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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa Universidade Federal da Paraíba 15 a 18 de agosto de 2017 ISSN 2236-1855 4864 FAZER-SE PROFESSOR HOJE: A RELEVÂNCIA ATRIBUÍDA À CULTURA HERDADA NO PROCESSO DE FORMAÇÃO PROFISSIONAL DO SER SOCIAL Luiz Carlos Barreira 1 Genira Rosa dos Santos 2 Introdução Uma das principais características da metodologia adotada na pesquisa que desenvolvemos junto ao Grupo de Estudos e Pesquisas “Formação de Sujeitos: História, Cultura, Sociedade”, que integra as atividades desenvolvidas pelo Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade Católica de Santos, intitulada “Fazer-se Professor Ontem e Hoje”, está na vontade política de ouvir e dar visibilidade aos sujeitos sobre as determinações ou pressões sociais por eles sofridas ao longo das suas trajetórias de vida, tanto no que diz respeito à sua formação de ser social, de uma forma geral, quanto à sua formação profissional, em particular. Entendemos, com Rui Canário (1988; s/d), António Nóvoa (1998) e João Formosinho (2001), entre outros, que a formação profissional inicial, obtida, via de regra, em instituições escolares profissionalizantes, é parte de um processo que contempla inúmeras outras práticas, institucionalizadas ou não. Por essa razão, tal formação é definida como “formação profissional inicial”. A ideia central, contida nessa definição, é a de que tal formação terá continuidade nas práticas profissionais concretas dos sujeitos sociais em questão. A rigor, e a considerar os resultados das pesquisas realizadas, tais práticas de formação profissional sequer “iniciais” são. A maioria absoluta dos sujeitos entrevistados na pesquisa revela que a escolha de determinado campo profissional decorre, muitas vezes, da própria vivência, da própria experiência. De qualquer forma, o que importa é destacar, nesse raciocínio, a noção de movimento, de mudança, de um fazer que não se esgota nos estreitos limites temporais de 1 Doutor em Filosofia e História da Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Professor no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica de Santos, Campus Dom Idílio Soares. E-Mail: <[email protected]>. 2 Mestre em Educação pela Universidade Católica de Santos. Professora no Curso de Pós-Graduação em Dinâmica dos Grupos e no Curso de Formação em Desenvolvimento dos Grupos da Sociedade Brasileira de Dinâmica de Grupo. E-Mail: <[email protected]>.

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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 4864

FAZER-SE PROFESSOR HOJE: A RELEVÂNCIA ATRIBUÍDA À CULTURA HERDADA NO PROCESSO DE FORMAÇÃO PROFISSIONAL DO SER

SOCIAL

Luiz Carlos Barreira1

Genira Rosa dos Santos2

Introdução

Uma das principais características da metodologia adotada na pesquisa que

desenvolvemos junto ao Grupo de Estudos e Pesquisas “Formação de Sujeitos: História,

Cultura, Sociedade”, que integra as atividades desenvolvidas pelo Programa de Pós-

Graduação em Educação da Universidade Católica de Santos, intitulada “Fazer-se Professor

Ontem e Hoje”, está na vontade política de ouvir e dar visibilidade aos sujeitos sobre as

determinações ou pressões sociais por eles sofridas ao longo das suas trajetórias de vida,

tanto no que diz respeito à sua formação de ser social, de uma forma geral, quanto à sua

formação profissional, em particular.

Entendemos, com Rui Canário (1988; s/d), António Nóvoa (1998) e João Formosinho

(2001), entre outros, que a formação profissional inicial, obtida, via de regra, em instituições

escolares profissionalizantes, é parte de um processo que contempla inúmeras outras

práticas, institucionalizadas ou não. Por essa razão, tal formação é definida como “formação

profissional inicial”. A ideia central, contida nessa definição, é a de que tal formação terá

continuidade nas práticas profissionais concretas dos sujeitos sociais em questão. A rigor, e a

considerar os resultados das pesquisas realizadas, tais práticas de formação profissional

sequer “iniciais” são. A maioria absoluta dos sujeitos entrevistados na pesquisa revela que a

escolha de determinado campo profissional decorre, muitas vezes, da própria vivência, da

própria experiência. De qualquer forma, o que importa é destacar, nesse raciocínio, a noção

de movimento, de mudança, de um fazer que não se esgota nos estreitos limites temporais de

1 Doutor em Filosofia e História da Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Professor no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica de Santos, Campus Dom Idílio Soares. E-Mail: <[email protected]>. 2 Mestre em Educação pela Universidade Católica de Santos. Professora no Curso de Pós-Graduação em Dinâmica dos Grupos e no Curso de Formação em Desenvolvimento dos Grupos da Sociedade Brasileira de Dinâmica de Grupo. E-Mail: <[email protected]>.

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certas práticas institucionalizadas, como são, de uma forma geral, as escolares. Entendemos,

com Josso (2002), que a formação pode ser concebida e investigada como “arte do tempo”.

Buscar conhecer a experiência concreta (histórica) de sujeitos singulares requer, no

entanto, a utilização de metodologias de pesquisa adequadas. Entendemos que a História

Oral pode ser um campo disciplinar capaz de oferecer contribuições significativas para a

consecução desse objetivo. Por essa razão, fomos buscar, nas práticas de pesquisa de

estudiosos que atuam nesse campo, as ferramentas (noções e conceitos) com as quais

pudéssemos trabalhar. Meihy (2006; 2007) foi um deles. Foi com esse historiador do tempo

presente que aprendemos a ouvir os sujeitos da pesquisa, ou seja, aprendemos a entrevistá-

los. Mais ainda, aprendemos a manejar as ferramentas conceituais necessárias a uma análise

contextualizada das falas dos sujeitos entrevistados, tais como os conceitos de “tom vital”,

“textualização” e “transcriação”.

