador, podem também reproduzir estruturas, pensamentos e moralidades
hegemônicas que silenciam e aprisionam corpos e mentes.
Destarte, considerando que o materialismo e o simbolismo não são perspectivas
excludentes entre si, mas observações e interpretações que se somam para uma análise mais
aprofundada sobre um fenômeno, percebi como as limitações impostas pelas condições
materiais e históricas também eram complementadas pela forma como os indivíduos criavam,
interagiam, reagiam ou paralisavam diante dos símbolos e dos aspectos intangíveis ali
presentes.
Tratar sobre as grades materiais e simbólicas – que são parte de um mesmo todo –
também não pode limitar-se a fazer discussões sobre divergências teóricas ou impasses
doutrinários, sendo necessário, na verdade, contrastar a teoria normativa e doutrinária com as
práticas envolvidas nas audiências à luz das representações que lhes dão sentido.
Para dar início a essa discussão, é preciso rememorar que, em uma concepção marxista,
as bases materiais – como as relações de produção, o acesso aos instrumentos e as forças
produtivas – constituiriam a "infraestrutura" de uma sociedade, que, por sua vez, exerceria
influência direta na "superestrutura", correspondente as instituições jurídicas, políticas e
174
ideológicas. Ao somarmos as reflexões sobre poder explanadas por Gramsci (2010), não haveria
uma cisão bem delimitada entre essas categorias, ao passo que entre elas existe um vínculo
orgânico e dialético, que, mais do que matéria, produz “indivíduos”, que moldam e são
moldados pelos instrumentos jurídicos e aparelhos privados de hegemonia, difusores da
ideologia dominante.
Assim, para Gramsci (2010), a hegemonia se estenderia ao conjunto das relações
sociais, não podendo ser entendida apenas na esfera econômica, cultural ou política, mas no
processo social como um todo. Esse processo social, construído através de relações e interações,
também possui definições simbolicamente atribuídas, consoante ensinou Herbert Blumer
(1969), afirmando que elas se encontram na medida em que as pessoas interpretam e definem
as ações alheias, dando-lhe respostas baseadas nos significados que outorgam às mesmas.
Em sua coletânea de obras intitulada “Desvendando evidências simbólicas”, Oliveira
(2018) ensina que a dimensão simbólica é uma experiência igualmente empírica e concreta,
sendo “passível de apreensão com a mesma objetividade das evidências materiais, mas à qual
o antropólogo só pode ter acesso por meio das representações, visões de mundo ou da ideologia
(na acepção dumontiana) da sociedade estudada” (OLIVEIRA, 2018, p. 23).
Essa construção de significados, permeada por relações e disputas de poder, pode ser
observada na forma como os documentos e ritos estatais são organizados, nas narrativas ali
priorizadas, no confronto argumentativo e em como as moralidades jurídicas são externadas.
A partir dessa perspectiva, aqueles que ocupam os espaços institucionais de poder,
legislando sobre o que deve ser criminalizado e julgando quem se encaixa, ou não, em
determinada conduta criminosa, exercem também um poder classificatório e etiquetador
(BECKER, 2008). Quando fazemos um recorte da criminalização das drogas e das prisões em
flagrante por crimes de tráfico de drogas, essas nuances ficam ainda mais evidentes, pois
conforme foi abordado nos tópicos anteriores, nos discursos – orais e transcritos – dos juízes e
promotores são facilmente identificáveis os marcadores territoriais, econômicos e raciais,
compondo, assim, parte das grades que circundam os corpos dos indivíduos que são
enquadrados como “traficantes”.
É partindo desse norte que é preciso desvelar como ocorrem os mecanismos de
dominação a partir da lógica simbólica que reproduz “consensos sociais”, nos termos em que
ensina Jessé Souza (2015, p. 145). Alguns desses consensos foram observados na interpretação
dada pelos juízes e promotores sobre a prisão como forma de “garantia da ordem pública”. Sem
um maior aprofundamento do que ela representaria concretamente, elementos relativos à
reiteração criminosa e ao território em que ocorreu o flagrante eram acionados como
175
justificativas capazes de indicar a necessidade de manter aquela prisão durante o curso do
processo.
Acionando a teoria da violência simbólica de Bourdieu (1989), que seria aquela
imposta dissimuladamente sob pálio de uma legitimidade estatal e potencialmente capaz de
naturalizar e reproduzir desigualdades, podemos pensar como essas interpretações também
contribuem com a necessidade de assentar a “cada um em seu devido lugar”, ainda que se
valendo de narrativas de suposta “igualdade”.
Se parte da população não possui acesso a esses recursos e, quando consegue, ainda
assim é moldada por processos de reprodução simbólica da hegemonia, entramos em uma
espiral de desigualdades que só pode ser rompida através do seu desvelamento, da crítica e da
resistência transformadora.
Por essa razão, ainda que fruto da luta de diversos movimentos, grupos, organizações
e partidos que atuam em defesa dos direitos humanos e pleiteiam políticas desencarceradoras,
vê-se que, na prática, as audiências de custódia, depois de instituídas, ainda não foram capazes
de transformar a lógica vertical e os discursos punitivistas (KANT DE LIMA, 2008) que ainda
pairam dentro de um poder judiciário majoritariamente branco e distante da realidade social
daqueles que são levados a “cadeira do custodiado”.
Problematiza-se, nesse sentido, que a Central de Flagrantes, devido ao caráter perene
e transitório com que o custodiado nela permanece, não se encaixa completamente na lógica de
uma instituição total goffmaniana, que seria simbolizada pelo isolamento duradouro e pelas
barreiras à relação social com o mundo externo, sendo capazes de moldar a subjetividade dos
indivíduos (GOFFMAN, 2005, p. 16). Ainda que não se assemelhe a essa perspectiva
totalizante, essas audiências também apresentam elementos que limitam o custodiado no
esquema físico, como celas com portas gradeadas; utilização constante de algemas;
acompanhamento físico de policiais durante as audiências e contínua atenção por parte deles
nos momentos em que são realizadas as entrevistas com os advogados, defensores e, inclusive,
com os voluntários da Pastoral Carcerária e com os pesquisadores. Vê-se, assim, que a forma
como as audiências de custódia são materializadas, também refletem esquemas de controle
sobre corpos, mentes e vozes.
Ainda fazendo uso das reflexões de Goffman (1976), é preciso considerar que apesar
das audiências não serem dramatizadas teatralmente como em um tribunal do Júri, elas também
podem relevar máscaras e performances, roteirizadas ou não, consoante os papéis ali
representados. Esses roteiros ficavam em realce nas falas quase que mecanizadas dos juízes que
repetiam o mesmo esquema de apresentação das audiências, de confirmação da qualificação do
176
custodiado, havendo uma variação apenas na forma como eram feitas as perguntas relacionadas
a forma como ocorreu a diligência policial.
Sobre as máscaras colocadas pelos agentes do Estado para poderem assumir seus
respectivos papéis, Goffman pondera que elas são corolários das “prisões da vida social”,
havendo uma introjeção desta forma de controle e que, "mesmo que alguns possam gostar de
suas celas" (GOFFMAN, 1976, p. 10), permanecem modelados pela própria imagem atribuída
a si, sendo os próprios algozes e carcereiros. Assim, o ato de “perder a face”, compreendido
como sair do papel ou desmontar sua fachada, foi observado por uma das juízas que, durante a
nossa entrevista respondeu com bastante naturalidade uma das minhas perguntas e logo em
seguida pediu para alterar de forma a parecer que foi “uma resposta dada por uma juíza”.
