felipe jardim lucas elementos do estado civil, formação da

106
Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da política em Hobbes e Espinosa e a construção democrática Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Mauricio de Albuquerque Rocha Rio de Janeiro Abril de 2015

Upload: others

Post on 19-Apr-2022

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

Felipe Jardim Lucas

Elementos do estado civil, formação da política

em Hobbes e Espinosa e a construção

democrática

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. Mauricio de Albuquerque Rocha

Rio de Janeiro Abril de 2015

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 2: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

Felipe Jardim Lucas

Elementos do Estado Civil, Formação da Política em Hobbes e Espinosa e a Construção Democrática

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito do Departamento de Direito da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Mauricio de Albuquerque Rocha Orientador

Departamento de Direito – PUC-Rio

Prof. Francisco de Guimaraens Departamento de Direito – PUC-Rio

Prof. Homero Silveira Santiago USP

Profª. Mônica Herz Vice-Decana de Pós-Graduação do Centro de

Ciências Sociais – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 10 de abril de 2015

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 3: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou

parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e

do orientador.

Felipe Jardim Lucas

Graduou-se em Ciências Jurídicas no ano de 2012 pela

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

Ficha Catalográfica

Lucas, Felipe Jardim.

Elementos do Estado Civil, Formação da Política em Hobbes e Espinosa e a Construção Democrática / Felipe Jardim Lucas; Orientador: Mauricio de Albuquerque Rocha – Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Direito, 2015.

106f; 30 cm Dissertação (mestrado) Pontifícia Universidade Católica

do Rio de Janeiro, Departamento de Direito. Inclui referências bibliográficas. 1. Direito – teses. 2. Hobbes. 3. Espinosa. 4. Estado de

natureza. 5. Estado civil. 6. Política; 7. Resistência. I. Rocha, Mauricio de Albuquerque. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito. III. Título.

CDD:340

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 4: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

Aos meus amigos e professores, Éricka Marie

Itokazu, Francisco de Guimaraens e Mauricio

Rocha, por tanto terem me ensinado e

demonstrado da existência e realidade dos bons

encontros.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 5: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

Agradecimentos

Se à escrita do presente trabalho deve-se sucesso é inteiramente:

Aos subsídios materiais concedidos pelo CNPQ e pela Pontifícia Universidade Católica

do Rio de Janeiro. Esta por sempre ter me acolhido e demonstrado o que é um espaço

democrático para o florescimento das ideias, dos encontros e do livre pensamento. Pelos

funcionários sempre dispostos a auxiliar os alunos e manter a universidade como este espaço

livre e generoso. Um especial agradecimento aos professores do programa, Gisele Cittadino,

José Maria Gomez, Carlos Plastino, Márcia Nina Bernardes e Noel Struchiner. Ainda agradeço

enormemente à Carmen e ao Anderson que com sua paciência admirável e dedicação sem

limites tornaram sem dúvida tudo que aqui está escrito possível. Agradeço ainda à Marlene,

incansável amiga que tanto fez e faz para manter nosso ambiente de estudo e trabalho sempre da

melhor forma possível e às nossas conversas intermináveis sobre este Brasil profundo, meu

muito obrigado.

Quero agradecer aos colegas e amigos do mestrado que dividiram comigo os últimos

dois anos de tantos debates e discussões e compartilharam dia a dia as conversas sobre estes

conturbados anos em nosso país e em nossa cidade. Em especial quero agradecer aos queridos

Victor, Murilo, Rafael Bravo, Rafael Becker, André, Rita e Beta.

Aos grandes e maravilhosos amigos que sempre estão ao meu lado oferecendo ajuda e

por mais das vezes distrações ou motivos para eu pedir ajuda, mas sempre compartilhando

comigo momentos importantíssimos para bem e para mal e, principalmente, sendo sempre meu

chão. Aos queridíssimos Fernando Mamari, Leo Neumann, Fábio Bussman, Ana Luisa, Ana

Paula Morel, Ana Luiza, Marlon, Daniel Nogueira, Angélica, Carolina e Seu Silveira. Às

meninas, Érica e Susana, sempre maravilhosas companheiras do dia a dia e dessa grande loucura

que é a vida no Rio e no Brasil nesses nossos tempos. Ao querido Serguei, meu amigo de

tamanha arte e tantas discussões, sempre em tudo e em todo o momento. Ao meu grande amigo

André Basseres que me ensinou e ensina tanto todos os dias sobre a liberdade, liberdade essa

justa e necessária para tantos! Á Gabriella Lange que tanto me fez crescer como pessoa ao longo

desses anos mostrando a grande beleza que há no mundo. Ao Johny e ao Júlio, inseparáveis

companheiros de Bobisque em tardes maravilhosas de conversa. Ao primeiro minha admiração

eterna, ao segunda minha mão estendida para a amizade sempre. Ao Pedro Braga, que sempre

na rua daquele “ilustre cidadão”, como diria, tanto me ensinou sobre música, literatura,

português, filosofia, poesia e amizade, enfim, como diria Espinosa, é sempre a ideia de Pedro.

Ao outro Pedro, o C. Barros, amigo para todas as horas, mesmo, sempre. Ao Alves, grande

parceiro das noites cariocas e do aprendizado político e boêmio. No último caso, da docência, é

verdade. À Fernanda, familiar sempre, amiga e irmã que tanto adoro. Ao Konde, companheiro

maior do amor aos carnavais da vida do ano inteiro. Ao Sasha, grande irmão e amigo com quem

tive o prazer de dividir a casa e a vida ao longo destes dois anos. Ao grande Daniel Santos,

amigo e comparsa maravilhoso com quem tive o prazer de dividir tantas noites de conversa e

discussão e que é nosso grande encontro Rio-São Paulo-Ceará, ou seja, Brasil. E, sem dúvida, à

Vivi, com quem dividi tanto em tão pouco tempo e que tenho certeza, será uma grande amiga

para toda a vida.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 6: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

Ao mestre e amigo Adriano Pilatti que tanto me ensinou sobre a vida, a cultura e a

história de nossa gente, mostrando os problemas mas também as alegrias de vivermos nesta

mais bela e rica província da Terra. Saravá!

À Éricka que durante estes anos se revelou muito mais do que uma vizinha, uma amiga,

uma professora, uma irmã. Foi sem dúvida a base próxima geográfica e afetivamente para meu

crescimento enquanto estudante e pessoa. Muito obrigado, Erickenta.

Ao professor e amigo Francisco de Guimaraens, que me apresentou a política

espinosana com firmeza e atenção, sempre indicando todos os caminhos a seguir e aumentando

a todo momento a potência de todos nós. Fico extremamente feliz e satisfeito de ser seu aluno e

amigo.

Ao mestre e grande amigo Mauricio Rocha que sempre teve a paciência e a habilidade

para nos mostrar que a vida sem amigos é como um longo caminho sem hospedarias. Que esta

amizade dure por muitos e muitos anos. Muito obrigado.

E, finalmente, à minha família que tanto me aguentou e deu suporte em todas as

escolhas e caminhos que decidi trilhar. Ao James, meu pai, pelo amor e extrema paciência com

que me criou e ensinou da vida. À minha mãe, grande amiga que me mostrou desde cedo os

livros, a música e toda a beleza que existe nesse mundo. À Juliana que especialmente nestes

últimos anos vem se revelando grande amiga para todas as horas. E, finalmente à Mel, que

sempre trouxe tanta alegria e amor à nossa casa e à nossas vidas.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 7: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

Resumo

Lucas, Felipe Jardim; Rocha, Mauricio de Albuquerque. Elementos do estado

civil, formação da política em Hobbes e Espinosa e a construção

democrática. Rio de Janeiro, 2015. 106p. Dissertação de Mestrado –

Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A formação do corpo político com o objetivo de cessar as disputas entre os

indivíduos em um potencial e permanente estado de guerra foi uma preocupação que

marcou o início da era moderna e inspirou o pensamento daqueles que fundaram as

bases do pensamento político, alcançando os dias de hoje. Da mesma forma se deu com

a necessidade de barrar a ascensão de governos tirânicos e totalitários, surgidos da

justificativa de manutenção da segurança como função máxima do Estado. Por este

motivo a discussão acerca da legitimidade, do monopólio da força e do que seria a

representação continuam ocupando posição central no esforço de pensar na viabilidade

da forma Estado e suas possibilidades. O presente trabalho teve por objetivo, a partir

dos debates que se iniciam na era moderna, fazer uma análise dos elementos do estado

civil e das fundações políticas com o intuito de pensar nos objetivos do Estado bem

como na construção de seus elementos democráticos e, inclusive, resistentes. Para isso,

apoiamos o argumento nas teorias políticas de Thomas Hobbes e Baruch de Espinosa

que – representando polos distintos mas que dialogam entre si – pensaram na gênese,

nos elementos e objetivos do corpo político, bem como na união dos indivíduos sob

uma organização instituída. Acreditamos por este caminho poder plantar as bases de

nossa análise da democracia como presença na política e dos modos de resistência à sua

violação.

Palavras-chave

Hobbes; Espinosa; estado de natureza; estado civil; política; resistência.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 8: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

Abstract

Lucas, Felipe Jardim; Rocha, Mauricio de Albuquerque (advisor). Elements of

the civil state, formation of politics in Hobbes and Spinoza and the

democratic making. Rio de Janeiro, 2015. 106p. MSc. Dissertation –

Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The formation of the political body with the objective of ceasing the disputes

between the individuals in a potential and permanent state of war was a concern wich

marked the beginning of the modern age and inspired the thought of those who founded

the basis of the political thought, reaching the present days. Of the same way happen

with the need to maintain security as maximum function of the State. For this reason the

discussion about the legitimacy, monopoly of force and of what would be the

representation keep occupying central position on the effort of thinking of the viability

of the form State and its possibilities. The present work aimed, from the debates that

began in the modern age, do an analysis of the elements of the civil state and the

political foundations in order to think about the objectives of the State as well as the

construction of its democratic elements and, even, resistants. For this purpose, we

support the argument in the political theories of Thomas Hobbes and Baruch of Spinoza

which – representing different poles but interacting with each other – thought in the

genesis, the elements and objectives of the political body, as well as in the union of the

individuals under an instituted organization. We believe this way be able to plant the

basis of our analysis as a presence in politics and ways of resistance to its violation.

Keywords

Hobbes; Spinoza; state of nature; civil state; politics; resistance.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 9: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

Sumário

1. Considerações Iniciais ......................................................................... 11

2. Das leis e do estado de natureza. ....................................................... 20

2.1. Teoria Clássica. .................................................................................. 20

2.2. Ruptura com a Teoria Clássica. .......................................................... 23

2.3. “The Right of Nature”. .......................................................................... 27

2.4. Do Estado de Natureza. ...................................................................... 32

2.5. A Carta 50 .....................................................................................41

3. Do Pacto e do estado civil. .................................................................. 52

3.1. O Comum. ........................................................................................... 54

3.2. Da delegação e da representatividade. ............................................... 59

3.3. Da igualdade. ...................................................................................... 65

3.4. Do surgimento do estado civil. ............................................................ 68

3.5. Do pacto e das formas. ....................................................................... 72

3.6. Da justiça. ........................................................................................... 82

4. Da Democracia .................................................................................... 86

4.1. Da utilidade ou do útil. ......................................................................... 86

4.2. Da obediência. .................................................................................... 89

4.3. Da construção democrática: considerações finais. ............................. 94

5. Referências Bibliográficas ................................................................ 103

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 10: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

(...)

Soem cá fora agitações e lutas,

Sibile o bafo aspérrimo do inverno,

Tu trabalhas, tu pensas, e executas

Sóbrio, tranquilo, desvelado e terno,

A lei comum, e morres, e transmutas

O suado labor no prêmio eterno

Machado de Assis.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 11: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

1

Considerações iniciais

A monarquia foi declarada “desnecessária, opressiva e perigosa para a liberdade,

segurança e interesse público do povo” e foi abolida. A Câmara do Pares, igualmente

abolida, era simplesmente “inútil e perigosa”. Em 19 de maio de 1649 foi proclamada a

República.1

In rioting at The Hague, on 20 August, De Witt and his brother, Cornelis, were caught

by an angry crowd which included a number of militiamen, outside the prison, opposite

the Binnenhof. They were beaten, stabbed, and shot to death. The corpses were dragged

to a nearby scaffold and pulled up by the feet to be displayed to the people, and then

mutilated, parts being roasted in a frenzy of cannibalistic hatred. The brothers De Witt

were dead.2

Após a proclamação da república na Inglaterra o que se esperava era um período

de construção de instituições que possibilitassem o lucro e a expansão comercial e

marítima, em especial para fazer frente ao potente império que a Holanda construíra no

último século. No entanto o que se viu foi um período de extrema mobilidade e

ebulição, tanto política quanto intelectualmente. Sobre o período, diria Gerrard

Winstanley em uma definição precisa que “o velho mundo... está rodopiando como

pergaminho no fogo”3. Aos poucos os ingleses que haviam deposto seu rei e com isso

imaginavam pôr fim à tirania que vigia em sua ilha descobriram que as causas da

opressão possuíam raízes muito mais profundas do que imaginavam. Tal lição também

seria ensinada aos holandeses, contudo, pelo caminho inverso.

A história política da Europa ocidental no século XVII está marcada por

revoluções, revoltas e guerras pelos mais variados motivos: de convicções religiosas a

disputas comerciais. Mas os limites daquilo que estava diante dos olhos destes homens e

mulheres eram indiscerníveis do infinito. Novos mundos haviam sido descobertos,

dogmas e doutrinas ruíam ou se reformulavam. Descobertas científicas demonstravam a

incomensurabilidade deste vasto universo e de suas regras. Enfim, todo o mundo como

se conhecia estava mudado ou mudando a uma velocidade assustadora. Os exemplos da

Holanda e da Inglaterra são extremamente elucidativos para pensarmos nos novos

modos de vida que se criavam com a ruptura do sistema feudal e ascendência de novas

formas de produção e, consequentemente, de organização.

1 HILL, Christopher. A Revolução inglesa de 1640. 3ª ed. Lisboa, Editorial Presença, 1985, p. 90. 2 ISRAEL, Jonathan. The Dutch Republic. Oxford, 1998, p. 803. 3 In.: HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça: Idéias radicais durante a revolução inglesa de 1640. Tradução,

apresentação e notas Renato Janine Ribeiro. São Paulo, ed. Companhia das Letras, 1987, p. 31.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 12: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

12

Originalmente o presente trabalho visava analisar as formas como, neste período

de turbulência, foram sendo criadas as bases de resistência e combate a governos

despóticos. Todavia ao longo do percurso nos deparamos com uma necessidade

fortíssima de pensar nas raízes do embate político, o que nos leva a tratar dos princípios

mesmos da política inaugurada nesta era que chamamos modernidade. Imaginamos

então que os exemplos de Inglaterra e Holanda deste momento sejam esclarecedores,

talvez por conterem em si o embrião das questões que pretendíamos abordar e, ao

mesmo tempo, daquelas que de fato acabamos tratando, bem como de suas eventuais

conclusões.

Deste modo, o que começou como um trabalho sobre unicamente a possibilidade

de se resistir a um governo tido como tirânico transformou-se pouco a pouco em uma

análise sobre as bases da fundação política, e o objetivo foi se deslocando para os

elementos que podemos encontrar na construção democrática. Mas isso não alterou por

completo os rumos do trabalho. Pelo contrário, aprofundou questões que até então eram

tidas como introdutórias e que posteriormente se transformaram nos pilares de tudo o

que foi escrito aqui e lido durante a pesquisa.

É certo que este trabalho está longe de esgotar a temática (e nem se propõe a

fazê-lo), contudo o que pretendemos aqui foi tentar estabelecer bases mais sólidas para a

realização de um estudo sobre a perspectiva política e filosófica da formação

institucional e jurídica das organizações humanas, e para isso precisamos voltar às suas

origens. Assim, a dissertação possui o objetivo de reunir informações sob certa ótica da

formação da política a partir de uma concepção da modernidade que apresentamos. Para

tanto utilizaremos dois autores específicos que parecem possuir compreensões muito

próprias e pertinentes dos modelos e práticas que se desenvolveram nas sociedades

desde o advento do capitalismo, dos Estados e da soberania como conhecemos.

A compreensão das bases daquilo que se entende por Estado é fruto de

formulações ao longo de vários séculos que se desenvolveram e ao mesmo tempo

impuseram novos problemas aos homens e mulheres ao longo do tempo. O desafio da

formação e manutenção do corpo político, da união de indivíduos sob uma causa

comum, a questão de sobre quem recairiam as rédeas do governo, são alguns dos

problemas que se impuseram à tarefa de construir e pensar a política.

Almejamos com o trabalho fazer uma breve análise a partir dos fundamentos da

política para poder pensar nos principais elementos da construção e constituição do

corpo político, seu objeto, suas capacidades e possibilidades, isto através da ótica

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 13: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

13

formadora de alguns sistemas políticos e jurídicos. Tal fato se desenrola a partir de

problemas enfrentados desde o início da modernidade e remontam ao fim do período

feudal, quando as autoridades locais ou regionais autônomas deram lugar a poderes

centralizados e soberanos conhecidos mais tarde como Estados-nação. Um grande

desafio destas novas formações político-jurídicas foi o de justificar sua autoridade a

partir não somente da força, mas também através da compreensão dos motivos que

levaram à sua própria formação. De propriedades privativas de senhores feudais até

uniões de indivíduos sob um direito civil comum, as novas formações políticas que

surgiram apresentavam algo novo no que dizia respeito à representatividade e

legitimidade para fazer, ser e manter seus desígnios. Tal fato não indica uma evolução

de uma forma a outra, mas, de nosso ponto de vista, dá pistas sobre a mutação e

revolução dos modos de organização e exercício da política que se criou, assim como

nas possibilidades de alternativa a tais modelos.

Se, de um lado vimos a ascensão das teorias absolutistas, e mais tarde o

chamado século do absolutismo, de outro, a humanidade testemunhou o crescimento e

multiplicação das ideias que defendiam a soberania popular que se mostrou uma

poderosa alternativa ao governo tido neste tempo por absoluto: “a teoria de que toda

autoridade política é inerente ao povo, e portanto (...) todos os governantes devem

sujeitar-se às censuras e destituições vindas de seus súditos”4. Assim, na mesma medida

em que parte da teoria política dos primórdios da modernidade se baseava em princípios

retirados da Bíblia, houve também o renascimento de uma corrente a partir da qual o

poder emana do povo e pode por ele ser exercido, inclusive de forma direta. Na

realidade, de modo simples o que se via era um terreno dividido em duas zonas

inconciliáveis que por mais das vezes seria vista como uma batalha entre o “bem” e o

“útil”:

Uma delas era a teoria da lei natural, que segundo Ribadeneyra “apóia-se no próprio

Deus e nos meios que Ele, com Sua paternal providência, revela aos príncipes”. A outra

era a teoria de “Maquiavel e os políticos” (los políticos), com sua ímpia exortação a

nossos governantes para que imitem o leão e a raposa.

Bossuet, por exemplo, ao discorrer da natureza da autoridade régia dirá que todo

poder está submetido à autoridade do monarca, o qual não deverá a ninguém prestar

contas. Para tanto irá basear sua teoria na doutrina da obediência passiva de são Paulo

que afirma que os poderes constituídos aos quais os homens devem se submeter são

diretamente provenientes de Deus: “E conclui que todo súdito que resista às

4 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Revisão técnica Renato Janine Ribeiro. São

Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 394.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 14: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

14

determinações de um rei, mesmo que este seja perverso, “seguramente receberá a

condenação eterna”, pois “toda resistência à autoridade constitui uma resistência ao

mandamento divino”.”5

De modo semelhante Santo Tomás diria que o soberano ou o chefe devem estar

livres de qualquer poder coercitivo, sendo assim maiores do que e residindo acima do

corpo do povo, o qual jamais terá poder para sentenciá-los condenando-os. Já Almain

contrapõe-se à teoria de Santo Tomás, dizendo que “ cada indivíduo, em seu estado pré

político, deve ser definido como executor da lei de natureza, detendo o direito de

empunhar o gládio da justiça em sua própria causa”6:

O direito de gládio que a comunidade concede a seu governante, no ato de formar uma

sociedade política, forçosamente é um direito que de início pertencia à própria

comunidade. “Ninguém pode dar o que não possui”, ou seja, o príncipe é só um

mandatário do povo. Nunca terá o estatuto de um soberano absoluto, mas somente de

um ministro ou funcionário da república7.

Tal teoria que admite uma primazia popular sobre a autoridade soberana chegará

a tal ponto que filósofos como Almain e Mair afirmariam que “todo governante que não

governar de modo apropriado pode ser legitimamente deposto pelos súditos”8 e que

“(...) um magistrado deve ser superior a cada cidadão individual, em autoridade (maior

singulis), mas inferior ao povo como um todo (inferior universo populo)”9.

Vemos então que em seus primórdios, a discussão acerca das origens e

fundamentos do poder Estado passa por um debate entre moral e ética, na medida em

que cada uma trata de dois fundamentos distintos: um divino, dado por um plano

superior e insondável de um mundo dado, e outro que pensa na união política como uma

estratégia de composição de forças entre indivíduos e sua utilidade. Tal debate trará à

tona a necessidade de se pensar então toda uma nova corrente política e filosófica que,

partindo de uma longa linhagem, anterior inclusive a Maquiavel, investirá a autoridade

política de uma utilidade que lhe é inerente. Sem esta não há porque chamá-la de

política. É esta nova corrente de pensamento que irá quebrar com a tradição estoica e

cristã, pensando em uma nova razão do Estado, este não mais baseado em uma

moralidade enquanto seu objetivo último e fundamento primeiro. Será também o

pensamento a ser combatido por uma Igreja que enfrenta a ruptura iminente por

intermédio de uma Reforma que irá balançar os alicerces do cristianismo e das próprias

5 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Revisão técnica Renato Janine Ribeiro. São

Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 394. 6 Idem, p. 399. 7 Idem, p. 399. 8 Idem,. 401. 9 Idem, 412.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 15: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

15

monarquias europeias. Por isso a necessidade dos teóricos da Contra Reforma

combaterem a chamada ragione de stato, em especial de Maquiavel e seus discípulos

tratados como ateus. Quentin Skinner com razão defende que Maquiavel e Lutero

convergiam nestes pontos – se bem que por caminhos e motivos diversos – na medida

em que rejeitavam a ideia de uma lei natural como base moral adequada para a vida

política, tal qual pontuamos anteriormente. De fato, teóricos como Ribadeneyra irão

classificar Maquiavel como mais perigoso do que Lutero, afirmando ser:

(...) falsa e perniciosa a tese que considera fundamental no pensamento político de

Maquiavel: a de que para o príncipe o valor básico deve consistir simplesmente na

“conservação de seu estado”, e que “para esse fim ele deva usar de todos os meios, bons

ou maus, justos ou injustos, de que possa dispor10

.

A partir destas discussões veremos o surgimento, mesmo no interior das novas

teorias que rompiam com esta via antiqua11

, de teses que, de modo bem diverso entre si

atacavam as bases religiosas da teoria política e, no entanto, estabeleciam diferentes

paradigmas para o pensamento que inauguravam. Por este motivo fizemos a escolha de

dois filósofos que representam verdadeiros marcos nesta virada do pensamento

moderno: Thomas Hobbes e Baruch de Espinosa.

Conforme veremos adiante, o pensamento de ambos foi fortemente influenciado

pelos avanços da ciência (e também participante destes) que marcaram seu tempo e que

envolviam desde as descobertas práticas da navegação, geografia e astronomia, até as

novidades da mecânica, ótica e acústica. Por isso vemos a forte presença de um

mecanicismo dentro do entendimento da política e de sua formação, enquanto uma

dinâmica de embate constante entre forças, em oposição à apresentação de um plano

superior, ao qual tudo e todos seriam subordinados.

Na realidade o trabalho se desenvolve através da compreensão de que diversos

problemas políticos e jurídicos do início da era moderna ainda se apresentam nos dias

de hoje, tais como o papel do Estado, por exemplo, ou seu limites de atuação. As

questões acerca da função e as possibilidades do corpo político em uma era de

constantes mudanças, na qual os Estados-nação encontrariam seu termo face a uma

sociedade globalizada e cosmopolita podem ser melhor compreendidos se se pensar nos

modos como ocorreu a elaboração de nossos sistemas constitucionais e políticos ao

longo dos últimos quatro séculos. Para isso não podemos ignorar tais filósofos que, na

10 Ibid., p. 421. 11 Explica Skinner: “(...) segundo a qual o homem tem a capacidade de usar seu raciocínio para criar os alicerces

morais da vida política. Foi com base nessa rejeição da via moderna que os defensores da Contra Reforma

construíram sua teoria ortodoxa da sociedade política”. In.: SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento

político moderno. Revisão técnica Renato Janine Ribeiro. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 426.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 16: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

16

esteira de outros grandes pensadores ajudaram, de um lado, a moldar a visão de mundo

que vigora nos dias atuais, e de outro a apresentar alternativas à escolha hegemônica.

Para isto se impõe a necessidade de apresentar alguns elementos fundamentais

da tradição filosófico-política anterior que esta modernidade tentava compreender,

desconstruir e remodelar de forma que coubesse na nova visão de mundo que se

descortinava desde as grandes navegações até a revolução científica que surgia perante

seus olhos. A compreensão do estado de natureza não como um passado idílico na

juventude da humanidade, nem da lei natural como um agir conforme aquilo que somos

orientados previamente a ser e fazer (como uma sociabilidade inerente aos indivíduos,

por exemplo) são quebras fundamentais que irão modificar de uma vez por todas a visão

do ser humano sobre si mesmo e seu mundo.

Será esta modernidade que irá vislumbrar primeiro a ascensão de um capitalismo

substituindo o medievo decadente, bem como modelos jurídicos esgotados diante das

necessidades do novo sistema econômico. Será esta a época que os grande modelos de

controle irão se delinear para, após a revolução industrial se expandirem por todos os

lados: das fábricas às cadeias etc. Será este soberano todo poderoso que Hobbes

vislumbra ao tratar da premência de um acima dos demais, seu Leviatã. Alguns

comentadores do filósofo inglês irão encontrar em seus escritos um profeta do

capitalismo e do novo papel do Estado dentro desta dinâmica.

O Estado hobbiano, por sua vez, tenderá sempre ao acréscimo, pois é de essência

imperialista; como uma de suas finalidades é garantir a acumulação primitiva do capital,

a produção deve aumentar em razão inversa do controle dos cidadãos sobre a máquina

estatal12

.

A era das massas começa a surgir neste momento e não podemos deixar de

apontar algumas percepções destes filósofos e do que seriam suas filosofias políticas.

Por exemplo, será através do estabelecimento de um pacto que Hobbes tentará resolver

o problema dos conflitos internos. A multidão desgovernada será um problema a

solucionar. Importante lembrar que seria essa irracionalidade das multidões que justifica

na tradição cristã a necessidade de um mandatário de Deus. A teoria hobbiana adotará

os mesmos motivos, mas sua solução é mais simples: o Leviatã é necessário unicamente

porque sem ele não há como manter uma ordem. Sem uma força externa que controle

tudo, sem dúvida, os homens cairão na barbárie fruto de suas paixões. O artifício do

pacto é assim figura central no estabelecimento da autoridade estatal dentro do sistema

centralizador que Hobbes propõe.

12 Idem, p. 17.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 17: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

17

O caso espinosano é bem diverso. Segundo Espinosa não há um contrato

propriamente dito, mas na realidade um arranjo de forças que, sob determinada forma,

será a norma a reger a relação da composição política. Isso se dá em um campo muito

mais prático do que teórico, na medida em que a obediência aos pactos e tratados

firmados apenas é necessária enquanto a vontade de mantê-los permanecer:

A palavra dada a alguém, pela qual alguém se comprometeu só por palavras a fazer esta

ou aquela coisa que pelo seu direito podia não fazer, ou vice-versa, permanece válida só

enquanto não se mudar a vontade daquele que fez a promessa. Com efeito, quem tem o

poder de romper uma promessa, esse realmente não cedeu o seu direito mas só deu

palavras13

.

Veremos não uma relativização do contratualismo clássico, mas uma teoria de

um acordo baseado na utilidade e em um realismo pautado pela conveniência. Percebe-

se que é não mais uma determinação inquebrantável a partir da palavra dada. A palavra

não possuirá qualquer poder além daquele que o direito, a vontade e a potência dos

indivíduos lhe outorga.

O contrato, ou as leis pelas quais a multidão transfere o seu direito para um só conselho

ou para um só homem devem, sem dúvida, ser violadas quando interessa à salvação

comum violá-las.

Além disso, o próprio soberano não será, para Espinosa, em hipótese alguma

maior universo populo. A potência da cidade sempre será definida pela potência da

multidão. Na medida em que nenhum cidadão privado deve superar em potência a

multidão, da mesma forma ocorrerá com o soberano. De tudo o que veremos restará

assim claro que “o direito do estado, ou dos poderes soberanos, não é senão o próprio

direito de natureza, o qual se determina pela potência, não já de cada um, mas da

multidão, que é conduzida como que por uma só mente (...)14

”. Por esses motivos nota-

se que a compreensão acerca dos limites e possibilidades da formação política

necessariamente precisa passar pela análise de seus elementos mais fundamentais.

Desta forma o trabalho terá seu início no estudo das leis e do estado de natureza.

Através da apresentação de algumas das diferenças básicas entre as teorias clássicas e as

novas acepções modernas, pretende-se abrir com o estabelecimento de uma diferença

entre ética e moral. Explicaremos. Na concepção original fruto de uma tradição cristã, o

direito natural será aquele que está conforme uma essência dada, por exemplo, no fato

do homem ser um animal social. A partir desta premissa, a execução plena de nosso

direito de natureza será somente em cumprir da melhor maneira as determinações de

nossa essência dada previamente. Assim, o estado de natureza seria em verdade um

13 TP, II, 12. 14TP, III, 2.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 18: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

18

estado das coisas conforme a essência em uma boa sociedade, visto que o cumprimento

dos desígnios da natureza seria a concretização do direito propriamente dito, logo,

também a primeira função a ser cumprida serão os deveres para com esta essência e sua

realização. Assim aquele que melhor compreende quais são os desígnios da natureza

será aquele apto a comandar. De maneira bem rápida está explicada a necessidade do

governo dos sábios, daqueles que são capazes de captar os auspícios superiores e

passarem aos demais sob a forma de comandos ou ordens.

Conforme veremos, o estado de natureza para a modernidade não será uma

forma das coisas dada a partir da realização de uma essência natural embutida na

criação de tudo. Na realidade o estado de natureza será um estado nem anterior nem

posterior, mas exterior ao estado social ou civil. Será o momento no qual as forças não

possuem qualquer tipo de mecanismo elaborado para impedir que se choquem de

maneira descoordenada e, por consequência, se destruam mutuamente. Será o governo

das paixões tão somente, e o direito de cada indivíduo nesse estado se estende até onde

for sua capacidade para o impor. Vemos mais do que um problema jurídico, uma

situação de caos político ditada unicamente pela força que cada um tiver para se

conservar e dominar os demais.

Todavia não podemos dizer que a visão de nossos filósofos caminhe em

uníssono acerca do papel do direito de natureza e da lei natural, por este motivo iremos

posteriormente tratar ponto a ponto as principais diferenças entre Hobbes e Espinosa na

compreensão de cada um destes termos. Utilizaremos então a chamada Carta 50, que

Espinosa escreve para seu amigo Jarig Jelles onde estabelece não só a definitiva ruptura

com a tradição clássica, mas também delimita muito bem suas diferenças para com

Hobbes.