Dentre os três gêneros de história oral apontados por esse estudioso do tema, o

gênero história de vida foi o escolhido. As histórias de vida narradas neste trabalho foram

transcriadas a partir de relatos obtidos por meio de entrevistas gravadas (que foram

transcritas literalmente e, posteriormente, textualizadas). As transcriações (relatos literários

em primeira pessoa) foram produzidas a partir do “tom vital” (frase ou sentença que expressa

sinteticamente a visão de mundo dos entrevistados), em conformidade com a referência

metodológica observada.

Outro procedimento que fomos buscar nas práticas de investigação da História Oral

diz respeito aos protocolos de utilização dos materiais da pesquisa, quais sejam, as falas dos

sujeitos entrevistados. Optamos por preservar a identidade, tanto dos entrevistados, quanto

da instituição onde trabalham. Para isso, fizemos uso de nomes fictícios para designar os

colaboradores da investigação, bem como a instituição onde eles trabalham.

Oito professoras que atuam em uma escola de educação infantil na Baixada Santista

foram entrevistadas. Elas compõem todo o corpo docente de uma instituição escolar

pertencente ao assim denominado “terceiro setor”. Neste trabalho, as experiências de vida de

quarto delas serão privilegiadas, posto que quatro outras já foram objeto de discussão em

trabalhos apresentados em outros eventos promovidos pela área da Educação e da História

(BARREIRA; SANTOS, 2016; SANTOS; FRAGA, 2015).

Com a palavra, as professoras.

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Ser professor é estar sempre atento às necessidades do educando, é estar sempre se superando

Eu me chamo Sofia e tenho quarenta e um anos de idade. Sou natural de Cesário

Lange, região metropolitana de Sorocaba, cuja população foi estimada em 17 mil habitantes,

em 2015 – uma cidade muitíssimo pequena, portanto. Vivi nessa cidade os primeiros vinte e

três anos da minha vida. Quando concluí o ensino de primeiro grau, tive que decidir o que

faria na sequência: se o curso colegial ou o de magistério. Por mim, teria cursado os dois, mas

meu pai proibiu-me de estudar à noite. Como o colegial era oferecido somente à noite, tive

que me contentar apenas com o magistério. Não fiquei totalmente triste com essa tomada de

decisão, pois o magistério fora a minha primeira opção. Quando concluía esse curso, meu pai

veio a falecer. Mais do que minha mãe, ele sempre fora um exemplo para mim. Gostava de

conversar comigo sobre tudo e sempre me incentivava a estudar. Queria ver-me formada e

trabalhando, mas não necessariamente no campo da educação. Hoje, passados uns bons

anos, percebo quão valiosos foram, e ainda são, os conselhos que dele recebi.

Com a morte de meu pai, tive que começar a trabalhar. Como não havia na cidade

muitas escolas de educação infantil – a grande maioria era mantida pelo poder público

municipal –, comecei a trabalhar em um escritório de contabilidade, pertencente a um amigo

de meu pai – campo profissional muito distinto daquele para o qual havia estudado e me

preparado. Trabalhei nesse escritório por cinco anos. Não desgostava propriamente do

trabalho, mas preferia trabalhar com pessoas e não com papeis o tempo todo. Ao cabo desses

cinco anos, decidi abandonar minha terra natal e me aventurar por outros lugares, outras

cidades. Optei por morar na Baixada Santista. Tentei, inicialmente, encontrar colocação no

mercado de trabalho local, na área da educação – a Baixada Santista, por razões mais do que

óbvias e evidentes, possui um número de escolas de educação infantil muito mais expressivo

do que o de Cesário Lange. Mas não fui bem-sucedida. Não fui aprovada nas primeiras

entrevistas. Tentei, então, uma colocação na área em que já acumulava alguma experiência, a

contabilidade. Consegui um emprego em um escritório e, só então, mudei-me para a cidade.

Mas por pouco tempo. Três meses depois, consegui, finalmente, começar a trabalhar em uma

escola particular de educação infantil. Isso foi em 1999. Permaneci nessa escola por cinco

anos. Nesse interim, fiz o curso de Pedagogia. Em 2004, quando fui indicada para trabalhar

nesta instituição, eu já era pedagoga. Aqui estou até hoje3.

3 Entrevista realizada em 25 de maio de 2015.

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Atualmente, faço um curso de pós-graduação, lato sensu, em neuropsicologia. A

escolha por esse curso deveu-se ao fato de termos na instituição onde trabalho alguns casos

de crianças portadoras de necessidades especiais. Agora é lei. Todas as instituições de ensino

devem acolher crianças e adultos portadores de necessidades especiais. Ocorre que, para que

essas crianças possam ser incluídas, o professor precisa saber trabalhar com elas. Eu não

sabia, por isso fui em busca de capacitação. Eu precisava melhorar o meu desempenho em

sala de aula e fazer com que as crianças portadoras de necessidades especiais fossem, de fato,

incluídas; ou seja, pudessem aprender, serem educadas, ensinadas. Para isso, o professor

precisa respeitar as limitações e os ritmos apresentados por essas crianças, precisa definir

estratégias específicas para cada tipo de necessidade identificada, possibilitando, assim, o

aprendizado dessas crianças e, consequentemente, a inclusão social de cada uma delas. Em

síntese, é preciso conhecer cada síndrome, para aprender a trabalhar com todas elas,

inclusive com os pais de cada uma delas, orientando-os na condução da educação dos seus

filhos no seio da família. É por isso que o magistério pode fazer-se uma prática estimulante e

apaixonante. Em sala de aula, um dia nunca é semelhante ao outro, uma criança nunca é

igual a outra. É preciso querer e saber enfrentar os desafios do cotidiano das práticas

escolares. É preciso reconhecer e aprender a lidar com sujeitos plurais. Por isso você aprende

muito, seja como ser humano, seja como profissional. Trabalhar com crianças plurais é

sempre muito enriquecedor.