Essa mudança de postura também foi observada na forma como os promotores, juízes
e advogados interagiam entre si antes do início formal da audiência, durante e após. No
momento em que o rito formal ocorria, presenciei embates es mais acalorados, divergências
teóricas sendo lançadas, campos de disputa pela palavra e o controle das manifestações dos
advogados e defensores que sempre causava uma sensação de mal estar. Após as audiências
serem finalizadas, todo a atmosfera tensa dava lugar a conversas amenas sobre o clima, o
trânsito e até mesmo sobre a família de cada um deles.
Na fala de alguns promotores foi possível observar também como eles adotavam a
fachada da própria instituição ao responderem as perguntas dizendo frases como “o Ministério
Público considera...”, “seguindo a linha adotada pelo Ministério Público...” e abraçando
categorias como “na dúvida, nós temos que agir in dubio pro societate (em defesa da
sociedade)”. Essa postura revelava a existência de um pensamento modelado entre os membros
daquele órgão. Contudo, no exercício do seu dever constitucionalmente atribuído de controlar
o exercício da atividade policial, o mesmo engajamento pelas atribuições institucionais não foi
presenciado na mesma intensidade. Inclusive, as perguntas relativas a ocorrência de violência
durante as abordagens eram feitas pelos juízes e não pelos promotores, que costumavam
permanecer calados durante essa fase da audiência.
A única promotora que fez observações mais aprofundadas sobre a atuação policial,
tecendo críticas a abordagem feita durante a prisão do custodiado Sidney (tópico 3.4), ainda
sentiu a necessidade de justificar a sua conduta aparentemente fora da curva, dizendo: “Sei que
todos ficam chateados quando o MP pede relaxamento de prisão, mas no Estado de Direito a
gente tem que seguir a lei e o policial tem que saber fazer o trabalho da forma correta.”
Esses exemplos revelam que existem pensamentos pré-moldados que influenciam no
comportamento das instituições para além da mera aplicação normativa. A lei, inclusive, ao
177
contrário da sua percepção burocrática e restritiva, acaba sendo acionada, nesses espaços, pelos
advogados e defensores também como um instrumentos na luta pela garantia dos direitos das
pessoas presas. Todavia, mesmo com a implantação de medidas desencarceradoras no código
de processo penal, como a obrigatoriedade de analisar primeiramente a possibilidade de
aplicação de medidas cautelares diversas, os juízes permanecem seguindo a mesma lógica
anterior a essas mudanças. Utilizando a prisão como regra e as demais cautelares como exceção.
Em uma análise mais detalhada dos termos de audiência, isso ficava ainda mais claro
através da reprodução sistemática de conceitos abertos como “garantia da ordem pública” e da
escassa, ou inexistente, fundamentação relacionada a impossibilidade de conceder medidas
menos gravosa, como as cautelares diversas.
Essas grades que mantinham os juízes presos nas concepções punitivistas, foram
duramente criticadas pelos advogados nas entrevistas, que afirmavam que não adiantava mudar
a lei, ou implantar as audiências de custódia se os juízes permanecessem julgando conforme a
ótica anterior. Um dos entrevistados, inclusive, ressaltou a sua opinião de que as audiências
eram “mera formalidade”; três dos defensores ressaltaram que o fato de alguns juízes não terem
experiência na área criminal prejudicava o resultado das audiências e um deles ressaltou que o
compromisso não parecia ser com a lei, mas com a satisfação da população por “resultados e
prisões.”
Sobre os crimes relacionados ao tráfico de drogas, os defensores ressaltavam que eram
os mais permeados por estigmas ou pré-julgamentos, sendo ouvido de um deles que “os juízes
sempre acham mais prudente manter preso um provável traficante do que garantir a liberdade
de um provável usuário. A lógica parece ser inversa”.
A mencionada “lógica inversa” se refere ao fato dos juízes silenciarem diante dos
princípios constitucionais da presunção de inocência e do seu corolário da excepcionalidade da
prisão, estudada nos bancos das faculdades de direito através da expressão em latim “ultima
ratio”112.
Marcelo Neves, ao estudar sobre a constitucionalização simbólica, critica a ausência
de materialidade nas normas constitucionais, que são “deturpadas sistematicamente pela
pressão de conformações particulares de poder” (NEVES, 2008, p.243). Assim o chamado
“Estado Democrático de Direito” seria uma mera fachada para legitimação de determinados
grupos em detrimento de outros.
112 O Código de Processo Penal, em seu artigo 282, § 6º, dispõe: “A prisão preventiva será determinada quando
não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar”.
178
Vê-se, assim, que a “cultura jurídica” e suas sensibilidades não são moldadas,
necessariamente, pelo conjunto de normas escritas em uma folha de papel (LASSALLE, 2005),
mas pela forma como o pensamento dominante se manifesta, exercendo, assim, um processo de
reprodução simbólica do controle social (BOURDIEU, 1989).
O punitivismo, nesse sentido, é um reflexo desse controle e da forma como são
priorizadas decisões, discursos e atuações que limitam os direitos daqueles considerados “fora
da ordem”. Talvez por isso, seja tão autoexplicativo para alguns agentes fazerem uso da
expressão “garantia da ordem pública” como fundamentação da prisão, sem a necessidade de
motivarem com maior aprofundamento o que isso significa.
Os juízes, que, por sua vez, se sentem pressionados com as metas estabelecidas pelo
Conselho Nacional de Justiça e com a constante cobrança por uma atuação mais célere, acabam
aderindo a um ideal de eficiência semelhante ao de uma “Corporação dentro do Mercado”
(SANTOS JÚNIOR, 2017, p. 56). Contudo, esse ideal de eficiência e produtividade, quando
levado ao campo jurídico criminal não parece ser o mesmo do que aquele que cobra sentenças,
despachos e decisões de forma mais rápida.
Sob uma sensibilidade jurídica punitivista, a eficiência do sistema de justiça criminal
não é medida pelo número de documentos produzidos, mas pelo número de prisões decretadas.
A contínua reprodução desse discurso e dessa crença, que tem forte apelo popular em razão da
crise na segurança pública, faz com que os agentes a repliquem e a tomem como legítima, em
uma relação cíclica que ocasiona a violência dissertada por Bourdieu (1989).
Essa violência simbólica é também encontrada na forma como as instituições decidem
limitar as informações e modular os tipos de saberes que cada um poderá ter acesso, estancando
a “ordem social” em suas próprias estratificações.
Em campo, pude perceber as grades entorno do acesso ao conhecimento e em como
ele se tornava um capital intelectual monopolizado, a partir da constatação de mitigações que
ocorriam antes, durante e depois das audiências de custódia.
Nesse diapasão, as pessoas custodiadas chegavam até a central de flagrantes sem
compreender a finalidade da audiência de custódia e quais os direitos que seriam ali discutidos.