Segue-se a isto a busca pelos elementos formadores desta nova dinâmica social

que nossos autores sugerem. Iremos buscar na construção do comum o movimento da

multidão para a criação do novo corpo. Neste processo ressaltam os objetos ou

elementos que o novo corpo político se propõe a trabalhar. Este foco nos leva à análise

daquilo que o poder apresenta e representa, bem como as questões da igualdade e

desigualdade entre as partes que o compõem e entre estas e ele. Com tal pesquisa

introdutória esperamos ter as ferramentas para trabalhar a união dos indivíduos sob a

nova dinâmica de relações que se inaugura. Tal união, é certo, irá ocorrer desta ou

daquela maneira a depender do contexto histórico e cultural de cada sociedade. E é aqui

que entra a questão da forma a ser trabalhada. É verdade que a forma será resultado de

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 19: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

19

causas históricas e culturais, mas esta apenas será determinante enquanto a obediência

for devida à lei da cidade, e não a quem a comanda, afinal “cada cidadão não está sob

jurisdição de si próprio mas da cidade, da qual tem que executar todas as ordens, (...)

aquilo que a cidade decide ser justo e bom deve ser considerado como se fosse

decretado por cada um (...)”15

. Será esta a razão pela qual o restante do trabalho terá em

seus últimos tópicos o enfoque tanto nas questões acima apresentadas quanto na análise

do pacto, da forma e da justiça. Por fim, esperamos por esta trilha forjar as ferramentas

para pensar na constituição da democracia, na obediência aos ditames da razão e, enfim,

naqueles fundamentos que possibilitam a manutenção da existência do corpo político e

seu caráter democrático.

Para concluir, gostaríamos de dizer que no presente trabalho nos esmeramos em

tentar percorrer os caminhos indicados por Hobbes e Espinosa durante suas formulações

acerca da política e da formação do estado civil. Entendemos que suas teorias

inauguram uma nova forma de elaborar a política, colocando os indivíduos e os

agrupamentos de indivíduos sob novas óticas que escapam à visão moral e que só

podem ser trabalhadas por noções físicas. Suas bases teóricas e conclusões são chaves

fundamentais no esforço em compreender as forças do jogo político ainda operantes,

bem como modos de, pelo retorno às origens, repensar opções e soluções a velhos

problemas que insistem em se apresentar a todos nós.

15 TP, III, 5.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 20: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

2

Das leis naturais e do estado de natureza

The Right Of Nature, wich Writers commonly call Jus Naturale, is the Liberty each man

hath, to use his own power, as he will himselfe, for the preservation of his own Nature;

that is to say, of his own Life; and consequently, of doing any thing, wich in his own

Judgement, and Reason, hee shall conceive to be that aptest means thereunto16

.

Ao mui bondoso e prudente senhor Jarig Jelles

Caro amigo.

Tu me perguntas qual é a diferença entre a concepção política de Hobbes e a minha.

Respondo-te: a diferença consiste em que mantenho sempre o direito natural e que

considero que o magistrado supremo, em qualquer cidade, só tem direitos sobre os

súditos na medida em que seu poder seja superior ao deles; coisa que sempre ocorre no

estado natural17

.

O debate evidenciado na primeira parte da Carta 50 entre Espinosa e seu amigo

Jelles é uma prova da importância da discussão acerca dos sentidos que o direito natural

e o estado de natureza teriam no século XVII, e na verdade, mesmo antes de Hobbes e

Espinosa. Para tanto, no início do trabalho o foco consistirá na análise, mesmo que

breve, das principais características no desenrolar do tempo que tais conceitos como

direito natural e estado de natureza tiveram para a tradição filosófica estabelecida, fonte

a que nossos autores seiscentistas iriam recorrer ao pensarem os fundamentos e origens

da política e do estado civil. Desde já , informamos que o objetivo do presente capítulo

não é depurar nas influência que definiram a teoria clássica todos os aspectos do estado

de natureza e das leis naturais, contudo devemos seguir um breve caminho apontando as

noções principais que envolvem o assunto para enfim apresentar de que modo Hobbes e

depois Espinosa viriam a desenvolcer seus pensamentos.

2.1

Teoria Clássica

Em uma primeira impressão do que se diz na Carta 50 parece que Espinosa e

Hobbes convergiriam acerca de sua teoria do direito natural. Mesmo Espinosa

aparentemente não se oporia às colocações do filósofo inglês. Todavia é necessário que

se desfaça tal impressão demonstrando a sutileza no comentário da carta. Por enquanto

podemos dizer que essa convergência entre os dois existirá apenas enquanto críticos a

16 HOBBES, Thomas. Leviathan. London, Ed. Penguin Books, Reprinted in Penguin Classics 1985, p. 189. 17 ESPINOSA, Benedictus. Carta Nº 50 em resposta a Jarig Jelles, 2 de junho de 1674.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 21: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

21

uma via antiqua que, seguindo uma teoria clássica de matriz cristã, fruto das tradições

platônica, aristotélica e estoica, atribuirá moralidade às leis naturais e pensará o estado

de natureza não como momento pré político mas como uma vida em concórdia a partir

de regras dadas. Veremos que Hobbes e Espinosa formarão seu entendimento acerca do

direito natural:

“(...) distanciando-se tanto da perspectiva jusnaturalista estóica (conhecida, mais tarde,

como teoria do direito natural subjetivo), na qual o direito natural exprime a vontade

racional de justiça, como da perspectiva cristã, na qual o direito natural subjetivo é

acrescido da teoria do direito natural objetivo, entendido como existência de uma ordem

jurídica natural decretada pela vontade de Deus sob a forma de leis divinas naturais e

anterior à ordem jurídica positiva, instituída pelos homens. Nas duas perspectivas

tradicionais, o direito natural tenderá a ser interpretado como um dever-ser: o dever de

ser racionalmente justo e o dever de cumprir a lei divina natural.”18

Passaremos rapidamente à descrição de alguns dos elementos básicos que esta

chamada via antiqua apresentará. A primeira característica se refere à possibilidade de

atribuição da natureza de um ser em função daquilo que seria sua perfeição. Esta

perfeição, por conseguinte, é dada por um finalismo (uma ordem dos fins) próprio da

coisa, parâmetro para que se tenha algo como bom ou mau a partir de um ponto de vista

que podemos chamar de “fixo” e que diz respeito a uma ordem eterna da natureza. Resta

claro que o bom seria então tudo aquilo que for útil à obtenção do fim almejado, que em

última instância significa a realização de uma natureza essencial. No caso do homem

seria o fato deste “ser „naturalmente‟ sensato e sociável”19

. A partir desta predisposição

– ou melhor, determinação – que faz com que os homens naturalmente sejam sensatos e

sociáveis, considerar-se-á o estado de natureza como a realização dessa aptidão-fim por

cada um. Logo, para esses indivíduos sociáveis a realização do estado de natureza seria

viver conforme os ditames de uma “boa” sociedade civil20

, não importando as condições

nas quais o indivíduo se encontre, deverá sempre obedecê-los e aplicá-los (mesmo que

nem vivesse em uma sociedade de direito propriamente dita). Sendo assim, a obediência

aos deveres é ponto central nessa plena realização da natureza humana “(...) pois os

poderes naturais existem apenas em potência, e não são separáveis de um ato da razão

que os determina e realiza em função de fins aos quais eles devem servir”21

. Isso

significa dizer que há uma determinação da razão como único caminho possível para

distinção e acolhimento dos fins a seguir. Se é a razão que distingue o bem agir do mal

18 CHAUI, Marilena. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2003, pp. 290-291. 19 DELEUZE, Gilles. Espinosa e o problema da expressão (Spinoza et le probléme de l‟expression), Ed. Minuit,

Paris, 1968. Trad. Hortência S. Lencastre, p. 126. 20 Idem, p. 126. 21 Idem.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 22: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

22

agir pode-se inferir sem problemas que aquele que for mais racional será, logicamente

mais apto a fazer tais distinções com maior êxito. Desta maneira se explica o argumento

do sábio como bom governante, pois se a razão possui este papel, o sábio será

naturalmente:

“(...) o melhor juiz da ordem e dos fins dos deveres que daí decorrem, dos serviços e das

ações que cabe a cada um fazer e executar. Podemos adivinhar que partido o

cristianismo iria tirar dessa concepção da lei de natureza. Com ele essa lei tornou-se

inseparável da teologia natural e até da Revelação.”22

É possível compreender o quão útil tal argumentação foi ao cristianismo. Desde

a introdução de aptidões ou essências dadas ao homem por uma ordem superior: por

Deus; da distinção destas determinações vindas de cima como o próprio bem, ou seja,

como a realização de uma perfeição que constitui a essência e objetivo mesmo do

homem: noção de bem e mal, salvação e pecado; até mesmo a defesa da figura de um

sábio capaz de captar o que seriam tais ordens, representando um verdadeiro tribunal

desta racionalidade (ou da vontade divina) entre os homens: o que se assemelha em

muito ao papel de um Pontífice que se defendia à época como sendo a única ligação

possível entre Deus e os homens, por exemplo. Sozinho um cristão não se dirigiria

diretamente a Deus, mas somente através daqueles sábios versados nos mistérios da fé,

os únicos a quem era possível captar os ensinamentos celestiais. A respeito do papel da

Igreja no controle social e da eventual resistência contra esta função imposta já falamos

um pouco mas trataremos mais adiante, em especial acerca da questão inglesa durante a

Revolução de 1640, tomando como ponto de partida o programa dos separatistas

protestantes das classes baixas em Inglaterra:

“O seu programa implicaria destruir a Igreja nacional, deixando a cada congregação a

responsabilidade de seus próprios negócios e havendo apenas um tênue contato entre as

diversas congregações; a Igreja não teria mais condições para moldar a opinião segundo

um padrão único, para punir o “pecado” ou para proibir a “heresia”. Não haveria

controle sobre o que pensassem as classes médias e baixas”23

.

Veremos então por leis da natureza as determinações dadas por uma ordem

superior que estabelece fins aos quais devemos seguir por meio de nossa razão e que por

isso são considerados bons porque úteis à nossa natureza. Logicamente, por estado de

22 DELEUZE, Gilles. Espinosa e o problema da expressão (Spinoza et le probléme de l‟expression), Ed. Minuit,

Paris, 1968. Trad. Hortência S. Lencastre, p. 126. Estas quatro teses, assim como as quatro teses contrárias que

indicamos no parágrafo seguinte, estão bem assinaladas por Léo Strauss, no seu livro Droit naturel et Histoire (trad.

fr., Plon, 1953). Strauss confronta a teoria de Hobbes, da qual sublinha o caráter de novidade, com as concepções da

antiguidade. 23 In.: HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça: idéias radicais durante a revolução inglesa de 1640, tradução,

apresentação e notas Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 53.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 23: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

23

natureza se entenderia a vida de acordo com essas determinações vindas de uma ordem

superior e que constituem nossa essência mesma. A forma pela qual se tinha o estado de

natureza apenas permitiria o julgamento das coisas como boas ou más segundo critérios

tidos como dados, ou seja, atribuídos a partir de uma valoração moral conforme

comentamos acima.

2.2

Ruptura com a teoria clássica

Hobbes irá rebater a via da teoria clássica de forma contundente ao afirmar que a

coisa se definirá não por sua essência, mas por uma potência, logo o direito natural

significa tudo o que pode a coisa, e não aquilo que é conforme a essência da coisa. Esta

mudança vinda da nova concepção de mundo com base no movimento já seria

suficiente ponto de ruptura entre os pensamentos dos dois filósofos (no caso sendo aqui

Espinosa um certo herdeiro de Hobbes, como Deleuze virá dizer em seus cursos em

Vincennes) em relação à tradição escolástica que se impunha. “Está em seu direito tudo

aquilo que ele pode”, diria. No campo da política poderíamos inclusive extrair da

compreensão de tudo como expressão de uma potência que “os peixes grandes comem

os pequenos”, ou seja, agora o direito é definido não por regras imutáveis insculpidas no

universo, mas pela capacidade de exercício deste direito. Eis a diferença. Pelo que

vimos até então se chamava direito natural aquilo que “era conforme a essência, e então

o conjunto das ações que estavam permitidas em nome da essência”24

. Hobbes tomará

outro rumo: “Tudo o que vocês podem é permitido, é o direito natural”25

. O direito

natural antes de Hobbes designava a ação moral conforme uma essência, após,

significará a própria potência para agir, ou seja, não mais uma determinação de bem

conduzir dada por uma essência provinda de uma ordem superior, mas sim a própria

efetuação na existência através das possibilidades de cada um.

Deste modo, como pretendemos evidenciar ao longo do presente capítulo, o

estado de natureza por diversos aspectos se distingue do estado civil. Tal se explica pelo

fato de que no estado civil haverá proibições, ou seja, coisas que o indivíduo poderia

fazer mas que no entanto lhe são interditadas, “o que quer dizer que não é do direito

24 DELEUZE, Gilles. Cursos de Vincennes sobre Espinosa (e o direito natural). Curso de 12/12/1980, p. 33. 25 Idem, p. 33.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 24: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

24

natural, é do direito social”26

. Isso não significa que o estado de natureza seja um

momento na evolução humana, uma etapa dentre muitas na qual os indivíduos vivam

sem a presença do estado apenas sendo regulados por algo chamado direito natural.

Eles [Hobbes e Espinosa] dizem que logicamente, o conceito de estado de natureza é

anterior ao estado social. Eles não dizem que esse estado existiu. Se o direito de

natureza é tudo aquilo que está na potência de um ser, definiremos o estado de

natureza como sendo a zona desta potência. É seu direito natural. É então intuição do

estado social visto que o estado social contém e se define pelas proibições sobre

qualquer coisa que eu posso. Bem mas, se me proíbem, é que eu posso. É assim que

vocês reconhecem uma proibição social. Então, o estado de natureza é primeiro em

relação ao estado social do ponto de vista conceitual.27

Entretanto Hobbes admite que, apesar de não ter havido esta época na história da

humanidade, afirma que, do mesmo modo, sempre, em qualquer época houve

autoridades soberanas que para se manterem independentes sustentaram uma condição

de eterna rivalidade para com seus vizinhos e pares, seja pelas armas a postos, pela

construção de fortificações, intrigas e espionagem, enfim, sempre mantendo suas armas

em punho para caso haja ameaça vinda de fora. Isso, explicita Hobbes, denota não uma

guerra em sentido estrito, mas uma postura de guerra28

. A outra proposição segue-se da

anterior. Eis a lição de Deleuze sobre o tema:

(...) se o que é primeiro é o estado de natureza, ou se o que é primeiro é o direito, é o

mesmo visto que, no estado de natureza tudo o que eu posso é meu direito. Desde

então, o que é primeiro é o direito. Desde então, os deveres não serão mais do que as

obrigações segundas tendendo a limitar os direitos para o devir social do homem. Há

que limitar os direitos para que o homem devenha social, mas o que é primeiro é o

direito”29

A última proposição segue-se das anteriores. Se na tradição antiga o sábio seria

o melhor juiz, agora do ponto de vista do direito natural, tanto Hobbes quanto Espinosa

entenderão que o racional e o louco valeriam o mesmo. Isto por sua potência. Tanto o

racional quanto o louco fazem tão somente o que está em sua potência de agir.

Obviamente não podemos dizer que eles são iguais. O que Espinosa e Hobbes dirão – e

aqui que reside sua novidade – é que, do ponto de vista do direito natural eles não se

diferenciam, porque cada um faz o que pode. “A identidade do direito e da potência

assegura a igualdade, a identidade de todos os seres sobre a escala quantitativa.

26 Idem, p. 33. 27 DELEUZE, Gilles. Cursos de Vincennes sobre Espinosa (e o direito natural). Curso de 12/12/1980, p. 33. Grifos

nossos. 28 “a posture of War”. In.: HOBBES, Thomas. Leviathan. London, Ed. Penguin Books, Reprinted in Penguin Classics

1985, p. 188. 29 DELEUZE, Gilles. Cursos de Vincennes sobre Espinosa (e o direito natural). Curso de 12/12/1980, p. 34. Grifos

nossos.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 25: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

25

Seguramente haverá uma diferença entre o racional e o louco, mas no estado civil, no

estado social, não do ponto de vista do direito natural”30

. Assim, inicialmente Hobbes e

depois Espinosa, acabam com o princípio da competência do sábio ou da competência

de alguém superior. Ninguém é competente para mim, diz Deleuze. E mais, ninguém

poderá saber por mim. Assim, diferente do que se diz pela tradição que não há

consentimento, em verdade a sociedade não se forma porque o sábio nos diz a melhor

maneira de realizar nossa essência. A sociedade se forma sim pelo consentimento dos

que nela participam. É fato que no caso de Hobbes o ato da vontade verá seu termo no

momento em que o pacto é firmado, quando todas as vontades e desejos serão

transferidas para o poder supremo, plenipotenciário de cada um e de todos reunidos

uniformemente sob sua égide, mas podemos mesmo assim identificar a presença da

vontade tanto nos indivíduos quanto no soberano após a transferência. Não importa no

momento quem é o sujeito da vontade, mas sim que essa será uma força agregadora da

sociedade. Fato ignorado anteriormente. Sobre isto cabe apenas dizer que o tema será

abordado posteriormente em maiores detalhes.

Espinosa virá retomar esta concepção de direito natural em Hobbes, mas com

grandes mudanças. Deleuze afirma que, no que concerne ao direito natural, Espinosa se

declararia um discípulo do inglês. No entanto, da mesma forma que ocorre com

Descartes, do nosso ponto de vista, Espinosa radicaliza a tal ponto a teoria hobbina que

esta se tornará irreconhecível. Não só por levar os argumentos do inglês às últimas

consequências, mas também por garantir os direitos naturais não como uma

reminiscência no estado civil, mas torná-los a verdadeira regra da relação entre cidadão

e soberania vista a partir de um caráter multitudinário. Assim como Hobbes representa

uma enorme mudança para a teoria do direito natural de matriz cristã, Espinosa insere

elementos radicais em suas teses políticas descolando-se de Hobbes por completo: se no

primeiro vemos a instituição una, centralizada, subjugando o povo mas ao mesmo

tempo destituindo um governo dos sábios, bem como um finalismo da natureza; no

segundo vemos a construção conceitual (e prática) da cidadania, do elemento

democrático e da própria multidão através da manutenção do direito natural. Em

Espinosa esse direito natural será a realização do esforço em perseverar, será o direito

dado na medida em que temos potência para exercê-lo, e é aqui que reside a ruptura

com a via antiqua.

30 Ibid., p. 34.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 26: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

26

Fundado em um utilitarismo da própria coisa, o direito natural será um bem

conduzir de acordo com as regras do que é útil a cada um. A racionalidade e

sociabilidade do homem são úteis na vivência em sociedade, logo a lei de natureza

determina que este é o bem conduzir do ponto de vista do que é melhor, útil para estes

indivíduos. O que é melhor é definido pela racionalidade, o que significa que deve haver

uma determinação da razão na identificação de um bem conduzir que leva os indivíduos

a obedecerem a lei natural. A lei da natureza nesta concepção é o seguir regras. É

admitir que há regras antes mesmo de entender que direito é relação. Relação é o que

define a própria potência dos indivíduos para agir e, logicamente essa potência dos

indivíduos para agir constituirá seu direito.

Na visão ética em oposição à moral, naquela em que o direito natural significa

tanta potência quanto o indivíduo tiver para exercê-lo, a lei será idêntica ao direito. As

leis naturais serão normas do poder, e não regras do dever. Será por isso que a lei moral

caminha lado a lado com a mistificação. Quanto menos compreendemos as leis naturais

mais somos levados a crer que se tratam de proibições. É o caso de Adão. Por esse

motivo a razão e a liberdade, assim como o ser cidadão para Espinosa , existem como

construções, inseparáveis de um devir. “Porque os homens não nascem civis, fazem-se”

(TP, V, 2.). E será a experiência que guiará o processo de construção da liberdade. Adão

ou a criança representam estados de impotência ou de escravidão. O primeiro homem

não poderia ser livre e racional, visto não ter possuído tempo para esse fazer-se livre. Se

assim fosse jamais teria cometido o pecado por entender as causas da advertência divina

não como uma proibição. Da mesma forma se dá conosco durante a infância. Nunca

somos tão dependentes de causas externas como nesta fase de nossas vidas. Por isso

nesse trajeto não faz sentido afirmar, como o faz a tradição cristã, que Adão antes do

pecado era livre, racional e perfeito. “Ou seja: Não é o pecado que explica a fraqueza, é

a nossa fraqueza primordial que explica o mito do pecado” 31

. Na construção da

cidadania o caminho é o mesmo.

Proibições de fato serão aquelas limitações advindas da formação social.

Somente por isso poderíamos falar em limitação ao direito natural no estado civil. As

leis morais ou os deveres, por sua vez, são leis exclusivamente sociais, civis. Quando

acontece da razão se referir favorável ou negativamente a determinada coisa de forma

análoga à moral ela o faz por motivo diverso. Quando a “Ética julga sentimentos,

31 DELEUZE, Gilles. Espinosa e o problema da expressão, p. 129.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 27: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

27

condutas e intenções relacionando-os”, o faz não por vinculação a valores

transcendentes, mas, como diz Deleuze, a modos de existência que eles supõem ou

implicam. “Um método de explicação dos modos de existências imanentes substitui

dessa maneira o recurso aos valores transcendentes”32

. Este será o cerne da

argumentação que acompanhará tal etapa do trabalho e que denota parte da inovação

presente nas concepções modernas de Hobbes e Espinosa sobre mundo, necessário, bom

e útil. É só uma pequena parte.

2.3

“The Right of Nature”

O direito natural, a que muitos autores comumente chamam jus naturale, é a liberdade

que cada homem tem de utilizar seu poder como bem lhe aprouver, para preservar sua

própria natureza, isto é, sua vida; consequentemente, é a liberdade de fazer tudo aquilo

que, segundo seu julgamento e razão, é adequado para atingir esse fim “33

.

O direito natural será para Hobbes algo muito diferente daquilo que significava

nas tradições estoica e cristã, contudo há algumas questões a serem desenvolvidas e até

aproximações a serem feitas. Para tanto iremos analisar este primeiro parágrafo do

capítulo XIV do Leviatã passo a passo tentando ser ao máximo coerentes com o método

utilizado por Hobbes o método resolutivo-compositivo, fundamental para compreensão

de sua obra. De acordo com este método, conforme o próprio autor nos explica, quebra-

se os termos em seus elementos mais simples para novamente reuni-los em toda sua

complexidade, só que agora assegurada a intelegibilidade resultante do procedimento34

.

Thomas Hobbes – enquanto linguista e expoente do cientificismo e da razão da

época – entendeu o termo direito como “aquela liberdade que todo homem possui para

utilizar suas faculdades naturais em conformidade com a razão reta”35

. Me explico.

Liberdade será um termo utilizado por Hobbes em diversos momentos e caracterizado

através do linguajar fisicista da época. Liberdade será a falta de impedimentos externos.

Quando se diz impedimentos externos a menção é clara: o autor se refere à

constrangimentos ao próprio movimento dos corpos. Nesse sentido tanto faz se são

corpos animados ou inanimados, o movimento deve ser considerado de acordo com as

capacidades (ou faculdades naturais) de cada um, seja o que for. Desta maneira,

32 Idem, p. 132. 33 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo, Ed. Martin Claret, 2013. 34 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 16, N.T. 35 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 35.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 28: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

28

podemos associar a ideia de liberdade à de necessidade, esta última significando o

resultado das causas que determinam os homens a agir36

. Um corpo é livre para fazer

aquilo que ele pode e só haverá cerceamento de liberdade caso essa capacidade de fazer

o que se pode seja alijada. Seja a água canalizada por diques, seja alguém preso por

correntes ou muros, percebemos que liberdade possui limites bem claros na filosofia

hobbiana, se referindo à coerção à capacidade de movimento natural das coisas. No

entanto, não podemos dizer que no estado civil a liberdade esteja dada na própria

constituição do ser37

, pois apesar de determiná-lo ao exercício de suas aptidões naturais,

ela se classifica pela ausência de impedimento externo, logo a liberdade será

determinada por um fora, mesmo que dependa da força do indivíduo. No embate natural

das forças na política a liberdade se chamará poder e não virá se opor à ideia de

necessidade, afinal as ações livres possuirão causas necessárias de ser a partir da

ausência (ou presença) de impedimentos exteriores conjugados às próprias forças das

quais o indivíduo se constitui. Um indivíduo mais forte tem em teoria mais chance de

não estar sob o domínio de ninguém, mas um outro sujeito mais inteligente pode

conquistá-lo, ou ainda, outras causas externas circunstanciais e alheias aos dois sujeitos

podem submeter um ao jugo do outro, logo essa aparente vantagem é enganosa. Não há

diferença fundamental entre os seres humanos que cause tão profunda discrepância

entre um indivíduo e outro. O que em uns falta em força, em outros sobrará em astúcia e

vice e versa. Tudo dependerá de que forma os indivíduo empregarão suas forças no

objetivo de se autoconservarem, e é nisto que consiste a própria liberdade destes.

Agora podemos ver melhor as ideias do autor se delineando: se a medida da

liberdade é a ausência de impedimentos exteriores, nos seres humanos além da força

física, esta se traduzirá também pela possibilidade do uso desimpedido de nossa razão,

afinal, a razão e o julgamento, por sua vez, têm por função buscar aquilo que é útil ao

indivíduo e afastar aquilo que lhe é nocivo, caracterizando assim a própria regra de

conservação do corpo, pois a primeira fundação – como diz o inglês – do direito natural

36 HOBBES, Thomas. Leviathan. London, Ed. Penguin Books, Reprinted in Penguin Classics 1985, p. 263. 37 “But when the impediment of motion, is in the constitution of the thing it selfe, we use not to say, it wants the

Liberty; but the Power to move; as when a stone lyeth still, or a man is fastned to his bed by sicknesse”. In.:

HOBBES, Thomas. Leviathan. London, Ed. Penguin Books, Reprinted in Penguin Classics 1985, p. 262. Tradução

livre: “Mas quando o impedimento de locomoção, está na constituição da coisa em si, nós não dizemos que ela quer

liberdade; mas poder para mover-se; assim como uma pedra jaz parada, ou um homem está atado à sua cama por

doença”. Essa tese apresentada aqui por Hobbes pode ser útil para caracterizar os próprios indivíduos após a

formação do Pacto, quando abrem mão de parte de seus direitos em favor de um terceiro, estando assim limitados

agora em sua constituição no estado civil. Retomaremos este tema no momento oportuno.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 29: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

29

seria a própria conservação da vida e das partes que compõem o indivíduo38

. Como é

dado a cada um se defender de tudo o que ameace a própria existência, todos os meios

para a auto conservação serão permitidos39

. O direito natural exprime a capacidade ou

as faculdades naturais que o indivíduo possui de agir e, logicamente, de se defender.

Neste caso a capacidade vai até onde forem suas capacidades e por elas será dada, o que

é o limite do exercício do direito natural por parte do sujeito. Estas forças que o

indivíduo terá potencialmente podem ser traduzidas por aquilo que Hobbes chama de

poder. Na definição inicial do capítulo X do Leviatã tem-se poder como: “(...) his

present means, to obtain some future apparent Good. And is either Originall or

Instrumental40

”. O poder natural ou original será as faculdades do corpo ou mente,

enquanto que o instrumental se traduz por todo meio ou instrumento adquirido41

, ou

pelo menos o qual o indivíduo não nasceu com, mas obteve por algum meio. O direito

então reside no limiar das faculdades naturais de cada um e aquilo provindo de nosso

engenho também é pleno exercício desse direito, afinal o uso da inteligência é

reconhecido por Hobbes como uma das maiores armas que um indivíduo pode possuir.

Por outro lado parece perfeitamente admissível que os atos motivados pelo medo

sejam também compatíveis com a ideia de liberdade42

hobbiana. Por exemplo, no caso

da conquista militar quando, para evitar a morte, o vencido aceita se submeter ao

vencedor e “so long as his life, and the liberty of his body is allowed to him, the Victor

shall have use thereof, at his pleasure”43

. O termo “liberdade de seu corpo” denota

valor exclusivamente físico, pois este indivíduo dominado não seria mais possuidor de

uma liberdade (enquanto independência em relação a determinações externas), no que

diz respeito à física, a liberdade de locomoção desse corpo permanesce, todavia agora

voltada a atender as vontades e exigências daquele que o dominou. Dizemos isso porque

ao mesmo tempo o indivíduo estaria a utilizar os meios disponíveis para a manutenção

38 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 35. 39 “Mas, como é vão alguém ter direito ao fim se lhe for negado o direito aos meios que sejam necessários, decorre

que, tendo todo homem direito a se preservar, deve também ser-lhe reconhecido o direito de utilizar todos os meios, e

praticar todas as ações, sem as quais ele não possa preservar-se”. In.: HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed.

Martins Fontes, 1992, p. 36. 40 HOBBES, Thomas. Leviathan. London, Ed. Penguin Books, Reprinted in Penguin Classics 1985, p. 150. Tradução

livre: “(…) são seus meios presentes, para obter algum future e aparente bem. Podendo ser original, ou instrumental.” 41 Conforme Renato Janine nos recorda, o poder sempre existirá, seja no estado de guerra ou na sociedade civil será

sempre uma preeminência: “a diferença que dá a um indivíduo uma certa vantagem sobre outro, para a obtenção de

um bem futuro. O poder é o outro nome para a desigualdade: impossível suprimi-la, e é por isso que a condição

humana após o pecado exige a salvação política”. In.: Ribeiro, Renato Janine. A marca do Leviatã, São Paulo: Ática,

1978 (Ensaios; 42), p. 18. 42 Idem, p. 262-263. 43 Idem, p. 255 Tradução livre: “enquanto sua vida, e a liberdade de seu corpo lhes forem permitidas, o vencedor

deverá ter seu uso como bem entender”.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 30: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

30

de sua existência, logo, é o exercício da própria liberdade de cada um para atingir a sua

prórpia conservação44

. Assim, além de ser a efetuação da liberdade, mesmo a submissão

devido ao medo quando da conquista será para Hobbes um meio legítimo do exercício

do direito natural do indivíduo, neste caso tendo por medida aquilo que lhe for possível.

Ou seja, Hobbes trata o medo45

como uma paixão advinda da própria necessidade de

conservação, afinal “That wich men desire, they are also sayd to Love: and to Hate

those things, for wich they have Aversion46

”, e essa aversão, se somada à ideia de poder

de ferir pelo objeto será medo (“Aversion, with opinion of Hurt from the object,

Feare”47

). Contudo, o medo é apenas um incentivo, não é causa determinante da ação

do sujeito pois este sempre terá, como alega Hobbes, a liberdade para agir ou não:

Feare and Liberty are consistent; as when a man throweth his goods into the Sea for

feare the ship should sink, he doth it neverthelesse very willingly, and may refuse to doe

it if he will: It is therefore the action, of one that was free: so a man some times pays his

debt, only for feare of Imprisionment, wich because no body hindred him from

detaining, was the action of a man at liberty. And generally all actions which men doe

in Commonwealths, for feare of the law, or actions, wich the doers had liberty to omit48

.

E vemos no De Cive:

Contudo, se os meios que ele está para usar, ou a ação que está praticando, são

necessários ou não à preservação de sua vida e membros – isso só ele próprio, pelo

direito de natureza, pode julgar. Pois digamos que outro homem julgue que é contrário à

reta razão que eu deva julgar do perigo em que eu mesmo incorro: então por que, por

aquela mesma razão e igualdade natural que vige entre nós, se ele julga o que me diz

respeito, não hei também eu de julgar das coisas que a ele se referem? Portanto convém

com a razão reta, isto é, pertence ao direito de natureza, que eu julgue se ela conduz ou

não a minha preservação.49

Deste modo percebemos que o “atingir o fim” ao qual Hobbes se refere trata em

verdade da realização de uma potência de autoconservação por parte do indivíduo que,

44 “Por isso, conseguimos companheiros ou pela força ou pelo consentimento. No caso da força, é lícito que o

vitorioso exija garantias do que o vencido no futuro o obedecerá (a menos, é claro, que a pessoa que está sendo

forçada prefira escolher a morte)”. In.: HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 40. 45 “(...) espero que ninguém vá duvidar de que, se fosse removido todo o medo, a natureza humana tenderia com

muito mais avidez à dominação do que a construir uma sociedade. Devemos portanto concluir que a origem de todas

as grandes e duradouras sociedades não provém da boa vontade recíproca que os homens tivessem uns para com os

outros, mas do medo recíproco que uns tinham dos outros”. In.: HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed.

Martins Fontes, 1992, p. 32.

E ainda quando Hobbes acrescenta nota manuscrita ao final deste trecho: “A isto se objeta: é tão improvável que os

homens chegassem à sociedade civil devido ao medo que, tivessem eles medo, nem mesmo suportariam o olhar uns

dos outros. Mas quem assim pensa presume, creio eu, que temer é exatamente o mesmo que apavorar-se.