Atuo em uma área para a qual penso ter sempre tido vocação. Acho que nasci com o

dom de educar. Um dom que se manifestou e se definiu bem cedo. Tudo começou a acontecer

quando eu ainda era criança. Sempre gostei de brincar de escolinha. Apesar de ter uma lousa,

escrevia em todos os lugares, inclusive nas paredes. Lembro-me que quando eu cursava a

quarta série do primeiro grau, recebia em minha casa um grupo de amigas para brincarmos

de escolinha. Eu era sempre a professora. Passava lição na lousa, aplicava provas etc. Era

uma brincadeira levada a sério. Nas aulas, minhas coleguinhas revisavam o que estavam

aprendendo na escola. Nas provas, elas evidenciavam que estavam aprendendo, e eu, com

elas. Essa experiência durou um bom tempo. De repente, parei de brincar porque a

brincadeira já não mais me satisfazia. A gente cresce e, de repente, as brincadeiras de criança

começam a cansar e a não mais fazer sentido.

No Magistério, os estágios que fiz em diferentes instituições de educação infantil

foram evidenciando que as crianças gostavam do jeito como eu me relacionava com elas. Eu

era – e ainda sou – muito curiosa. Sempre que surgia uma oportunidade para estagiar em

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escolas diferentes, como as rurais, eu sempre aproveitava. Queria saber como é que era. E

assim foi e é até hoje.

Sempre busco atualizar-me, estudando, fazendo cursos. Mas, com a seguinte clareza:

na prática, a teoria é outra. Quero com isso dizer o seguinte: nenhuma teoria pode ser

aplicada mecanicamente, ou seja, desconsiderando-se as singularidades das crianças com as

quais interagimos diariamente e por horas a fio. É preciso observar, inquirir, investigar os

comportamentos evidenciados por diferentes crianças em diferentes contextos, para que cada

uma delas possa ser cativada e, assim, poder participar das atividades escolares, cujo objetivo

principal é desenvolver habilidades e competências, dentre elas aquelas voltadas para a

formação de seres sociais capazes de viver em sociedade. Não há como generalizar, fazer uso

de padrões, porque cada criança é diferente das demais. Cada qual tem a sua história de vida.

É preciso aprender a trabalhar com as diferenças. A teoria deve funcionar como uma espécie

de norte das práticas pedagógicas. Cabe ao professor, entretanto, recorrer a outras

ferramentas, para que a criança possa estar com ele, ou seja, estar no centro das atividades

desenvolvidas em sala de aula. Ele tem que atrair a atenção da criança. Em última instância, é

a criança que diz ao professor o que é preciso fazer. É preciso ter sensibilidade, tato para

conquistar a criança.

Não foi simples, nem fácil, perceber que a teoria, na prática, é outra. Foi um processo

lento e contraditório, caracterizado por tentativas, erros e acertos. É preciso estar no controle

da situação e, para isso, o professor precisa gostar do que faz, observar e experimentar, mas,

acima de tudo, precisa aprender a ser humilde, a reconhecer e a querer superar suas próprias

limitações. Ele pode, por exemplo, observar o comportamento da mãe na relação com o filho.

Ao assim proceder, poderá compreender o porquê de certos comportamentos da criança.

Assumi salas de aula bastante problemáticas, mas sempre aprendi com elas. Atuo na área há

mais de quinze anos. A geração com a qual trabalhamos não é idêntica àquelas que a

precederam, nem será idêntica àquelas que as sucederão. É preciso estar sempre atento às

diferenças. Quando lançamos um olhar para o nosso passado, percebemos claramente o

quanto crescemos e amadurecemos.

Tudo o que eu sonhei e busquei na vida eu consegui. Claro que muitos desejos ficaram

para trás. Mas, no que diz respeito ao básico, digamos assim, eu consegui. Sou muito exigente

comigo mesma. Cobro-me sempre, às vezes até de forma muito exagerada, pois nem tudo, ou

melhor, quase nada depende exclusivamente de nós. Eu sei disso, mas continuo a me cobrar,

sempre querendo me superar. Quero aprender muito mais. Penso em fazer, por exemplo,

pós-graduação stricto sensu.

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É assim que eu me vejo como profissional da área.

Ser professor é tudo

Eu sou Alice e tenho vinte e nove anos de idade. Atuo como educadora da infância

antes mesmo de começar a cursar o Magistério. Isso foi há treze anos4. Foi assim: eu acabara

de concluir o terceiro ano do ensino médio – o antigo colegial –, quando tive que decidir que

caminho profissional tomar. Minha mãe foi quem mais me incentivou a ingressar em um

curso de formação de professores, na época, denominado de Curso de Magistério. Isto

porque, desde criança, eu gostava de imitar os meus professores. Em casa, eu tinha um

quarto usado exclusivamente para a realização das tarefas escolares, guarnecido,

basicamente, de uma escrivaninha e dos materiais escolares então utilizados: papel, lápis,

caneta, borracha e régua, dentre inúmeros outros apetrechos. Nesse espaço, eu imitava os

meus professores. Em cenários imaginários, como os de uma sala de aula, eu batia com a

régua na mesa, repreendia alunos igualmente imaginários, colocava-os de castigo, além de,

evidentemente, passar e corrigir lições. Adorava representar e reproduzir, naquela minha

escola imaginária, o que eu vivia e experimentava na escola que eu frequentava.

Minha mãe incentivou-me de tal maneira a ingressar em um curso de Magistério que

chegou a se inscrever comigo para participar do processo seletivo de um deles.

Evidentemente, ela assim procedeu apenas para me incentivar, pois fez questão de errar

propositadamente o maior número possível de questões para não ser aprovada.

Um mês antes de começar o curso de Magistério, comecei a trabalhar em uma

instituição particular voltada à educação infantil. Assumi uma sala de primeiro do maternal,

constituída por apenas três crianças de dois anos de idade. Foi uma experiência e tanto,

porque eu não sabia fazer absolutamente nada. Não sabia o que era um semanário, nem

mesmo trocar fraudas. Tive que aprender sozinha. Foi assim, aprendendo com os próprios

erros, que eu comecei a me apaixonar pela profissão.