Ainda que os juízes, advogados e defensores tentassem introduzir algumas explicações, a
linguagem inacessível e a tensão provocada por aquele momento dificultavam a compreensão.
Isso ficava evidente quando muitos dos interlocutores, durante as nossas entrevistas,
reafirmavam não terem compreendido o evento e apresentavam dúvidas que mostravam uma
confusão com as audiências de instrução e de julgamento.
179
Outrossim, quando os juízes determinavam que os policiais retirassem os custodiados
da sala, logo após serem encerradas as perguntas, cerceava-se o direito deles assistirem o
restante das suas próprias audiências, não acompanhando os debates e nem escutando
presencialmente o teor da decisão que tinha a sua liberdade em mãos.
O conhecimento sobre o seu resultado ocorria, em regra, durante a intimação feita
pelos oficiais de justiça em frente às celas. Sem fazer uma leitura prévia, os custodiados
assinavam ou grafavam a sua digital na última folha do termo de audiência, e permaneciam
focados em ouvir diretamente do oficial o resultado pragmático: se eles permaneceriam presos,
ou não.
Entre as “grades estruturais”, relacionadas a parte física do prédio, estavam os relatos
dos advogados que criticavam a impossibilidade de conversarem com seus clientes de forma
privada na sala da OAB em razão do seu tamanho e da porta ter que permanecer aberta. Elas
eram percebidas também nas falas dos defensores que afirmavam que o barulho e olhares
emitidos pelos policiais por trás da janela de vidro da sala da DPE atrapalhavam e intimidavam
o atendimento. E também eram sentidas no pequeno espaço destinado a sala de audiência, que
impossibilitava o trânsito de forma segura, o conforto e a presença de todos aqueles
eventualmente interessados em assistir.
Ainda nesse norte, é preciso destacar as normas que restringiam que apenas um
acompanhante de cada custodiado pudesse adentrar ao prédio da central de flagrantes, causando
uma concentração de pessoas do lado exterior, ansiosas por alguma notícia. Dentre as limitações
impostas a esse núcleo, também havia a necessária autorização do juiz para que o acompanhante
pudesse assistir a audiência de custódia, sendo totalmente vedada a possibilidade de interação
com o custodiado, sob a justificativa do prédio não dispor de um espaço considerado adequado
para isso. Contudo, impera lembrar que mesmo sem o “espaço adequado”, os custodiados
interagiam com seus advogados, com os voluntários da pastoral carcerária ou com eventuais
pesquisadores, como eu, que podiam entrevistá-los em frente as suas celas.
Ainda no âmago das limitações existentes quanto a estrutura, impende frisar que um
advogado, uma defensora pública e um dos policiais com quem eu dialoguei, destacaram a
necessidade da Central de Flagrantes dispor de uma equipe psicossocial para atender os
custodiados e seus familiares, dando orientações em um tenso momento de transição entre a
liberdade e a prisão.
Os profissionais que fizeram essas observações, reconheciam que não tinham
arcabouço técnico para lidar com as emoções e as consequências sociais e psicológicas que a
prisão pode gerar tanto na pessoa presa quanto na sua família. Eu pude sentir um pouco dessa
180
incapacidade durante a minha entrevista com Renato (Ver tópico 3.1), em que ocorreram
debates sensíveis sobre o seu desejo pela morte, tema com o qual eu não tinha formação
suficiente para lidar.
O policial com quem conversei nesse mesmo dia, afirmou já ter assumido esse papel
de escuta dos sentimentos dos custodiados diversas vezes e lamentou o fato de não haver um
acompanhamento profissional também para eles, enquanto categoria que lida, diariamente, com
pessoas tensas, ansiosas, depressivas e estressadas.
Outrossim, a partir da implantação de um núcleo multidisciplinar, poderiam ser
possibilitados encaminhamentos para o mercado de trabalho, a orientação e encaminhamentos
para tratamentos de saúde, e ser trabalhada a questão da dependência do uso de drogas em uma
perspectiva de redução de danos e de empoderamento do usuário no exercício do seu controle.
Contudo, é preciso reconhecer que não basta incluir mecanismos assistenciais e humanitários
se eles apenas espelharem o que há de mais tradicional e conservador dentro daquela estrutura.
É por essa razão que as audiências de custódia precisam ser transformadas em uma
perspectiva de concretização de garantias fundamentais e de promoção do direito à voz. Com
a licença poética, a canção de Emicida (2019), utilizada na epígrafe dessa dissertação, clama
“permita que eu fale, não as minhas cicatrizes. Achar que essas mazelas me definem é o pior
dos crimes [...] é fazer nós sumir”
Ao tratar da importância da materialização desse direito, Hooks (2019) assevera que
é por meio da fala e do erguer da sua voz que aqueles que são historicamente oprimidos podem
transitar da posição de objetos para sujeitos e só assim, verdadeiramente, se libertarem.
Talvez seja exatamente por esse motivo que as audiências de custódia ainda
incomodam tantos setores que preferem manter as estruturas verticalizadas e o poder de vigiar,
silenciar e punir aqueles em posição de subalternidade. E é por isso que eles se engajam tanto
em obstaculizar as mudanças que poderiam ser realmente capazes de alterar o núcleo duro do
direito e a forma como ele é percebido pelos seus agentes (BERMAN, 2006).
Por fim, nessas interações mediadas por grades e olhares vigilantes, eu também me
sentia limitada por barreiras e obstáculos. Ao longo do processo de escrita desta dissertação,
várias grades se ergueram impositivamente sobre todos os pesquisadores do país e, em especial,
sobre os estudiosos das humanidades e das ciências sociais. Me vi diante de um projeto político
que cerceia, engaiola e estratifica o acesso ao conhecimento, através da perseguição daqueles
que compõem os seus principais centros de irradiação.
Contudo, os ataques que o campo das humanidades e os seus agentes têm sofrido
provoca a reflexão de que, em tempos de silenciamento através da política do medo, impende
181
que provoquemos resistências através das nossas pesquisas. Como bem refletiu Haraway,
“precisamos do poder das teorias críticas para viver em significados e corpos que tenham a
possibilidade de um futuro” (HARAWAY, 1995, p 16).
Assim, percebi que entre os grilhões aqui relatados, não eram só os que encarceravam
corpos que deixaram ou revelam marcas. Para que possamos desestabilizar o punitivismo,
questionar a criminalização das drogas e seus reflexos diante dos processos de criminalização
da pobreza, precisamos romper com as grades ainda mais emblemáticas: as que não são
facilmente notadas. Traiçoeiras, são aquelas que condicionam nossas mentes a aceitarem como
natural tudo aquilo que é de hábito, mas como bem poetizou Bertolt Brecht (1982), “em tempo
de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade
desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar.”
É por essa razão que a concretização de direitos através da implantação das audiências
de custódia só se efetivará quando caminhar conjuntamente às práticas críticas que promovam
o conhecimento emancipatório, diminuam as desigualdades e oportunizem que as normas não
sejam construídas e aplicadas apenas conforme os interesses daqueles que ocupam posições
hegemônicas.
Sendo, portanto, necessárias e urgentes as abordagens desconstrutivistas, mantendo a
coragem, a criatividade e a meta-crítica em face das ameaças, da mecanização e da
monocromia, para que seja libertadora a nossa epistemologia, mesmo enquanto perdurar a
pressão e opressão ora em ascensão.