Compreendo porém, na palavra medo, uma certa antevisão de um mal futuro; por isso não penso que fugir seja o

único efeito do medo; a quem sente medo também ocorre desconfiar, suspeitar, acautelar-se e até mesmo agir de

modo a não mais temer”. In.: HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 32, nota do

autor, (nº. 7 na edição). 46 Ibid., p. 119. 47 Ibid., p. 123. 48 Ibid., p. 262, G.N. 49 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 36.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 31: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

31

agirá segundo esse preceito realizando todo seu potencial para tanto desde que não haja

quaisquer impedimentos externos ao pleno exercício dessa potência de viver e se

conservar que impeçam este que seria seu movimento natural. Por fim, para que

possamos melhor compreender o que diz o autor acerca do direito de natureza enquanto

força de autoconservação, vale trazer à tona a importante diferenciação que Hobbes

apontará entra a lei e o direito de natureza.

For though they that speak of this subject, use to confound Jus and Lex, Right and Law;

yet they ought to be distinguished; because Right, consisteth in liberty to do, or to

forbeare; Whereas Law determineth, and bindeth to one of them: so that Law, and

Right, differ as much, as Obligation, and Liberty; wich in one and the same matter are

inconsistent.50

Isso significa que para Hobbes o direito passa pelo que expusemos até agora

como a liberdade que cada indivíduo teria de fazer aquilo que lhe aprouver, ou seja,

ainda depende do próprio juízo humano no que se refere à sua autoconservação, ou seja,

como nas palavras de Marilena Chauí, o direito natural é um fato (da natureza) e um

poder (de autoconservação)51

. Resumidamente o próprio Hobbes nos diz que “pela

palavra direito, nada mais se significa do que aquela liberdade que todo homem possui

para utilizar suas faculdades naturais em conformidade com a razão reta”52

. Em

decorrência, aquilo que chama de a primeira fundação do direito natural será o empenho

na proteção da própria vida e de seus membros dentro daquilo que suas forças

permitirem.

Lei por outro lado será um preceito ou regra geral estabelecida pela razão, que

impede os indivíduos de agirem de modo a acabarem consigo próprios ou privarem-se

dos meios necessários à sua conservação. Conforme veremos a seguir, a condição

humana para Hobbes consiste em um estado permanente de guerra. Neste estado, como

vimos, os indivíduos terão o direito de se utilizarem de todos os meios ao seu alcance

para se defenderem contra os demais, “every man has a Right to every thing; even to

one anothers body”53

e, por óbvio, nesta condição de guerra os homens nunca estarão

seguros. Daqui advêm a base da regra de ouro que Hobbes estabelecerá: os indivíduos

buscarão a paz enquanto ainda houver esperanças de obtê-la, para tanto, cada um

deveria concordar em renunciar aos seus direitos na mesma medida que os demais pois,

se cada um fizer tudo aquilo que lhe é permitido naturalmente a paz jamais será 50 Op. cit. p. 189. Grifos do autor. 51 CHAUI, MARILENA. Política em Espinosa. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2003, p. 291. 52 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 35. 53 HOBBES, Thomas. Leviathan. London, Ed. Penguin Books, Reprinted in Penguin Classics 1985, p. 190.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 32: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

32

alcançada. Portanto, diz Hobbes em mais uma referência às Escrituras: “This is that Law

of the Gospell; Whatsoever you require that others should do to you, that do ye to them.

And that Law of all men, Quod tibi fieri non vis, alteri ne feceris.”54

. Conclui-se que a

regra de ouro que para Hobbes propicia a sobrevivência dos indivíduos que, de outra

forma estariam sujeitos à guerra permanente, consistirá em não fazer ao outro o que não

queremos que nos façam. Do mesmo modo, desejamos que o outro queira sempre de

acordo com nossa própria vontade.

2.4

Do Estado de Natureza

Segundo Hobbes, o estado de natureza é a forma social que caracteriza a vida

humana antes de seu ingresso no estado civil ou social. No capítulo XIII do Leviatã e no

início do Cidadão, Hobbes descreve o estado de natureza como um estado de igualdade.

A condição humana determina que a diferença entre as faculdades dos indivíduos não

serão relevantes a ponto de se considerar que um sujeito tenha naturalmente de

nascimento (antes do advento da lei civil) meios mais aptos a sobrepujar os demais. No

entanto – e é importante frisar – os homens não são iguais por seu modo de viver ou de

morrer. A igualdade reside no qualquer um pode matar qualquer um, afinal “o estado de

igualdade é um estado de guerra”55

, afirmará Hobbes. A igualdade não irá se basear na

igualdade da vida ou da morte, mas na do homicídio, “no terror ante a morte violenta,

espada de Dâmocles suspensa sobre a condição humana”56

. É a igualdade que dá aos

homens a vontade de se matarem e roubarem uns aos outros, que faz almejarem o poder

sobre seus semelhantes; é na igualdade entendida como agressão, em suma, que se

encontra a raiz das diferenças, ou seja, da desigualdade”57

. A igualdade é o que causa a

incerteza na vida dos homens. O sistema hobbiano, conforme veremos, opera desde o

nível mais alto ao mais baixo com a lógica da desigualdade como mantenedora da paz.

Ou seja, com a opressão sendo a força de coesão da sociedade. É o equilíbrio saído do

embate direto de forças, contudo tal equilíbrio não é pressuposto e mais se designa pela

eminência de um sobre os demais do que em uma isonomia propriamente dita. Esse

terceiro é o “operador da balança” da sociedade. O equilíbrio hobbiano vem de fora, é a

vitória de uma grande força externa sobre as demais. Deste modo perceberemos que não

54 Op. cit. p. 190. 55 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 182. 56 In.: RIBEIRO, Renato Janine. A marca do Leviatã, São Paulo: Ática, 1978 (Ensaios; 42), p. 19-20. 57 Idem, p. 19-20.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 33: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

33

é na composição de forças que Hobbes vê a paz, mas na proeminência de uma. “A

distância enorme face ao soberano é a condição da paz enquanto fixidez das diferenças

entre os cidadãos, e da limitação da desigualdade entre os homens”58

.

O estado de natureza hobbiano se definirá através das adversidades que os

indivíduos enfrentarão por culpa de suas próprias paixões, desejos e atos. Diferente do

que se pode pensar em um primeiro momento, o estado de natureza ou estado de guerra

não representa uma elucubração do autor de como seria um passado remoto da

humanidade, mas uma condição sob a qual todos os indivíduos estariam sujeitos quando

da ausência de um poder político organizado que servirá de mediador entre os homens.

Como exemplo o autor indica que podemos encontrar o estado de guerra não só antes do

advento do Estado, mas naqueles momentos em que a força do Estado não é suficiente

para conter as paixões dos indivíduos, desmoronando, o que lançaria o país na guerra

civil. Outro exemplo utilizado pelo filósofo inglês ao refutar aqueles que consideram o

estado de natureza como mero exercício de história especulativa é o caso da Américas

de seu tempo, bem como qualquer outra situação em que a multidão não se encontre na

sociedade civil sob a égide de um soberano:

It may peradventure be thought, there was never such time, nor condition of warre as

this; and I believe it was never generally so, over all the world: but there are many

places, where they live so now. For the savage people in many places of America,

except the government of small Families, the concord whereof dependeth on natural

lust, have no government at all; and live at this day in that brutish manner, as I said

before. Howsoever, it may be perceived what manner of life there would be, where

there were no common Power to feare; by the manner of life, wich men that have

formerly lived under a peacefull government, use to degenerate into, in a civil

Warre.59

Em suma, Hobbes virá caracterizar o estado de natureza, condição natural da

humanidade, não como um momento no desenvolvimento humano. Não. Em Hobbes a

humanidade não tem seu desenvolvimento compassado, sua evolução cronificada em

estágios inferiores como a má compreensão da ciência contemporânea levará alguns a

crer. Para a teoria hobbiana o estado de natureza compreende o momento no qual os

indivíduos apenas dependerão de suas próprias forças para se defenderem, significa o

desamparo dos homens, um momento de grande solidão onde não só cada um apenas

tentará salvar a si mesmo (como continuará ocorrendo mesmo no estado civil, é bem

58 Idem, p. 22. 59 HOBBES, Thomas. Leviathan. London, Ed. Penguin Books, Reprinted in Penguin Classics 1985, p. 187. G.N.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 34: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

34

verdade60

), mas no qual a predisposição para a guerra estará sempre pairando no ar. Ou

seja, o estado de natureza caracteriza-se muito mais por esse potencial de guerra no

horizonte sem que haja instrumentos constituídos para evitá-la do que a própria guerra

em si. “So the nature of War, consisteth not in actuall fighting; but in the known

disposition thereto, during all the time there is no assurance to the contrary. All other

time is Peace”.61

Como vemos nas fronteiras entre as nações, guarnecidas por torres,

fortes, guardas, canhões e incontáveis exércitos, assim seria com os indivíduos em

estado de natureza, o que se vê não é necessariamente uma guerra, mas uma postura de

guerra62

. “Entretanto, é dessa forma que os soberanos protegem os empreendimentos de

seus súditos, banindo a miséria que acompanha a liberdade de indivíduos isolados”63

. O

estado de natureza será nesta concepção a inexistência de segurança, o reinado do medo

de todos por todos enquanto vivemos em um mundo que é a realização da própria

condição natural do ser humano.

Assim, neste breve percurso já podemos inferir que a condição humana fora da

sociedade civil é de medo constante bem como de igualdade de condições em face deste

medo ante a morte violenta. Contudo apenas tratamos de como estas paixões afetam os

indivíduos em sua relação defensiva para com outrem. Para melhor compreendermos o

que é o estado de guerra precisamos ir mais fundo, buscando entender o que é a raiz

dessa insegurança que grassa. Para tanto é fundamental explorarmos as causas que

levam os indivíduos a desejarem ferir seus semelhantes e que forças ocultas e

destruidoras levariam os homens a se destruirem mutuamente.

O De Cive inicia já com o argumento de que são quatro as espécies da faculdade

humana, ou de sua capacidade: a força corporal, a experiência, a razão e a paixão.

Nenhuma é dada em igual medida aos seres humanos, apesar de que não há – segundo

Hobbes – discrepância na distribuição destes dons entre todos que seja suficiente para

tornar impossível que um, mesmo considerado mais fraco, triunfe sobre outro tido por

mais forte. A estas capacidades e sua relativa igualdade entre todos que Hobbes

atribuirá a origem dos conflitos. Praticamente tanto o De Cive quanto o Leviatã

principiam dando seguimento a este argumento ao denunciarem aquilo que seria a

60 “Toda associação, portanto, ou é para o ganho ou para a glória – isto é: não tanto para o amor de nossos próximos,

quanto pelo amor de nós mesmos”. In.: 60 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p.

31. 61 HOBBES, Thomas. Leviathan. London, Ed. Penguin Books, Reprinted in Penguin Classics 1985, p. 186. 62 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo, Ed. Martin Claret, 2013, p. 106. G.N. 63 Idem. p. 106.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 35: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

35

principal causa das disputas entre os indivíduos: sua condição de igualdade. Desta

igualdade de capacidades resultará a igualdade quanto aos fins a que se pretendem as

pessoas, apenas variando de acordo com suas paixões e sua razão. Quando estes

desejam a mesma coisa, a qual, por exemplo, não pode ser disfrutada por todos

igualmente, tornar-se-ão “inimigos e, no caminho que conduz ao fim (que é,

principalmente, sua sobrevivência e, algumas vezes, apenas seu prazer), tratam de

eliminar ou subjugar uns aos outros”64

. Hobbes apontará ainda mais duas situações de

conflagração dos conflitos entre os homens:

No estado de natureza, todos os homens têm desejo e vontade de ferir, mas que não

procede da mesma causa, e por isso não deve ser condenado com igual vigor. Pois um,

conformando-se àquela igualdade natural que vige entre nós, permite aos outros tanto

quanto ele próprio requer para si (que é como pensa um homem temperado, e que

corretamente avalia seu poder). Outro, supondo-se superior aos demais, quererá ter

licença para fazer tudo o que bem entenda, e exigirá mais respeito e honra do que pensa

serem devidos aos outros (é o que exige um espírito arrogante).65

Como podemos perceber, no primeiro homem a vontade de causar dano a

outrem vem da própria necessidade deste defender a si, seus bens e sua liberdade contra

o segundo, cuja vontade vem daquilo que Hobbes trata por vã glória66

. No caso do

primeiro indivíduo, o desejo por se defender de qualquer ataque em potencial se

transformará em eterna desconfiança, o que, segundo Hobbes terá por única solução a

antecipação, o ataque preemptivo. “Tal atitude nada mais é que a própria sobrevivência

e, geralmente, é permitida”67

. Vale a pena tecermos mais alguns comentários acerca

desta possibilidade dos homens fazerem o que for necessário sem com isso estarem

incorrendo em nenhuma ilegalidade.

Desta guerra de todos contra todos surgirá uma importante consequência num

plano pré jurídico: nada pode ser injusto. As noções de bem e mal de nada valem nesse

tempo de guerra, e o justo e o injusto não existirão pois não há um poder comum que

estabeleça as leis, e onde não há lei, não há justiça. Por isso Hobbes determinará que as

duas principais virtudes na guerra são a força e a fraude. Justiça e injustiça só existem

entre os homens em sociedade, nunca no isolamento”68

pois não se tratam de faculdades

como a força corporal, a experiência, a razão ou a paixão.

64 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo, Ed. Martin Claret, 2013, p. 103. 65 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 33. 66 Idem p. 33. 67 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo, Ed. Martin Claret, 2013, p. 104. 68 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo, Ed. Martin Claret, 2013, p. 107.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 36: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

36

“Justice, and Injustice are none of the Faculties neither of the Body, nor Mind. If they

were, they might be in a man that were alone in the world, as well as his Senses, and

Passion. They are Qualities, that relate to men in Society, not in Solitude69

”.

Já os desejos e outras paixões dos homens, as quais levam os indivíduos a

desejarem ferir os outros são constitutivos dos mesmos. Além do mais, “não são

intrinsecamente pecados, como também não o são as ações resultantes dessas paixões,

até o momento em que seja editada uma lei que as proíba; enquanto não existir uma lei,

a proibição será inócua”. Por sua vez, nenhuma lei poderá ser editada até que os homens

entrem em acordo para “designarem uma pessoa para promulgá-la”70

. Essa condição

que vigora no estado natural surge a partir da condição de cada um dos indivíduos e de

todos, enquanto conjunto difuso mas que partilha uma mesma condição. Na natureza

todos sempre terão direito a tudo, ou seja, antes dos homens se comprometerem com

obrigações (bounds) que os vinculem, seria lícito que cada um fizesse aquilo que

quisesse até onde pudesse fazê-lo, por suas forças ou engenho71

. Por isso dirá Hobbes

que no estado de natureza, a medida do direito está na vantagem que for obtida72

. Deste

modo podemos chegar à conclusão de que em natureza qualquer coisa que um indivíduo

faça a nenhum outro ofende73

, afinal mesmo em guerra o indivíduo estará sempre em

seu exercício da conservação da própria vida e de seus membros, e como dissemos,

todas as medidas eficientes que garantam a manutenção da própria existência são

válidas. Sua validade se exprime a partir de seus efeitos apesar de residir em um ponto

anterior a estes, ou seja, na potência em realizá-los.

Agora podemos compreender que o que leva os indivíduos no estado de natureza

hobbiana a desejarem ferir seus semelhantes será em princípio seu próprio direito a

autoconservação, expresso por essa “justa desconfiança” no próximo, todavia, conforme

69 HOBBES, Thomas. Leviathan. London, Ed. Penguin Books, Reprinted in Penguin Classics 1985, p. 188. 70 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo, Ed. Martin Claret, 2013, p. 106. Nas palavras originais do autor: “The

Desires, and other Passions of man, are in themselves no Sin. No more are the Actions, that proceeds from those

Passions, till they know: nor can any Law be made, till they have agreed upon the Person that shall make it.” In.:

HOBBES, Thomas. Leviathan. London, Ed. Penguin Books, Reprinted in Penguin Classics 1985, p. 187. 71 “Todo homem tem direito a proteger-se, como se vê no parágrafo sétimo [do capítulo I do De Cive]. O mesmo

homem portanto detém direito a se valer de todos os meios que necessariamente conduzam a esse fim, segundo o

parágrafo oitavo. Ora, meios necessários são aqueles que ele assim julgar, afirma o parágrafo nono. Em

conseqüência, ele tem o direito de usar e fazer tudo o que venha a julgar requisito para sua conservação: de modo que

depende só do julgamento de quem comete uma coisa que ela seja certa ou errada, e portanto sempre será certa. Por

isso é verdade que num puro estado de natureza etc”. In.: HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins

Fontes, 1992, p. 36-37. 72 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo, Ed. Martin Claret, 2013, p. 36-37. 73 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 36. É claro que Hobbes fará a exceção

para os atos que ofendem a Deus, mas no plano jurídico não há ofendidos, até porque não há força existente capaz de

impor um sistema de leis, logo, em última instância, sequer há um plano jurídico.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 37: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

37

vimos, pode se dar também por sua cobiça pelas glórias ou – conforme se percebe na

sociedade capitalista cujo florescimento Hobbes vislumbrava74

– através da competição

na busca por usufruir de certo bem. So that in the nature of man, we find three

principall causes of quarrell. First, Competition; Secondly, Diffidence; Thirdly,

Glory75

. O fato em comum que percebemos sempre será pois a ingualdade entre todos, e

é contra essa igualdade que Hobbes escreverá quando propuser que haja um terceiro,

mais poderoso que os demais, que irá interferir na sociedade, regulando as relações

entre a multidão, que não é mais multidão, mas agora será povo, uno, indiferenciado

pois encarnado na figura do rei, herdeiro de toda a vontade que outrora pertencia aos

indivíduos difusos76

.

Em último lugar, constitui um grande perigo para o governo civil, em especial o

monárquico, que não se faça suficiente distinção entre o que é um povo e o que é uma

multidão. O povo é uno, tendo uma só vontade, e a ele pode atribuir-se uma ação; mas

nada disso se pode dizer de uma multidão.77

O que Hobbes viu e temeu nesta igualdade de direitos e, em tese, igualdade de

condições para exercê-los não é a igualdade de vida que existe entre todos, mas a

igualdade da solidão e, pior, do homicídio, como já dissemos. Tal condição que Hobbes

pretende descrever para evitar pode ser parcialmente explicada pelo fato da natureza ter

dado a cada um o direito a tudo, o que na verdade, em última análise configurará direito

a nada, tendo em vista que os indivíduos se esforçarão por anular as pretensões de seus

semelhantes78

. Após todo o exposto, indaga Hobbes que o que caracteriza o estado de

guerra é o fato de ser “aquele tempo em que a vontade de contestar o outro pelo força

está plenamente declarada, seja por palavras, seja por atos79

”, e a vontade será o motor

das guerras.

Em nota manuscrita no De Cive, Hobbes apresenta a ideia do homem fora da

sociedade como um indivíduo em solidão, apenas dependente de suas próprias forças

para manter-se enquanto trava uma guerra contra todos os demais e por este motivo

desejaríamos reunirmo-nos uns aos outros. Sociedades para o filósofo inglês não são, no

74 Esta tese de que Hobbes anteviu o surgimento do capitalismo e de suas necessidades foi depreendido do livro de

Macpherson, “Teoria do individualismo possessivo de Hobbes até Locke “. Para mais informação ver

MACPHERSON, C. B.. A Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Tradução de Nelson

Dantas. Rio de Janeiro, Ed. Paz e terra, 1979. 75 HOBBES, Thomas. Leviathan. London, Ed. Penguin Books, Reprinted in Penguin Classics 1985, p. 185. Uma

tradução livre seria: “Então na natureza do homem, nós encontramos três principais causas de disputa. Primeira,

competição; segunda, desconfiança; terceira, glória”. 76 RIBEIRO, Renato Janine. A marca do Leviatã, São Paulo: Ática, 1978 (Ensaios; 42), p. 21. 77 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 211. 78 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 38. 79 Idem, p. 38.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 38: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

38

entanto, meras uniões de indivíduos que antes viviam sem quaisquer ligações políticas

instituídas, porém obrigações (bounds80

), as quais não são naturalmente assumidas pelos

indivíduos desde seu nascimento (quando estes ainda se encontram no estado de

natureza), mas apenas podem ser contraídas posteriormente, como um ato volitivo.

Assim se nesta infância os seres humanos não estariam aptos a assumirem obrigações

que resultem em união81

, ou seja, para a vida em sociedade, posteriormente poderiam

fazê-lo como uma solução para pôr fim ao estado de guerra permanente no qual se

encontram. Para explicitar esse ato volitivo que caracteriza o pacto Hobbes acrescenta

que alguns indivíduos jamais serão aptos para tal por suas próprias forças em nenhum

momento de suas vidas. No entanto, como podemos depreender pela obviedade, todos

os seres humanos seriam portadores daquilo que Hobbes chamaria de natureza humana,

a mesma que os mantêm em estado de guerra. Tal afirmação leva o autor do Leviatã a

logicamente crer que os homens são na verdade tornados aptos “para a sociedade não

pela natureza, mas pela educação”82

. É importante dizer que para Hobbes a educação

não é uma construção do comum a partir da multidão, mas sim a transformação dessa

multidão em povo, ou seja, em corpo uno e indiferenciável que se mantem coeso sob a

tutela de um terceiro – que é a própria encarnação desse povo, plenipotenciário de suas

capacidades – portador não apenas da força que este povo lhe cede, mas do monopólio

da capacidade de escolha, e será este terceiro, seja um monarca, seja um parlamento,

que irá fornecer as condições para a manutenção da vida civil83

. O caráter volitivo do

agir na teoria hobbiana termina no momento em que o pacto é firmado. A partir daí o

desejo, a vontade e a efetiva capacidade de transformá-los em ato são revogados em

nome da tão desejada segurança.

Para Hobbes pouco adiantaria os indivíduos quererem estar aptos a viver em

sociedade se não estiverem de fato preparados para tal. A vida na condição civil é uma

construção que passa pelo aceite em renunciar a certos direitos pelo próprio indivíduo

na medida em que se igualasse aos demais e se distanciasse daquele que exerce a função

de mediador ou soberano nessa relação84

. Todavia de uma coisa podemos ter certeza: a

80 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 29. 81 A situação dos filhos que, desde o nascimento estão sob a tutela da mãe, do pai ou de quem o cria é situação

diferente pois se trata menos de um voto ou juramento por parte do filho do que de um direito de propriedade do

responsável em dispor de sua vida da forma como lhe aprouver. Sobre o assunto ver capítulo XX do Leviatã: Do

domínio paterno e despótico. 82 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 29. 83 Podemos então sem problemas chamar essa educação em Hobbes de propaganda, neste caso, direito do estado

soberano em seu objetivo de controlar as vontades dos cidadãos após o pacto. 84 “(...) pois uma coisa é desejar, outra coisa termos capacidade para a quilo que desejamos”. In.: HOBBES, Thomas.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 39: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

39

vontade não só é crucial para o estabelecimento da vida civil, como é também uma das

marcas de diferença entre esta e a vida em natureza.

(...) em qualquer tipo de sociedade, se a associação é contratada voluntariamente, nela

estamos procurando o objeto da vontade, isto é, aquilo que cada um dos que se reúnem

propõe-se como bem. Ora, tudo o que venha a parecer bom é agradável, e se refere quer

aos sentidos, quer à mente. Mas todo prazer mental ou é glória (que consiste em ter boa

opinião de si mesmo), ou termina se referindo à glória no final. Os demais prazeres são

sensuais, ou conduzem à sensualidade, que pode ser compreendida entre as

conveniências mundanas.

Toda associação, portanto, ou é para o ganho ou para a glória – isto é: não tanto para o

amor de nossos próximos, quanto pelo amor de nós mesmos.85

Não é de surpreender que para Hobbes a união entre indivíduos baseada na

conquista seja muito mais eficaz do que aquela feita sob mútuo consentimento destes,

afinal se o que une a sociedade civil é a aversão ao eterno medo que se sente na guerra,

todos os efeitos que se almeja quando da passagem para a sociedade civil poderão muito

mais facilmente ser atingidos se forem pelo domínio da força sobre os demais caso haja

força capaz de fazê-lo.

(...) espero que ninguém vá duvidar de que, se fosse removido todo o medo, a natureza

humana tenderia com muito mais avidez à dominação do que a construir uma sociedade.

Devemos portanto concluir que a origem de todas as grandes e duradouras sociedades

não provém da boa vontade recíproca que os homens tivessem uns para com os outros,

mas do medo recíproco que uns tinham dos outros86

.

Este medo recíproco que move os indivíduos terá como causa tanto a igualdade

natural entre estes quanto sua mútua vontade de se ferirem. Eis a origem para Hobbes da

prórpia noção de guerra sempre retornando: a igualdade.

Diante de todo o exposto podemos concluir que os homens só se articulam para

entrar em sociedade quando sua existência encontra-se ameaçada, ou seja, naturalmente

os homens não viveriam em cooperação. Esta situação de ameaça leva os indivíduos a

estabelecerem pactos entre si, os quais representam uma transferência mútua de direitos

em favor de um terceiro. Deste modo, o que motiva os homens – que segundo Hobbes –

apreciam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros, a criar a restrição a si

mesmos através do artifício do Estado, será o medo e a “preocupação com sua própria

conservação e a garantia de uma vida mais feliz”87

. Assim, os homens só abandonarão

Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 29. 85 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 31. 86 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 32. 87 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo, Ed. Martin Claret, 2013, p. 136.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 40: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

40

sua condição de guerra, “consequência das paixões naturais dos homens”88

, caso haja

um poder visível que lhes inspire medo e os force a cumprir seus pactos e a observar as

chamadas leis naturais. Dirá Hobbes:

“(...) as leis naturais (tais como justiça, a equidade, a modéstia, a piedade, enfim, o que

determina que façamos aos outros o que queremos que nos façam) são contrárias a

nossas paixões naturais, que nos inclinam para a parcialidade, o orgulho, a vingança e

coisas semelhantes, se não houver o temor de algum poder que nos obrigue a respeitá-

las”89

.

Vemos que a natureza dos homens e de sua conduta em Hobbes se baseia nas

paixões e desejos dos indivíduos, que naturalmente serão contrários às leis da natureza,

por isso será apenas em situações extremas e motivados pelo medo que os homens

concordarão em colocar freios a suas paixões no intuito de se autoconservarem.

Contudo, mesmo quando concordes em relação a limitação de seus desejos os homens

necessitarão deste terceiro, alguém que exerça o poder e impeça os indivíduos de

novamente caírem na barbárie.

Esta união associativa significa mais do que mero consentimento, sendo em

verdade um pacto de cada homem com todos os homens em favor de um terceiro. É por

este motivo que o homem ou assembleia de homens que governa os demais será

plenipotenciária da sociedade, podendo agir em seu nome com o aval concedido desde o

momento em que o pacto foi firmado por cada um e com cada um. Deste modo, quando

cada indivíduo abriu mão de sua liberdade desmedida em nome do estabelecimento da

ordem e da segurança que só um Estado poderia proporcionar, também cedeu a

capacidade de se autogovernar para este representante geral. Mas este tema será

abordado mais à frente quando da análise do estado civil e do pacto.

Além do mais, como faz-se necessário sempre conservar – a título de defesa da

própria vida – o maior poder possível durante o maior período de tempo, Hobbes

afirmará que é permitido ao indivíduo no estado de natureza aumentar seu domínio

sobre seus semelhantes, já que isto é necessário à sua sobrevivência90

. Apesar de ainda

não existir uma formação civil durante o estado de natureza nada impede para Hobbes

que os seres humanos busquem se unir mesmo neste estado para tornarem-se mais

poderosos, e assim, fazerem frente a seus inimigos. Logo, mesmo em guerra perpétua os

homens deveriam procurar formas de aumentarem sua potência, sempre tendo em mente

88 Idem. p. 136. 89 Ibidem, p. 136. 90 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo, Ed. Martin Claret, 2013, p. 104.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 41: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

41

esta regra geral de que tudo para conservar a própria vida é lícito. Para tanto, aconselha

que se empregue o uso de associados para que a guerra perpétua “não seja contra todos,

nem nos falte algum auxílio”91

, e que esses associados podem ser adquiridos pela força

ou pelo consentimento. Se pela força, é permitido que o vencedor exija garantias de

obediência por parte daquele que foi subjugado.

Disso também podemos entender que constitui um corolário do estado natural dos

homens que um poder certo e irresistível confere a quem possui direito de dominar e

mandar naqueles que não possam resistir; de modo que essa onipotência engloba,

essencial e imediatamente, o direito, que antes expusemos, a fazer tudo92

.

Eis um ponto que aparentemente pareceria em uma primeira análise

contraditório na teoria hobbiana: apesar do estado de natureza se caracterizar pela

solidão não será necessariamente esta solidão a regra que virá a guiar a conduta

humana. Auxiliares ou companheiros serão desde já bem vindos, os quais podem provir

de mútuo acordo ou mesmo da servidão imposta pela conquista. Na verdade não há

contradição alguma nessas palavras. O fato do estado de natureza ser a completa

desarticulação dos meios institucionais da união não significa que os indivíduos não

possam buscá-la a partir de seus próprios meios. Não só não há qualquer proibição

quanto a isso como será este o direito dos indivíduos em exercerem sua liberdade

conforme vimos anteriormente.

Enfim, se os homens não podem se conservar em uma situação de guerra

perpétua por ser insuportável, é justo que tentem pôr fim a esta: “Por conseguinte o

ditado da reta razão – isto é, a lei de natureza – é que procuremos a paz, quando houver

qualquer esperança de obtê-la, e, se não houver nenhuma, que nos preparemos para a

guerra”93

.

2.5

A Carta 50

Feita a análise daquilo que Hobbes entenderá por direitos, leis e estado de

natureza já podemos claramente perceber que estes em nada se equiparam às visões da

tradição estoica e cristã. Apesar da defesa que fará da monarquia e do Estado como

aplicadores de pressões com o objetivo de manter o corpo social rígido, seguro e em

91 Idem, p. 39. 92 Idem, p. 40. 93 Idem, p. 41.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 42: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

42

paz, Hobbes não atribui sua visão da natureza humana à uma ordem de bem e mal dada

a partir de ordenações superiores, tampouco defende a figura soberana com base em um

direito sagrado por Deus. Contudo, apesar do reconhecimento dos direitos naturais que

terão sua medida através da capacidade de exercício deste pelos indivíduos, nos parece

que a condição pré social em Hobbes é atravessada por uma visão determinista daquilo

que seria a natureza humana sujeita aos vícios das paixões, melhor, das paixões

humanas como vícios. Além do mais, não podemos deixar de notar que sua teoria será

marcadamente binária, ou seja, para Hobbes serão sempre duas medidas a serem

comparadas, dois caminhos possíveis: seja o estado de natureza ante o estado civil, a

razão em face das paixões, os muitos perante um só, o consentimento e a conquista, etc.

A teoria hobbiana parece sempre apresentar alternativas limitantes às condições

políticas sob as quais a humanidade vive. Precisamos de multiplicidade.

Neste momento com a base da teoria hobbiana podemos enfrentar com mais e

melhores ferramentas a resposta que Espinosa dá a seu amigo Jarig Jelles na chamada

Carta 50. Nesta Espinosa teria sido indagado acerca de sua diferença de pensamento no

que tange à política em relação ao filósofo inglês, ao que responde:

Tu me perguntas qual é a diferença entre a concepção política de Hobbes e a minha.

Respondo-te: a diferença consiste em que mantenho sempre o direito natural e que

considero que o magistrado supremo, em qualquer cidade, só tem direitos sobre os

súditos na medida em que seu poder seja superior ao deles; coisa que sempre ocorre no

estado natural94

.

Para adiantar o argumento, cumpre dizer que diferente da concepção hobbiana,

em Espinosa as paixões não constituem vícios que podem ou que devem ser extirpados

pela razão ou pelo menos postos em estado de latência por uma força maior e irresistível

que nos obrigue a tal. Para Espinosa as paixões são constitutivas do conatus humano, ou

seja, do esforço em perseverar na existência. Do ponto de vista do direito não importará

se estamos a tratar de um indivíduo que se guia pela razão ou somente por suas paixões.