Terminado o Magistério, comecei a fazer o curso de Pedagogia. Nesse curso, uma das

atividades obrigatórias era o estágio. Como eu já havia abandonado o meu primeiro emprego,

comecei a estagiar em outra escola particular. Nessa escola, aprendi muito. Acabei assumindo

a classe regida pela professora com a qual eu estagiava, que, vítima de um aneurisma, viera a

falecer. Não permaneci por muito tempo nessa escola, pois, além de ser muito mal

remunerada, não era registrada. Fui, então, trabalhar em uma escola conveniada com a

4 Entrevista realizada em 13 de maio de 2015.

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Prefeitura, que oferecia registro em carteira de trabalho. Saí dessa escola para vir trabalhar

nesta, que acolhe e abriga crianças carentes e em situação de risco.

Cheguei a esta instituição para acompanhar e cuidar de uma única criança, durante

todo o dia – eu entrava às sete horas da manhã e saía às dezessete horas. O cuidar dessa

única criança foi-me dado, porque ela apresentava inúmeros problemas de comportamento,

como recursar-se a ficar em sala de aula e a realizar as atividades com as demais crianças.

Isso, ao longo do primeiro ano da minha estada aqui. No ano seguinte, a criança foi-se

embora e eu fui convidada a atuar na instituição como monitora, auxiliando as professoras no

período da manhã e, à tarde, realizando atividades recreativas com as crianças.

Hoje, tenho dupla jornada de trabalho: estou aqui todas as manhãs, regendo uma sala

de jardim da infância; e, no período da tarde, em uma escola particular. Dois universos

bastante distintos. É cansativo, estressante, pois a educação que os pais não conseguem dar a

seus filhos em suas casas, eles cobram da escola. Isso, de um lado. De outro, temos de lidar

com problemas de relacionamento com colegas de trabalho, que também ocorrem em

ambientes empresariais. Via de regra, são picuinhas, mas que resultam em desgastes

desnecessários. Lidar com crianças é relativamente fácil; com adultos, nem sempre. Por isso,

é preciso gostar muito do que aqui se faz. É preciso amar. Doar-se. Vivemos neste universo de

segunda a segunda, sempre prensando no que fazer no dia seguinte para cativar a criança,

para que o nosso trabalho não caia em rotinas estafantes e insuportáveis para a criança.

Duas professoras serviram, particularmente, de exemplo para mim: uma da primeira

e outra da quarta série do ensino de primeiro grau – iniciei minha trajetória escolar quando

ainda vigia a Lei 5.692, promulgada e publicada em 1971; mas, logo em seguida, começou a

viger a Lei 9.394, promulgada e publicada em 1996, que redefiniu as diretrizes da educação

no Brasil e, consequentemente, o redesenho dos sistemas de ensino no país. Essas duas

professoras eram muito carinhosas. Esse carinho que elas dispensavam aos seus alunos era o

que me motivava. Eu ia à escola por causa delas, por causa da forma carinhosa e atenciosa

como eu era tratada. Sempre receptivas, jamais grosseiras. Aprendi a ser carinhosa com essas

duas professoras. Na educação infantil, as crianças não sabem, ainda, diferenciar o certo do

errado. É preciso saber “brigar” com a criança, caso contrário não aprenderão a discernir o

certo do errado. Mas, depois, é preciso “passar a mão”, conversar com a criança e dizer a ela

por que ela foi repreendida.

Minha mãe, entretanto, foi e ainda é a minha grande inspiração na minha trajetória

de vida como educadora, professora. Não fosse ela, hoje eu talvez não estivesse aqui. Fiz o

Magistério por ela. Outras pessoas – professoras, diretores, donas de escola – eu conheci

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nessa minha trajetória e muitas delas deixaram marcas positivas indeléveis no meu modo de

ser e pensar. Algumas, porém, eu gostaria de esquecer, se isso fosse possível. Lembro-me,

com muita clareza, o quanto aprendi com uma colega, hoje casada e residindo nos Estados

Unidos da América do Norte. Eu era ainda iniciante e muito inexperiente. Não sabia

absolutamente nada sobre a minha profissão. Recorria, então, a essa colega. Eu levava meus

alunos à sala dela, pois não tinha a menor noção do que fazer com eles. Ela, pacientemente,

ensinava-me a profissão. Foi com ela que eu aprendi a fazer máscaras de carnaval. Foi

também com ela que eu conheci e aprendi a usar certos materiais, como a tinta em alto

relevo, por exemplo. Trabalhei em uma escola cuja dona e diretora, Dona Ana, muito me

ensinou sobre o ofício. Já em outra, a negligência da dona, chamada Edna, era a marca

distintiva da escola. Ela era Conselheira Tutelar e, por essa e outras razões, abandonava a

escola nas mãos de um sobrinho, não conhecedor do ofício.

Trabalhar em duas escolas tão diferentes, como é o meu caso no presente momento,

acaba sendo bastante positivo, pois a experiência adquirida em uma pode favorecer o

trabalho realizado na outra. Explico-me. Na escola particular, trabalhamos com projetos. O

que são esses projetos? São atividades programadas para serem realizadas ao longo de um

bimestre sobre determinado tema, como, por exemplo, a água e o circo. As atividades são

encerradas ao final do bimestre com uma exposição dos trabalhos realizados pelas crianças,

dirigida aos pais e demais interessados. A dinâmica é a seguinte: ao longo daquele bimestre, o

tema escolhido é trabalhado diariamente em salas ambientes – sala de leitura, de DVD, de

música e parque – com duração de meia hora cada uma delas, exceção feita à primeira, de

duração de uma hora, na qual atividades de prontidão são focalizadas. Além da exposição

final, um trabalho, mais elaborado, é também realizado; mas, para isso, solicitamos ajuda

financeira aos pais.