182
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Colocar um ponto final ou traçar uma conclusão após um campo que se revelou plural
e em constante transformação parece algo cristalizador que não se encaixa na fluidez que eu
senti ao longo das minhas visitas a campo, nos influxos políticos e jurídicos que o permearam
e até mesmo durante o meu processo de escrita.
Então, sem propor conclusões deterministas, irei traçar considerações que, ao invés de
fecharem ideias, buscarão incentivar novos olhares e novas pesquisas sobre os institutos que se
propõem a concretizar direitos humanos, como as audiências de custódia, questionando as suas
condições de existência vigentes e asseverando que em tempos de tantas mitigações, isso se faz
necessário e urgente.
Apesar da dureza do Direito, que dificulta a assimilação de novos institutos e de
posturas distintas ao modus operandi já dogmatizado, a partir da pesquisa de campo e do olhar
antropológico, podemos sentir que há constantes disputas por essas transformações e que não
há uma única sensibilidade jurídica, mas várias, a depender da posição e da perspectiva
ocupada.
Essas disputas, ainda distantes da sonhada dinâmica comunicativa habermasiana que
preze por uma ética discursiva em prol da conciliação de interesses supostamente
universalizáveis, são permeadas por desigualdades estruturais que obstaculizam essa almejada
horizontalização dos espaços de poder.
Essa estratificação fica ainda mais evidente no campo jurídico criminal, em razão da
negação cidadã àqueles que se tornam o seu principal público alvo. Invisíveis para as políticas
sociais, inaudíveis para as suas demandas, excluídos dos eventos e audiências públicas que
debatem a realidade da segurança e do sistema carcerário. Mas bem visíveis e marcados durante
as ações policiais e quando sentados às cadeiras das audiências de custódia ou de instrução, que
decidirão pela sua liberdade ou prisão.
Reconhecendo essa seletividade, busquei apresentar, ao longo dessa dissertação, parte
do arcabouço histórico e teórico que embasaria e contextualizaria os dados, sempre alertando
que a história e a ciência também são permeadas por relações de poder, que precisam ser
trabalhadas criticamente. Daí reside a importância de pensá-las inseridas em uma relação
dialética com as superestruturas e com discursos hegemônicos que as moldam e são moldados
por elas.
Entrementes, ao discorrer sobre a construção da racionalidade punitiva no Brasil e do
seu sistema de justiça criminal, foi preciso também desvelar as mazelas democráticas que
183
circundam esse tema, sendo substancial compreender a que(m) serve o paradigma punitivista e
a consequente criação de leis e de políticas de segurança pública pautadas na lógica colonial e
neoimperialista de guerra, que é ainda mais sintomática quando afunilamos para o processo de
legitimação da guerra às drogas, que mascara um ataque voltado aos pobres e ocasiona, dia-
após-dia, a sua criminalização, que implica no genocídio da juventude negra.
Falar desse extermínio é um imperativo político e também epistemológico quando se
busca a construção de uma antropologia emancipatória. Essa categoria de genocídio, inclusive,
já tem ganhando reconhecimento até dentro dos Espaços de Poder, sendo adotada na CPI da
violência contra jovens negros e pobres no Brasil, realizada, em 2015, destinada a apurar as
causas, razões, consequências, custos sociais e econômicos da violência, morte e
desaparecimento dessa parte vulnerável da população (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2015).
A recente morte de George Floyd, em 25 de maio de 2020, por policiais nos EUA,
reacendeu o debate sobre racismo e violência policial a nível mundial. Mas, em uma realidade
ainda mais próxima, já resistia a luta pela memória de João Pedro Mattos (14 anos), de Marcos
Vinícios da Silva (14 anos), Maria Eduarda Alves da Conceição (13 anos), Agatha Félix (8
anos) e de Vanessa Vitória (10 anos), entre tantos outros que tiveram as suas vidas ceifadas em
abordagens policiais. Abordagens estas que tinham em comum, além da cor da pele das suas
vítimas, o fato de terem ocorrido em comunidades periféricas e de partirem de uma abordagem
de guerra, supostamente legitimada pelo “combate ao tráfico de drogas”.
O alerta é que não são as drogas que estão sendo exterminadas a partir dessa política,
são pessoas. É por essa razão que se torna tão caro pesquisar sobre a aplicabilidade das
audiências de custódia enquanto instrumento que, potencialmente, poderia ser utilizado no
embate a essa ótica beligerante, fiscalizando a atuação policial, coibindo a tortura, evitando
prisões arbitrárias e desnecessárias e otimizando a concretização de direitos humanos.
Sob esse lume, contextualizei o processo de implantação dessas audiências, falando das
lutas que permearam a sua regulamentação e das forças reacionárias que continuam reagindo
contra a sua existência. E foi em meio a esses cotejos que foram iniciadas as minhas vivências
na Central de Flagrantes do Município de Natal-RN, nos anos de 2016 e 2017, quando pude
realizar minhas primeiras pesquisas sobre a custódia.
Naquela época, analisei o conteúdo de 538 termos de audiências por crimes de tráfico
de drogas, ocorridas entre os meses de outubro de 2015 e abril de 2017, revelando um percentual
de encarceramentos acima dos dados globais divulgados pela Corregedoria de Justiça do TJRN.
Mas, para além de todos os dados estatísticos que pude coletar, travestidas pelas
formalidades exigidas, haviam vozes, histórias, relações e posições que estavam além daquelas
184
registradas pelas câmeras e/ou escritas nos documentos. Foi por essa razão que me propus a
um redirecionamento epistemológico e a retornar àquele espaço, que já não seria mais o mesmo,
porque eu também já não era mais a mesma.
Assumindo essa nova postura e metodologia, pude perceber que meramente estar
presente e olhar as audiências de custódia “de dentro para fora” não era suficiente para
compreender a sua dinâmica. Isso porque “do lado de dentro” também haviam múltiplos
ângulos que diferenciariam a análise a depender da posição ali ocupada, das sensibilidades
jurídicas adotadas e das relações de poder intrincadas em cada papel exercido dentro daquele
ambiente.
Por essa razão tive que reconhecer em que medida também atuavam as minhas próprias
lentes, transformando as minhas formas de olhar, de ouvir e de escrever. Consequentemente, as
novas interações e trânsitos naquele espaço passaram a produzir novos objetos de sentido. E
isso me fez perceber que as audiências de custódia não se limitavam à descrição do seu ritual e
ao que ocorria apenas na sala de audiência. Os bastidores eram também cenários e atores.
Logo, mediante uma descrição densa dos meus deslocamentos, demonstrei o meu
processo de percepção da não limitação espacial, documental e temporal das audiências de
custódia, bem como, das mudanças de postura dos seus agentes e das interações entre eles
antes, durante e depois do desligar das câmeras.
A partir desse estudo etnográfico foi possível refletir que, para além das estáticas
previsões normativas e regimentais, o campo se dinamizava conforme a condução dos seus
atores e das suas vozes ressoadas, exaltadas, cessadas e/ou silenciadas. Assim, as audiências
de custódia se revelavam nas sujeições e nas máscaras usadas durante as representações de
papéis institucionalmente atribuídos; nas sensações de fome, de impaciência, de frio, de
decepção e de medo; nos freios e nas grades que, mais do que vértices de metal, se erguiam no
âmbito material e simbólico, coexistentes naquele ambiente.