Independente de como se conduza, este homem sempre estará agindo “segundo as leis e

as regras da natureza, isto é, por direito de natureza”95

. Deste fato perceberemos que a

afirmação de Espinosa acerca do estado de natureza é decorrência lógica e necessária de

sua metafísica aplicada à política. Por esse motivo que, para Espinosa não haverá o

medo sem a esperança ou a esperança sem o medo. Isso significa que será a dinâmica

94 ESPINOSA, Benedictus. Carta Nº 50 em resposta a Jarig Jelles, 2 de junho de 1674. 95 TP, II, 5.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 43: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

43

dos afetos e sua estratégia de composição que virão a ser a base de toda a constituição

do corpo político bem como sua manutenção. Tal ideia é diretamente depreendida da

divisão primeira que o autor faz entre alegria e tristeza, “(...) à qual é submetido o

conceito do „desejo‟ como „essência mesma do homem‟. Ora, é este o conceito

originariamente complexo, do desejo que se torna, na Ética, o princípio explicativo de

toda a vida passional”.96

Através da construção da dinâmica afetiva que Espinosa tratará de sua diferença

com Hobbes acerca do direito natural, na medida em que este considera a própria

potência da multidão, seu direito natural, como logicamente interno à constituição do

Estado. Já Hobbes entenderá o direito natural como a “liberdade de fazer tudo aquilo

que, segundo seu julgamento e razão, é adequado para atingir esse fim”97

, sendo o

exercício, através de um ato de vontade, da auto conservação dos indivíduos por

qualquer meio necessário. Por este motivo tal direito deve ser suprimido quando da

instituição do estado civil entre os humanos. Espinosa, por outro lado entende que não.

O filósofo holandês considerará o Estado como a própria efetivação do direito natural,

afinal se os homens, sujeitos às leis da natureza criam o estado civil, é impossível que

este não esteja sujeito às mesmas leis. A supressão dos direitos naturais em favor de um

terceiro, como Hobbes afirma, não encontrará justificativa na teoria espinosana. O

direito natural será a expressão política da potência de perseverar na existência, ou seja,

do conatus. Espinosa dirá:

Assim, por direito de natureza entendo as próprias leis ou regras da natureza segundo as

quais todas as coisas são feitas, isto é, a própria potência da natureza, e por isso o

direito natural de toda a natureza, e consequentemente de cada indivíduo, estende-

se até onde se estende a sua potência. Consequentemente, aquilo que cada homem faz

segundo as leis de sua natureza fá-lo segundo o supremo direito de natureza e tem tanto

direito sobre a natureza quanto o valor da sua potência.98

Em latim será a expressão tantumque in naturam habet juris, quantum potentia

valet, ou em sua célebre contração Jus sive potentia: Direito, ou seja, potência . Isto

significa que Espinosa baseia sua teoria política nesta proporção que define que tudo

aquilo que alguém tem direito será definido por sua potência para exercê-lo. Este

princípio é decorrência imediata do fato de que o direito natural de cada um representa

uma parcela da potência da Natureza inteira (a potência de agir absoluta, isto é, Deus),

96 BALIBAR, Etienne. Ultimi Barbarorum – Espinoza: o temor das massas. In.: MARTON, Scarlett (org. editora-

responsável). Discurso. n. 18, Revista do Departamento de Filosofia da F.F.L.C.H. da USP, São Paulo, 1990, p. 10. 97 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo, Ed. Martin Claret, 2013. 98 TP, II, 4. G.N.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 44: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

44

ou seja, a cada um subsistirá a parcela de direito correspondente à sua potência. Na

natureza este direito será definido a partir das disputas travadas entre os indivíduos, ou

seja, através da efetivação das capacidades destes em fazerem valer sua própria

potência. Logo, se dirá que direito natural tem por medida a capacidade que o indivíduo

tiver de exercê-lo. Eis porque chamá-lo de potência.

O direito natural para Espinosa é a própria potência da natureza, ou seja, são as

próprias leis ou regras da natureza conforme as quais todas as coisas são. Já podemos

perceber que tal visão em muito difere da concepção hobbiana, que comporta um

exercício total do direito sem um motivo ontológico do porque o homem age de tal

maneira explicitamente. Espinosa se preocupa em diferenciar o direito do poder e este

da potência para exercê-lo. Assim, o direito será o direito natural coletivo, da multitudo,

que irá adquirir a forma das instituições e das leis. Por este motivo para Espinosa o

direito natural não poderá ser suprimido pelo direito civil, como em Hobbes, mas na

verdade o direito civil é a realização ou concretização do direito natural, é a expressão

do conatus na política e na construção da vida social dos indivíduos e dos agrupamentos

de indivíduos.

Mas uma vez que estamos aqui a tratar da potência ou direito universal da natureza, não

podemos admitir nenhuma diferença entre os desejos que em nós são gerados pela razão

e os que são gerados por outras causas, pois tanto estes como aqueles são efeitos da

natureza e explicam a força natural pela qual o homem se esforça por perseverar no seu

ser.99

Esta visão se explica pelo fato de que Espinosa não considera o homem um

império dentro de um império, mas sim como parte da natureza, logo sujeito a suas

regras. É por isso que do ponto de vista do direito natural a diferença entre o louco e o

são é irrelevante, pois ambos se guiam de acordo com as regras da natureza. Vemos

aqui não só a destruição do argumento de um livre arbítrio, mas também

(consequentemente) a da noção de bom ou mau pautada unicamente na capacidade de

racionalidade dos indivíduos. A perfeição neste caso reside no agir até onde se pode, no

exercício da própria potência e em seu esforço de perseveração na existência. Assim

desde já podemos identificar a inexistência de crime, pecado (ou imperfeição) nesta

natureza espinosana. Se o agir é dado como expressão da natureza inteira, então não há

99 TP, II, 5.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 45: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

45

vício ou pecado da natureza humana que devam ser condenáveis de antemão. Não existe

pecado sem lei anterior que o defina, e lei só haverá na formação civil apenas100

.

(...) é claro que no estado natural não se dá o pecado, ou, se alguém peca, peca contra si,

não contra outrem, porquanto ninguém, a não ser que queira, tem por direito natural de

fazer a vontade de outrem, nem de ter por bom ou por mau senão aquilo que ele próprio,

pelo seu engenho, discerne ser bom ou mau. E não há absolutamente nada proibido

possível. O pecado, porém, é a ação que não se tem o direito de fazer101

.

A partir dessa noção de direito natural como exercício do conatus individual,

Espinosa em seu Tratado Político introduz a ideia de liberdade enquanto poder para

exercer seu direito de natureza, mas exercê-lo não no mesmo sentido que Hobbes

emprega, como um poder. Exercê-lo como decorrência necessária da natureza inteira:

Porque a liberdade é uma virtude, ou seja, uma perfeição: por isso, tudo quanto no

homem é sinal de impotência não pode ser atribuído à sua liberdade. Daí que o homem

não possa minimamente dizer-se livre por poder não existir ou não usar da razão, mas

só na medida em que tem o poder de existir e de operar segundo as leis da natureza

humana.102

A ideia de liberdade espinosana não é a liberdade negativa, pelo contrário.

Liberdade para Espinosa é afirmação pura, é afirmação da existência a partir do agir

pela necessidade de sua natureza, ou seja, com total liberdade. Se direito natural é a

afirmação da existência em ato, perseveração no próprio ser, exercício de liberdade,

podemos sem dificuldade afirmar que este direito natural não proibirá nada, a não ser

aquilo que ninguém quer ou que ninguém pode fazer, e a perfeição dessa virtude será

seu grau de realidade. O direito natural é pois a pura expressão no campo do necessário.

É a efetivação daquilo que é nada mais, por esse motivo a única coisa que proibirá será

o que é impossível ou insuportável.

Se a lei de natureza a nada proíbe, a não ser aquilo que não nos é possível, então

resta claro que o advento do próprio direito civil (que proíbe) será criação humana, e por

óbvio, sujeita a esta lei natural, é verdade, mas não será a lei civil aquela que irá vigorar

absoluta após a instituição do pacto civil. Seria absurdo pensar, indaga Espinosa, que

estando os humanos sujeitos às leis da natureza por fazerem parte dela, poderiam

instituir o estado civil de modo a abolirem estas leis ou suprimi-las. Não. O pacto

fundador do estado civil nesse sentido se constitui em verdadeira abstração, um ato da

vontade mas que só possui validade enquanto se respeitar a palavra dada. Da mesma

100 TP, II, 19 e 20. 101 TP, II, 18. Grifo nosso. 102 TP, II, 7.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 46: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

46

forma ocorrem com as promessas em geral feitas pelas pessoas. Dirá Espinosa que a

palavra válida só se mantém “enquanto não se mudar a vontade daquele que fez a

promessa”103

, pois com efeito, “quem tem o poder de romper uma promessa, esse

realmente não cedeu o seu direito mas deu só palavras”104

. Ceder o direito envolve uma

alienação da capacidade de escolha, resistência e perseverança muito maiores do que

aquilo que uma promessa tácita ou expressa podem garantir.

Vemos então que o direito instituído é abstrato e tem por validade apenas o

aceite das partes. Aqui reside uma diferença capital entre Hobbes e Espinosa. Enquanto

para o primeiro o pacto surgirá como a redenção dos vícios humanos, suprimindo o

estado de natureza outrora vigente e instaurando uma nova ordem sujeita a novas regras,

para o segundo este direito civil só pode existir enquanto efetivação do direito natural,

jamais sua supressão ou superação pois isto seria impossível. Para entender esta última

frase, é necessário pensarmos nas condições de vida nesse estado pré político, o estado

de natureza. Cada um está unicamente sob a jurisdição de si próprio e só de si depende

para a manutenção de sua existência. Por óbvio não há qualquer possibilidade de um

indivíduo isolado proteger-se de todos os demais, assim sua liberdade na natureza é só

aparente pois não possui qualquer segurança em continuar a existir, podendo cessar a

qualquer instante. Disso resulta que em estado de natureza o direito natural “é nulo e

consiste mais numa opinião que numa realidade, porquanto não há nenhuma garantia de

o manter”105

. Logo resultará que somente em auxílio mútuo os indivíduos poderão

exercer seu direito, o qual será aumentado em muito quando da vivência em

comunidade, mesmo em face da (pres)suposta abdicação de parte dele. Por isso

Espinosa dirá que os direitos naturais são mantidos (e ainda potencializados) no estado

civil, sem o qual sua existência seria constantemente ameaçada. A união dos indivíduos

no corpo coletivo está de acordo tanto com os desejos dos indivíduos em separado,

quanto da multidão como um todo, afinal este indivíduo “tanto no estado natural como

no civil, age segundo as leis de sua natureza e atende ao seu interesse”106

. Deste modo, a

partir de agora por estado civil entenderemos aquele processo de instituição da potência

coletiva, ao que Espinosa conclui:

103 TP, II, 12. 104 TP, II, 12. 105 TP, II, 15. 106 TP, III, 3.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 47: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

47

A principal diferença entre um e outro estado é que no estado civil todos temem as

mesmas coisas e é idêntica para todos a causa de segurança e a regra de vida, o que

certamente não retira a faculdade de julgar de cada um. Com efeito, quem decide acatar

tudo o que a cidade manda, seja porque teme a potência desta ou porque ama a

tranquilidade, esse atende realmente, de acordo com o seu engenho, à sua segurança e

ao seu interesse107

.

Disso tudo depreendemos que, para Espinosa, o direito natural não se caracteriza

como um dever ser, um conjunto de normas em sentido prescritivo que apontarão para o

bom a ser perseguido. As leis da natureza são aquilo que é, e esse ser define-se por atos

e práticas que constituem o conatus – o esforço por perseverar na existência – através

dos quais será afirmada a potência atual do direito de natureza como um todo. Logo, o

direito natural é o próprio exercício da potência que se atualiza e determina-se pelo

esforço em perseverar na existência e o direito civil será fundado mantendo-se as regras

da natureza, guardando-as. É muito diferente do que ocorre na teoria hobbiana, onde o

direito civil será a recriação das leis que regem as relações entre os indivíduos mediante

um pacto expresso por palavras ou atos. Tal afirmação já afasta Espinosa de um campo

contratualista no qual Hobbes se insere. Isto acontece porque para Espinosa a natureza

se expressa sempre concretamente, não representando nem sendo passível de

representação. Nessa lógica, quando formos pensar no processo de formação da cidade,

as figuras do pacto, do acordo de vontades que institui novas regras e do contrato,

perdem lugar. A instituição da política supõe encontros e uma produção sempre atual.

Isso porque decorre da produção de uma vida comum a qual os indivíduos estão

submetidos pela condição natural, o que pressupõe, por sua vez, processos de

cooperação, concessão e garantias, formando-se, consequentemente, um certo regime

afetivo pela experiência. Para tanto, em primeiro lugar é necessário que se reconheça o

comum na natureza. Em seguida passa-se à construção de mecanismos efetivos que

assegurem a produção desse comum e a potencializem dentro de uma estratégia de

organização dos afetos. Por outro lado precisamos estar atentos para o fato de que o

reconhecimento e compreensão dessa condição natural comum não pressupõe a

identificação de um bem final que deva ser perseguido. Não podemos extrair do direito

natural um sentido de bom através do qual deduziremos normas mediante as quais se

define a moral e o direito. A ausência de finalismos (que deve ser frisada) não exclui o

caráter de utilidade na compreensão da condição natural, mas para Espinosa o direito

civil é a manutenção da ordem da natureza e sua potencialização, não enquanto verdade

107 TP, III, 3.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 48: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

48

a ser perseguida, mas como entendimento da condição natural e necessária, da liberdade

e de sua aplicação política. Deste modo a instituição do estado civil em Espinosa passa

fundamentalmente pela instituição da potência coletiva, manutenção do direito natural e

sua potencialização haja vista a reunião de potência gerada pela agregação política dos

indivíduos que outrora viviam em solidão.

Contudo, não se pode ignorar o importante fato de que ao tratar da liberdade dos

súditos no capítulo XXI do Leviatã, Hobbes reconhecerá a manutenção do que seriam

direitos naturais invioláveis, como a defesa da própria vida, a educação dos filhos e o

direito de dar fim à obrigação política quando o soberano não cumpre com seus deveres,

bem como todos os demais direitos que não possam ser transferidos por meio do

pacto108

(apesar de apresentar de maneira um tanto vaga quais seriam estes outros

direitos além dos mencionados). Ora, se ao cidadão é garantido o direito de defender a

própria vida e de resistir quando o soberano não cumpre com seu papel conforme

acordado, parece claro que para Hobbes o direito natural permanece, no entanto se

mantendo latente, emergindo apenas sob determinadas condições. Por outro lado, este

ainda perdura como uma espécie de direito individual que não pode ser alcançado pelo

pacto firmado, ou seja, vai além dos poderes do soberano. Vemos assim que mesmo em

Hobbes o direito natural persiste de alguma maneira após a passagem para o estado

civil. Esta conclusão tornaria a resposta de Espinosa em sua carta a Jelles intrigante pois

de que forma isso pode não ser entendido como conservação do direito natural?

Aparentemente essa noção de conservação em Hobbes não coincidirá com o que

Espinosa entende por manutenção dos direitos naturais em sua teoria.

O caminho que se seguiu até aqui na tentativa de decompor alguns dos

elementos fundamentais da natureza e do direito natural espinosano parecem já ter

respondido a tal questão. Para Espinosa as duas formas de conservação do direito

natural apresentadas por Hobbes: seja como reminiscência não positivada pelo pacto,

seja como potência latente são, segundo Marilena Chauí, exatamente o que considera

como sua não conservação. Conforme já salientamos, para Espinosa o direito natural em

estado de natureza será em verdade uma abstração teórica pois:

“Em Estado de Natureza, o direito natural é abstrato porque se encontra separado das

condições de sua efetuação concreta, pois todos podendo tudo (visto não haver leis

determinando o permitido e o proibido), na realidade ninguém pode coisa alguma. A

108 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo, Ed. Martin Claret, 2013, p. 170 e ss..

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 49: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

49

vida política surgirá para que o direito natural se concretize e por essa razão ela não

poderá suprimi-lo nem apenas conservá-lo como resíduo ou virtualidade. Espinosa

conserva o direito natural tomando-o como medida do direito civil.”109

Relembrando a inexistência de contradição entre as ideias de liberdade e

necessidade (“Com efeito, a liberdade não tira, antes põe, a necessidade de agir”110

.),

pode-se considerar que o direito natural em estado de natureza, enquanto regras próprias

da natureza, permite tudo aquilo quanto estiver ao alcance da potência. Desta forma,

entender o direito natural como medida do direito civil possibilita a compreensão de que

uma sociedade e seus indivíduos possuirão tanto direito quanta potência tiverem para

exercê-lo. “A potência da soberania será o direito natural coletivo positivado no direito

civil e será avaliada pela potência natural dos cidadãos, isto é, por seu direito natural

individual”111

. Resta dizer que o direito natural individual guardará relação com o

direito natural coletivo, tanto que no Tratado Político vemos o estabelecimento da

proporção entre a potência do cidadão e/ou súdito e a da cidade.

Mas antes de apresentá-la, coisa que faremos no próximo capítulo, é importante

lembrar o início do capítulo III do TP onde Espinosa entende por civil a situação de

qualquer estado e por cidade o corpo político inteiro. Além do mais na referida

passagem o autor identifica como cidadãos os indivíduos que “pelo direito civil, gozam

de todas as comodidades da cidade”112

e, mais importante, como súditos aqueles que

estão sujeitos às instituições ou leis da cidade, e não como geralmente se entenderia, ou

seja, aqueles que necessariamente submetidos a um monarca, um mestre, um tirano,

enfim, alguém que os governe. Logo, se se mantém o direito natural dentro do estado

civil, as instituições ou leis às quais os cidadãos estão sujeitos integram a própria

efetivação do direito de natureza, por conseguinte o direito civil dos indivíduos no

estado será definido de acordo com a potência que cada um tiver individualmente para

exercê-lo assim como a cidade, enquanto corpo coletivo, também tiver.

(...) resulta claro que o direito do estado, ou dos poderes soberanos, não é senão o

próprio direito de natureza, o qual se determina pela potência, não já de cada um, mas

da multidão, que é conduzida como que por uma só mente; ou seja, da mesma forma

que cada um no estado natural, o corpo e a mente de todo o estado têm tanto direito

quanto vale a sua potência. E assim, cada um, cidadão ou súdito, tem tanto menos

direito quanto a própria cidade é mais potente que ele, e consequentemente cada

109 CHAUI, Marilena. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2003, pp. 297. 110 TP, II, 11. 111 CHAUI, Marilena. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2003, pp. 297. 112 TP, III, 1.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 50: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

50

cidadão não faz ou possui por direito nada a não ser aquilo que pode defender por

decreto comum da cidade113

.

Diante de todo o exposto, podemos chegar a algumas conclusões: em primeiro

lugar, na filosofia espinosana estas leis a que os seres humanos estão sujeitos pela

natureza são em quaisquer hipóteses invioláveis porque necessárias. De forma diferente

se opera no caso daquelas normas editadas por nós mesmos embasadas apenas na

palavra, a qual pode ser quebrada desde que haja poder para tanto, afinal, “quem tem o

poder de romper uma promessa, esse realmente não cedeu o seu direito mas deu só

palavras”114

. A questão que emerge desta conclusão remete à violabilidade destas leis

humanas115

e à possibilidade de resistência aos mandamentos da cidade que alguém

considere injustos. Tal ponto demanda análise cuidadosa e para tanto é fundamental

pensar nos fundamentos do próprio estado civil e do direito civil, assunto do próximo

capítulo. A partir da pesquisa do como o direito civil é instituído, melhor, de como o

próprio corpo político virá a se formar por suas características multitudinárias é que

poderemos então tratar da resistência, seus fundamentos e seus objetivos através dessa

dinâmica da multidão, e não pela presunção de uma massa una, um povo que

ficticiamente não apresenta mais nuances por conta da supressão aplicada por um poder

que lhe é exterior.

Percebemos ainda que as noções de justo e injusto que permeiam boa parte da

tradição filosófica anterior a Espinosa (e mesmo Hobbes) serão abolidas no que diz

respeito ao estado de natureza. O mesmo ocorre com o pecado, que não existe sem que

haja leis e um estado116

. Como dito, o pecado é aquela ação que não se tem o direito de

fazer. Logo, vemos mais um motivo pelo qual não se pode falar em justiça ou injustiça

sem a instituição da leis civis. É certo que tais leis civis têm o objetivo de manter a

ordem a partir de sua observância por parte dos indivíduos que compõem a cidade. A

obediência dos cidadãos ou súditos às leis é para Espinosa uma questão de regulação

afetiva do corpo político, desta forma sempre haverá uma linha tênue entre a esperança

de uma vida melhor em comunidade que deve superar o medo, seja da sanção

correspondente ao não cumprimento da lei, seja o medo recíproco que a multidão e os

113 TP, III, 2. Grifos nossos. 114 TP, II, 12. 115 “(...) devemos lembrar-nos de que estamos em poder de Deus como o barro está em poder do oleiro, o qual da

mesma massa faz vasos para usos decorosos e vasos para usos indecorosos, e é por isso que o homem pode fazer

alguma coisa contra estes decretos de Deus, na medida em que eles foram inscritos na nossa mente ou na dos profetas

como direitos, mas não contra o eterno decreto de Deus, que está inscrito na natureza universal e que respeita à ordem

de toda a natureza”. (TP, II, 22) 116 TP, II, 19.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 51: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

51

governantes inspiram um no outro. No entanto não podemos esquecer que a obediência

em si é característica daquele que Espinosa trata como sujeito às leis comuns da cidade

e, por consequência, à razão, que deve reger essas leis: “O homem que se conduz pela

razão é mais livre na sociedade civil, onde vive de acordo com as leis comuns, do que

na solidão, onde obedece apenas a si mesmo”117

. No escólio desta proposição Espinosa

contrapõe a condução pela razão àquela pelo medo, associando a razão á própria ideia

de liberdade e à observância dos direitos e interesses comuns da sociedade civil, por

isso:

É verdade que aquele que cede a cada um o que lhe é devido por medo do patíbulo, age

apenas pelo comando de outro e é coagido pelo mal que teme. Não se pode dizer que ele

seja justo. Mas aquele que entrega a cada um o que lhe é devido porque conhece a

verdadeira razão das leis e sua necessidade, age em constante acordo consigo

mesmo e por sua própria vontade, não pela de outro. Ele merece, por conseguinte,

ser chamado justo.118

Por fim, percebe-se que aquele que se conduz pela razão e pelas leis observa os

ditames da natureza, compreendendo as causas que o levam a perceber a vida na cidade

como mais útil que aquela na solidão, por isso se esforçará em viver livremente

mantendo “o princípio da vida e da utilidade comuns”119

. Assim vê-se que o direito de

natureza é uma virtualidade no estado natural e apenas será real na vida civil onde a

potência para seu exercício é efetuada e maximizada por meio da vida em comum.

117 E, IV, 73. 118 ESPINOSA, Tratado Teológico-Político. Organização J. Guinsburg, Newton Cunha, Roberto Romano; tradução J.

Guinsburg, Newton Cunha. 1 ed. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2014. Capítulo IV, p. 109. Grifos nossos. 119 E, IV, 73 , demonstração.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 52: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

3

Do Pacto e do estado civil

Riam-se os satíricos, pois, das coisas humanas, o quanto queiram; execrem-nas os

teólogos; enalteçam os melancólicos, o quanto possam, a vida inculta e agraste,

condenando os homens e maravilhando-se com os animais. Nem por isso deixarão de

experimentar que, por meio da ajuda mútua, os homens conseguem muito mais

facilmente aquilo de que precisam, e que apenas pela união das suas forças podem

evitar os perigos que os ameaçam por toda parte.120

Toda associação, portanto, ou é para o ganho ou para a glória – isto é: não tanto para o

amor de nossos próximos, quanto pelo amor de nós mesmos.121

Passada aquela que seria a infância da vida política da humanidade,

compreendemos que o estado de natureza é um momento no qual a paz será impossível

e as relações entre os homens são eminentemente predatórias. Resta evidente a

necessidade de se pôr fim a tal situação de desamparo, medo e constante flutuação do

ânimo. Para tanto surge a figura do estado civil ou social que significará a união dos

indivíduos, outrora dispersos, agora sob uma vida em comum e com o objetivo de fazer

cessar o medo e a flutuação do ânimo que vigoravam na situação natural.

A isto acresce que o estado civil é naturalmente instituído para eliminar o medo comum

e afastar as comuns misérias, visando portanto maximamente àquilo por que, no estado

natural, ainda que em vão (pelo art. 15 do cap. anterior), se esforçaria cada um dos que

se conduzem pela razão.122

Evidentemente é impossível que se elimine totalmente esta fluctuatio animi das

massas através da criação do Estado. O objetivo será meramente reduzir o “império da

tristeza, do temor e do ódio”123

através da composição dos indivíduos guiados pelo que

dita a sã razão. Veremos nos escólios da proposição 37 da Parte IV da Ética, assim

como no capítulo IV do TTP, a possibilidade daquela cidade construída por homens

120 E, IV, 35, esc. 121 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 31. A este trecho ainda seria válido

acrescentar: “Mas, embora os benefícios desta vida possam ser ampliados, e muito, graças à colaboração recíproca,

contudo – como podem ser obtidos com mais facilidade pelo domínio, do que pela associação com outrem –, espero

que ninguém vá duvidar de que, se fosse removido todo o medo, a natureza humana tenderia com muito mais avidez

à dominação do que a construir uma sociedade. Devemos portanto concluir que a origem de todas as grandes e

duradouras sociedades não provém da boa vontade recíproca que os homens tivessem uns para com os outros, mas do

medo recíproco que uns tinham dos outros.” In.: HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes,

1992, p. 32. E a isto ainda acrescentaria: “A glória não contraria a razão; em vez disso, pode dela surgir”. In.: E, IV,

58. 122 TP, III, 6. 123 In: DISCURSO; Ver. Depto. Filo. USP, São Paulo, no 18. 1900. BALIBAR, Etttienne, Ultimi Barbarorum

Espinoza: O temor das massas, p. 10.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 53: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

53

sob a conduta da razão, livres do medo que circunda o vulgo mas, como bem observa

Balibar, capazes de se regular diretamente pela percepção das chamadas noções comuns

a toda a humanidade124

. Diogo Pires Aurélio em seu texto “Del afecto común a la

República125

” observa que na realidade, conforme Espinosa explica na abertura do

capítulo VI do TP, a multidão tende a abandonar o estado de natureza e unir-se no

estado social menos pela influência da razão do que por um afeto comum, e quer ser

conduzida como que por uma só mente, “por uma esperança ou medo comuns, ou pelo

desejo de vingar algum dano comum”126

. Nota-se que o objetivo da instituição da vida

civil envolve na verdade a tentativa de tornar suportável a variação afetiva própria dos

seres humanos na natureza através de sua regulação. Para isso faz-se necessário que

tratemos brevemente desta variação afetiva gerada por meio dos encontros.

Conforme vimos, a liberdade para Espinosa, assim como em Hobbes, implica na

ausência de impedimentos externos, no entanto a definição espinosana irá muito além

disto em diversos aspectos. Segundo Marilena Chauí, para Espinosa a liberdade é

aquela “potência interna de agir quando esta é mais forte do que a potência das causas

externas127

”. Isso significa dizer que o conatus em Espinosa, ou seja, o esforço em

perseverar na existência, irá buscar (não em sentido finalístico mas operativo) esta

liberdade operando por noções de atividade e passividade, o que indica que, para além

da vontade, o conatus é um esforço que entra em contato com forças exteriores e tem

por objetivo se manter existindo a partir não apenas destas forças, mas principalmente

do modo como interage com elas, ou seja, pela própria dinâmica dos encontros. Assim,

para que o conatus possa de fato perseverar é fundamental que seja potente para se

sustentar diante de tantos encontros. Sobre o tema explica Chauí:

A liberdade é atividade corporal e psíquica de uma causa eficiente interna forte. Espinosa a define como aptidão do corpo e da mente para a pluralidade simultânea, isto

é, como força do corpo para afetar outros corpos e ser por eles afetado de inúmeras

maneiras simultâneas, sem ser dominado por eles nem dominá-los, aumentando sua

capacidade de viver; e como força da mente para conceber inúmeras idéias simultâneas

e desejar simultaneamente tudo que aumente sua capacidade de pensar. Eis por que, em

estado de Natureza, o conatus ou direito natural é uma abstração.128

124 Idem, p. 10. 125 AURELIO, Diogo Pires. Del afecto común a la República. In.: MARTON, Scarlett (Org. e Ed.). Discurso. n. 18.

São Paulo, Revista do Departamento de Filosofia da F.F.L.C.H. da USP, 1990, p. 352. 126 TP, VI, 1. 127 CHAUI, Marilena. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2003, pp. 311. 128 CHAUI, Marilena. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2003, pp. 311-2. Grifos Nossos.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 54: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

54

Esta aptidão do corpo e da mente se exprimirá através de uma delicada e

duradoura manutenção a partir do “como” das relações, tendo sua intensidade

aumentada ou diminuída graças aos encontros que fará ao longo do tempo. Então aquilo

que sempre se buscará é a maneira mais eficiente de gerir tais encontros de modo a

preservar a própria existência (e existir) do melhor modo possível. Por esse motivo

enquanto perdurar o estado de natureza não disporemos de meios hábeis para

potencializar tais capacidades significativa e duradouramente. Vimos então que o direito

natural dentro do estado de natureza será sempre uma abstração irrealizável

concretamente, afinal, se todos podem tudo em verdade ninguém poderá coisa alguma

pois a força de interação simultânea será anulada todo o tempo por cada um quando em

choque com todos e com cada um129

. Mesmo Hobbes afirmaria que “esse direito de

todos a tudo é inútil, comparável à situação que ocorreria caso não houvesse direito

nenhum”130

. Agora percebemos com maior clareza qual será o papel do direito civil

nesta dinâmica afetiva, qual seja, ser o elemento a dar concretude a um direito natural

que existe mas que não se pode realizar em um mundo em guerra. Precisamos, portanto

nos debruçar sobre a questão do modo pelo qual se opera esse efeito de concretude, de

paupabilidade que o direito civil irá introduzir no direito natural.