Essa experiência em educar por projetos, muito presente no cotidiano de escolas

particulares, pode ser, de certa forma, incorporada ao trabalho que realizamos em escolas

conveniadas. Há que se considerar, naturalmente, as condições objetivas de trabalho

ofertadas por esse tipo de instituição escolar – nem todas, ou quase nenhuma, possui, por

exemplo, salas ambientes. O fio condutor do educar por projetos pode orientar, entretanto, o

trabalho pedagógico em instituições conveniadas.

Apesar dos momentos em que a vontade de “jogar tudo para o alto” é muito forte – de

não querer mais trabalhar com crianças, de “calçar um sapato de salto alto” e ir trabalhar em

empresas –, eu adoro o meu trabalho. Quero continuar a aprender, sempre. Quero fazer

cursos de pós-graduação lato sensu, especialmente aqueles que focalizam práticas de

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alfabetização. Quero estar preparada para enfrentar os desafios postos pela prática

pedagógica, assim como para poder sair-me bem em concursos públicos – até agora, não

tenho sido bem-sucedida nos concursos dos quais participei; sempre ponho o “x” no lugar

errado. Quero, acima de tudo, continuar a trabalhar com educação infantil. Não quero ser

gestora, nem dona de escola. Quero estar em sala de aula, sempre em contato com as

crianças. Quero ver e estar em contato com as crianças todos os dias. Quero ter e retribuir o

carinho delas, assim como o reconhecimento dos seus pais. Eu amo ser o que sou. Ser

professor é tudo. É ser pai, mãe, avô, avó, tio, tia, amigo, amiga, companheiro, companheira,

psicólogo e, também, professor. É ensinar a discernir o certo do errado. é ser um espelho, um

modelo exemplar para a criança. É preciso ter nascido com o dom para ser educador. Ser só

professor, transmissor de conhecimento, não basta. Qualquer um pode ser ou representar o

papel de professor. Mas apenas aquele que nasceu com o dom para ser professor é que fará a

diferença.

Tudo o que sei, aprendi na prática

Eu em chamo Isis. Quando pequena, brincava de professor: falava sozinha, tinha

alunos imaginários, escrevia na porta da cozinha da casa da minha mãe, coisas assim. Penso

que a ideia e a vontade de ser professora veio daí.

Quando eu concluí a oitava série do ensino de primeiro grau, escolhi fazer o curso de

Magistério em uma famosa instituição escolar da cidade onde eu morava. Era um curso

oferecido em horário integral. Pode ter parecido pesado, mas não foi. Adorei fazer. Tinha

teatro, uma loucura! Todo mundo junto no auditório da escola. Isso foi em 1997.

No curso de Magistério, havia uma professora de Matemática, chamada Roseli, que

ensinava de um modo muito divertido. As aulas dela eram 10! Havia uma outra, professora

de Química, chamada Rosa Maria, com quem eu muito aprendi. Essas professoras foram

exemplos para mim. Exemplos de bons professores. Não tenho dúvidas que devo à professora

Rosa Maria o meu bom aprendizado em Química, porém, há um detalhe que eu considero

digno de nota: a partir do segundo ano do curso, o meu aproveitamento, não apenas em

Química, mas também nas demais disciplinas e atividades do curso começou a melhorar

sensivelmente. Coincidência ou não, o fato é que eu engravidei nesse período. Com a

gravidez, comecei a ficar mais inteligente, como eu gosto de brincar. Sou muito brincalhona.

Eu tenho, hoje, 34 anos. Minha filha, já completou 16. Fui mãe, portanto, muito jovem.

Quando minha filha nasceu, pensei que teria que abandonar os estudos. Fui morar com o pai

da minha filha. Ele e os meus pais ajudaram-me muito. Não tivessem sido eles, hoje eu não

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estaria aqui. A inteligência do aluno conta, sim, bem como a competência e as habilidades do

professor. Mas isso não é tudo. Há que se considerar, também, as condições objetivas de vida

daqueles que trabalham e estudam. Sem o incentivo e o amparo familiar que eu tive, não teria

conseguido.

Concluí o Magistério no final do ano 2000. Com o diploma em mãos, comecei a

procurar emprego na área. Afinal, por que razão eu cursaria o Magistério, se não tivesse

interesse e determinação para atuar nessa área? Distribuí o meu currículo, mas nada surgiu.

Comecei, então, a trabalhar em lojas, em empresas prestadoras de serviços, como as de

telemarketing. Mas sempre com a sensação de não estar atuando no lugar certo. Sentia-me

como um peixe fora d’água. Permaneci nesse ramo por sete anos. Estava prestes a desistir de

ingressar no Magistério, quando uma escolinha, na qual eu havia deixado uma cópia do meu

currículo, entrou em contato por telefone, chamando-me para uma entrevista. Fui correndo.

Depois da entrevista, fui convidada a trabalhar naquela instituição. Aceitei, claro! Foi o meu

primeiro emprego na área. Fiquei feliz da vida!

A escolinha em questão funcionava em uma casa adaptada e pertencia a um casal de

evangélicos que me recebeu muito bem e me apoiou muito, pois eu não tinha nenhuma

experiência. Tudo o que eu sei, eu aprendi com eles: com os donos da escola e com as minhas

colegas. Eu não sabia, por exemplo, o que era um semanário. Foi com eles que eu aprendi. Ao

todo, éramos seis profissionais: três meninas cuidavam do berçário, uma do maternal, outra

do jardim e outra da pré-escola. Havia uma menina, chamada Mariana, que era um exemplo

de profissional. A postura dela, como professora, era o que mais chamava a atenção. Ela era

muito generosa: passava todas as “novidades” paras a colegas, sem nada pedir em troca. Até

hoje mantemo-nos em contato. Ela trabalha como professora concursada em um município

próximo ao nosso. Permaneci nessa escola por quase três anos. Saí de lá, porque a instituição,

localizada na periferia, passava por sérias dificuldades financeiras e encerrou suas atividades.