Esses eventos, que na teoria deveriam ser espaços de “audire”, ou seja, de “escuta”,
passaram, então, a se revelar também como campos de poder e de exclusões discursivas,
permeados por roteiros, hierarquias e por silêncios, sejam os voluntários ou os impositivamente
colocados.
Tratando-os como uma categoria de análise, identifiquei o silêncio como fruto das
imposições e limitações estruturais, percebido quando os custodiados se recusavam a falar sobre
certos assuntos com os seus defensores ou comigo em razão da estrutura do prédio, que não
repassava segurança, confiança e privacidade para que eles se comunicassem sem serem
ouvidos pelos policiais ali presentes. Identifiquei, outrossim, o silêncio ocasionado pelo medo,
185
que também podia ser permeado por ponderações e escolhas do próprio custodiado, sendo, neste
caso, um reflexo do silêncio como agência. Igualmente silenciadoras estavam ainda as
condições físicas relativas à fome, ao desconforto e ao frio, que prejudicavam a forma do
custodiado se expressar.
Também reprodutores de silêncios, haviam os abismos comunicativos ali presentes.
Eles evidenciavam as lacunas entre o linguajar rebuscado, técnico e restrito reproduzido pelos
juízes, promotores e defensores e a mitigada compreensão do custodiado e de sua família. Estes
dois últimos, assim como a maior parte da população, sequer possuíam informações suficientes
sobre a finalidade daquele espaço.
Esses abismos acabam por alienar os próprios destinatários do conhecimento da
titularidade dos seus direitos. Nesse âmago, se fez notar o lugar da linguagem na reprodução
das relações de poder, bem como os seus reflexos no ato de balizar, controlar e reduzir a voz
do outro “a termo”, a partir da escolha do que é relevante, ou não, a ser registrado nos
documentos oficiais.
A partir da comparação dos discursos produzidos oralmente e daquilo que passava a
ser registrado documentalmente, foi possível observar que os “termos de audiência” pouco
revelavam sobre as narrativas dos custodiados e da sua defesa. E na fundamentação e nas
análises técnicas praticamente não se mencionava os efeitos práticos que a quantidade de
drogas apreendida poderia provocar para a sociedade ou para o próprio indivíduo.
Sob o argumento da necessidade de “garantida da ordem pública”, eram apontados
elementos relacionados a “reincidência” e a “localidade do crime” – principalmente se esta era
uma área dominada, ou não, por alguma facção – revelando que as características dos
indivíduos e da sua região eram mais sopesadas do que o próprio ato em si.
Por essa razão, o “desvio” ou o “crime” não eram acionados como uma mera
subsunção de fatos à norma, mas como uma consequência de rótulos colocados sobre pessoas
e de um deslizamento do sentido da punição pelo crime, para a punição de sujeitos.
Esses elementos revelavam disputas de poder permeadas por múltiplas balizas,
barreiras, freios e cercas que passaram a ser observados como constituidores simbólicos e
materiais de todo aquele cenário, dos seus personagens e dos discursos ali reproduzidos, sendo
essas “grades” plúrimas, relacionais e desproporcionais a depender das posições ali ocupadas
e dos direitos que estavam sofrendo restrições.
Além das grades materiais que representam a falta de acesso às políticas sociais e as
legibilidades e ilegibilidades seletivas que as instituições provocam, haviam as grades
186
simbólicas presentes na assinatura de documentos sem leitura, nas vozes reduzidas, substituídas
e pressionadas e nas mentes aprisionadas sob uma cultura punitivista.
Essas grades simbólicas se materializavam ao redor do custodiado que, sem camisa,
tremia de frio em frente ao ar-condicionado, enquanto os demais vestiam paletós; na fome
sentida por aqueles privados de comer há mais de 24h; no pleito de ver sua família sendo negado
sob a justificativa que não havia estrutura naquele espaço; nas xícaras de café e nos copos de
vidro em que se servia água aos juízes, promotores e advogados, enquanto aos custodiados,
levava-se um copo descartável para evitar que, eventualmente, o utilizassem como arma, ainda
que eles estivessem sendo vigiados e algemados; as grades estavam também em torno daquele
que, em sua própria audiência, foi silenciado para não propagar bactérias e adoecer os demais;
e na justificativa da “ordem pública” que não revelava a que “público” ou que “ordem” estava
se referindo.
Assim, o limiar entre as audiências de custódia como espaços horizontais,
comunicativos e desencarceradores e entre um espaço de reprodução das estruturas
verticalizadas, silenciadoras e punitivistas, está na capacidade de identificar e de romper com
as grades da hegemonia e de suas violências simbólicas ou se nelas as instituições e seus atores
irão preferir se trancar.
Contudo, mesmo que ainda distantes do seu objetivo precípuo e podendo ser
deturpadas quando convertidas em espaços de reprodução de violências e da discricionariedade
dos estereótipos, as audiências de custódia precisam (r)existir em razão do seu potencial na
proteção aos direitos humanos, na coibição da arbitrariedade policial e no controle qualitativo
das prisões cautelares, que sobrecarregam o sistema prisional.
Somente a partir do desvelamento da existência dessas interfaces e do reconhecimento
da complexidade que contorna a realidade carcerária, a segurança pública, as políticas
punitivistas, a criminalização seletiva e a atuação jurisdicional voltada ao controle de corpos, é
que poderá ser proposto um desvio de rota para além da “roda viva”113.
E é diante desse cenário que precisamos das teorias críticas e emancipatórias, do
incentivo à pesquisa, da horizontalização dos espaços de poder, da democratização das ruas e
do rompimento das grades mais perigosas que cercam os indivíduos: as que condicionam e
limitam as suas mentes.
113 Em referência a canção de Chico Buarque (1968). Mas, o samba, a viola e a roseira, que um dia a fogueira
queimou, continuam ressurgindo e resistindo, ainda que tochas reacionárias permaneçam acesas.
187
REFERÊNCIAS
ABREU, Haroldo. Para Além dos Direitos: Cidadania e Hegemonia no Mundo Moderno.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.
ABREU, João Vítor. A custódia das audiências: uma análise das práticas decisórias na
Central de Audiência de Custódia (CEAC) do Rio de Janeiro. Dissertação (mestrado).
Universidade Federal Fluminense, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito, 2019
ADICHIE, Chimamanda. O Perigo da História Única. Vídeo da palestra no evento
Tecnology, Entertainment and Design (TED Global 2009). Disponível em:
https://cutt.ly/id0dPO6 Acesso em: 5 de maio de 2019.
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique
Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
ALMEIDA, Frederico de. Intelectuais e reforma do Judiciário: Os especialistas em direito
processual e as reformas da Justiça no Brasil. In: Revista Brasileira de Ciência Política, n.
17, p. 209-246, 2015.
ALVAREZ, Marcos César. Apontamentos para uma história da Criminologia no Brasil. In:
História da Justiça Penal no Brasil. Koerner (org). São Paulo: IBCCRIM. p. 129-151, 2006.