3.1

O comum

Para Espinosa o direito de natureza, “que é próprio do gênero humano,

dificilmente pode conceber-se a não ser onde os homens têm direitos comuns”131

, além

do mais “(...) não é por condução da razão, mas por algum afeto comum que uma

multidão se põe naturalmente de acordo e quer ser conduzida como que por uma só

mente, ou seja (como dissemos no art. 9, cap. III), por uma esperança ou medo comuns,

ou pelo desejo de vingar algum dano comum”132

. Não se quer com isso dizer que a

razão não exerça papel fundamental, afinal como Espinosa afirma será somente na

129 É exatamente essa a razão que leva Marilena Chaui nos lembra que: “Em sentido espinosano, abstração não

significa hipótese lógica ou idealidade sem correspondente factual, mas tudo quanto se encontre separado das

condições que permitem sua realização, ou seja, abstrato possui sentido ontológico”. In: CHAUI, Marilena. São

Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2003, pp. 297. 130 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 38. 131 TP, II, 15. 132 TP, VI, 1.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 55: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

55

medida em que vivem sob a condução da razão que os homens concordarão sempre e

necessariamente em sua natureza133

:

(...) a verdadeira virtude nada mais é do que viver exclusivamente sob a condução da

razão, enquanto a impotência consiste em o homem se deixar conduzir apenas pelas

coisas que estão fora dele e em ser determinado por elas a fazer aquilo que o arranjo

ordinário das coisas exige e não aquilo que exige a sua própria natureza, considerada em

si mesma.134

Ora, pelo capítulo anterior podemos depreender que convêm em maior grau à

natureza do homem a união com os demais seres humanos, e disso se trata a sua própria

composição afetiva na medida em que a razão indica que sua potência tende

naturalmente a aumentar quando agregada da de outros indivíduos que lhe

convenham135

. Outras coisas que convenham aos homens há, como dito no escólio 1 da

proposição 37 da Parte IV, no entanto não haverá nada que seja mais útil ao homem do

que outro homem que vive sob a condução da razão136

. Pois, conforme dissemos

anteriormente, as noções de bom e mau dadas por nossos filósofos estão pautadas de

fato em definições referentes ao útil e ao nocivo:

Mas como cada um deseja, pelas leis de sua natureza, o que é bom e se esforça por

afastar aquilo que julga ser mau (pela prop. 19); e, como, além disso, aquilo que

julgamos, segundo o ditame da razão, ser bom ou mau, é necessariamente bom ou mau

(pela prop. 41 da P. 2); então, apenas a medida que vivem sob a condução da razão, os

homens concordam, sempre e necessariamente, entre si. C. Q. D.137

Assim, se se considerava antes o homem um animal social, Espinosa em verdade

não discordará, contudo por motivos bastante diferentes daqueles apresentados pela

tradição estoica e aristotélica. A sociabilidade humana – tal qual pontuamos em Hobbes

– não será dada a partir de uma essência natural, mas se explica pela composição afetiva

mesma assim como pela definição lógica, afinal cada um busca o que lhe é útil, ou seja,

aquilo que compõe melhor consigo aumentando sua potência. A partir disso:

Com efeito, quanto mais cada um busca o que lhe é útil e se esforça por se conservar,

tanto mais é dotado de virtude (pela prop. 20); ou, o que é equivalente (pela def. 8), de

tanto mais potência está dotado para agir pelas leis de sua natureza, isto é (pela prop. 3

da P. 3), para viver sob a condução da razão.138

Em âmbito geral, a filosofia espinosana já prevê o aumento mútuo de potência

entre coisas que convenham entre si por sua natureza. No campo da política, resta claro

133 Ver E, IV, 35. 134 E, IV, 36, esc. 1. 135 Sobre isso recomendamos a leitura do restante do escólio apresentado anteriormente. 136 E, IV, 35, cor. 137 E, IV, 35, dem. 138 E, IV, 35, cor. 2.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 56: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

56

que se os homens convêm entre si em natureza, sua potência será aumentada quando da

sua união. “E, de fato, a verdade é que, da sociedade comum dos homens advêm muito

mais vantagens do que desvantagens”139

. O princípio da composição do corpo político

em Espinosa se dá por meio da cooperação mútua entre as partes deste corpo, pois todas

buscam essa construção comum que potencializa o conatus de tais indivíduos, agora

reunidos sob bandeiras comuns. Será exatamente por este motivo que Espinosa dirá que

“O supremo bem dos que buscam a virtude é comum a todos e todos podem desfrutá-lo

igualmente”140

. O supremo bem espinosano ocorre a partir da construção desse comum,

fato que inicialmente entenderemos só poder existir de modo duradouro (por definição)

no estado civil. Isso não quer dizer que tal união entre indivíduos não possa se dar tendo

por elemento agregador o medo ou mesmo a esperança. Na realidade a história nos

ensina que geralmente será este o impulso para a união entre os indivíduos. Até por isso

a forma mais potente de organização política, a democracia, o mais absoluto dos

governos é o grande desafio na formação política que Espinosa tenta explorar e

desenvolver até o fim de sua vida. Eis que surge a necessidade então de fazermos uma

correção na sentença anterior: a construção do comum não se dará do modo mais

duradouro no estado civil apenas, o comum é realmente uma construção democrática e

multitudinária, diferente daquele sistema que Hobbes propõe, no qual para que se

controle os afetos (já se apresenta a necessidade de controle destes afetos) é necessário

que se reduza a multiplicidade para apenas um vetor onipotente que, suprimindo todos

os demais, manterá a paz e a segurança. Para o Espinosa que vislumbramos a

coletividade apenas pode perdurar se se mantiver seu caráter multitudinário e livre, caso

contrário tal estado civil será um prolongamento do estado de solidão que antes vigia, e

não, como afirma Espinosa, um prolongamento e uma expansão dos direitos naturais

por representar de fato sua efetivação. “Lo que separa Spinoza de Hobbes es, por tanto,

la idea de que la unidad de la voluntad colectiva no puede hacerse por la eliminación

de las voluntades individuales”141

.

Esta é a razão da incansável busca de Espinosa em seu Tratado Político por

encontrar condições de possíveis formas em regimes políticos absolutos. E chamam-se

absolutos pois integram absolutamente todas as vontades. Esta seria a natureza

democrática de toda a filosofia política espinosana. O absoluto significará muito mais a

139 E, IV, 35, esc. 140 E, IV, 36. 141 AURELIO, Diogo Pires. Del afecto común a la República. In.: MARTON, Scarlett (Org. e Ed.). Discurso. n. 18.

São Paulo, Revista do Departamento de Filosofia da F.F.L.C.H. da USP, 1990, p. 352.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 57: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

57

integração das partes que compõem o todo no processo político do que qualquer ideia

esmagadora de verticalidade. Por isso a nosso ver democracia segundo Espinosa pode

ser entendida muito mais como uma tendência ou movimento dentro de qualquer forma

ou sistema de governo do que como uma destas formas ou sistemas propriamente ditos.

Esta pode ser considerada uma das maiores inovações da teoria política espinosana: na

medida em que a plena realização da potência só é possível por meio da união, é natural

que aquele sistema ou aquele movimento dentro do sistema que integre de maneira mais

plena todas as partes que compõem este sistema seja, de fato, o mais útil dos regimes

com sua forma variando apenas por questões históricas, culturais e de circunstância.

Para que não caiamos em utopias ou abstrações meramente teóricas é importante

ressaltar de que modo esta tendência democrática pode prevalecer e operar dentro da

lógica do Estado, qual seja, através de uma estratégia já bem sinalizada no TTP e que

consiste na dissolução da unidade soberana no interior de uma rede de instituições para

que assim se revele o poder como uma força tendencialmente plural e multitudinária.

No campo da política é aqui que Hobbes e Espinosa não poderiam estar mais distantes.

Será esta pulverização institucional que possibilita o entendimento dos fundamentos da

própria soberania que são sua impessoalidade e sua eternidade virtual. Este é o

movimento que Espinosa segue e que desonera o Estado daquele modelo proposto por

Hobbes, na medida em que este Estado absolutamente absoluto não será aquele em que

reina um poder unipessoal, mas aquele em que todos os indivíduos integram ao máximo

este que seria o corpo do soberano142

.

No entanto esta estratégia de Espinosa, segundo Pires Aurelio envolve um

problema que surge desde já, referente à própria decisão. Ao estabelecer esta rede

horizontalizante Espinosa insere a pluralidade como fator intrínseco do próprio ato

soberano – e esta é parte de seu projeto no Tratado Teológico Político – mas para suprir

a necessidade de expressão de uma vontade a partir desta soberania que dê conta dos

anseios do corpo político como um todo, Espinosa desenvolve no Tratado Político uma

estratégia vertical, “destinada a salvar la cara unitaria del imperium”143

. E a tal

estratégia não poderemos jamais atribuir um caráter meramente formal, mas como parte

integrante do modo através do qual se agenciam os encontros nesse estado civil. Para

142 AURELIO, Diogo Pires. Del afecto común a la República. In.: MARTON, Scarlett (Org. e Ed.). Discurso. n. 18.

São Paulo, Revista do Departamento de Filosofia da F.F.L.C.H. da USP, 1990, p. 355. 143 AURELIO, Diogo Pires. Del afecto común a la República. In.: MARTON, Scarlett (Org. e Ed.). Discurso. n. 18.

São Paulo, Revista do Departamento de Filosofia da F.F.L.C.H. da USP, 1990, p. 355-6.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 58: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

58

tanto as leis e normas precisam possuir poder coercitivo e verdadeira autoridade para se

fazerem valer perante a pluralidade de opiniões, não podendo ser apenas fórmulas

vazias que não se realizam nunca ou que apenas se efetuam a depender da vontade do

soberano. Contudo Espinosa rechaçará a hipótese ditatorial “que incorpora en la ley um

suplemento de violencia y, por consiguiente, de irracionalidad”144

. Eis que surge a

célebre passagem do Tratado Político:

Em contrapartida, não há qualquer dúvida (pelo art. 3 do cap. VI) de que se fosse

possível o gládio do ditador, mantendo a forma do estado, ser perpétuo e temível

somente para os maus, nunca os vícios poderiam desenvolver-se a tal ponto que já não

se pudesse extirpá-los nem corrigi-los. Por isso, para obtermos todas essas condições,

dissemos que o conselho dos síndicos deve estar subordinado ao conselho supremo, de

modo que o gládio ditatorial perpétuo estivesse nas mãos não de uma pessoa natural,

mas civil, cujos membros fossem tantos que não pudessem dividir entre si o estado

(pelos arts. 1 e 2 do cap. VIII) ou conluiar-se em algum crime.145

Confiar à uma pessoa natural o gládio ditatorial equivaleria a alienar todas as

potência individuais, exatamente como Hobbes procede por meio de sua solução

unitária. Por isso é necessária a composição estratégica através da pessoa civil.

Importante notar o fato de que, como bem aponta Diogo Pires Aurelio, esta será a única

vez que Espinosa utilizará a palavra pessoa no Tratado Político: “non penes personan

aliquam naturales, sed civilem”146

. Tal fato dificilmente seria uma mera casualidade.

Certamente por detrás esconde-se o vulto de Hobbes que Espinosa enfrenta ao indicar

tão diretamente as implicações temerárias para a segurança e manutenção da liberdade

na república que representaria o depósito do gládio ditatorial nas mãos de um indivíduo

ou grupo de indivíduos, o que consequentemente sujeitaria todos os demais de maneira

completa a este ou estes que o detém. Por isso sua originalidade e efetividade enquanto

arma real de integração dos indivíduos por um lado e impedimento de acesso exclusivo

por poucos de outro. Em suma, começa a desenhar-se a realidade (e atualidade) dos

instrumentos no direito civil que vêm dar a concretude ao direito natural.

144 AURELIO, Diogo Pires. Del afecto común a la República. In.: MARTON, Scarlett (Org. e Ed.). Discurso. n. 18.

São Paulo, Revista do Departamento de Filosofia da F.F.L.C.H. da USP, 1990, p. 356. 145 TP, X, 2. 146 AURELIO, Diogo Pires. Del afecto común a la República. In.: MARTON, Scarlett (Org. e Ed.). Discurso. n. 18.

São Paulo, Revista do Departamento de Filosofia da F.F.L.C.H. da USP, 1990, p. 356.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 59: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

59

3.2

Da delegação e da representatividade

Para a formação da vida em comunidade na teoria hobbiana, é necessária a

delegação dos poderes e das vontades de todos a um só ou a uma assembleia, que

representará de maneira absoluta esses indivíduos que compõem o corpo político e

centralizará sua diversidade sob a unificação imposta por um pacto. Tal ideia de pacto

pode ser traduzida pela fundação do Estado e da relação de dominação/subordinação

(jurídica e política) que dele advém:

“A essência do Estado consiste nisso e pode ser assim definida: uma pessoa instituída,

pelos atos de uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros,

como autora de modo a poder usar a força e os meios de todos, da maneira que achar

conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum.

O titular dessa pessoa chama-se soberano, e dizemos que ele possui poder soberano.

Todos os restantes são súditos”.147

Isto será um dos aspectos da constituição própria daquilo que Hobbes entende

por sistema: “I understand any number of men joyned in one Interest, or one

Businesse”148

. Dentre estes entenderá que alguns são regulares e outros irregulares. Os

regulares são aqueles nos quais um ou alguns são constituídos representantes de

todos149

. Já os irregulares são aqueles que não possuindo representantes consistem

apenas em um concurso de pessoas150

, podendo ser legais ou ilegais a depender de seu

objetivo em relação ao Estado (podem ser mercados populares, feiras livres, guildas

profissionais – em um caso mais atual – sindicatos, ou por outro lado uniões que,

segundo Hobbes, possuiriam intenções maléficas ou desconhecidas e apenas por isso

deveriam ser combatidas e destruídas). Assim já se descortina o valor da

representatividade quando do estabelecimento do corpo político para o autor inglês.

Futuramente notaremos a diferença de posição que a representação ocupa para

Espinosa, assim como vimos com seu conceito de absoluto.

Já que tratamos de absoluto, importa dizer que em Hobbes tais sistemas

regulares podem ser entendidos como absolutos e independentes na medida em que não

147 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo, Ed. Martin Claret, 2013, p. 140. 148 HOBBES, Thomas. Leviathan. London, Ed. Penguin Books, Reprinted in Penguin Classics 1985, p. 274. 149 Sobre isso ver: HOBBES, Thomas. Leviathan. London, Ed. Penguin Books, Reprinted in Penguin Classics 1985,

p. 274. 150 “Irregular Systemes, are those wich having no Representative, consist only in concourse of People (...)”. In.:

HOBBES, Thomas. Leviathan. London, Ed. Penguin Books, Reprinted in Penguin Classics 1985, p. 25.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 60: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

60

se subordinam a nenhum outro poder. Estes são os próprios Commonwealths. Todos os

outros são dependentes e dividem-se entre políticos (Bodies Politique ou Persons in

Law) e privados. A isso Hobbes remete diretamente à divisão que fará entre os

conceitos de público e privado e que muito nos interessa no desenvolvimento futuro dos

argumentos deste trabalho. Os sistemas políticos são aqueles nos quais o poder de

representação é sempre limitado pelo poder soberano, ou seja, pelo Estado na qualidade

de plenipotenciário deste tendo sua existência estendida até onde o poder soberano lhe

outorgar. São corpos políticos departamentos de Estado, conselheiros e conselhos,

missões diplomáticas, juízes, a própria assembleia dos representantes, dentre muitos

outros. Tanto é que Hobbes admite que se pode protestar contra atos exarados por estes

corpos políticos, mas jamais contra o poder soberano. Até porque será este poder

soberano quem irá sempre julgar tudo. É importante dizer que Hobbes considerará

sempre o rei como a nemine judicatur, ou seja, não pode ser julgado por ninguém.

Naturalmente os motivos que levam Hobbes a atribuir tal poder ao rei são bem

diferentes daqueles que fundamentavam tal preceito medieval, por exemplo não será

uma justificativa divina que dará base a tal prerrogativa real, no entanto não podemos

nos esquecer de que, no momento da transferência de poder mediante o pacto, toda lei

será vontade do rei, sendo este o elemento unificador (melhor, uniformizador) da

sociedade e de seus desejos outrora múltiplos. Mas devemos retornar ao estudo de tais

corpos políticos e privados. Corpos privados podem ser lícitos, como os núcleos

familiares, ou ilícitos, como organizações criminosas151

. Já os sistemas irregulares são

meros concursos ou confluências de indivíduos, procedendo por mera similitude de

desejos e inclinações. Para Hobbes estes são lícitos ou ilícitos a depender de suas

intenções, o que deve ser visto caso a caso.

Concourse of people, is an Irregular Systeme, the lawfulnesse, or unlawfulnesse,

whereof dependeth on the occasion, and on the number of them that are assembled. If

the occasion be lawfull, andmanifest, the Concourse is lawfull; as the usuall meeting of

men at a Church, or at a publique Shew, in usuall numbers: for if the numbers be

extraordinarily great, the occasion is not evident; and consequently he that cannot

render a particular and good account of his being amongst them, is to be judged

conscious of an unlawfull, and tumultuous designe. It may be lawfull for a thousand

men, to join in a Petition to be delivered to a Judge, or Magistrate; yet if a

thou[123]sand men come to present it, it is a tumultuous Assembly; because there

needs but one or two for that purpose. But in such cases as these, it is not a set

151 HOBBES, Thomas. Leviathan. London, Ed. Penguin Books, Reprinted in Penguin Classics 1985, p. 285.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 61: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

61

number that makes the Assembly Unlawfull, but such a number, as the present

Officers are not able to supresse, and bring to justice.152

Esta é uma das passagens mais reveladoras de Hobbes, na qual a função da

representatividade aparece bem delineada bem como a inviabilidade física de uma união

espontânea. A função desta representatividade nada mais consiste do que em eliminar a

pluralidade suprimindo-a. Caso os poderes do Estado não sejam suficientes para tanto,

ou seja, caso a multidão o supere em força (pois em número já o faz) então tal Estado

não será governável. Logo na teoria política hobbiana é fundamental que o Estado

supere em muito o poder de seus súditos, por isso segundo Hobbes este é e tem que ser

absoluto. Precisamos frisar o fato de que este governo unipessoal onde as vontades e o

poder são transferidos para o soberano não são em nenhuma hipótese aquilo que

Espinosa considera como “poder absoluto (absolutum imperium) porque são formas

políticas fundadas na desigualdade social e na exclusão do poder de uma parte da

sociedade (a plebe)”153

.

Para se tornar Estado e absoluto, o poder soberano deve ser constituído de uma

ou de outra forma: apenas pode ser adquirido ou pela força física que obriga os

indivíduos a se submeterem ao poder e se sujeitarem à vontade do soberano, ou por

meio da concórdia dos homens que se submetem voluntariamente a um sujeito ou uma

assembleia que possuirá esse poder. Ao primeiro Hobbes chamará de estado por

aquisição, o segundo estado político ou por instituição.154

Basicamente, segundo o

próprio autor, sua diferença reside apenas na forma como se firma o pacto, após sua

fundação seriam indiferenciáveis por gerarem os mesmos efeitos civis, mas na realidade

torna-se fundamental pontuar que:

“No que concerne à indistinção entre o Estado por instituição e por conquista, para

Espinosa a identidade se restringe ao direito civil, pois o dominador imporá seu próprio

direito civil ao dominado e, por isso, do ponto de vista do direito civil, os dois Estados

não se distinguirão. No entanto, há entre ambos profunda diferença: o corpo

político instituído nasce por ato de uma população livre em nome da esperança de

152 HOBBES, Thomas. Leviathan. London, Ed. Penguin Books, Reprinted in Penguin Classics 1985, p. 287. Uma

tradução livre seria: Confluência de pessoas, é um Sistema irregular, a licitude ou ilicitude, do qual depende da

ocasião, e do número daqueles que estão reunidos. Se a ocasião for lícita, e evidente, a confluência é lícita; como o

habitual encontro de homens na igreja, ou em uma parada pública, em números habituais: se o número for

extraordinariamente grande, a ocasião não evidente; e consequentemente este não pode prestar uma particular e boa

conta de se estar entre estes, é de se ser julgado consciente de um ilícito, e tumultuoso desígnio. Pode ser ilícito para

mil homens, se unirem em uma petição a ser entregue a um juiz, ou magistrado; no entanto se mil homens vierem

apresentá-la, esta será uma assembleia tumultuosa; porque se precisa de um ou dois para este propósito. Mas em

casos como esse, não é um dado número que faz a assembleia ilícita, mas um número tal, que os presentes agentes

não são aptos a suprimir e trazer à justiça. 153 CHAUI, Marilena. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2003, pp. 295. 154 Idem. p. 140-141.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 62: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

62

vida, enquanto o conquistado se conserva apenas por medo da morte e por

aceitação da servidão”155

.

Em Espinosa reparamos que as causas de fundação serão diferentes assim como

seu objetivo também. Para Hobbes tanto as causas quanto sua garantia de validade será

sempre a mesma: o medo recíproco que os indivíduos têm uns dos outros e a força do

soberano que se legitima pela primazia da violência no corpo social.

“O que fica evidente é que em ambos os casos (estado por aquisição ou por instituição)

o fazem por medo, e isso deve ser observado por aqueles que consideram nulos os

pactos obtidos pelo temor à morte ou à violência. Se isso fosse verdade, ninguém

poderia, em nenhuma forma de Estado, ser obrigado à obediência”.156

Ou seja, segundo Hobbes os contratos efetuados mediante o medo e a fraude são

válidos pois se revelam atos da vontade e decretos dos indivíduos que aceitam

colocarem-se sob o jugo de outrem. Podemos disto depreender que o contratualismo que

caracteriza a teoria hobbiana obedece o termo em sua acepção mais pura. A validade do

pacto representa uma ficção tão poderosa que não importa em verdade quais os fatores

que induziram ao estabelecimento do contrato, vale sim a existência tácita ou expressa

deste para rapidamente pôr fim ao estado anteriormente vigente.

Para Espinosa tanto a necessidade do poder soberano ser mais poderoso que a

multidão quanto a indiferenciação entre as duas formas de formação do Estado serão

ficções porque separariam o direito de sua potência, pois o poder sempre será igual à

soma das potências dos indivíduos que formam o grupo. Ignorar isso seria cair em uma

ficção que o realismo espinosano jamais permitiria. A partir daí conclui-se que é

absurdo crer que o soberano possui mais poder do que a multidão.

Espinosa pode considerar legítimos todos os sistemas políticos, pois o elemento

democrático poderia se encontrar inserto em cada um e em todos, atuando como

movimento em permanente manutenção. É aqui que reside o caráter absoluto da

democracia, este que é o mais natural dos regimes por conter em si mesmo a multidão.

Por acaso não podemos nos esquecer como ensina Marilena Chaui que esta multitudo

será não só um elemento, mas sempre o agente político, aquele detentor do direito

natural comum que existe no regime fundamentalmente democrático pois, como todos

são em todos os aspectos “legisladores, cidadãos, súditos e governantes, permanecem

livres e iguais, como eram em estado natural, e a potência coletiva é absolutamente

155 In.: CHAUI, Marilena. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2003, p. 293. 156 Ibidem. p. 161. Grifos Nossos.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 63: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

63

proporcional ao direito natural”, e é desta forma que se conserva aquilo que chama desta

incomensurabilidade da soberania157

. Logo resta nítida uma linha antes tênue que define

a proporcionalidade entre poder soberano e multitudo, a qual se explica pelas duas

normas que definem a própria gênese da fundação política conforme estamos a estudar

desde o início, e que dizem respeito em grande parte a esta relação apresentada por

Espinosa entre a pessoa natural, a pessoa civil e a multitudo. De um lado, no campo do

particular o direito é diretamente proporcional à potência (jus sive potentia), logo a

política requer que a potência soberana venha a ser inversamente proporcional “à

potência dos cidadãos tomados um a um ou somados, isto é, a potência soberana (direito

civil) deve ser incomensurável com o poder individual dos cidadãos (direito natural)”158

.

No pólo oposto, é sempre necessário que a potência daquele que exerce o governo seja

sempre inversamente proporcional à potência dos cidadãos como um todo.

Por amplo que concebamos o direito e o poder daquele que exerce a soberania no

Estado, esse poder jamais será grande o bastante para aqueles que, sendo dele

detentores, tenham uma potência absoluta sobre tudo o que quiserem; creio já tê-lo

demonstrado bastante claramente.159

Deste modo Espinosa pretende resguardar a manutenção do sistema, impedindo

que indivíduos privados sejam mais potentes do que o poder soberano, mas também que

aqueles que exercem o poder soberano jamais sejam mais poderosos do que a Cidade

tomada como um todo. Vemos que há a separação evidente entre a figura do governante

e a do poder soberano, não se podendo jamais confundir a pessoa natural com a pessoa

civil.

Será esta proporção que não fará tanto sentido na teoria hobbiana, pois o

governo absoluto para o inglês é aquele que se organiza verticalmente pela supressão da

multiplicidade da multitudo, ou seja, por sua transformação em povo, uno, submisso e

esmagado. Ora, se é necessária uma força incomensurável para controlar o todo sob a

égide de um soberano (pessoa civil), ao qual ou aos quais serão outorgados os desejos e

vontades do todo (no caso, à pessoa ou às pessoas físicas, aos indivíduos que exercem

essa representação e exprimem suas vontades), então não há que se falar em: governo

absoluto no sentido espinosano; proporcionalidade inversa entre governante e

governados ou entre poder soberano e cidadãos; ou ainda, é impossível que se entenda

157 CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2003, p. 300. 158 Ibid., p. 299-300. 159 SPINOZA. Tratado Teológico-Político. Organização J. Guinsburg, Newton Cunha, Roberto Romano; tradução J.

Guinsburg, Newton Cunha. 1 ed. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2014, cap. XVII, p. 297.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 64: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

64

representação de direito no sistema político como integração das partes que compõem o

todo, ou seja, como “presentação” de fato de cada um e de todos dentro do regime,

qualquer que seja este.

Eis que nessa proporção (ratio) que reside não só o caráter inovador mas a

justificativa democrática da teoria política espinosana. E democrática porque necessária

para a manutenção da paz e porque deve ser coerente com o direito natural. Por

exemplo, Bodin diria que não é soberano aquele governante que se submete, seja a um

inferior, seja a um igual:

El primer signo del príncipe soberano es la potencia de dar ley a todos em general, y a

cada uno em particular; pero esto no es suficiente, porque es preciso añadir, sin el

consentimiento del mayor, ni del semejante, ni del menor a uno mismo: porque si el

príncipe está obligado a no hacer ley sin el consentimiento de uno mayor que él, es em

realidad súbdito; si de uno igual, tendrá um compañero; si de los súbditos, sea del

Senado o del pueblo, no es soberano160

Vemos claramente o projeto verticalizante associado à fusão entre a pessoa civil

e a pessoa natural de tal forma que são indistinguíveis. Espinosa dirá o contrário, pois

sua busca é orientada pela negação de todo poder que não seja plural ou de toda

autoridade que não seja comum161

. Na realidade a multidão é a força que designaria a si

própria como poder soberano e esta é a base da construção política espinosana. Tal auto

designação da multidão prescinde de forma específica e é a razão mesma de existir do

corpo político. No entanto não podemos nos esquecer de que esta multidão se fará

presente politicamente através de instituições participativas conforme Espinosa se

detêm, especialmente do capítulo VII ao X de seu Tratado Político.

Na ausência do movimento tendencialmente democrático o que teremos é tirania

como Espinosa explica no caso dos aragoneses onde, mesmo ainda subsistindo a velha

forma e as aparências da soberania popular, o Estado apenas existia assim pelo

beneplácito de seus governantes: “Os aragoneses mantiveram, portanto, a liberdade

depois de Fernando, não já por direito, mas por graça dos mais potentes reis (...)”162

. No

caso descrito a liberdade sutilmente encontra seu fim no momento em que se propaga a

ideologia de que o rei e a multidão seriam iguais em potência:

160 BODIN. Les six livres de la République, libro I, cap. X, 309. 161 AURELIO, Diogo Pires. Del afecto común a la República. In.: MARTON, Scarlett (Org. e Ed.). Discurso. n. 18.

São Paulo, Revista do Departamento de Filosofia da F.F.L.C.H. da USP, 1990, p. 356. 162 TP, VII, 30.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 65: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

65

Ele, contudo, não habituado ainda ao estado absoluto, não ousou qualquer tentativa e

respondeu aos conselheiros que além de ter aceite o reino dos aragoneses com as

condições que eles conheciam e jurado observá-las religiosamente, e além de não ser

de homem quebrar a palavra dada, estava intimamente convencido de que o seu reino

permaneceria estável enquanto a segurança do rei não fosse maior que a dos súditos,

de tal maneiraque nem o rei preponderasse sobre os súditos nem, pelo contrário, os

súditos sobre o rei.163

O golpe não foi dado a marteladas, mas pela boa vontade e de maneira

extremamente sutil. O ponto central desta passagem é a cessação da liberdade no

momento em que se nega a incomensurabilidade da potência da multidão (multitudo)

em relação à do monarca e a esta é negado o papel de guardião do direito natural

comum (o que é absurdo em um estado que um dia se disse democrático), não

importando o motivo pelo qual se deu. Afinal não será o governante virtuoso aquele que

irá salvar o Estado. Sobre isso já falamos bastante. Será por meio destas instituições,

que pulverizam a representação e mantêm guardado o papel da multitudo dentro da

república, que se poderá manter a paz dentro do corpo político. Percebe-se que a

representação possui função essencial à manutenção de qualquer Estado, mesmo quando

de seu exercício dito meramente formal.

3.3

Da igualdade

De acordo com Hobbes, a união dos indivíduos se dará inevitavelmente sob a

égide do medo e terá por objetivo pôr fim a este. Seja o medo da guerra permanente que

se deflagra no estado de natureza, seja o medo perante o jugo de um soberano mais

poderoso, para o inglês esta será a força para a criação da vida social. O que decorre é

que a única maneira de cessar os conflitos geradores do medo será a delegação do poder

a um ou alguns a quem se chamará soberano. Em Hobbes independentemente de se

tratar de um indivíduo ou de um grupo, o poder sempre será uno. Isso se explica pelo

fato de o elemento causador dos conflitos em natureza ser a pluralidade de vontades

expressa que, aliada à condição comum dos seres humanos irá gerar conflitos

infindáveis. Exatamente por este motivo que dissemos anteriormente ser a igualdade a

gênese dos conflitos e das disputas políticas para Thomas Hobbes. A conclusão lógica

que se pode depreender daí será que a única saída para esta igualdade no caos será a

instituição da desigualdade pelo corpo político. Tal fato explica porque o medo é um

163 TP, VII, 30.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 66: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

66

elemento fundante da vida em sociedade e ocupa tamanho destaque na teoria hobbiana

na mesma medida em que demonstra porque sem a unidade do representante jamais será

possível que se conceba a unidade dos representados164

.

Enfim, a crueldade e o poder exigem a unicidade da representação: o que transcorre em

cena não deriva de texto nem de autor. Se, no “teatro ocidental”, o autor não pertence ao

palco e o governa de longe, em Hobbes o ator está sozinho no palco, donde rege – à

distância – os seus outros, que também são os seus autores. A representação é singular:

porque não pertence a esta seqüência de derivas infinitas em princípio, mas está fixada

de uma vez por todas, salvo catástrofe: porque não é signo, é marca.165

Conforme pudemos extrair do capítulo anterior, as forças possuem como única

medida sua própria potência de agir, apenas podendo ser contidas, diminuídas ou

eliminadas por outras forças que lhes superem. No estado civil o que se vê serão normas

derivadas da potência coletiva ou em si mesma (no caso espinosano) ou em outrem

(como no caso hobbiano) que criarão uma espécie de mediação entre as forças internas

ao próprio estado, preocupação constante na manutenção do corpo político, afinal “é

certo que a cidade corre sempre mais perigos por causa dos cidadãos que dos inimigos:

os bons, de fato, são raros”166

.Tal mediação surgirá a partir da união das potências

individuais que outrora viviam separadas, em solidão. Por isso Marilena Chaui afirma

que a “liberdade não é a condição para a vida política – a condição é a igualdade natural

como potência que não consegue se concretizar –, mas sua expressão mais alta. Se as

virtudes e vícios dos cidadãos não devem ser imputados a eles, mas atribuídos à própria

Cidade, é porque a liberdade e a servidão são determinações da própria soberania”167

.

Hobbes verá também na igualdade de condições entre os homens a centelha que

possibilita a vida política só que de maneira bem diferente. Para o filósofo inglês a

igualdade apenas possui tal papel na medida em que ela é a situação a qual é necessário

se pôr fim para atingir a vida em sociedade. Ou seja, a igualdade aparece como o

desafio inicial da vida social para que se atinja a paz e a concórdia. Até porque em

Hobbes a expressão máxima desta vida política não seria a liberdade, mas a segurança,

ironicamente dada a partir do constrangimento ao movimento dos corpos e que lhes

garantirá a vida em paz. Logo, diante de todo o exposto vemos que a paz hobbiana nada

mais é do que aquilo a que chamaríamos “paz de cemitério” e a concórdia será cega,

164 AURELIO, Diogo Pires. Del afecto común a la República. In.: MARTON, Scarlett (Org. e Ed.). Discurso. n. 18.

São Paulo, Revista do Departamento de Filosofia da F.F.L.C.H. da USP, 1990, p. 351. 165 RIBEIRO, Renato Janine. A marca do Leviatã: Linguagem e poder em Hobbes. São Paulo, ed. Ática, 1978, p. 18. 166 TP, VI, 3. 167 CHAUI, Marilena. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2003, pp. 311-2. Grifos Nossos.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 67: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

67

canina e silente após a transferência de todo poder e toda vontade para um ou para uma

assembleia a quem se chama soberano. Em outras palavras diria Espinosa: “Que o

silêncio seja muitas vezes útil ao estado ninguém pode negar; mas que sem ele o mesmo

não possa subsistir, ninguém poderá jamais provar”168

.

Já no caso espinosano a igualdade será vista de modo extremamente peculiar,

principalmente se comparada ao exemplo hobbiano, conforme pudemos extrair a partir

dos pontos 2.5 a 3.2. Para Espinosa há uma desigualdade que irá emergir quando do

surgimento do estado civil, e isto perceberemos logo adiante, no entanto tal

desigualdade não se classifica pela preponderância daquele que exerce o poder soberano

em relação a cidade169

, mas por uma condição que surge a partir do movimento de

tentativa do estabelecimento da igualdade de condições: esta desigualdade será a força

que normalmente vigora dentro da dinâmica da vida política e consiste na tendência de

expansão dos direitos, sempre desejável (e perceberemos que útil) de um ponto de vista

democrático, e exemplos históricos não faltam para comprovar que esta é um elemento

potente dentro do corpo político.