Arrumei emprego em uma segunda escola de educação infantil, mas, nessa,

permaneci apenas alguns meses, pois não gostei de nada. Voltei a distribuir o meu currículo e

um deles foi deixado aqui, nesta instituição. Eu tinha uma amiga que trabalhava aqui e foi

por intermédio dela que eu fui chamada para uma entrevista. Fui aprovada e comecei a

trabalhar. Adoro trabalhar aqui. Não me vejo fora daqui. Esta é a melhor escola de educação

infantil do mundo! Se um dia eu tiver que sair daqui, sentirei muita falta. Estou há cinco anos

na instituição. Vim para cá em 20105.

5 Entrevista realizada no dia 27 de maio de 2015.

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Eu gosto de criança, de trabalhar com criança. Não sei muito bem lidar com as mães

delas, mas elas percebem que eu dou carinho aos filhos delas. Os filhos falam sobre o que

fazem na escola e, assim, os pais ficam sabendo como trabalhamos com os filhos deles nesta

escola.

Para a escolha da profissão, não considero ter sido influenciada por ninguém, nem

mesmo por aquelas professoras que foram professores exemplares, e não apenas para mim.

Nem mesmo minha mãe, que muito me incentivou a estudar, embora fosse analfabeta e só

soubesse desenhar o próprio nome, exerceu qualquer tipo de influência sobre a decisão

pessoal de me fazer professora. Penso ter sido a vida e as oportunidades que ela nos oferece.

Sinto orgulho, muito orgulho de ser professora. É muito gratificante ouvir dos alunos

que o que eles aprenderam foi a “tia” Isis. Eu me realizo, como profissional e como pessoa,

quando consigo transmitir o que eu sei para uma criança.

Sei que sei, mas gostaria de aprender muito mais. Gostaria de fazer um curso de

Pedagogia. Tentei em 2008, mas, com a chegada de um segundo filho, o trabalho doméstico

foi aumentando: jantar para fazer, roupa para lavar e passar, além de inúmeros outros

encargos e demandas. Esse meu filho já está com nove anos. Talvez agora eu consiga cursar

Pedagogia. Um curso à distância, provavelmente. De qualquer forma, não me vejo em outro

lugar. O meu lugar é aqui, na escola.

Ser professor é mágico! É um aprendizado constante

Meu nome é Bruna. Sou neta de pescadores que adoravam mergulhar. Atribuo à

minha ascendência o gosto pelo mar e pelas coisas do mar: sol, praia, mas também balada.

Adoro curtir a vida. Meu sonho era ter-me feito bióloga marinha, mas isso não foi possível. A

vida tinha outros planos para mim. Tive três filhos de pais diferentes: duas meninas e um

menino. A mais velha nasceu quando eu tinha dezoito anos de idade, a mesma idade que ela

tem hoje6 – eu cursava, então, o último ano do Magistério. O menino tem sete anos e, a mais

nova, três. Não me casei, mas pude contar com o apoio incondicional dos meus pais. Tenho

um irmão que, diferentemente de mim, fez tudo certo e na hora certa: estudou – fez

Propaganda e Marketing –, trabalhou, adquiriu casa própria e só depois constituiu família –

foi pai há pouquíssimo tempo. Sou o reverso do que ele foi. Meu pai sofreu muito comigo.

Certa feita, ele quis me fazer uma surpresa: havia pago um curso de mergulho para mim – eu

era o xodó dele. Não sabia, entretanto, que eu estava grávida novamente. Conseguiu

6 A entrevista foi realizada no dia 27 de maio de 2015.

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recuperar apenas a metade do dinheiro que havia investido no curso. Ficou muito chateado,

não apenas com a perda do dinheiro, mas, principalmente, com o fato de eu ter aprontado

novamente.

Comecei o curso de Magistério, mais por causa de minha mãe. Ela estudou até a

quarta série do curso primário. É uma grande guerreira. Ela e o meu pai batalharam muito

para que a família tivesse uma casa e condições razoáveis de vida. Minha mãe nunca

trabalhou fora de casa. Cuidava dos filhos, do marido e da casa. Meu pai estudou apenas até a

sexta série do primeiro grau, mas faz cálculos mentais perfeitos. Ele chegava em casa sempre

muito tarde, pois trabalhava no Cais do Porto. Minha mãe esperava por ele, lendo os nossos

livros didáticos. No dia seguinte, ela nos ensinava a fazer as tarefas escolares – meu irmão e

eu estávamos na sexta ou sétima série do primeiro grau. Minha mãe foi nossa professora.

Hoje, eu sei que deveria ter ouvido mais os conselhos que ela me dava.

Com dezoito anos de idade eu engravidei e parei com os estudos. Como eu não tive

nenhuma ajuda financeira do pai da minha primeira filha, meus pais assumiram tudo. O

dinheiro que eles me davam era para ela, não para mim. Eles se ofereceram para cuidar da

minha filha, para que eu pudesse retomar os estudos, mas eu não aceitei. Achava que eu

deveria cuidar da minha filha, dar-lhe carinho, já que o pai dela era e sempre seria ausente.

Ter sido mãe jovem demais, e nas condições em que eu fui, fez com que eu tivesse que

interromper os meus estudos. Não me graduei em nenhum curso de nível superior.

Comecei a trabalhar nesta instituição, graças à força de vontade e determinação de

minha mãe. Meu filho do meio tem, hoje, sete anos. Quando eu aqui ingressei, ele estava com

um ano e alguns meses. Trabalho aqui, portanto, há quase seis anos. Gosto daqui, embora eu

nunca tenha trabalhado em outra escola de educação infantil. Tudo começou assim: certo dia,

eu estava na praia me bronzeando, quando uma amiga me telefonou para dizer que ela havia

arrumado uma entrevista de trabalho para mim, naquele mesmo dia. Disse a ela que não

seria possível, pois estava muito ocupada. Não disse a ela que eu estava na praia. Logo em

seguida, foi a vez de minha mãe me telefonar. Ela soube da entrevista e da maneira como

reagi àquele convite inusitado, pela amiga que me havia telefonado antes. Perguntei a ela do

que se tratava e ela me disse que seria para trabalhar em uma escola de educação infantil.