ALVES, Marcelo Mayora. Entre a cultura do controle e o controle cultural: um estudo
sobre as práticas tóxicas na cidade de Porto Alegre. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2010.
AMORIM, Maria Stella de; KANT DE LIMA, Roberto; MENDES, Regina Lúcia Teixeira
(Org.) Ensaios sobre a igualdade jurídica: acesso à justiça criminal e direitos de cidadania
no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
BARTOLOMÉ, Miguel Alberto. Estados, Naciones y Ciudadanías. In: Processos
Interculturales: Antropología Política del Pluralismo Cultural em América Latina. México:
Siglo XXI Editores, 2006.
BANDEIRA, Ana Luíza Villela de Viana. Audiências de custódia: percepções morais sobre
violência policial e quem é vítima. 2018. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) -
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 2018.
BAPTISTA, Bárbara Gomes Lupetti. A pesquisa empírica no direito: obstáculos e
contribuições. In: 26ª Reunião Brasileira de Antropologia. Anais [...] Porto Seguro/BA.
2013.
BECKER, Howard S. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar,
2008.
BERMAN, Harold J. Direito e revolução. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006.
BIONDI, Karina. Políticas prisioneiras e gestão penitenciária: incitações, variações e efeitos.
EtnoGráfica. 2017, vol.21, n.3, pp.555-567.
188
BLOOM, Harold. A angústia da influência: uma teoria da poesia. Rio de Janeiro: Imago,
1991.
BLUMER, Herbert. A natureza do interacionismo simbólico. In: MORTENSEN, C. Teoria
da comunicação: textos básicos. São Paulo: Mosaico, 1980.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A, 1989.
______. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1996.
BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de
sociólogo: metodologia de pesquisa na sociologia. 8 ed. Rio de Janeiro: Vozes. 2015.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Comissão parlamentar de inquérito destinada a
investigar a realidade do sistema carcerário brasileiro: relatório final. Presidente:
Deputado Alberto Fraga. Relator: Deputado Sérgio Brito. Brasília: Câmara dos deputados,
2015.
______. Comissão Nacional da Verdade. Mortos e desaparecidos políticos / Comissão
Nacional da Verdade. – Brasília: CNV, 2014.
______. Conselho Nacional de Justiça. Relatório da Reunião Especial de Jurisdição de 12
de janeiro de 2017.Disponível em: https://goo.gl/ev3FBV Acesso em 25 jul. 2019
______. Conselho Nacional de Justiça. Mutirão Carcerário do Estado do Rio Grande do
Norte: relatório final 2013. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2013. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/60922-cnj-entrega-relatorio-a-autoridades-do-rn-com-
recomendacoes-para-sistema-carcerario. Acesso em: 25 jul. 2019.
______. Conselho Nacional de Justiça. Mutirão Carcerário: raio-x do sistema penitenciário
brasileiro. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2012. Disponível em:
https://goo.gl/AFE2g6. Acesso em: 25 jul. de 2019.
______. Decreto de 23 de maio de 1821. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/historicos/dim/DIM-23-5-1821.htm. Acesso em:
19 jul. 2019.
______. Ministério da Justiça. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias
INFOPEN - junho de 2014. Disponível em: https://goo.gl/cK4HaE. Acesso em: 01 jul. 2019.
_____. Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Levantamento nacional de
informações penitenciárias. INFOPEN-mulheres. 2. ed. 2018.
______. Supremo Tribunal Federal. ADPF 347 MC. Relator(a): Min. Marco Aurélio,
Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, Processo Eletrônico DJe-031. Divulg. 18 fev. 2016,
Public. 02 jul. 2017.
189
______. Supremo Tribunal Federal. ADI n.º 5240/SP. Rel. Min. Luiz Fux, Brasília, 2015.
Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 02 jul. 2019.
BRECHT, Bertolt. Antologia poética. Rio de Janeiro: ELO Editora, 1982.
BURGIERMAN, Denis Russo. O fim da guerra: a maconha e a criação de um novo sistema
para lidar com as drogas. [Edição digital]. São Paulo: Leya, 2011, posição 102.
CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional. Salvador:
JusPodivm, 2016.
CANAL DA CÂMARA DOS DEPUTADOS. Constituição e Justiça e de Cidadania -
Audiência de Custódia - 09/07/2019 - 10:09. Youtube. 2019. (3:43:35). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=JsPBWtVTefM&t=4362s Acesso em: 10 jul 2019.
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi.
São Paulo: Companhia das Letras. 2005.
CLIFFORD, James. Sobre a autoridade etnográfica. In: A experiência etnográfica:
antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998.
COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Direitos Humanos e Criminalização da Pobreza. In: I
Seminário Internacional de Direitos Humanos, Violência e Pobreza: a situação de
crianças e adolescentes na América Latina hoje. Rio de Janeiro: UERJ. 2016.
COMPARATO, Fábio Konder. O poder judiciário no Brasil. Caderno IHUideias, ano 13, n.
222, v. 13, São Leopoldo, 2015.
COSTA, Sérgio. A Mestiçagem e seus Contrários: Etnicidade e Nacionalidade no Brasil
Contemporâneo. Tempo Social, vol. 13, no. 1, p. 143-158, 2001, p. 143.
DAMATTA, Roberto; BRASIL, Sabe com quem está falando? Um ensaio sobre a distinção
entre indivíduo e pessoa no Brasil. In: DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e
heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 179-248.
DAS, Veena. Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary. Berkeley,
University of California Press. 2006.
DAS, Veena; POOLE, Deborah. El estado y sus márgenes: etnografias comparadas. In:
Revista Académica de Relaciones Internacionales, núm. 8 junho de 2008, GERI-UAMC.
DOUGLAS, Mary. Como as instituições pensam. São Paulo: EDUSP, 1998.
EILBAUM, Lúcia. De práticas de investigação e produção de provas: fazendo e desfazendo
versões na polícia da província de Buenos Aires. In: DE LIMA, Roberto Kant; EILBAUM,
Lúcia; PIRIS, Lenin. (Orgs.). Burocracias, Direitos e Conflitos: Pesquisas comparadas em
Antropologia do Direito. Rio de Janeiro: Garamond, 2011. P. 147-174.
190
______. “Só por formalidade”: a interação entre os saberes antropológico, jurídico e judicial
em um “juicio penal”. In: Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n. 38, p. 313-
339, jul./dez. 2012.
ESCOLA SUPERIOR DA DEFENSORIA PÚBLICA. Defensoria Sem Fronteiras analisou
processos de 1010 presos em Natal. In: Boletim da Defensoria Geral. Abril, 2017.
FALCÃO, Joaquim. A reforma silenciosa. Revista Conjuntura Econômica, v. 63, n, 11, p.
74-75, 2009.
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: Formação Política do Patronato Político
Brasileiro. 3 ed. São Paulo: Globo. 2001.
FONSECA, Regina Lúcia Teixeira Mendes da. Dilemas da decisão judicial. As
representações de juízes brasileiros sobre o princípio do livre convencimento motivado.
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Gama Filho. Tese de Doutorado.
Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho, 2008.
______. Igualdade à brasileira: cidadania como instituto jurídico no Brasil. In: Revista
de Ciências Criminais no. 13. PUC/RS, Porto Alegre: Notadez, 2004.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 30 ed. Petrópolis:
Vozes, 2006.