Não se quer com isso defender o estabelecimento e manutenção de um Estado

que seja opressor e viva em constante embate destrutivo com seus cidadãos, pelo

contrário. Se quer sim constatar que dentro da dinâmica e do jogo de forças que já

analisamos haverá disputas por interesses, no entanto estas não podem extrapolar certos

limites pois, caso o façam corre-se o risco de chegar até o ponto da guerra civil ou morte

do Estado, ou seja, ao retorno à desagregação da potência coletiva e estabelecimento da

vida com base no medo, este não mais comum, mas de cada um em relação a todos. Por

isso em qualquer um dos regimes que Espinosa trata veêm-se as ferramentas em

potencial para a criação e expansão de novos direitos, afinal nisto consiste o estado civil

e o diferencia em grande medida do estado de natureza.

168 TP, VII, 29. 169 “Concluímos, assim, que a multidão pode conservar sob um rei uma liberdade bastante ampla, desde que consiga

que a potência do rei seja determinada somente pela potência da mesma multidão e mantida sob a guarda desta. Foi

esta a única regra que segui ao lançar os fundamentos do estado monárquico”. In.: TP, VII, 31.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 68: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

68

3.4

Do surgimento do estado civil

Vimos assim que em solidão os seres humanos não serão aptos a realizar sua

potência de agir, pensar e ser de maneira plena. Logo, o estado de natureza nada mais

será do que um estado de impotência, de solidão e de medo, onde os indivíduos nada

podem por receio dos outros e somente viverão sob uma postura de guerra que se impõe

pela desconfiança mútua.

Hereby it is manifest, that during the time men live without a common Power to keep

them all in awe, they are in that condition wich is called Warre; and such a warre, as is

of every man, against every man. For Warre, consisteth not in Battel onely, or the act of

fighting; but in a tract of time, wherein the Will to contend by Battel is sufficiently

known: and therefore the notion of Time, is to be considered in the nature of Warre; as

it is in the nature of Weather. For as the nature of Foule weather, lyeth not in a

showre or two of rain; but in an inclination thereto of many dayes together: So

thee nature of War, consisteth not in actuall fightning; but in the known

disposition thereto, during all the time there is no assurance to the contrary. All

other time is Peace170

.

E diz Espinosa que:

Quanto mais os homens se debatem com ira, a inveja ou algum afeto de ódio, mais se

deixam arrastar de um lado para o outro e estão uns contra os outros, pelo que são tanto

mais de temer quanto mais podem e quanto mais hábeis e astutos são que os restantes

dos animais. E uma vez que os homens estão a maior parte do tempo (como

dissemos no art. 5 do cap. ant.) sujeitos por natureza a tais afetos, os homens são

por natureza inimigos. Com efeito, o meu maior inimigo é aquele a quem mais

devo temer e de quem mais devo me precaver.171

Por tal motivo é necessário que se estabeleçam remédios para a solidão,

possibilitando uma vida não em harmonia entre os homens – até porque pretender tal

harmonia, dado que a política se define pelo embate de forças, seria, ao nosso ver, cair

na utopia do finalismo tal qual é o caso dos moralistas, como analisamos – mas pelo

menos de paz entre estes. Desta forma, aquilo que é mais útil aos indivíduos é em

verdade não a vida em solidão e isolamento, terreno fértil para o medo em cada um e em

todos, mas aquela atenta à convivência em comunidade, aquela na qual o comum é a

170 In.: HOBBES, Thomas. Leviathan. London, Ed. Penguin Books, Reprinted in Penguin Classics 1985, p. 185-186.

Grifos Nossos. Tradução: “Por isso, quando não existe um poder comum capaz de manter os homens numa atitude de

respeito, temos a condição do que denominamos guerra; uma guerra de todos contra todos. Assim, a guerra não é

apenas a batalha ou o ato de lutar, mas o período em que existe a vontade de guerrear; logo, a noção de tempo deve

ser considerada como parte da natureza da guerra, tal como é parte da noção de clima. Da mesma forma que a

natureza do mau tempo não consiste em algum chuvisco, mas numa tendência à chuva intermitente com duração de

dias, a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na disposição para ela durante todo o tempo em que não há

segurança do contrário. O tempo restante é de paz”. In.: HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo, Ed. Martin Claret,

2013, p. 104-105. Grifos nossos. 171 TP, II, 14. Grifos nossos.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 69: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

69

medida do direito civil, mesmo (e principalmente) com suas contradições e

diversidades. Para tanto é necessário que haja o elemento de união entre os indivíduos,

algo em comum que os una sob um mesmo propórsito. Será aqui que é necessário

pontuarmos a entrada em cena das chamadas noções comuns para dar firmeza a

construção do político.

As noções comuns envolvem a ideia de que certas coisas são comuns ao todo e

suas partes e comuns às partes entre si172

: “Com efeito (pelo lema 2), todos os corpos

estão em concordância quanto a certos elementos, os quais (pela prop. prec.) devem ser

percebidos por todos adequadamente, ou seja, clara e distintamente”173

. E ainda:

“Segue-se disso que a mente é tanto mais capaz de perceber mais coisas adequadamente

quanto mais propriedades em comum com outros corpos tem o seu corpo”174

. O

estabelecimento desta ideia de ser parte do corpo será mais um fator na teoria

espinosana que justificará dispensar a figura do pacto ou contrato na formação do corpo

político. Na medida em que será esta sociedade civil o elemento a propiciar a efetuação

do direito natural, como dito, serão úteis aos indivíduos os demais indivíduos, e quanto

mais houver espaço para a construção deste comum mais os indivíduos serão úteis entre

si e para o todo.

Desta forma se apresenta aos homens e mulheres a necessidade de sempre forjar

e reforçar um modo de vida em comunidade, que possibilite o exercício do direito

natural da forma mais abrangente e intensa possível pois, conforme ensina Espinosa,

aquele indivíduo “que se conduz pela razão é mais livre na sociedade civil, onde vive de

acordo com as leis comuns, do que na solidão, onde obedece apenas a si mesmo”175

.

Desta proposição da Ética pode-se extrair que não só a vida em sociedade é aquela

necessária ao indivíduo que vive sob a razão, como também nos parece ser a liberdade

espinosana aquela observância dos direitos e interesses comuns da sociedade bem como

de seus direitos e interesses difusos. A vida em sociedade é não só mais útil ao homem

que se conduz pela razão como a obediência às determinações comuns é parte

determinante e necessária do agir deste, o que não exclui de maneira alguma o papel do

indivíduo enquanto cidadão, assunto que trataremos mais adiante.

172 CHAUI, Marilena. A nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa, Ed. Companhia das letras, São Paulo,

1999, p. 313. 173 E, II, 38, cor.. 174 E, II, 39, cor.. 175 E, IV, prop. 73.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 70: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

70

Porque a liberdade é uma virtude, ou seja, uma perfeição: por isso, tudo quanto no

homem é sinal de impotência não pode ser atribuído à sua liberdade. Daí que o

homem não possa minimamente dizer-se livre por pder não existir ou não usar da

razão, mas só na medida em que tem o poder de existir e de operar segundo as leis

da natureza humana. Quanto mais livre, pois, consideramos ser o homem, menos

podemos dizer que ele não pode usar da razão e escolher o mal em vez do bem; por isso

Deus, que existe, entende e opera com absoluta liberdade, também existe, entende e

opera necessariamente, ou seja, por necessidade da sua natureza. Não há com efeito

dúvida de que Deus opera com a mesma liberdade com que existe. Por conseguinte, tal

como existe por necessidade da sua prórpia natureza, assim também age por

necessidade da sua própria natureza, isto é, age com absoluta liberdade.176

Contudo já salientamos que na política espinosana a liberdade, a lei natural e a

lei civil devem caminhar juntas, sendo as determinações comuns da Cidade, por

conseguinte, uma condição para a existência desta dinâmica, dando aquio que de

maneira imprecisa poderíamos chamar de seus limites e objetivos (epor objetivos

tentamos não empregar a palavra com um sentido finalístico como apresentado

previamente), sem ignorar, por outro lado, a possibilidade do movimento de expansão

destes direitos. Por isso, afirmará Espinosa que: “Querer reger tudo por leis, é antes

irritar os vícios que corrigi-los. O que não se pode proibir, é necessário permitir, apesar

do dano que disto pode frequentemente resultar (...)”177

. Não se quer com isso dizer que

há certas condutas lesivas que devem ser permitidas pelas incapacidade de vigilância

perene do soberano. Se quer sim dizer que de um lado a multidão, enquanto guardiã e

medida do direito natural, e de outro o direito civil, ferramenta efetuadora deste direito

natural, devem ser coerentes com seus limites, desígnios e possibilidades. O direito da

Cidade deve ser real sem ser realista, natural enquanto expressão do direito de natureza

e positivo como norma sem ser meramente positivista. Veremos no tópico seguinte que

o direito não pode também negar sua função imagética. É claro que não pode por

princípio ser mera abstração, formalidade ou pura expressão da vontade de um ou de

alguns, contudo não se pode negar a função agregadora que tal característica do direito

exerce para a manutenção do corpo político. Ignorar esta qualidade seria o mesmo que

negar a forma como reflexo histórico e cultural, algo que Espinosa prova longamente

em seu Tratado Teológico-político.

Assim vemos o papel ambíguo que o direito natural possui no estado civil: em

um momento este será o guardião, em outro a ameaça do direito civil. Em outras

palavras, o direito natural será guardião do direito civil enquanto medida clara do poder

176 TP, II, 7. Grifos nossos. 177 TTP, XX.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 71: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

71

político, atuando como seu limite e sua fronteira, e ameaça porque ao se unir às paixões

pode tornar alguém usurpador deste poder178

. A instituição do Estado, portanto, sempre

viverá nesta recriação longa e delicada, derivada das tensões internas mais do que de

forças vindas de fora:

Isso significa também que o direito civil institui as leis e as regras da vida política, mas

que, em si mesmo, ele não pode ser uma realidade normativa, como o direito civil

hobbesiano, pois ele é o direito natural coletivo e o direito vai até onde for o poder para

exercê-lo.179

Isto significa – como Espinosa virá afirmar por outros meios – que “os homens

não nascem civis, fazem-se”180

e se mantêm (ou não), ou seja, que a cidadania deve ser

vista como uma prática efetiva, tanto propiciada pelas instituições como a própria

realização destas. A sociedade seria o produto deste fazer-se civil ou social e o direito é

sua efetuação mesma.

A potência da soberania será o direito natural coletivo positivado no direito civil e será

avaliada pela potência natural dos cidadãos, isto é, por seu direito natural individual.181

Será exatamente por isso que um indivíduo ou do grupo de indivíduos que detêm

a soberania jamais será mais potente que a multitudo tomada como um todo: “O direito,

efetivamente, determina-se só pela potência, como mostramos no capítulo II, e a

potência de um só homem é, de longe, incapaz de sustentar tão grande peso”182

. É por

isso que na realidade a soberania não reside em um ou em alguns, mas nas instituições

que compõem o corpo político. Por isso a necessidade das mencionadas estratégias

verticalizantes e horizontalizantes na distribuição do poder que Espinosa virá traçar. A

pulverização do poder e aquela figura soberana que representa uma “abstração” bastante

presente na vida política são os elementos que dão realidade a este direito natural

através da multitudo. Eis a razão de se dizer que o direito civil é o direito natural

positivado, e isso é o que significa positivá-lo. Ao tornar o direito natural palpável e

muitas vezes visível, Espinosa propõe munir o corpo político dos elementos

garantidores de sua estabilidade ao mesmo tempo que possibilita que tal direito de

natureza exista e não seja eliminado pelos indivíduos em um embate eterno, como é fora

da vida civil. E esta, por sua vez, surgirá através do movimento destes indivíduos que,

por necessidade do exercício de sua liberdade beuscarão o que lhes é útil, qual seja, a

178 CHAUI, Marilena. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2003, p. 314. 179 CHAUI, Marilena. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2003, p. 314. 180 TP, V, 2. 181 CHAUI, Marilena. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2003, p. 297. 182 TP, V, 5.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 72: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

72

vida em comunidade de modo a impedir a continuação da forma precária na qual se vive

quando em solidão. Este é o caminho que se pretende vislumbrar no trabalho, mas não

podemos jamais dar às costas a maneira pela qual se dará tal movimento de agragação

do corpo político e seus reflexos e origens históricas e culturais.

3.5

Do pacto e das formas

As considerações do capítulo precedente sobre o direito universal do soberano e sobre a

transferência a ele do direito natural do indivíduo concordam com a verdade e a prática,

e é possível regulamentar a prática de modo que elas se unam cada vez mais. No

entanto, é impossível que, sob muitos pontos de vista, elas não permaneçam sempre e

puramente teóricas. De fato, ninguém jamais poderá deixar de ser homem, qualquer que

tenha sido o abandono de sua potência feito a outro e, consequentemente, de seu direito.

E jamais haverá soberano que possa executar tudo como quiser. Em vão ordenará a um

súdito que odeie seu benfeitor, ame a quem lhe faz mal, não sinta ofensa pelas injúrias,

não deseje ser liberado do medo e um grande número de coisas semelhantes que

resultam, necessariamente, das leis da natureza humana.183

Embora a própria vontade não seja voluntária, mas apenas o começo das ações

voluntárias (pois queremos o agir e não o querer), e por isso seja de todas as coisas a

que menos pode ser objeto de deliberação e pacto, contudo aquele que submete sua

vontade à vontade de outrem transfere a este último o direito sobre sua força e suas

faculdades – de tal modo que, quando todos os outros tiverem feito o mesmo, aquele a

quem se submeteram terá tanto poder que, pelo terror que este suscita, poderá

conformar as vontades dos particulares à unidade e à concórdia.184

Quando propõe a renúncia à vontade, às forças e às faculdades através do

artifício do pacto em favor de um terceiro, Hobbes está a propor pela transferência a

fundação de um Estado que é só poder e só pelo poder se faz presente. Este poder estatal

será o único detentor legítimo da violência – ou melhor, da violência legítima pois ainda

pode delegá-la – e da capacidade de aplicá-la, tudo sob a justificativa de manter a paz e

a segurança através da figura do soberano, daquele representante a quem é legado todo

o direito natural em face da multidão que renunciaria a tais capacidades. Ou seja, o

único objeto verdadeiro do pacto hobbiano celebrado é a garantia do monopólio

legítimo da violência àquele soberano, e para isso a totalidade dos indivíduos deverá ser

esvaziada de praticamente todas suas forças e faculdades. A justificativa para esta

composição de forças será a garantia da segurança dos indivíduos. Mas para melhor

compreendermos, precisamos pensar em quem são estes indivíduos e de que segurança

Hobbes está a tratar. Ao pensarmos que o pacto em seu caráter de submissão se refere à

183 SPINOZA: obra completa III: Tratado Teológico-Político. Organização J. Guinsburg, Newton Cunha, Roberto

Romano; tradução J. Guinsburg, Newton Cunha. 1 ed. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2014, cap. XVII, p. 295. 184 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 109.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 73: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

73

totalidade dos indivíduos que compõem o corpo político estamos parcialmente

enganados. Hobbes de fato alegará que seu objetivo é atingir um projeto ao alcance da

totalidade dos seres humanos e que seja compreensível a todos:

Este tipo de doutrina – com a exceção do que diz respeito à religião cristã – os mais

antigos dentre os sábios consideravam que só devia ser transmitido à posteridade se

tivesse os sutis ornamentos da poesia, ou se revestido de alegorias, como convém a um

belíssimo e sacro mistério da autoridade régia. Isto, para que os particulares não o

conspurcassem com suas altercações.185

Mas em dado momento durante a introdução do De Cive advertirá que não é

simples a doutrina que pretende ensinar e que por muito menos tal ciência já foi

deturpada pela má compreensão do vulgo: “E assim foi que, a longo prazo, todos os

homens de todas as nações – não apenas os filósofos, mas o próprio vulgo – vieram a

tratá-la como coisa fácil, exposta e prostituída ao engenho nativo de cada um, e que

supõem – hoje como antes – passível de se atingir sem maior esforço ou estudo”186

. Na

realidade a filosofia hobbiana se direciona mais para a descrição e estabelecimento de

medidas voltadas àqueles que exercem o poder do que aos que são governados. Sua

teoria não pleiteia o governo absoluto como o corpo político onde há maior participação

e de fato presentação dos indivíduos que o integram. O objeto da política de Hobbes é o

poder que será transferido ao Leviatã e, desde o pacto, seu objetivo é a paz, mas uma

paz de silêncio, ou antes uma paz em uníssono, onde todos irão em um mesmo sentido:

naquele que a vontade do soberano indicar. Dizemos isto não porque o autor vê a

totalidde dos seres humanos como um perigo em si mesmo, mas porque a multidão,

após ser transformada em povo uno, será apenas direcionada para um ou outro sentido, e

nisso consiste a manutenção da paz. No entanto esta paz deve ser mantida por aquele ou

aqueles que detém a soberania, os únicos a quem o movimento não é cerceado por uma

instância superior. Eis o porquê da necessidade de manutenção deste estado: a paz e a

segurança só perduram enquanto houver quem coordene os indivíduos que formam a

sociedade e impeça que se tornem novamente dispersos. Só haverá harmonia na

sociedade enquanto todas as vontades seguirem o que dita a vontade soberana e para

que isto aconteça é necessário que exista um meio eficaz de obrigar os indivíduos

outrora detentores de suas vontades. Por isso na introdução do De Cive os objetivos são

expostos de maneira muito clara: “Quantos reis (e quantos homens bons, também) não

foram assassinados por esse erro só, segundo o qual é legítimo executar um rei

185 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 11. 186 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 12.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 74: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

74

tirano?187

”. Não há motivos justos o suficiente (a princípio) para se derrubar o monarca.

A resistência para Hobbes é injustificável, pois quantas gargantas “não cortou essa falsa

tese, segundo a qual um príncipe pode ser deposto por tais homens devido a certas

causas?”188

. Afinal – e aqui expõe sua preocupação e seu diagnóstico – quanto “sangue

não derramou essa errônea doutrina segundo a qual os reis não são superiores à

multidão, mas apenas seus administradores?189

”. Este será um grande ponto de contato

entre Hobbes e a tradição: o rei não pode ser entendido como inferior à multidão, mas

não pelos motivos antes alegados, ou seja, não será um direito divino que lhe dá

sustento, mas na realidade o fato deste soberano ser o único capaz de manter a paz

dentro das fronteiras do Estado (e talvez para além destas). Mas a busca desta paz não

tem suas raízes históricas tão somente no desespero encontrado pelos ingleses que

viviam na atribulada sociedade britânica do século XVII. A necessidade de paz possui

motivo estratégico próprio para existir. Isso se explica em grande parte pela teoria

apresentada por C. B. Macpherson em seu livro “A teoria política do individualismo

possessivo”. Nesta fica evidente que os indivíduos a quem o Estado hobbiano protegerá

serão aqueles proprietários, e a segurança a que se refere é a da acumulação de

propriedade e manutenção dos bens por estes contra os despossuídos: “It is consequent

also to the same condition, that there be no Propriety, no Dominion, no Mine and Thine

distinct; but onely that to be every mans that he can get; and for so long, as he can keep

it”190

.

Mas para que o soberano seja realmente detentor do monopólio da força e de sua

legitimidade, é necessário que se convencione um pacto efetivo entre cada um e todos

os indivíduos que compõem a sociedade191

. A questão é a da garantia da efetividade

desse acordo. Conforme vimos anteriormente, o pacto ou contrato para Hobbes será um

artifício que não existia antes e teve de ser criado pelos indivíduos como alternativa ao

estado de guerra no qual se encontravam. No momento em que se estabelece tal pacto, a

obediência a este é necessária, mas para tanto é fundamental que haja um poder forte o

187 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 13. 188 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 13. 189 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 13. 190 HOBBES, Thomas. Leviathan. London, Ed. Penguin Books, Reprinted in Penguin Classics 1985, p. 188.

Tradução: “É natural, também, que não exista propriedade ou domínio, nem distinção entre o que é seu e o que é

meu. Apenas pertence a cada homem o que ele é capaz de obter e conservar”. In.:HOBBES, Thomas. Leviatã. São

Paulo, Ed. Martin Claret, 2013, p. 107. 191 E em alguns casos para que se estabeleça o pacto segundo Hobbes será necessário que haja um soberano detentor

do monopólio da força.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 75: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

75

suficiente para obrigar os demais a cumpri-lo192

. Sabemos que uma das funções

primordiais deste poder soberano, como é indicado no capítulo XIII do Leviatã, é a

garantia da propriedade, mas por sua vez, a ideia de propriedade só subsistirá caso haja

capacidade deste poder em garanti-la. Da mesma forma, a própria ideia de justiça ligada

ao conceito de comutatividade também será impossível sem que exista esse poder,

afinal na sua ausência todos retornam à condição natural, na qual todos têm direito a

todas as coisas. Percebe-se de que modo Hobbes emprega “todos” em sua teoria, ou

seja, como uma força terrível que não pode ser freada, a não ser mediante um poder

concentrado que seja supremo. É nítido que seu pensamento não está voltado

diretamente ao todo, mas à redução das forças destas partes que compõem o todo na

medida em que as submete a um só.

And this is also to be gathered out of the ordinary definition of Justice in the Schooles:

For they say, that Justice is the constant Will of giving to every man his own. And

therefore is Own, that is, no Property, there is no Injustice; and where there is no

coërceive Power erected, that is, where there is no Common-wealth, there is no

Propriety; all men having Right to all things: Therefore where there is no Common-

wealth, there nothing is Unjust. So that the nature of Justice, consisteth in keeping of

valid Covenants: but the Validity of Covenants begins not but with the Constitution

of a Civil Power, sufficient to compel men to keep them: And then it is also that

Propriety begins.193

Vemos assim que toda a ideia de pacto em Hobbes se apoiará: 1) no monopólio

da violência legítima; 2) na eliminação de uma luta de classes ou de qualquer conflito

social interno graças a pressão externa; 3) na manutenção e acumulação de propriedade

privada (e desenvolvimento da insústria e das artes) e; 4) na justiça como manutenção

de um status quo dado a partir do pacto. Então, vemos que o Estado na teoria hobbiana

possui função bem específica de facilitador de um sistema que no século XVII estava

em plena ascendência: o capitalismo. A manutenção da ordem passará então,

indubitavelmente pelo papel da violência em todas as suas expressões como garantidora

da propriedade, especialmente favorecendo aqueles que são os grandes proprietários. É

reconhecendo que há um novo modelo emergindo que Hobbes diagnostica suas

necessidades e prescreve a receita que vê como possível. Esta visão irá diferir em muito

192 Sobre isso ver HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 48, art. 6 (“Somente

palavras no tempo presente transferem um direito”). 193 Tradução: A definição comum da justiça na escolástica é: a justiça é a vontade de dar a cada um o que é seu.

Então, quando não existe o seu, não há propriedade e, portanto, não há também injustiça. Onde não há Estado, não há

propriedade e, por conseguinte, não existe o poder coercitivo, dado que, nesse caso, todos os homens têm direito a

tudo. Assim, não havendo Estado, não há injustiça. A natureza da justiça consiste no cumprimento dos pactos válidos,

e essa validade começa com o estabelecimento de um poder civil que obrigue os homens a cumpri-los; é também

diante dessa instituição que tem início o direito de propriedade. In.:HOBBES, Thomas. Leviathan. London, Ed.

Penguin Books, Reprinted in Penguin Classics 1985, p. 202 e HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo, Ed. Martin

Claret, 2013, p. 118. Grifos nossos.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 76: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

76

daquilo que Espinosa entenderá por gênese da vida civil, não porque nega a existência

da propriedade e do sistema capitalista que surgia mas porque entende uma função

diversa da propriedade, não voltada ao indivíduo (que não existirá na política

espinosana), mas ao conjunto dos cidadãos como um todo:

Os campos, todo o solo e, se possível, também as casas serão de direito público, ou seja,

daquele que detém o direito da cidade, pelo qual serão alugadas aos cidadãos, quer das

urbes, quer dos campos, por um preço ao ano; fora isso, em tempo de paz estarão todos

livres ou isentos de qualquer imposto. E uma parte desse preço será destinada às

fortificações da cidade; a outra ao uso doméstico do rei. Com efeito, em tempo de paz é

necessário munir as urbes como se fosse para a guerra, e além disso ter os navios e os

demais instrumentos bélicos preparados.194

E, ainda:

Além disso, no estado natural, não há nada que cada um possa reivindicar menos para si

e fazer seu por direito que o solo e tudo quanto lhe está ligado, porquanto não o pode

esconder nem levar para onde quiser. O solo, portanto, e tudo aquilo que, pela razão que

dissemos, lhe está por condição ligado é principalmente do direito comum da cidade, ou

seja, de todos aqueles que, juntando forças, o possam reivindicar para si ou daquele a

quem todos entregaram o poder. Por conseguinte, o solo e tudo o que lhe está ligado

deve valer tanto para os cidadãos quanto é necessário para que possam fixar residência

nesse lugar e defender o direito comum ou liberdade. Mostramos, de resto, no artigo 8

deste capítulo, as vantagens que a cidade daí tira necessariamente.195

Mas se existe uma ideia de pacto em Espinosa como já se defendeu, seria por

uma compreensão bem peculiar deste, diferindo em muito dos conceitos de outros

pensadores, como Hobbes e Rousseau, por exemplo. Atribuir uma noção espinosana de

pacto revela-se algo bem complexo, que envolveria por mais das vezes contradições que

numa primeira vista parecem insolúveis tal qual percebemos ao longo do trabalho. Tal

possibilidade de um acordo se encontra nas formulações que abrem o capítulo XVII do

Tratado Teológico-Político conforme pudemos ver na citação do início do presente

tópico. Neste vemos o reconhecimento de uma limitação da formulação teórica em

relação com sua aplicação prática. Conforme já explicitamos antes, isso não significa

que Espinosa entenderá a gênese da sociedade civil por meio de uma convenção

coletiva, quer tácita ou expressa, de indivíduos com o intuito de se unirem num mesmo

corpo para viverem somente “ex solo rationis” (guiados pela razão), e para transferirem

a totalidade de seu direito natural a um soberano de tal forma que dispam-se de seu

direito natural. Isso seria um esquema teórico, do qual as sociedades reais

representariam só uma aproximação mais ou menos fiel, e será esse o movimento que

194 TP, VI, 12. 195 TP, VII, 19.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 77: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

77

Hobbes realiza, conforme apresentamos, e que constitui o modelo que por seu objeto e

objetivos podemos considerar em larga medida o vitorioso.

Em Espinosa a formação da sociedade civil surgiria por meio de um processo de

agregação de poderes individuais que, dependendo da circunstância estabelecerão

determinada relação de forças que resultará mais ou menos em uma unidade contida

num corpo social e em mais menos poder para o soberano, do mesmo modo que se

comprovou no item 3.2. No entanto – e é importante dar destaque a isto – um pacto

aproximado não pode ser chamado de pacto. Até porque não se pode atribuir a este um

caráter genérico e universal ao qual as sociedades irão aderir em determinado grau de

seu desenvolvimento. Desde o início então excluímos o caráter evolucionista e a

aplicação estrita de um modelo ao mundo real. Cremos que aqui Espinosa queira dizer

que no mundo real para as sociedades civis uma certa forma de pacto precise ocorrer

mas somente em casos ideais e abstratos que esse pacto tomará a forma proposta de uma

transferência, que por óbvio não chamaremos de absoluta, porém integral. Além do

mais, esta forma de pacto ao qual nos referimos residirá muito mais em um campo

imaginativo ou representacional do que enquanto mecanismo prático de constituição

mesma do tecido social. É claro que este faz parte da forma que o corpo político irá se

arranjar, mas sua função será a de garantir uma imagem de integralidade e firmeza do

Estado, missão sumamente importante e que Espinosa tratará longamente no TTP,

especialmente no capítulo XVIII. Todavia é necessário nos atermos brevemente a outra

maneira de encarar esta questão da forma na política espinosana.

A dita forma fechada em si mesma não importa. Vimos que a democracia se

constitui em algo intrínseco aos sistemas muito mais do que em um sistema específico,

não sendo explicado pela forma adotada, a qual pode ser entendida por uma decorrência

histórico-cultural ao invés de uma determinada receita. Na realidade, forma em

Espinosa é a norma da relação, ou seja, será a composição das relações que formam

algo. De acordo com Diogo Pires Aurélio em sua tradução do Tratado Político, essa

ideia da forma pode ser melhor explicitada se entendermos o termo “face” que Espinosa

usa tanto no referido artigo do Tratado quanto na Carta 64. O uso do termo face

(Facies) na Carta 64 se refere ao atributo extensão, tratando-a por “facies totius

universi”, a face de todo o universo, a qual, acrescenta o autor, “embora varie de

infinitos modos, permanece, contudo, sempre a mesma”. Dizemos isso por dois

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 78: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

78

motivos. O primeiro encontra-se no referido artigo 2 do Tratado Político, onde Espinosa

afirmará:

Das discórdias e revoltas que muitas vezes são provocadas na cidade, nunca resulta,

portanto, que os cidadãos a dissolvam (como nas restantes sociedades acontece muitas

vezes); mudam-lhe, sim, a forma por uma outra se as contendas não puderem ser

acalmadas mantendo a face da cidade. Daí que, por meios que se requerem para

conservar o estado, eu entendo os que são necessários para conservar a forma do estado

sem alguma mudança digna de nota196

.

Desta maneira, a forma do pacto será tomada por conceito (e por um contexto)

histórico, bem diferente do uso tradicional que se faz dela em outros pensadores.

Contudo, sua originalidade só aparecerá na leitura completa dos capítulos XVI ao XX se

se entender esta como o desenvolvimento completo do conceito, e especialmente se se

notar que os sucessivos pactos evocados por Espinosa lembrando a história dos hebreus

nada mais são do que a aplicação concreta desse conceito no caso real e com as

peculiaridades inerentes à esse caso. O pacto só existirá quando e da forma pela qual for

determinado por suas circunstâncias históricas. Balibar, por exemplo dirá que “há tantos

Estados reais quanto há formas de pacto”197

. Por isso poderemos entender sem

contradição quando Espinosa ao mesmo tempo afirma que o Estado hebreu não pode ser

tomado como um modelo, mas que o estudo de sua história explicada por suas causas

oferece ensinamentos importantes e correntes. O debate acerca da forma política na

fundação do pacto revelará sua importância quando pensarmos na inexistência desse

ideal universal no campo fático, onde cada experiência diferente irá guiar as diversas

composições das relações de diferentes modos. Por isso dizer que há tantos Estados

reais quanto há formas de pacto.

Mas por enquanto pretendemos nos ater ao que seria o exercício prático de um

pacto e se este existe. Em Espinosa já vimos não ser possível se tratar de um pacto em

sentido estrito, e mesmo em sentido amplo tal conceito na forma contratualista que

normalmente lhe é atribuída será insustentável. Já em Hobbes o pacto significará que os

sujeitos se tornam desiguais e que em sua submissão reside uma grande parte de

escravidão e de servidão. Assim, no campo do real o pacto se torna problemático, pois

poderá significar o fim dos direitos naturais dos indivíduos, que só existirão para o todo

poderoso soberano.

196 TP, IV, 2. 197 BALIBAR, Etienne. Jus-Pactum-Lex: On the Constitution of the subject in the Theologico-Political Treatise.

Disponível em: <http://korotonomedya.s3.amazonaws.com/EtienneBalibarJusPactumLex.pdf>. Acesso em 10 de

outubro de 2014.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 79: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

79

Finalmente em Espinosa, assim como em Hobbes, o que é importante não é tanto

saber se, hipoteticamente ou não, o estado de natureza cronologicamente precede o

estado civil na historicidade da formação e desenvolvimento dos pactos. É na verdade,

acima de tudo a questão da exterioridade de um em relação ao outro. Logo, a

importância do modo do pacto é o de ser um alegado instrumento através do qual os

conflitos inerentes à natureza humana tomarão uma forma singular, ao serem fixados

sobre objetos institucionais e emoções coletivas. Mas este modelo apensa seria possível

em um sistema hobbiano onde a ordem é dada por um vetor exterior (e estranho) à

composição contínua das forças no seio da sociedade. Assim não se pode tratar de

contratualismo em Espinosa pois não há um pacto estabelecido nos termos como

Hobbes, por exemplo apresenta, nos quais a palavra dada já possui um poder vinculante.