Quis resistir ao convite, alegando ser tarde – por volta de duas horas da tarde – e estar muito

bronzeada para comparecer à tal entrevista. Ela ficou muito brava e exigiu que eu fosse à

entrevista de qualquer maneira. Fui.

Cheguei para a entrevista morrendo de medo. Nunca havia trabalhado em um

“escolinha”. Havia trabalhado apenas em um consultório dentário. Éramos apenas dois: o

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dentista e eu. A tal “escolinha” era enorme e havia muita gente trabalhando nela. Eu estava

sozinha, apavorada e me sentindo desamparada. A diretora, percebendo o meu estado de

ânimo, tratou-me muito bem. Como ela já conhecia o meu currículo, disse-me que eu já

estava contratada e que tinha certeza que eu me daria muito bem na escola. De fato, foi o que

aconteceu. Com a ajuda de Deus, o apoio da diretora e as orientações de algumas colegas,

tudo foi se encaixando. Como as demais colegas, comecei a trabalhar como monitora. Fiquei

nessa função por três anos. Hoje, sou professora.

O início dessa minha experiência foi muito hilário. Eu já era mãe, mas morria de

medo de cuidar de crianças pequenas. Fui designada para trabalhar no berçário. De repente,

uma criança começou a chorar; depois, outra; depois, mais outra e assim por diante. Então,

eu me sentei e comecei a chorar junto com as crianças. A diretora, que passava pela porta da

sala, perguntou o que acontecia. Uma vez ciente do ocorrido, propôs-me experimentar

trabalhar na sala ao lado, onde ficavam as crianças com três e quatro anos de idade – na

época, o Infantil I. Por um ano, fui a responsável pelo banho das crianças do Infantil I –

trabalho reservado às monitoras ingressantes – e, depois, passei a ser responsável apenas

pela recreação deles. Adorei! Eu brincava bastante com as crianças, agia como elas. Depois de

três anos passei a assumir sala de aula, como professora. A professora tem mais

responsabilidade, tem que ter outra postura com as crianças. É preciso se preocupar com o

jeito de falar, pois as crianças tendem a imitar os adultos.

Penso que o fato de eu ter sido mãe precocemente ajudou-me muito a ser professora.

Eu sempre quis dar o melhor para os meus filhos. Eu acho bonito, por exemplo, quando o

meu filho do meio diz querer ser professor, por achar legal ver a mãe dele, em casa,

preparando atividades para os alunos dela no dia seguinte. Ele também gostaria de fazer isso.

Quer ser pedagogo como a mãe. Fico muito orgulhosa disso. Minha filha também afirma

pender para a docência. Estudou balé por nove anos e, agora, diz querer ser professora de

balé. Mas está muito indecisa entre fazer Pedagogia, Biologia Marinha e Educação Física.

Estranhamente, ela também gostaria de seguir a carreira militar, no Exército, muito embora

essa Arma Nacional admita apenas homens em suas fileiras. Suas duas primeiras opções tem

muito que ver comigo e com os meus sonhos de fazer Biologia Marinha, na adolescência, e,

agora, Pedagogia. Educação Física, por sua vez, é uma disciplina voltada para o corpo, o que é

compreensível, posto ter ela estudado balé por nove anos. O único ponto fora da curva é esse

desejo dela de ingressar no Exército.

Para mim, ser professor é um aprendizado. Gosto de ser professora. Sinto muito

orgulho do que faço. Ser professor é mágico! Aprendo muito fazendo o que faço. No colegial,

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uma professora de Matemática, chamada Margarete, foi muito especial para mim. Ela me

olhava de um jeito carinhoso e incentivador, quando eu dizia a ela que gostaria de ser

professora, mas igualzinha a ela. Margarete foi a única professora que marcou, de fato, a

minha trajetória escolar.

Meu campo de atuação é na escola e em minha própria casa. Faço uso de tudo o que

eu aprendo aqui, na educação dos meus filhos. E vice-versa. Se eu sei ensinar em casa,

saberei ensinar na escola. É uma troca, uma transferência de saberes adquiridos por meio da

própria experiência, da vivência pessoal e profissional. É assim que eu vejo as coisas. O

ensino, hoje em dia, é muito precário. Meus filhos estudaram e ainda estudam em escolas

mantidas pela Prefeitura. O meu filho do meio, por exemplo, está há duas semanas sem aula.

Eu passo tarefas para ele: leitura de livros e cálculos, por exemplo. Assim, ele vai aprendendo

e, quando os professores retornarem às aulas, não estará tão perdido. Eu também me

comporto assim com a minha filha mais velha. Por isso, posso afirmar que aprendi a ensinar

com os meus filhos e, também, com minha mãe, que agia conosco do mesmo modo como ajo

com os meus filhos. Meu irmão, por exemplo, odiava fazer resumos. Minha mãe dizia-lhe que

também nunca havia feito, mas que poderia ajudá-lo a fazer. Pesquisava, estudava e, depois

de um tempo, dizia-lhe que já havia compreendido o que deveria ser feito e orientava-o na

execução da tarefa. Quase sempre ele obtinha boas notas. Ficava todo orgulhoso e dizia que

havia aprendido com a mãe dele a fazer o que era solicitado pelos professores. Quando

tínhamos dificuldades na execução das tarefas escolares, nossa mãe pegava os nossos livros

de História, Geografia, Matemática e das demais matérias escolares e dizia: – “Meu Deus! O

que é isto?”. Mas nunca desanimava. Lia, pesquisava nos dicionários e relia o que os livros

traziam até ter clareza sobre o que era solicitado pelos professores. Em seguida, sentava

conosco e explicava-nos o que e como deveria ser feito. Assim aprendíamos. Não foi no curso

de Magistério, portanto, que eu aprendi a ensinar. Foi com minha mãe e na prática cotidiana

do ensinar em casa e na escola – com os meus filhos e com os meus colegas de trabalho.