GARAPON, Antoine. Bem julgar: ensaio sobre o ritual judiciário. Lisboa: Instituto Piaget,
1999.
GEERTZ, Clifford. O saber local: fatos e leis em uma perspectiva comparativa. In: O saber
local. 9 ed. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 249-356.
______. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da Cultura. In: A interpretação
das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.
GOFFMAN, Erving. A representação do Eu na vida cotidiana. Petropolís: Vozes, 1985.
______. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4 ed. Rio de Janeiro:
Zahar, 1978.
______. Manicômios, prisões e conventos. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
______. Comportamento em lugares públicos. Notas sobre a organização social dos
ajuntamentos. Petrópolis: Vozes, 2010.
GRAES, Isabel. Contributo para um estudo histórico-jurídico das Cortes portuguesas
entre 1481-1641. Coimbra: Almedina, 2005. p. 99
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. v. II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2010.
191
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa. Tomo I – Racionalidad de la
accíon y racionalización social. Madri: Taurus, 1987.
______. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. v. 2. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997.
HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o
privilégio da perspectiva parcial. In: Cadernos Pagu, (5): 07-41. 1995 [1993]
HOOKS, Bell. Linguagem: ensinar novas Linguagem: ensinar novas paisagens/novas
linguagens. In: Estudos Feministas, Florianópolis, 2008. p. 857-864.
_____. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Elefante, 2019.
HUMAN RIGHTS WATCH. O direito à “audiência de custódia” de acordo com o direito
internacional. 2014. Disponível em: https://www.hrw.org/pt/news/2014/02/03/252627.
Acesso em: 10 jan. 2018.
JESUS, Maria Gorete Marques de. O que está no mundo não está nos autos: a construção
da verdade jurídica nos processos criminais de tráfico de drogas. 2016. Tese (Doutorado em
Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2016.
KANT DE LIMA, Roberto; BAPTISTA, Bárbara Gomes Lupetti. Como a Antropologia pode
contribuir para a pesquisa jurídica? Um desafio metodológico. In: Anuário Antropológico,
Brasília, UnB, 2014, v. 39, n. 1, p. 9-37.
KANT DE LIMA, Roberto; EILBAUM, Lúcia; PIRIS, Lenin. (Orgs.). Burocracias, Direitos
e Conflitos: Pesquisas comparadas em Antropologia do Direito. Rio de Janeiro: Garamond,
2011. P. 147-174.
KANT DE LIMA, Roberto. Ensaios de Antropologia e de Direito: acesso à justiça e
processos institucionais de administração de conflitos e produção da verdade jurídica em uma
perspectiva comparada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
_____. Cultura Jurídica e práticas policiais: a tradição inquisitorial. In: Revista Brasileira de
Ciências Sociais. nº 10. Vol 04. Jun, 1989.
_____. Polícia, Justiça e Sociedade no Brasil: uma abordagem comparativa dos modelos de
administração de conflitos no espaço público. In: Revista de Sociologia e Política. Nº 13: 23-
38 NOV, 1999.
______. Sensibilidades jurídicas, saber e poder: bases culturais de alguns aspectos do direito
brasileiro em uma perspectiva comparada. In: Anuário Antropológico. 2010, p. 25-51.
KELSEN, Hans. 1881-1973. Teoria pura do direito. 6ª ed. Tradução por: João Baptista
Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
KROTZ, Estebam. Anthropologies of the South: their rise, their silencing, their
characteristics. In: Critique of Anthropology. 1997, p. 273-251.
192
LASSALLE, Ferdinand. O que é uma constituição. Tradução de Leandro Farina. 2. ed.
Campinas: Minelli, 2005.
LEMGRUBER, J.; FERNANDES, M.; MUSUMECI, L.; BENACE, M.; BRANDO, C.
Liberdade mais que tardia: As audiências de custódia no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
CESeC/ISER, 2016.
LEMOS, Amália Inês Geraiges de. Dimensão Ambiental da Urbanização Latino-Americana.
In: Revista do Departamento de Geografia, São Paulo: USP, n. 8, p.79-83, 1994. p. 80.
LOPES JÚNIOR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 3. ed. São
Paulo: Saraiva, 2017.
MANGABEIRA, Clark. Em um dia qualquer: violência, simpatia e carisma pelas tramas das
audiências de custódia em Cuiabá. In: Interseções, 21-1, 2019. Disponível em:
http://journals.openedition.org/intersecoes/323 Acesso em: 02 fev 2020.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Temáticas. nº32, 2015, p. 123.
MISSE, Michel. Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica
sobre a categoria "bandido". In: Lua Nova. 2010, n.79, pp.15-38.
MOTTA, Manoel Barros da. Crítica da razão punitiva: Nascimento da prisão no Brasil. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2011.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999.
NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF, 2007.
______. A Crise do Estado: Da Modernidade Central à Modernidade Periférica – Anotações a
partir do Pensamento Filosófico e Sociológico Alemão. In: 16º Congresso dos Tribunais de
Contas do Brasil. Anais [...]. Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco, Recife, pp. 157-
172, 1991.
OLIVEIRA, João Pacheco de. O nascimento do Brasil: revisão de um paradigma
historiográfico. In: Anuário Antropológico. 2010.
OLIVEIRA, Luís Roberto Cardoso de. Concretude simbólica e descrição etnográfica: sobre a
relação entre antropologia e filosofia. In: WERNECK, Alexandre; OLIVEIRA, Luís Roberto
Cardoso de (orgs.). Pensando bem: estudos de sociologia e antropologia da moral. Rio de
Janeiro: Casa da Palavra, 2014, p. 44-70.
______. Desvendando evidências simbólicas: compreensão e conteúdo emancipatório da
antropologia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2018.
______. O Trabalho do Antropólogo: Olhar, Ouvir, Escrever. In: Revista de Antropologia,
Vol. 39, No. 1 (1996), pp. 13-37. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/41616179
Acesso em: 08 mar. 2020.
193
OLIVEIRA, Roberto Cardoso. O Trabalho do Antropólogo: Olhar, Ouvir, Escrever. In:
Revista de Antropologia, Vol. 39, No. 1, 1996, pp. 13-37. Disponível em:
http://www2.fct.unesp.br/docentes/geo/necio_turra/MINI%20CURSO%20RAFAEL%20EST
RADA/TrabalhodoAntropologo.pdf Acesso em: 13 mai 2019.
PAIVA, Caio. Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro. Florianópolis:
Empório do Direito, 2015.
PEIRANO, Marisa. Onde está a antropologia? A teoria vivida e outros ensaios em
Antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006: 15-36
PEIXOTO, Lênora Santos. Audiências públicas parlamentares e concretização democrática.
In: DIAS JÚNIOR; DA SILVA; LEITE (Orgs.). Participação política e cidadania: Amicus
curiae, audiências públicas parlamentares e orçamento participativo. Curitiba: Appris, 2018.
______. Crise carcerária, rebeliões e prisão preventiva: interfaces e complexidade nas
audiências de custódia por crimes de tráfico de drogas em Natal/RN/Lênora Santos Peixoto. –
Natal:[s.n.], 2018. 132 f.