Não. Para Espinosa a palavra dada só permanece válida “enquanto não se mudar a

vontade daquele que fez a promessa”, pois de fato, “quem tem o poder de romper uma

promessa, esse realmente não cedeu o seu direito mas só deu palavras”198

e essas

palavras não possuem força por si mesmas. Tanto que continua:

Se, por conseguinte, ele próprio [o indivíduo], que por direito de natureza é juiz de si

mesmo, julgar, certa ou erradamente (pois errar é humano), que da promessa feita

resultam mais danos que vantagens, considerará que de acordo com o seu parecer ela

deve ser rompida, e por direito de natureza (pelo art. 9 deste cap.) rompê-la-á.199

Urge então pensarmos na garantia que este poder estabelecido tem visto que não

há em Espinosa uma garantia contratual nos termos que Hobbes defende. Em primeiro

lugar, no capítulo XVI do TTP Espinosa afirma que a ilusão de uma obrigação é

implicada na própria declaração da transferência de direitos, apesar de que todo

imperium, por definição, ligará absolutamente todos os indivíduos, súditos e/ou

cidadãos, embora não abrigue nenhuma outra garantia além de seu poder, ou sua

existência. Consequentemente ele não os obriga de fato do modo que Hobbes faz crer.

No início deste capítulo XVI do TTP Espinosa funda o pacto na consideração das

potências individuais e em seus desejos exclusivos conforme vimos no início do

presente capítulo. As potências e interesses (ou desejos) individuais considerados

separadamente são muito limitados, gerando a necessidade de composição entre estes.

Esse argumento, que em princípio possuiria certo grau de finalismo, não entende a

união política sob o estado civil como bem em si mesmo, mas pelo menos como a

melhor das condições humanas possíveis, envolvendo um relevante grau de utilidade

198 TP, II, 12. 199 TP, II, 12. Grifos Nossos. E aqui remetemos diretamente ao tópico 2.5.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 80: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

80

para quem dela participa. Contudo, se este pacto é determinado pela união das potências

dos indivíduos e estes, por sua vez possuem pelas regras da natureza a possibilidade de

rompê-lo, então grande parte da garantia deste pacto está depositada em seu elemento

jurídico e seu decorrente simbolismo, por assim dizer. Isto não é o mesmo que dizer que

o poder de fato, aquele que mantem o corpo político existindo enquanto tal não seja

uma fator real e potente dentro da referida dinâmica. Ao mesmo tempo queremos

reconhecer que o papel do direito dentro desse conjunto de relações é fundamental. E

isto não porque é do próprio direito que decorrem as leis, o realismo jurídico que

invocamos anteriormente não pode se abrigar na ideia de um direito como causa de si

mesmo. Do mesmo modo não podemos atribuir à necessidade de garantias para o poder

soberano o nascimento do direito, tampouco sua manutenção. É na verdade a imagem

(ou abstração) do pacto que funda esta chamada dinâmica real jurídica a qual nos

referimos. Um bom exemplo desta é o movimento de criação e expansão de direitos que

abordamos ao tratar da igualdade e desigualdade atribuídas na formação social em

nossos autores.

A ausência a princípio de uma garantia evidentemente inquebrantável e esses

pressupostos do pacto espinosano e sua relação com o direito diferem em enorme grau

de Hobbes, na medida em que não há o discurso dado a partir do momento do pacto que

estabelecerá um vínculo obrigacional entre os súditos (a bem da verdade não há sequer

um momento do pacto!), bem como a ideia da completa alienação em favor de um

terceiro que, ao exercer o papel de árbitro, ou seja, não se tornando parte ativamente

envolvida no contrato, poderá em retorno garanti-lo indefinidamente. Cremos que

Espinosa com certa cautela entende que as atribuições que Hobbes dá às garantias do

pacto bem como sua base contratualista são, em certa medida, ficções que só fazem

retirar do direito suas funções (ou pelo menos camuflar suas causas). Para Espinosa este

direito não seria uma ficção, mas através de sua imagem se daria (obviamente) a função

representativa dos direitos, e de forma presente se fundaria um campo para a criação e

expansão de outros tantos direitos. Por isso seu elemento abstrato jamais poderá ser

ignorado bem como sua inserção dentro de uma política claramente prática.

Assim, o que buscamos quando no detemos nas representações jurídica e/ou

política será de fato mais um caminho de análise da prática política propriamente dita.

Isto porque estas são codependentes dentro da dinâmica afetiva que se apresenta em

qualquer sistema político. O elemento de estabilidade para o Estado será a função óbvia,

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 81: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

81

enquanto a atribuição do direito como campo de embates dentro do estado civil será a

função prática, especialmente importante quando se tenta pensar na construção e

impulsionamento de um movimento democrático imanente.

Concluindo o argumento, é válido dizer que, ao final do capítulo XVI do TTP

Espinosa apresentará um segundo pacto para emendar as condições deste “primeiro”.

Seria com Deus. Acerca deste ponto faremos apenas algumas considerações. Segundo

Balibar em seu texto “Jus-Pactum-Lex: On the Constitution of the subject in the

Theologico-Political Treatise”, os dois pactos (o civil e o com Deus) possuem a mesma

natureza e procedem do mesmo desenvolvimento da potência dos indivíduos. Contudo,

se dissemos que o pacto civil a uma primeira vista careceria de garantias práticas, mais

agravante ainda será a situação do pacto religioso. Nem em consideração ao soberano,

nem aos súditos terá Deus qualquer ingerência (no sentido de possuir formas de

constrangimento). É por isso que a efetividade do pacto religioso cai no campo da

política200

. Pensarmos a princípio em uma posição de exterioridade deste em relação aos

demais em termos muito semelhantes aos de Hobbes é nosso primeiro impulso. Por

outro lado, não podemos ignorar algumas diferenças básicas entre os dois pactos, como

por exemplo, o fato do pacto político tomar a forma de uma relação coletiva entre

sujeitos (ou indivíduos) e o soberano e assim, imediatamente constituir a sociedade. Em

outra ponta, o religioso será essencialmente uma relação entre cada indivíduo e Deus, e

se apresentará como submissão pessoal. Espinosa combinará os dois pactos num mesmo

mecanismo de garantia, na medida em que o com Deus sobredetermina o pacto civil. A

submissão dos indivíduos a Deus os libera da escravidão na relação com o imperium

através da força suplementar da “fides” religiosa. Indo mais adiante, no momento em

que passamos a considerar a violação dos direitos reconhecidos pela sociedade como

pecados, estaremos nos sujeitando subjetivamente à sociedade civil. Vemos assim os

desdobramentos claros do poder teológico e da força e realidade com que se abrigam

através do simbólico.

Na verdade, nada mudou no que se refere à finalística desses valores da

sociedade. A única alteração ocorreu no campo da análise, que foi deslocado do valor

no cálculo político racional, para o terreno teológico. Deste modo, a racionalidade do

pacto social não é mais apresentada como um fim ideal ou um fato enigmático, mas

200 BALIBAR, Etienne. Jus-Pactum-Lex: On the Constitution of the subject in the Theologico-Political Treatise.

Disponível em: <http://korotonomedya.s3.amazonaws.com/EtienneBalibarJusPactumLex.pdf>. Acesso em 10 de

outubro de 2014.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 82: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

82

como um efeito combinado de utilidade com imaginação religiosa. Com isso, cremos ter

abordado mesmo que rapidamente as bases da fundação do direito segundo nossos

autores. No entanto, antes de pensarmos na forma como este direito irá se articular com

a instituição da política, restam mais dois elementos deste, sem os quais as noções

jurídicas não têm sentido, ainda mais se pensarmos nas tradições gregas e latinas das

quais tais noções provêm ou apenas se inspiram.

3.6

Da justiça e da injustiça

Depois de termos visto a posição central que a justiça ocupa na fundação do

estado civil e como, em Hobbes, será aquela força voltada à manutenção de um status

quo e que seu nascimento coincidirá com a gênese da propriedade, cremos ainda ser

necessário tecer mais algumas considerações sobre do tema. Tanto para Espinosa quanto

para Hobbes a justiça e a injustiça só podem ser concebidas dentro do estado civil, até

porque são conceitos referentes à existência de uma norma ou convenção anterior que

os defina. Logo, não há possibilidade de pensarmos na violação ou cumprimento de

uma disposição soberana sem que exista a instituição desta soberania. Dirá Espinosa

que “a justiça e a injustiça consistem no estado de sociedade constituído”201

, e por

justiça e injustiça se entenderá:

A justiça é uma disposição constante da alma para atribuir a cada um o que a ele cabe

pelo direito civil. Ao contrário, a injustiça consiste, sob a aparência de direito em

retirar de alguém o que lhe pertence, conforme a interpretação verdadeira das leis.

Também se chama a justiça e a injustiça de equidade e iniquidade, pois os magistrados

instituídos para pôr fim aos litígios não devem considerar as pessoas, mas tê-las por

iguais e manter o direito de cada um; não invejar o rico nem menosprezar o pobre.202

A partir desta citação de Espinosa, vemos que a justiça possui um caráter

expandido de comutatividade na medida em que entende que aquilo que cabe a cada um

é definido de acordo com as disposições do direito civil, afinal não é possível

estabelecer tal medida a partir tão somente do direito natural, pois nesse estado tudo

caberá a todos na medida em que tenham capacidade para adquirir e manter tais coisas,

o que não exclui o papel de espécie de farol que o direito natural exerce. Já em Hobbes a

definição de justo e injusto se dá pela negativa ante o pacto: “And the definition of

201 TTP, XVI, 12. 202 TTP, XVI, 15.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 83: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

83

Injustice, is no other than the not Performance of Covenant. And whatsoever is not

Unjust, is Just” 203

.

Na realidade, através do entendimento da potência como medida do direito

através do decreto comum da cidade não se poderia sequer falar em propriedade privada

na natureza, pois “tudo é de todos, ou seja, de quem tem poder para reivindicá-lo para

si. No estado, porém, onde se determina pelo direito comum o que é deste e o que é

daquele, chama-se justo aquele em quem é constante a vontade de dar a cada um o seu,

e injusto, pelo contrário, aquele que se esforça por fazer seu o que é de outrem”204

. É de

se notar que Espinosa trata de conceitos ou categorias diferentes (mas complementares)

de propriedade em cada um dos dois estados para encerrar o capítulo II do Tratado

Político, principalmente se pensarmos na valoração que Hobbes dará à propriedade no

estado de natureza e na necessidade de estabelecimento do estado civil para dar

garantias aos súditos (e por súditos a se garantir podemos sem problemas entender

proprietários). Delineia-se um certo movimento de aproximação entre os autores mas,

ao mesmo tempo, um grande afastamento, especialmente quando Espinosa tratar de uma

propriedade comum da cidade mais adiante no TP e Hobbes, por outro lado cada vez

mais defender uma acumulação dos bens da república sob aquele ou aqueles que

exercem a função soberana, não sob a soberania em si estritamente falando205

.

Diferentemente do estado de natureza, no estado civil não há uma primazia da

força dos indivíduos no que se refere a fazer valer seu próprio direito por seus meios,

mas na realidade há o estabelecimento de uma situação de igualdade entre estes. Esta

será a condição de manutenção da paz e da concórdia dentro do estado civil. Como

dissemos, no estado civil não há uma transferência do direito natural de um indivíduo a

outro, o que há é a transferência à toda a sociedade, da qual, como salienta Espinosa,

este indivíduo fará parte: “E nessa condições, todos permanecem iguais, como eram

antes no estado de natureza”206

. A condição para a manutenção da paz no estado cuja

203 In.: HOBBES, Thomas. Leviathan. London, Ed. Penguin Books, Reprinted in Penguin Classics 1985, p. 202. Uma

tradução livre seria: “E a definição de injustiça, não seria outra além do não cumprimento do pacto. E tudo quanto

não for injusto, é justo”. 204 TP, II, 23. 205 Dizemos isso porque mesmo com o soberano sendo um Deus mortal, é ele quem exerce a soberania, ou seja, ele

não é a soberania propriamente dita, mas sim está investido desta pelo pacto firmado com todos e com cada um sendo

que, ao morrer este poder será passado a outro ou outros. Isso tanto no caso da monarquia, quanto de uma assembleia

governante pois é aconselhável, segundo Hobbes que o soberano trate (e tenha) como seu tudo quanto constituir a

república pois é a forma para se cuidar de maneira mais atenciosa do Estado, afinal os homens tendem a tratar o que é

seu com mais atenção do que o que veem como pertencente a outrem. Acreditamos ver aí a diferenciação necessária

que Hobbes estabelece entre pessoa pública e pessoa privada mas, ao mesmo tempo, a sua fusão sob uma figura só. 206 TTP, XVI, 11.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 84: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

84

transferência de potência se dá à maioria da sociedade (e esta será efetivamente a força

soberana) é a igualdade, e nesse caso uma igualdade de possíveis dentro de uma

complexa dinâmica afetiva. Mas esta igualdade será potencial. Não queremos nos

repetir, mas ao frisarmos que há uma igualdade potencial e que, no entanto, será no seio

da desigualdade que se estabelecerá o movimento de expansão e conquista de direitos,

estamos também reconhecendo as dimensões práticas do direito ao mesmo tempo que

não ignoramos o valor de sua imagem para o Estado e para a multidão. E nisso consiste

o realismo do direito: em sua utilidade.

A diferença capital para com Hobbes residirá então justamente na forma de vida

e de construção do comum que é gerada pela vida social. Para o inglês a desigualdade é

a chave para a manutenção da paz e da concórdia baseada na supressão e transformação

do direito natural em virtualidade. Além disso tal desigualdade apenas deve se exprimir

na relação soberano/súditos, um (ou poucos)/muitos (ou todos). Para Espinosa será a

fundação da tensão entre uma igualdade potencial pautada na manutenção do direito

natural e da constatação de uma desigualdade que se exprime pelo embate de forças que

ocorrerá dentro do estado civil. Por isso justiça irá abranger uma noção de

comutatividade atrelada ao direito civil porém expandida em relação ao que vimos de

Hobbes, afinal este direito civil é, por conseguinte, pautado e estabelecido diretamente

com base no direito natural, enquanto o direito natural verá sua concretude emergir a

partir do estabelecimento do direito civil.

A injustiça, por outro lado, se reporta à não observância dessa função

distributiva contudo sob a aparência do respeito às suas formas. É importante sempre

salientar pois que a forma será marca necessária quando do estabelecimento do estado

civil, afinal é o modo conforme o qual as disposições serão tomadas e pertence à função

do simbólico (função esta bem efetiva e real conforme analisamos antes), fundamental à

manutenção do Estado. Por isso a não observância das regras deve ser acompanhada da

aparência de sua observância, pois para que funcione, a violação precisa se escorar na

aparência, suprimindo o campo duplo no qual o direito existe mas, ao mesmo tempo,

camuflando tal violação através de um véu das aparências, exprimindo uma falsa

estabilidade. Por este motivo concluímos que logicamente tal violação somente pode

ocorrer no estado civil, além disso entendemos que para Espinosa e para Hobbes retirar

algo que pertence a alguém pode ser considerado uma violação somente dentro desse

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 85: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

85

estado, pois não é possível dizer que há o proprietário de direito (em um sentido

positivo) antes do advento deste.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 86: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

4

Da Democracia

Até o presente momento nos esforçamos em tentar encontrar um caminho seguro

para discernir os meandros da formação da política em nossos autores e, por

conseguinte dos elementos que irão compor o estado civil neste movimento constitutivo

e instituinte. Agora precisamos parar e pensar no sentido que queremos seguir e que

pensamos a partir de todo o exposto. É claro que ainda faltam elementos

importantíssimos que integram a constituição do corpo político, e serão estes que

justamente tentaremos trabalhar aqui e que consistem na trilha possível para o estado

totalmente absoluto, aquele mais natural dos regimes como Espinosa pontua em seu

Tratado Político: a democracia. Para isso pretendemos analisar, mesmo que

rapidamente, a política agora do ponto de vista do indivíduo que não está diretamente a

exercer o poder soberano como um monarca ou um magistrado.

4.1

Da utilidade ou do útil

Vimos que a partir do momento em que podemos chamar o estado de civil,

estará o indivíduo sujeito às leis da cidade, não por uma imposição contratual como

Hobbes leva a crer. Na realidade, Espinosa ensina que se por “bem compreenderei

aquilo que sabemos, com certeza nos ser útil” 207

, é lógico dizer que “quando cada

homem busca o que é de máxima utilidade para si, que são, todos, então, de máxima

utilidade uns para com os outros” 208

, isto porque (como já tratamos no capítulo

referente às leis naturais):

Com efeito, quanto mais cada um busca o que lhe é útil e se esforça por se conservar,

tanto mais é dotado de virtude (pela prop. 20); ou, o que é equivalente (pela def. 8), de

tanto mais potência está dotado para agir pelas leis de sua natureza, isto é (pela prop. 3

da P. 3), para viver sob a condução da razão. Ora, os homens concordam, ao máximo,

em natureza, quando vivem sob a condução da razão (pela prop. prec.). Logo (pelo cor.

Prec.), os homens serão de máxima utilidade uns para com os outros quando cada um

buscar o que lhe é de máxima utilidade. C. Q. D. 209

Com isso Espinosa não quer inferir que é necessário que os homens sigam com

suas empresas individuais ou que a formação política seja a ferramenta necessária para

207 E, IV, def. 1. 208 E, IV, prop. XXXV, cor. II. 209 E, IV, prop. XXXV, cor. II.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 87: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

87

que egoisticamente cada um siga seu caminho a partir da supressão de todos ou da

maioria vinda de um poder maior. Não. O que cremos que Espinosa diz é que será esta

noção de utilidade que possibilitará a composição do próprio tecido social bem como da

manutenção do estado civil, pois garantir que os indivíduos ao buscarem o que é útil

estejam mais dotados para agir segundo as leis de sua natureza é o mesmo que dizer que

o direito civil será o elemento a dar a realidade e concretude ao direito natural. É a

utilidade que irá romper com as ideias hobbianas de pacto e da posição superior e

externa que ocupa o soberano. Ao mesmo tempo, será esta mesma utilidade que

colocará o indivíduo espinosano nas posições de cidadão e de súdito simultaneamente.

Por sua vez, este papel do indivíduo e da multidão composta por esses na

tessitura social a partir da noção de utilidade remete aos motivos que demos quando da

diferenciação entre as concepções de gênese da sociedade política em nossos autores e

da inexistência de um pacto no sentido hobbiano para o estado civil espinosano. Se,

conforme pontuamos em Espinosa, a palavra válida só se mantém “enquanto não se

mudar a vontade daquele que fez a promessa” 210

, afinal, “quem tem o poder de romper

uma promessa, esse realmente não cedeu o seu direito mas deu só palavras” 211

, vemos

que a utilidade será a medida tanto da instituição quanto da manutenção do Estado.

Assim devemos encarar a instituição civil como necessariamente atrelada à utilidade (e

à razão), agora percebidas como comuns. Logo, sua existência enquanto instrumento

ativo de aumento das potências individuais e união destas sob uma potência coletiva

passa pela capacidade potencial de manutenção deste estado ou de seu desfazimento por

parte de todos os envolvidos. Tentaremos explicar melhor isso. Em outras palavras, diz

Espinosa no Tratado-teológico Político que “(...) nenhum pacto pode ter força senão

pela razão de ser útil, e que, retirada a utilidade, o próprio pacto permaneça sem força e

se extinga”212

. E continua:

Um homem é insensato por pedir a outro que empenhe sua confiança pela

eternidade e não se esforça, ao mesmo tempo, em fazer com que a ruptura do

pacto traga, para aquele que o rompeu, mais danos do que proveitos: eis um

ponto de importância capital na instituição do Estado.213

Se desta relação é esperada que apenas as partes integrantes se esmerem em

observar e fazer tudo o que estiver a seu alcance tendo por medida e limite a utilidade, é

210 TP, II, 12. 211 TP, II, 12. 212 TTP, XVI, p. 283. 213 TTP, XVI, p. 284.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 88: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

88

sensato dizer que caso esta não seja mais viável ela se esgotará. Segue-se que destas

afirmações podemos pensar que tal promessa poderá ser rompida ou pelo governante ou

pelos governados somente. No entanto, frise-se, a utilidade é elemento a ser considerado

pelas ditas “partes” (que são internas à relação) e, conforme dissemos ao fim do capítulo

anterior, a injustiça e a violação apenas podem existir “no estado de sociedade

regrada”214

, ou seja, no estado civil. Nesse sentido, dirá Espinosa, que mesmo “o

soberano, a quem por direito tudo é permitido, não pode violar o direito dos

súditos. Logo, apenas entre particulares, obrigados pelo direito a não lesarem uns aos

outros, pode se produzir uma violação de direito”215

. Assim, a injúria e a violação

apenas podem ocorrer entre os cidadãos216

. Isto significa dizer que para que se

mantenha, o estado civil necessita de certo grau de obediência e sujeição às

determinações soberanas, no entanto a própria soberania deve estar baseada

constantemente de um sentido de utilidade comum e conveniência. Esta relação exprime

o binômio direito natural/direito civil e sua dinâmica compositiva na política. Vejamos a

lição de Sebastian Torres sobre o assunto:

Por supuesto que si la soberanía no se funda sobre la utilidad común pierde legitimidad

o, em sentido estricto, derecho (potencia); pero al mismo tiempo supone que su

conservación implica incluir dentro del derecho positivo la sujeción (obediencia) como

figura de la utilidad común. En otros términos, el derecho natural y el derecho civil se

rigen por um principio de utilidad diferente: la utilidad común, “convenida”, expresada

em el derecho positivo y la utilidad particular, según “la propria medida”, expresada em

el derecho natural. Derecho natural y civil coexisten em la utilidad común como

diferencia.

A utilidade então, como podemos depreender, divide-se em dois polos que irão

constituir as próprias definições de direito natural e direito civil e darão suporte à sua

existência mesma dentro do corpo social, seja em sua gênese, seja em sua manutenção

contínua, o que implica na manutenção do próprio estado civil e em sua razão de ser

(sempre em atualização), ou melhor, em sua utilidade. Desta compreensão podemos

inferir que há a necessidade de certo grau de sujeição às leis e determinações soberanas.

Isso não classificaria, por sua vez, a perda de potência, ou seja, de direito dos

indivíduos, mas, pelo contrário, possibilitaria seu exercício e asseguraria a existência do

tecido social. Assim, a vida do indivíduo dentro da sociedade civil oscila entre a

sujeição às normas e o gozo das vantagens da vida na cidade, e isso é ferramenta, e ao

214 TTP, XVI, 288. 215 TTP, XVI, 288. Grifos nossos. 216 Ver tradução fornecida em texto de S. Torres. In.: TORRES, Sebastian. Communis utilitas: concordancia politica

e interés privado em Spinoza. Texto apresentado no IV Colóquio Internacional Spinoza em Córdoba. Revista

Conatus, vol. 13 (no prelo), p. 2.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 89: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

89

mesmo tempo consequência, da construção da vida segundo os ditames da razão.

Contudo, cremos ser fundamental explorar um pouco mais no que constitui o

reconhecimento da necessidade da obediência do ponto de vista espinosano para assim

tentarmos decompô-la e finalmente confrontá-la com a obediência do projeto político do

sistema hobbiano.

4.2

Da obediência

(...) se não ocorreram obrigação nem vínculos de contrato, ele [o servo] poderia não só

escapar, como também matar seu senhor (lord), que era quem lhe conservava a vida.

4. O servo que esteja a ferros não está preso por nenhum pacto ao seu senhor

Por isso, a espécie de servos que estão limitados por aprisionamento ou correntes

(bonds) não se acha compreendida na definição anterior de servos, porque esses não

servem devido ao contrato, mas com a finalidade de não sofrer. E portanto, se eles

fogem ou matam o seu senhor, não violam as leis de natureza. Pois ligar um homem é

um sinal óbvio, por parte de quem o acorrenta, de não o supor suficientemente ligado

por qualquer outra obrigação.217

Em Hobbes a obediência possuirá outro significado, (apesar do autor reconhecer

que esta em nada contradiz sua ideia de liberdade) especialmente pelo que vimos do que

será tanto a transferência de direitos quando do pacto quanto naquilo que consiste a paz

almejada pelo sistema do inglês, a qual chamamos a partir de então de paz de cemitério.

No início do trecho do De Cive que indicamos ao começo do presente tópico, em sua

tradução, Renato Janine Ribeiro comenta o jogo que Hobbes fará com os termos bond e

bound, “para dizer que ou se está preso (bound) pela palavra dada, e solto fisicamente,

ou preso por correntes, e livre pois de qualquer compromisso”218

. Assim vemos que a

obediência em Hobbes envolve necessariamente: ou o poder vinculante que a palavra

dada carrega consigo, na medida em que a única obrigação que se tem em obedecer a

alguém ocorre enquanto houver um trato expresso ou tácito entre os indivíduos que

disponha sobre a submissão de um em relação ao outro; ou a dominação física exercida

por outro que prende o indivíduo o qual, por direito não se encontra obrigado mas, de

fato, o está. Neste último caso resistir ao dominador será sempre legítimo (e fisicamente

necessário, de acordo com as regras da natureza que o inglês apresenta). Este jogo de

palavras apresentado pelo professor Renato Janine só é possível quando pensamos a

partir de uma matriz contratualista assim como Hobbes faz.

217 HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992, p. 160. 218 Idem, p. 160.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 90: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

90

Já em Espinosa, como vimos que a constituição civil irá se estender no tempo

apenas enquanto for útil aos celebrantes, é nítido que a obediência em si possui sentido

diverso, envolvendo, por sua vez, uma ideia de utilidade enquanto fator criador (se

pensarmos na formação do ponto de vista histórico) e mantenedor da relação

estabelecida. Assim, se desejamos falar de obediência precisamos desde já destacar as

diferenças que construímos até aqui nas relações entre os indivíduos que se estabelecem

nas políticas dos nossos autores. Jamais haverá, para Espinosa, um domínio absoluto de

direito entre um indivíduo e outro dado apenas por um pacto efetuado por estes e

mantido com base somente na palavra dada. Tal relação envolverá necessariamente um

jogo de poderes que se atualizará a todo momento, bem como as flutuações das

vontades das partes contratantes. Ou seja, assim que não se mostrar mais vantajosa a

uma das partes e ela tiver a capacidade de rompê-lo, provavelmente irá pôr fim a este

trato: “Disso concluímos que nenhum pacto pode ter força senão pela razão de ser útil, e

que, retirada a utilidade, o próprio pacto permaneça sem força e se extinga219

”. É

importante ainda dizer que este domínio do outro na política espinosana nunca será

absoluto, seja pela resistência que o dominador pode enfrentar, seja pela

impossibilidade de se controlar os pensamentos dos indivíduos, etc. Enfim, contra a

tentativa de dominação absoluta sempre haverá reação, o que fisicamente se sustenta

dentro do embate de forças que compõem a vida social. Mas ainda não tratamos

diretamente do que será esta obediência no estado civil segundo Espinosa.

Quando unidos sob o comum, o que os homens e mulheres vivenciam é aquilo

que mais e melhor lhes convém (ou melhor, eles se unem por isso e isso é resultado da

união ao mesmo tempo), ou seja, que é mais útil, que é nada mais nada menos do que

colocar termo ao domínio meramente dos apetites para que vivam, enfim, dentro dos

ditames da razão. Assim a liberdade será a do modo de vida daquele indivíduo que se

guia pela razão. Não será esta liberdade apenas a ausência de impedimentos externos,

conforme já tratamos em momento anterior. Também, naturalmente este modo de vida

racional jamais extirpará os afetos e paixões que subsistem, até porque deles dependerá

grande parte desta construção comum dentro da cidade, até porque “(...) pois cada um

pode agir astuciosamente, conforme o direito natural, não sendo obrigado a observar o

pacto senão pela esperança de um bem maior ou medo de um mal maior”220

. O

219 SPINOZA. Tratado Teológico-Político. Organização J. Guinsburg, Newton Cunha, Roberto Romano; tradução J.

Guinsburg, Newton Cunha. 1 ed. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2014, p. 283. 220 Ibid., p. 284.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 91: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

91

indivíduo racional conseguirá minimizar ao limite os efeitos destes afetos e sua

influência em seu modo de vida, mas aboli-los seria impossível. Por isso é errôneo

dizermos que o homem livre é aquele que faz as coisas segundo seu bel prazer221

,

quando na verdade é aquele que se guia pela razão e que através desta será livre.

Importante ressaltar que não será a liberdade o prêmio da razão, mas sua por sua

dinâmica razão e liberdade são faces da mesma moeda. Por outro lado, “em realidade

estar cativo de seu prazer e ser incapaz de ver ou fazer o que nos seja verdadeiramente

útil é a pior escravidão”222

. Logo, quando Espinosa apresenta o escravo ensina que não

será inteiramente o caso daquele sujeito que age por comando, afinal a liberdade não

consiste em agir apenas segundo sua própria vontade, mas em obedecer os ditames da

razão e compreender a dinâmica afetiva que rege as relações (ou ao menos tentar se

guiar por esta). Por óbvio também reconhece Espinosa que a obediência de fato retira de

alguma forma a liberdade do sujeito, mas jamais fará dele um escravo automaticamente.

O que determinará se é um escravo ou não é a causa que o determina a agir: “Se a

finalidade da ação não for a utilidade do próprio agente, mas daquele que o comanda,

então o agente é um escravo, inútil a si mesmo”223

. Mas dentro da cidade onde a lei

consiste na salvaguarda de todos e não apenas na daquele que exerce o comando, o

indivíduo que obedecer às leis será em verdade súdito, sujeito a elas, pois, ao atender

aos comandos soberanos atende não só ao interesse comum mas, logicamente, ao seu

próprio. “Com efeito, a mente, na medida em que usa da razão, não está sob jurisdição

dos poderes soberanos, mas de si própria”224

, como já dito. Tal conclusão se coaduna

perfeitamente com a própria ideia de liberdade que Espinosa nos dá no início de sua

Ética e que consiste em saber que:

Diz-se livre a coisa que existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza e que

por si só é determinada a agir. E diz-se necessária, ou melhor, coagida, aquela coisa que

é determinada por outra a agir e a operar de maneira definida e determinada.225

A liberdade é, pois a medida do reconhecimento daquilo que, logicamente está

de acordo com nossa natureza e, por conseguinte, o modo pelo qual agimos. O agir por

coação põe de lado as duas dimensões de utilidade mencionadas, retirando o aspecto de

221 SPINOZA. Tratado Teológico-Político. Organização J. Guinsburg, Newton Cunha, Roberto Romano; tradução J.

Guinsburg, Newton Cunha. 1 ed. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2014, p. 286. 222 TTP, XVI, p. 286. 223 TTP, XVI, p. 286. 224 TP, III, 10. 225 E, I, def. 7. Nesta definição Espinosa está a tratar diretamente de Deus, todavia não podemos deixar de observar a

aplicabilidade de tais regras dentro de uma esfera política assim como física. Assunto que, não iremos nos ater mas

que, no entanto possui ligação direta, seja pela ideia de necessidade, seja pela imanência em seu sistema, com as

implicações políticas presentes no restante de sua obra.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 92: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

92

liberdade do agir humano. Desta forma, conclui-se que do ponto de vista da utilidade

particular, conforme ensina Sebastian Torres, a polaridade se estabelece entre, de um

lado o ser escravo, e por outro, o ser filho e ser súdito. Contudo, se pela ideia de

utilidade pensamos, como explicado no tópico anterior, naquilo que aumenta nossa

própria potência através da composição, a polaridade se desloca para o escravo e o filho

de um lado e o cidadão de outro226

. Eis a apresentação que Espinosa nos faz de maneira

extremamente hábil da relação de forças presente nas condições de escravo, filho,

súdito e cidadão. Resta claro que a divisão entre estes conceitos na política espinosana

remete diretamente a uma relação entre paternalismo e democracia227

. Logo, vê-se que a

utilidade é o elemento que impede que confundamos o súdito com o escravo, ou mesmo

com o filho. Nisto estamos a nos referir à utilidade comum pois podemos de maneira

simplificada e um tanto imprecisa dizer que se a lei suprema for conveniente ao

conjunto de indivíduos que se chama multidão por ser expressão do útil, (e

racionalmente se entenderia que fosse) segui-la será correto e útil, e violá-la e combatê-

la será sedicioso:

Da mesma forma as crianças que, embora tenham de obedecer às ordens de seus pais,

não são escravas, pois os ordenamentos dos pais têm grandemente em vista a utilidade

das crianças. Reconhecemos, pois, uma grande diferença entre um escravo, um filho e

um súdito, que assim se definem: é escravo quem tem de obedecer a ordens com vistas à

utilidade do mestre; filho, quem faz aquilo que lhe é útil por ordem dos pais; súdito,

enfim, quem faz por ordem do soberano o que é útil para o bem comum e, por

consequência, para si mesmo.228

Resta claro assim que se é útil não há transferência do direito natural a outrem.