Minha permanência no magistério é, por enquanto, bastante incerta. Já nos disseram

que, a partir de 2016, não mais poderemos continuar a trabalhar na instituição, sem o curso

de Pedagogia. No momento, não tenho como arcar com os custos de um curso de Pedagogia.

Se eu for demitida, não saberei o que fazer. Se eu pudesse, faria de tudo para pagar um curso

de Pedagogia para a minha filha. Seria bom para o futuro dela. Quanto mais estudo, mais

portas poderão se abrir. Mas eu não posso. Além de precisar, por imposição legal, eu também

gostaria de fazer um curso de Pedagogia, mas, sem recursos financeiros, como?

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Considerações Finais

Como nos fazemos professor, educador, ou profissional de qualquer outro ofício? Que

papel a formação profissional inicial, quando existente, desempenha nas práticas cotidianas

dos trabalhadores? Quando inexistente, que lógica orienta tais práticas? É em Edward

Palmer Thompson (2002) que nos apoiamos para compreender, dimensionar e interrogar os

processos de formação do ser social, tanto aqueles que enfatizam a valorização da experiência

educada (da cultura letrada, refinada), quanto os que se estruturam a partir da experiência

herdada (da cultura provinda da experiência, da “escola” da vida, quase sempre associada aos

“pobres” e vista como subordinada), sem perder de vista a historicidade do social.

Não queremos, com este nosso trabalho de investigação sobre as percepções que as

professoras da educação infantil têm de si e do trabalho que realizam, reforçar a tese segundo

a qual as relações entre experiência educada e experiência herdada seja um movimento de

mão única. Nem a experiência educada se impõe sobre a herdada, nem esta sobre aquela. A

considerar as evidências presentes nas falas das professoras que entrevistamos, há, entre

uma e outra, um movimento de mão dupla.

Por mais que os sujeitos desta nossa investigação menosprezem ou atribuam pouco

peso àquilo que aprenderam no curso de Magistério, é evidente e bastante significativo tal

peso, não em todas as histórias de vida que foram aqui narradas, mas, em pelo menos, duas

delas. Isso está evidente, por exemplo, na fala de Sofia, para quem “a teoria, na prática, é

outra”. Tal visão estereotipada e equivocada da relação entre teoria e prática (pragmática e

utilitária) não pode ser atribuída apenas ao sincretismo que caracteriza o senso comum dos

professores. Sofia evidencia ter conhecimento das teorias a que se refere. Evidencia, ainda,

ter aprendido ser na prática concreta do dia a dia que tais teorias precisam ser testadas

(incorporadas, reformuladas ou negadas). Ainda que tal conhecimento não tenha sido

aprendido por ela no âmbito das práticas escolares de uma instituição singular e particular –

o lugar onde obtive o diploma, o certificado, a habilitação para o exercício do magistério –,

sua origem é escolar (experiência educada). Mas, o ter conhecimento (das teorias

pedagógicas, no caso), aqui, não é questão central, mas periférica. A questão central,

consoante estudos realizados recentemente (CANÁRIO, 2017; NÓVOA, 1998;

FORMOSINHO, 2001), parece estar nas habilidades e competências desenvolvidas por Sofia

para identificar e equacionar os problemas que enfrenta no seu cotidiano escolar (experiência

educada). Algo que Sofia demonstra claramente ter. A prontidão evidenciada por algumas

das professoras entrevistadas no enfrentamento de problemas postos pela prática pedagógica

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no cotidiano escolar, associada à passividade e à resignação de outras, pode estar indicando

que as finalidades dos cursos de formação de professores precisam ser redefinidas. Afinal, o

que os cursos de formação de professores priorizam hoje em dia? O desenvolvimento de

competências e habilidades para o enfrentamento criativo de problemas postos pelo

cotidiano escolar ou a memorização de certos conteúdos disciplinares de valor duvidoso? Que

profissionais tais escolas estão formando?

Outra evidência a ser considerada nestas nossas reflexões finais diz respeito à própria

percepção que os sujeitos têm de si e dos outros. As professoras entrevistadas, com

raríssimas exceções7, não se percebem como produto de relações sociais concretas. Quando

muito, identificam algumas determinações vividas, mas atribuem a elas explicações muitas

vezes pouco racionais, tais como sorte, azar, destino e mérito, entre outras. A ambiência

cultural é sempre lembrada (escolaridade dos pais, situação financeira, estrutura familiar,

associação de estudo com trabalho etc.), mas raramente considerada (sentida) como fator

determinante na trajetória de vida de cada uma delas. O trabalho, como categoria

estruturante do ser social, raramente é considerado8. Ser professor é ter vocação para atuar

no magistério, é ter nascido com esse dom. Mas, contraditoriamente, afirmam ter aprendido

o ofício com alguém – geralmente a mãe, algum professor que marcou sua trajetória escolar

ou, então, alguma colega de trabalho. Há, aqui, uma visível distinção entre a percepção do ser

e a do fazer – nasci professora, mas aprendi a ensinar com minha mãe, com a dona da

primeira “escolinha” onde trabalhei, com colegas (a escola profissional raramente é

lembrada).

Outras questões poderiam ser aqui destacadas, mas o espaço e o tempo não são

entidades fictícias. O caminho a ser trilhado é-nos desenhado, entretanto, de forma cada vez

mais clara: revisitar heranças culturais e experiências de formação de identidades e de

subjetividades de professores como condição necessária, ainda que não suficiente (é sempre

bom lembrar), para repensarmos as políticas e as práticas de formação de professores.

7 Referimo-nos ao conjunto das professoras entrevistadas ao longo da pesquisa, e não apenas àquelas cujas histórias de vida foram aqui narradas. 8 Apenas uma entrevistada, cuja história de vida não foi aqui apresentada, evidenciou ter consciência de que o trabalho é fator determinante no processo de formação de sujeitos.

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Referências

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