PRADO, Sophia de Lucena. Novas estratégias, mesmos fins: pensando o Sistema Penal
contemporâneo à luz de Foucault. In: MELO, Juliana; SIMIÃO, Daniel; BAINES, Stephen.
(orgs.). Ensaios sobre justiça, reconhecimento e criminalidade. Natal: EDUFRN, 2016, p.
57-84.
RAUPP, Mariana O Seleto Mundo da Justiça: análise de processos penais de tráfico de
drogas. São Paulo: Dissertação (Mestrado em Sociologia), FFLCH/USP, 2005.
REZENDE, Joffre M. Pharmakón. Rio de Janeiro: Bol. Sobravime, 2000.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2017.
RIBEIRO, Tiago Magalhães. Sobre o governo dos usos e dos usuários de maconha no Brasil.
In: LABATE, Beatriz Caiuby; POLICARPO, Frederico (Orgs.). Drogas: perspectivas em
ciências humanas. Rio de Janeiro: Terceiro Nome, 2018.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação
social. São Paulo: Boitempo, 2007.
SANTOS, Milton. Espaço e método. São Paulo: Nobel. 1997.
SANTOS JÚNIOR, Rosivaldo Toscano dos. A guerra ao crime e os crimes da guerra: uma
crítica decolonial às políticas beligerantes no sistema de justiça brasileiro. 2 ed. Florianópolis:
Empório do Direito, 2017.
SILVA, Francisco de Assis Rosa e. Relatório do Ministério da Justiça. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional. 1889.
SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela
elite. São Paulo: LeYa, 2015.
194
SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. Etnografia dissonante dos tribunais do júri. In:
Tempo Social, revista de sociologia da USP. v. 19, n. 2, pp. 111-129, 2007.
______. Jogo, ritual e teatro: um estudo antropológico do Tribunal do Júri. São Paulo:
Terceiro Nome, 2012. 296 pp.
SWENSSON JÚNIOR, Walter Cruz. O Supremo Tribunal Federal e os Militares (1964-
1969). In: KOERNER, Andrei. (org). História da Justiça Penal no Brasil. São Paulo:
IBCCRIM, 2006, p. 227-240.
TOLEDO, Fábio Lopes. “O flagrante ganha voz?”: os significados da presença da pessoa
presa nas audiências de custódia no estado de São Paulo. Dissertação (mestrado). Fundação
Getulio Vargas, Escola de Direito de São Paulo. 2019
VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas. 3. ed. Belo Horizonte: Editora
D’Plácido, 2019.
VARGAS, Eduardo Viana e outros. Objetos sócio-técnicos: notas para uma genealogia das
drogas. In: LABATE; GOULART; MACRAE e CARNEIRO (Orgs.) Drogas e Cultura:
novas perspectivas. Salvador: Edufba, 2008.
VELASCO, Clara; D'AGOSTINO, Rosanne; REIS, Thiago (repórteres). Brasil teve quase 400
mortes violentas nos presídios em 2016. In: G1 Política. Disponível em:
http://twixar.me/Wmp1. Acesso em: 12 jun. 2019.
VELHO, Gilberto. Becker, Goffman e a Antropologia no Brasil. In: Ilha. Florianópolis, v.4,
n.1, julho de 2002, p. 5-16.
______. Violência: Uma Perspectiva Antropológica. In: 57ª Reunião Anual da SBPC. Anais
[...]. 2005.
VIANNA, Adriana. “Etnografando documentos: uma antropóloga em meio a processos
judiciais”. In: CASTILHO, R. R.; LIMA, A. C. de S. e TEIXEIRA, C. C. (Orgs.)
Antropologias das práticas de poder: reflexões etnográficas entre burocratas, elites e
corporações. Rio de Janeiro: Contra Capa, FAPERJ, 2014, p. 43-70.
______. Limites da menoridade: tutela, família e autoridade em julgamento. Tese de
doutorado. Rio de Janeiro: PPGAS/Museu Nacional/UFRJ, 2002.
WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
_____. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Tradução de Sérgio
Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
WEBER, Max. Relações Comunitárias Étnicas. In: Economia e Sociedade. 4 ed., vol. 1.
Brasília: Editora da UnB, 2012, p. 266-277.
WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2010.
195
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do
sistema penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora Revan. 2001.
______. A questão criminal. Rio de Janeiro: Revan, 2013.
196
ANEXO 1 - ROTEIRO SEMIESTRUTURADO DE ENTREVISTA
Obs: As perguntas foram aprofundadas conforme a disponibilidade e a abertura do interlocutor.
Aos Juízes/juízas e promotores/promotoras:
O(a) senhor(a) avalia a implantação das audiências como algo positivo?
O(a) senhor(a) se sente seguro realizando audiências de custódia aqui na Central de
Flagrantes?
O(a) senhor(a) acha que ouvir a pessoa sob custódia melhora a percepção sob os fatos?
Para decidir sobre a prisão ou sobre a liberdade nas audiências de custódia por crimes
de tráfico de drogas, o que o(a) senhor(a) costuma considerar?
O(a) senhor(a) entende como uma prisão para fins de garantia da ordem pública?
Aos defensores/defensoras
O(a) senhor(a) avalia a implantação das audiências como algo positivo?
O(a) senhor(a) se sente seguro realizando audiências de custódia aqui na Central de
Flagrantes?
O que o(a) senhor(a) acha da estrutura da Central de Flagrantes e da sala destinada as
conversas com o custodiado?
O(a) senhor(a) acha que o seu cliente sempre conta tudo ao senhor?
Muda em alguma coisa saber que ele faz parte de alguma facção?
Você costuma aconselhar eles a falarem durante a audiência?
Aos custodiados/custodiadas
O(a) senhor(a) foi informado sobre o que é essa audiência e para o que ela serve?
O(a) senhor(a) acha que ela é um momento importante?
O(a) senhor(a) considera melhor falar ou ficar em silêncio?
Como o(a) senhor(a) se identifica em relação a sua cor?
O(a) senhor(a) acha que a sua aparência física, comportamento ou o local que você
reside influenciam na decisão do(a) juiz(a)?
O(a) senhor(a) confia no seu(sua) defensor(a) e sempre conta toda a verdade para ele(a)?
O(a) senhor(a) é ou já foi usuário de drogas lícitas ou ilícitas?
Se sim, quais, desde quando e com qual frequência?
O(a) senhor(a) se considera dependente químico? (Explicar o que é a dependência
química)
Já desejou parar de consumir?
O que sente quando consume?
O que o(a) senhor(a) está sentindo nesse momento?
Há alguma coisa que o(a) senhor(a) gostaria de ter dito e não disse?
197
ANEXO 2 - MODELOS DE TERMO DE AUDIÊNCIA
Modelo 1. Termo de audiência com homologação do flagrante e decreto de prisão preventiva.
198
199
Fonte: Sistema de Automação Judicial do Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Norte - SAJ. Identificações
processuais e das partes ocultadas pela autora.
200
Modelo 2. Termo de audiência com aplicação de medidas cautelares diversas da prisão.
201
202
Fonte: Sistema de Automação Judicial do Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Norte - SAJ. Identificações
processuais e das partes ocultadas pela autora.