O que há é o estabelecimento da composição entre os indivíduos e seu direito através de

uma relação de conveniência. Claramente ao se unirem, o direito natural dos indivíduos

não só se efetiva como aumenta exponencialmente em favor do bem comum para cada

um e para todos. Isso por meio deste bem superior que é a conservação do Estado, e

manutenção, “(...) acima de tudo, [d]a fé prometida, que é a mais forte muralha do

Estado”229

. É ao mesmo tempo a apresentação do valor e importância da imagem e de

sua dimensão pragmática e concreta. O Estado a partir de um paradigma democrático

especificamente será uma espécie de mediador entre a utilidade comum e a utilidade

privada, permitindo o movimento que já demonstramos dos indivíduos ocupando

226 In.: TORRES, Sebastian. Communis utilitas: concordancia politica e interés privado em Spinoza. Texto

apresentado no IV Colóquio Internacional Spinoza em Córdoba. Revista Conatus, vol. 13 (no prelo), p. 4. 227 Idem., p. 4.. 228 TTP, XVI, p. 2867. 229 Idem., p. 284.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 93: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

93

simultaneamente as posições de cidadão e súdito e separando estas das de escravo ou

mesmo filho. A obediência não é pois um fim em si mesma, mas uma ferramenta e um

resultado da experiência democrática e mais. A obediência é assim condição para a

existência do cidadão, pois sem sujeitar-se às leis não há que se falar em estado civil,

tampouco na concretização do direito natural dos indivíduos o que, pelo exposto é o

bem mais útil daqueles que se guiam pela razão e componente lógica deste movimento.

Não que será este o elemento que por si só garantirá a transição dos apetites à razão,

mas vemos aqui um norte quando estamos a tratar da democracia.

Retomamos assim a conclusão apresentada anteriormente: a de que será esta (a

democracia) a forma na qual se estabelece a igualdade dentro do sistema espinosano

(mais do que qualquer outra), contudo não será esta uma igualdade somente perante a

morte, como Hobbes diagnostica, mas uma igualdade e aumento de potência da

perspectiva do direito natural de cada um e de todos (pois imbuído de uma utilidade em

seu duplo aspecto), ou seja, uma igualdade perante a possibilidade da vida e de sua

realização. E quando dizemos isso queremos inferir que esta igualdade se realiza em um

campo do potencial de ganho de direitos para a multidão que, em estado de natureza

nada podia, mas que agora sob o estado civil possui nas determinações da cidade uma

medida de direitos muito maior do que se podia conceber antes. Isto, tal qual já

salientamos não exclui o papel da desigualdade enquanto uma mola a impulsionar o

movimento contínuo de expansão e busca por novos direitos. Não será um processo

simples e cordato, como alguns teóricos do contratualismo tendem a crer, mas se

exprimirá muitas vezes pelo tensionamento ao limite das relações sociais que se

construíram, e na medida em que não há um pacto rígido, estas relações irão se

modificando constantemente230

.

Eis o movimento democrático dentro da própria obediência que Espinosa dará

relevo. Na realidade, é o movimento da constituição civil mesma, contudo tal ideia

munida da compreensão do útil, da razão e do comum dará as fundações sob as quais se

construirá o edifício democrático. Este é o motivo pelo qual teremos a democracia como

o mais natural dos regimes, relativamente independente da forma (de regime) que se

venha a adotar. Também é por isso haverá a violação do direito quando um cidadão for

coagido por outrem a sofrer um dano de modo contrário ao que determina a lei

230 Apenas a união das potências e a construção da política já aponta no sentido de diminuir o medo e potencializar a

criação de direitos. Contudo a democracia, sendo o mais absoluto dos regimes, garantirá de modo mais pleno e

potente o exercício dos direitos naturais pelos indivíduos, agora tangíveis através da instituição civil e do direito.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 94: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

94

soberana231

, conforme Espinosa dirá, por conta do elemento da utilidade. E

principalmente, é por esta série de motivos que Espinosa conclui nosso presente tópico

ensinando que:

Diz-se civil a situação de qualquer estado; mas ao corpo inteiro do estado, que

dependem da direção de quem o detém, chama-se república. Depois, chamamos

cidadãos aos homens na medida em que, pelo direito civil, gozam de todas as

comodidades da cidade, e súditos na medida em que têm de submeter-se às

instituições ou leis da cidade.232

4.3

Da construção democrática: das considerações finais

Apesar de a obediência exercer papel fundamental na tessitura social, Espinosa

nos advertirá dos riscos existentes de, sob o pacto haver a submissão incondicional ao

outro, o que seria absurdo diante de tudo que vimos além de, do ponto de vista de uma

estratégia do esforço em perseverar no ser, não fazer sentido. Por conta disso as causas

da fundação do corpo político e do próprio estado civil estarão constantemente sendo

atualizadas, especialmente na busca e expansão de direitos. Isso não quer dizer que tais

causas estarão sempre sendo postas em xeque, por assim dizer. Até porque em

comparação com o estado de natureza a instituição civil sempre parecerá melhor, além

do mais são a união dos indivíduos e o aumento de sua potência os instrumentos para o

ganho dos direitos. Eis o motivo pelo qual nosso autor afirma que não podemos nos

esquecer de que se encontra fora do direito da cidade geralmente aquilo que provoca a

indignação da maioria (e por isso entenderemos diminuição da potência dos indivíduos

e da multidão como um todo que é o que define a potência da cidade) e eventualmente

será causa de resistência ao poder ou, pelo menos, da constatação do desfazimento do

corpo democrático.

Logo, dentro do Estado e, principalmente, em uma democracia deve-se ter a

cautela de entender que é mais difícil realizar a vontade una de quem eventualmente

exerça a soberania, seja um mandatário, um magistrado, um monarca, etc. Isso também

é visível pelo fato de que este jamais terá sustentação se se apoiar em medidas absurdas

que a todos repugnem. Esta afirmação de Espinosa no TTP parece causar estranheza, na

medida em que aparentemente se sustentaria apenas em um bom senso do soberano, o

231 TTP, XVI, 288. 232 TP, III, 1. Grifos nossos.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 95: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

95

que da ótica da consolidação institucional aparenta não ter solidez. Não obstante há a

questão da manutenção da proporção entre poder soberano e multidão:

(...) é certo que os homens por inclinação da natureza conspiram, seja por causa de um

medo comum, seja pelo desejo de vingar algum dano sofrido. E uma vez que o direito

da cidade se define pela potência comum da multidão, é certo que a potência e o direito

da cidade diminuem na medida em que ela própria ofereça motivos para que vários

conspirem233

.

Mais um argumento de apoio para a impossibilidade do domínio completo sobre

o próximo e reforço do caráter múltiplo da dinâmica política. Para que o corpo político

seja vivo e assim permaneça devemos pensar nele pela proporção entre governante e

governados assim como na vivência dos indivíduos como súditos ao mesmo tempo que

cidadãos. A obediência não se confunde com subserviência e a liberdade não guarda

semelhança com o agir apenas por sua própria vontade. É antes de tudo um processo

bem articulado, um verdadeiro jogo de potências que dão a medida do direito e da

própria cidade.

Da cidade cujos súditos, transidos de medo, não pegam em armas, deve antes dizer-se

que está sem guerra do que dizer-se que tem paz. Porque a paz não é a ausência de

guerra, mas a virtude que nasce da fortaleza de ânimo: a obediência, com efeito (pelo

art. 19, cap. II), é a vontade constante de executar aquilo que, pelo decreto comum da

cidade, deve ser feito. Além disso, aquela cidade cuja paz depende da inércia dos

súditos, os quais são conduzidos como ovelhas para que aprendam só a servir, mais

corretamente se pode dizer uma solidão do que uma cidade.234

Não podemos com isso esquecer que não é só a paralisia que denota um estado

de servidão. Mesmo as tentativas pautadas em uma certa atividade podem não ser

suficientes para liberar um povo da tirania, como a história mostra de maneira

abundante. Espinosa conclui o capítulo V de seu Tratado Político com mais um alerta.

Neste trecho afirmará que de nada adianta remover o tirano ou cortar a cabeça de

infinitos monarcas e déspotas se não se remover conjuntamente as causas desta tirania.

Sobre o assunto e a título ilustrativo achamos pertinente inserir o discurso proferido por

Gerrard Winstanley em 1652 para os soldados do chamado Exército de Novo Tipo,

armada popular e republicana do período:

Eu vos exorto, soldados da República Inglesa! O inimigo não poderia vencer-nos no

campo de batalha, porém pode derrotar-vos nos meandros de sua política se não

conservardes firme a tenção de estabelecer a liberdade para todos. Pois, se ele vencer, a

autoridade régia retornará a vossas leis, o rei Carlos vos terá vencido e à vossa

233 TP, III, 9. 234 TP, V, 4.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 96: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

96

posteridade pela sua política, terá ganho a batalha, embora aparentemente lhe tenhais

cortado a cabeça. 235

Caso não se observe esta regra o governante sucessor será com certeza mais

tirânico que o anterior, pois, eivado de medo pelo destino do último tirano irá se cercar

de mais meios para manter seus domínios e sua força, sendo cada vez mais difícil

remover o ditador. Desta feita notamos que a resistência quando exercida deve ir muito

além da mera figura do soberano, ou mesmo da soberania em si236

. É por motivo

análogo que Espinosa adverte no TP, VI, 3 dos perigos de se confiar na virtude de um

governante que se proponha um salvador do povo. Afinal, é “do interesse da servidão,

não da paz, transferir [e confiar] todo o poder para um só: porque a paz, como já

dissemos, não consiste na ausência de guerra, mas na união ou concórdia dos

ânimos”237

, afinal:

Os reis, com efeito, não são deuses, mas homens que se deixam muitas vezes apanhar

pelo canto das sereias. Se, por conseguinte, dependesse tudo da vontade inconstante de

um só, nada estaria fixo. Assim, o estado monárquico, para ser estável, deve estar

instituído de modo que tudo se faça de acordo somente com o decreto régio, isto é, que

todo o direito seja vontade do rei explicitada, mas não de modo que toda vontade do rei

seja direito (sobre isto, ver os arts. 3, 5 e 6 do cap. ant.).238

A ideia hobbiana da constância a partir da centralização de tudo sob uma única

vontade cairá por terra diante da filosofia de Espinosa que considera não só inconstante

a vontade de um, mas também, por óbvio, com menor capacidade de vislumbrar mais

pontos de vista, sendo uma visão menos abrangente. Além disso, a concentração do

poder seria em si mesma a causa da instabilidade que surgiria dentro da cidade, pois

quanto menos forem os conselheiros e ministros, mais potentes estes serão, logo maior

será o perigo para o rei de que tentem transferir o poder para outro239

. Desta forma, a

fidelidade dos magistrados inferiores e dos cidadãos para Espinosa não será uma virtude

política, mas caso de conveniência para estes, ou melhor, de utilidade: “Ninguém que

leia a história pode ignorar que a lealdade foi muitas vezes a ruína dos conselheiros,

pelo que, para se precaverem a si próprios, é preciso serem habilidosos, não serem

fiéis”240

.

235In.: HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça: Idéias radicais durante a revolução inglesa de 1640. Tradução,

apresentação e notas Renato Janine Ribeiro. São Paulo, ed. Companhia das Letras, 1987, p. 141. 236 Ver TP, V, 6. 237 TP, VI, 4. 238 TP, VII, 1. 239 TP, VII, 14. 240 TP, VII, 14.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 97: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

97

Mais uma vez, evidentemente, caímos na utilidade como causa pela qual se dão

a união e aliança políticas. O que leva a concluir que é fundamental que os cidadãos

estejam sob a jurisdição de si próprios, defendendo o estado não como um vassalo

defende a seu senhor, mas como um indivíduo defende a própria vida e, muito mais,

defende a própria liberdade e a melhor forma de viver. Assim, uma forma de atualização

das causas que levam à formação do corpo político, ou seja, uma espécie de resistência

ao desfazimento do estado civil – ou existência dentro do estado civil, o que parece

melhor – residira muito mais na prática cotidiana e fundamento mesmo do estado do

que em eventuais medidas emergenciais contra tiranos sazonais. Como dito, acima de

tudo é necessário minar as causas pelas quais pode surgir a tirania e a sedição e,

principalmente, manter bem guardada aquela que é a medida do direito civil e causa

efetiva do aumento de potência dos indivíduos.

Ainda, estando os cidadãos mais sob a jurisdição de si próprios, para que o

estado dure o maximamente é fundamental – e já abordamos o tema no capítulo anterior

– que se mantenham as formas deste, não unicamente pelo valor simbólico, apesar deste

já possuir causas próprias de assim ser e, como provado, é necessário que seja mantido

assim. Na realidade, uma multidão acostumada a um determinado sistema tenderá a

continuar neste por seu hábito. No caso da democracia, esta deve ser construída, mas é

um processo constitutivo e de longa duração. Por isso não podemos cair nem em

individualismos, pois não será pela virtude de um ou de alguns que a república

democrática surgirá, mas pela força das instituições; tampouco podemos deixar de notar

que o democrático ultrapassa a mera forma e deve ser imanente ao sistema que se adota.

Passamos por este caminho destacando a necessidade da manutenção da

proporção entre a multidão e o poder soberano no intuito de comprovar que, de um

modo geral é dedutível que, para a manutenção do sistema será fundamental a existência

de certa dinâmica entre medo recíproco e uma desconfiança que mantenha o jogo de

forças e seu movimento, o que inclusive pode ser esperado a partir do estabelecimento

do estado civil e da busca e expansão por novos direitos. A história comprova que não

podemos depositar nossas esperanças na crença de que em todos os momentos de um

estado democrático a soberania será o exercício direto pelo povo e aplicação de sua

vontade inconteste. Mesmo (e principalmente) dentro do povo, ou melhor, da multidão,

haverá divergências enormes que, pelas paixões podem se transformar em sedição, daí

em guerra civil e, o pior, no desfazimento do corpo político. Assim é importante que

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 98: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

98

haja uma espécie de dinâmica contestatória entre governados e governante, de modo a

segurar a eclosão de conflitos abertos, seja naquilo que pode resultar na tirania, seja a

sedição, não importa. O problema maior que Espinosa enfrenta não é o resultado de uma

análise da anaciclose polibiana, no decaimento de um sistema para o outro, mas sim no

esgarçamento das forças que compõem a cidade e no seu desfazimento, ou seja, na

morte da cidade ou mesmo na morte da democracia (enquanto movimento). Caso esta

dinâmica imploda ou se curve sobre seu próprio peso certamente haverá o risco

iminente da guerra civil e de tumultos internos. Do ponto de vista do soberano,

retomando o ponto, é certo que sua atitude perante a maioria deverá ser pautada por uma

estratégia que impeça que o medo se agrave e se torne indignação. Logo, tal modo de

lidar com as variações afetivas dentro da cidade está sim inserido em uma dinâmica

institucional e não seria caso das chamadas liberalidades que Maquiavel pontua e

adverte em seus textos, em especial nos ensinamentos do Príncipe. Entretanto, e isso é o

mais importante, o medo comum jamais poderá servir de sustentáculo para o Estado: “A

isto acresce que o estado civil é naturalmente instituído para eliminar o medo comum e

afastar as comuns misérias, visando portanto maximamente àquilo por que, no estado

natural, ainda que em vão (...), se esforçaria cada um dos que se conduzem pela

razão”241

. Tanto é que a multidão pode, (por direito, ou seja, por potência,

evidentemente) quando este medo comum se transforma em indignação, romper a

relação estabelecida.

Se, contudo, elas [as leis] são de natureza tal que não podem ser violadas sem que ao

mesmo tempo se debilite a robustez da cidade, isto é, sem que ao mesmo tempo o medo

comum da maioria dos cidadãos se converta em indignação, a cidade, por isso mesmo,

dissolve-se e cessa o contrato, o qual, por conseguinte, não é defendido pelo direito civil

mas pelo direito de guerra.242

Cremos ser este o fundo do alerta de Espinosa: ao mesmo tempo que a

democracia é o mais natural dos regimes, é também aquele que poderia durar menos

(enquanto regime). Entretanto isto não é o problema ainda. Vide o caso dos turcos cujo

estado resistiu por tanto tempo de modo praticamente inalterado, principalmente se

comparado a quaisquer estados democráticos de que se teve notícia, os quais a duração

foi em geral breve. Porém, “se a servidão, a barbárie e o isolamento se devem apelidar

de paz, então não há nada mais miserável para os homens do que a paz”243

. Não é a

241 TP, III, 6. 242 TP, IV, 6. 243 TP, VI, 4.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 99: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

99

duração da democracia enquanto regime nosso problema, tampouco há que se falar em

decaimento dos regimes, seja do democrático ao aristocrático ou ao monárquico, seja o

inverso, etc. Em primeiro lugar, a democracia, tal qual copiosas vezes assinalamos, não

se caracteriza por um sistema fechado ou um modelo teórico244

, mas sim em um

movimento contínuo de atualização que possibilita que a multidão se expresse através

do corpo político em uma contínua pulsação de aumento e expansão de direitos e onde

esta será maximamente potente. Ou seja, não estamos tratando de um sistema onde há

exterioridades atuantes. Não há um poder externo que atua no sentido de cristalizar as

forças transformadoras da sociedade. O poder é imanente a esta, e por isso ele é o mais

absoluto. Tanto que o inimigo a se enfrentar sempre será interno e não é o Estado o

inimigo, mas a própria guerra civil.

Isso significa, como Espinosa já demonstrou, que esta potência democrática

pode ser exercida de modo relativamente independente de qualquer regime que os seres

humanos venham a conceber. Este é o motivo pelo qual cremos que o filósofo holandês

irá em seu Tratado Político percorrer os três principais regimes e em todos sempre

encontrará insumos e ferramentas que possibilitam a guinada democrática. Inclusive,

cremos que o fato desta obra não ter sido concluída não diminui em nada a dimensão da

democracia que Espinosa se propunha a apresentar, pelo contrário, para a formulação

democrática espinosana chega a não ser imprescindível a explicação da democracia

após terem sido apresentadas todas as bases políticas que sustentam sua teoria pois,

pensamos que apenas por meio destas já é possível compreender e conceber o que o

autor entende por instituição democrática: um movimento em construção permanente

cuja concretude não pode ser capturada por um modelo.

Dando seguimento ao argumento, cremos ser por isso que Espinosa irá salientar

no Tratado Teológico-político que a forma é mais uma expressão histórica e cultural do

que qualquer outra coisa. Não é uma formulação genérica, hermética e abstrata que irá

definir o que é o democrático, o que é justo e o que é bom. Espinosa não se preocupa

com engenharias legislativas ou constitucionais como medida para estabelecer a

diferença entre um regime democrático e outro que não o é. Tanto que seu problema

maior não será este decaimento da razão democrática para uma barbárie do despotismo.

O que a nós parece ser aquilo que Espinosa dá importância é a possibilidade de morte

244 Sobre o tema ver: BALIBAR, Etienne. Jus-Pactum-Lex: On the Constitution of the subject in the Theologico-

Political Treatise. Disponível em: <http://korotonomedya.s3.amazonaws.com/EtienneBalibarJusPactumLex.pdf>.

Acesso em 10 de outubro de 2014.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 100: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

100

do corpo político e, aí sim, daquilo que menos útil, ou melhor, mais nocivo pode nos

parecer, que é a guerra interna. Aqui é onde reside aquele que chamamos de inimigo

interno, que não é nem o Estado nem a multidão, mas a possibilidade da guerra civil, do

rompimento do corpo político e morte da cidade. O resultado que surgirá desta morte já

não é mais o estado ao qual nos referimos, mas outra coisa que em nada guarda

semelhança com o que se tinha antes, a não ser, talvez, a forma.

Após a diferenciação entre as concepções dos dois autores percebem-se dois

mundos bem diversos se delineando: um será o mundo da lógica centralizadora

hobbiana, na qual há a constante necessidade de vigilância para a manutenção da paz.

Para isso, a premente existência de um poder externo que exerça o controle sobre toda a

sociedade e que seja garante dos pactos estabelecidos; o outro será o universo

espinosano, cuja metafísica será trabalhada incansavelmente para que se tente

compreender de que modo podem as forças entrar em composição e estabelecer um

sistema cuja determinação principal não seja de um só, nem de uma unidade, mas que se

dê através das determinações de uma multidão tão diversa quanto complexa, cujos

elementos entrarão em disputa em certos momentos sim, mas onde a segurança apenas

será valor absoluto aliada à liberdade. Novamente é o aspecto democrático residindo

para além de um sistema proposto: na filosofia espinosana a democracia se constitui

muito mais como um movimento e uma tendência do que propriamente como um

sistema fechado e parece ser evidente que é este o motivo que levará Espinosa a

explicitar elementos democráticos em diferentes regimes como faz no TP. Mais uma

vez, dizemos que a incompletude desta obra não irá lhe tirar o valor de tratado em

defesa da liberdade, pois é a proposta da liberdade residindo no modo como se dão os

encontros muito mais do que na forma que o sistema irá assumir. Retornamos então à

introdução de nosso trabalho quando dissemos que a forma será resultado de causas

culturais e históricas, no entanto esta apenas será determinante enquanto a obediência

for devida à lei da cidade, e não a quem a comanda, pois “cada cidadão não está sob

jurisdição de si próprio mas da cidade, da qual tem que executar todas as ordens, (...)

aquilo que a cidade decide ser justo e bom deve ser considerado como se fosse

decretado por cada um (...)”245

.

Da relação de obediência entre o indivíduo e os ditames da cidade é de se

pontuar que devemos conjugá-la à análise da construção do elemento comum na

245 TP, III, 5.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 101: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

101

formação política. É isso que Espinosa considerará ao elaborar sua política voltada para

uma multidão. Hobbes, por outro lado, pensará na necessidade de eliminar incertezas

pelo estabelecimento da maior de todas as desigualdades: a supremacia de um perante

muitos. A condição de igualdade segundo Hobbes apenas será útil enquanto igualdade

do medo, igualdade perante a morte. E será esta força que no fim das contas exercerá o

controle sobre a multidão, agora não mais plural, mas una. Uma multidão transformada

em povo uno, só.

A Multitude of men, are made One Person, when they are by one man, or one Person,

Represented; so that it be done with the consent of every one of that Multitude in

particular. For it is the Unity of the Representer, not the Unity of the Represented, that

maketh the Person One. And it is the Representer that beareth the Person, and but one

Person: And Unity, cannot otherwise be understood in Multitude.246

Por isso a necessidade de termos trabalhado a formação do pacto ou

estabelecimento da relação, de um lado pela construção do comum (via espinosana), do

outro (hobbiano) pela acomodação e jogo de forças que se estabelecerá (e se definirá).

Para Hobbes o Estado poderá se formar ou pelo consentimento geral face um medo

grande, ou pela conquista de um ou de alguns sobre os demais. Ao fim das contas, dirá

Hobbes, os efeitos civis de ambas as formas de aquisição do Estado serão os mesmos

pois, uma vez cessados os conflitos mediante a cessão das vontades e forças a um só, a

paz e a segurança estarão garantidas.

Segundo Espinosa há diferenças colossais entre um e outro modos de formação

da sociedade civil. Poderíamos nos utilizar, dentre os inúmeros exemplos, do caso dos

aragoneses que, ao cederem sua liberdade mas ainda manterem a aparência das

instituições estavam em verdade encontrando seu fim enquanto povo livre, pois para a

tirania nascer primeiro é necessário que sua ideia se instale . O costume fará o resto. Por

isso a necessidade de sempre se manter a incomensurabilidade da potência da multidão

em relação a quem exerce o poder. Apenas assim, cremos, poder-se-á compreender

como as formas possuem importância vital, no entanto nada são sem a manutenção

perene do movimento democrático.

Por todo o exposto, cremos que a melhor forma de pôr fim ao trabalho é não

terminá-lo. Se a construção da democracia não se apresenta como um projeto fechado

em si, mas como um movimento sempre em expansão e de busca por direitos, seria

246 HOBBES, Thomas. Leviathan. London, Ed. Penguin Books, Reprinted in Penguin Classics 1985, p. 220.

Tradução: “Uma multidão de homens se converte numa só pessoa quando é representada por um homem, ou uma

pessoa, de tal forma que possa atuar com o consentimento de cada um dos indivíduos que compõe essa multidão. Isso

representa a unidade do representante, não a unidade dos representados, o que faz a pessoa uma. E é o representante

quem sustenta a pessoa, mas apenas uma pessoa. A unidade não pode ser entendida de outro modo na união”.

In.:HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo, Ed. Martin Claret, 2013.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 102: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

102

sensato pensar que questões pertinentes a sua instituição tais como a obediência, a

cidadania e a utilidade são tão dinâmicas quanto ela mesma e precisam ser abordadas

não pelo todo ou por suas partes apenas, mas por seu caráter multitudinário, simultâneo

e de constante atualização. A democracia se define então mais por potências em jogo do

que por um poder estanque, uma forma definida ou apenas um valor em si mesmo.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 103: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

5

Referências Bibliográficas

AURÉLIO, Diogo Pires. O mais natural dos regimes: Espinosa e a democracia.

Lisboa, ed. Temas e debates – Círculo de leitores, 2014.

BALIBAR, Etienne. Jus-Pactum-Lex: On the Constitution of the subject in the

Theologico-Political Treatise. Disponível em:

<http://korotonomedya.s3.amazonaws.com/EtienneBalibarJusPactumLex.pdf>. Acesso

em 10 de outubro de 2014.

_______________. Spinoza, l’anti-Orwell. In: La crainte des masses: Politique et

philosophie avant et après Marx, Ed. Galilée, Paris.

BOSTRENGHI, Daniela (org.). Hobbes e Spinoza: Scienza e politica, Atti del

Convegno Internazionale Urbino, 14-17 ottobre, 1988 (Hobbes and Spinoza: Science

and politics). Ed. Bibliopolis, Nápoles, 1992.

BOVE, Laurent. La Stratégie du Conatus: Affirmation et Résistence chez Spinoza.

Ed. Librairie Philosophique J. VRIN, Paris, 1996.

_______________. A fides e os princípios da socialidade no Tratado Teológico-

Político. Palestra proferida no X Colóquio Espinosa e as Américas, realizado no Rio de

Janeiro entre 18 e 22 de novembro de 2013. Tradução: Bernardo Bianchi.

BRAUDEL. Os homens e a herança no Mediterrâneo. São Paulo, ed. Martins Fontes,

1986.

BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil. São Paulo, ed. Companhia das

Letras, 1995.

CAPORALI, Riccardo, MORFINO, Vittorio, VISENTIN, Stefano. Spinoza: Individuo

e Moltitudine. Atti del convegno internazionale di Bologna, 17-19 novembre 2005.

Bologna, Ed. Società Editrice <<Il Ponte Vecchio>>, 2007.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 104: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

104

CHAUI, Marilena. A nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa. São

Paulo, , Ed. Companhia das letras, 1999.

_______________. Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo, , Ed.

Companhia das letras, 2011.

_______________. Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. São

Paulo, , Ed. Autêntica, 2013. Organizador André Rocha.

_______________. Política em Espinosa. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2003.

DELEUZE, Gilles. Espinosa Filosofia Prática. São Paulo, Ed. Escuta, 2002.

_______________. Espinosa e o problema da expressão (Spinoza et le probléme de

l’expression). Paris, Ed. Minuit, 1968. Trad. Hortência S. Lencastre.

ESPINOSA, Baruch de. Carta L em resposta a Jarig Jelles, 2 de junho de 1674.

_______________. Tratado Político. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires

Aurélio, 1ª edição. São Paulo, Ed. Wmf Martins Fontes, 2009.

_______________. Tratado Teológico-político. Traduçção, introdução e notas de

Diogo Pires Aurélio, 1ª edição. Lisboa, Ed. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988.

FERNÁNDEZ, Eugenio e DE LA CÁMARA, María Luisa (Org.). Prólogo de Juan

Manuel Navarro Cordón. El gobierno de los afectos em Beruj Spinoza. Madri, Ed.

Trotta, 2007.

GUIMARAENS, Francisco de. Direito, ética e política em Spinoza: Uma cartografia

da imanência. Rio de Janeiro, Ed. Luman Juris, 2010.

HILL, Christopher. A Revolução inglesa de 1640. 3ª ed. Lisboa, Editorial Presença,

1985.

_______________. O mundo de ponta-cabeça: Idéias radicais durante a revolução

inglesa de 1640. Tradução, apresentação e notas Renato Janine Ribeiro. São Paulo, ed.

Companhia das Letras, 1987.

HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1992.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 105: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

105

_______________. Leviatã. São Paulo, Ed. Martin Claret, 2013.

_______________. Leviathan. London, Ed. Penguin Books, Reprinted in Penguin

Classics 1985.

ISRAEL, Jonathan. The Dutch Republic. Oxford, 1998.

LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1994.

LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté: Spinoza critique de Hobbes. Paris,

Ed. PUF, 1998.

LUCCHESE, Filippo Del. Tumultes et indignation: Conflit, droit et multitude chez

Machiavel et Spinoza. Paris, Ed. Éditions Amsterdam, 2010.

MACPHERSON, C. B.. A Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes

até Locke. Tradução de Nelson Dantas. Rio de Janeiro, Ed. Paz e terra, 1979.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Organização e tradução de José Antônio Martins.

São Paulo, Ed. Hedra, 2007.

MATHERON, Alexandre. Scritti su Spinoza. Milão, Ed. Edizioni Ghibli, 2009.

MARTON, Scarlett (Org. e Ed.). Discurso. n. 18. São Paulo, Revista do Departamento

de Filosofia da F.F.L.C.H. da USP, 1990.

MOREAU, Pierre-François. Os princípios de leitura das Sagradas Escrituras no

Tratado Teológico-Político. Tradução de Cristiano Novaes de Rezende. Revisão

Crítica: Homero Santiago. Cadernos Espinosanos IV, p. 75-89, 1998.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral: uma polêmica. Tradução,

notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2009.

MARX, Karl. Para a Questão Judaica. Tradução de José Barata Moura. 1ª edição, São

Paulo, 2009.

NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte. Tradução de Adriano Pilatti. Rio de Janeiro,

Ed. DP&A, 2002.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA
Page 106: Felipe Jardim Lucas Elementos do estado civil, formação da

106

_______________. A Anomalia Selvagem. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de

Janeiro, Ed. 34, 1993.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. São Paulo, Ed.

Companhia das Letras, 2006.

RIBEIRO, Renato Janine. A marca do Leviatã: Linguagem e poder em Hobbes. São

Paulo, ed. Ática, 1978.

_______________. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo. 2ª

ed. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999.

SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Revisão técnica

Renato Janine Ribeiro. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.

SPINOZA. Tratado Teológico-Político. Organização J. Guinsburg, Newton Cunha,

Roberto Romano; tradução J. Guinsburg, Newton Cunha. 1 ed. São Paulo, Ed.

Perspectiva, 2014.

SPINOZA, Baruch de. Tratado da Reforma do Entendimento. São Paulo, Ed. Escala,

1ª edição, 2007.

SPINOZA, Benedictus. Ética. Tradução: Tomaz Tadeu. Belo Horizonte, Ed. Autêntica,

2ª edição, 2011.

TORRES, Sebastian. Communis utilitas: concordancia politica e interés privado em

Spinoza. Texto apresentado no IV Colóquio Internacional Spinoza em Córdoba. Revista

Conatus, vol. 13 (no prelo).

ZOURABICHVILI, François. Le conservatisme paradoxal de Spinoza – Enfance et

royalté, PUF, Paris, 2002.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312343/CA