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Revista Econômica, Rio de Janeiro, v 13, n 1, junho 2011 p. 58-69, Favelas e políticas públicas: comentários a uma análise comparada Brasil/Estados Unidos Fernando Cavallieri 26 * A proposta do artigo de Gary A. Dymski é de que o entendimento da estrutura e da dinâmica econômica das favelas é crucial para modelar as políticas públicas de redução de pobreza e geração de níveis mais altos de capacidade humana para todos os brasileiros. Reconhecendo que não há um modelo consensual que explique a economia da favela ou mesmo a sua inserção na economia urbana como um todo, o Autor pretende não concluir, mas iniciar o debate. A seu ver, os economistas têm dado pouca atenção às favelas, ao contrário de sociólogos, antropólogos e outros que a colocam como parte central dos estudos urbanos no Brasil. Essa ausência tem omitido a discussão sobre importantes tópicos tais como: funcionamento das favelas como espaços econômicos; diferença das relações econômicas internas das favelas com as que ocorrem em áreas mais ricas; e as conexões estruturais desses espaços com o restante da cidade. Para analisar tais tópicos, acredita o Autor, é preciso reconhecer as áreas faveladas como pequenas macroeconomias abertas, com fronteiras permeáveis, inúmeros fluxos diários de pessoas, bens e capitais. Na sua concepção, esses aspectos têm que ser vistos dentro da complexidade das relações sociais na cidade, e não por meio de uma simplificação radical de análise, na qual os economistas foram treinados. Embora esse resumo do pensamento do Autor também seja uma simplificação radical do seu rico ensaio, concordamos com sua observação de que, de modo geral, os economistas têm ficado de fora das discussões sobre as políticas públicas para as favelas. Feitas essas advertências, e tendo em vista que estão em marcha no Brasil importantes programas de redução da pobreza, coloca-se a questão fundamental enfrentada no artigo: na luta contra a pobreza, desemprego e estagnação dos pequenos negócios nas favelas, é suficiente trabalhar apenas *26*Sociólogo (IFCS/UFRJ) e Instituto Pereira Passos (IPP) da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Endereço para contato: Rua Gago Coutinho, 52, 6º. Andar, Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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- La Movilidad Urbana en las Ciudades Españolas

Favelas e políticas públicas: comentários a uma análise comparada Brasil/Estados UnidosFernando Cavallieri26*

A proposta do artigo de Gary A. Dymski é de que o entendimento da estrutura e da dinâmica econômica das favelas é crucial para modelar as políticas públicas de redução de pobreza e geração de níveis mais altos de capacidade humana para todos os brasileiros. Reconhecendo que não há um modelo consensual que explique a economia da favela ou mesmo a sua inserção na economia urbana como um todo, o Autor pretende não concluir, mas iniciar o debate. A seu ver, os economistas têm dado pouca atenção às favelas, ao contrário de sociólogos, antropólogos e outros que a colocam como parte central dos estudos urbanos no Brasil. Essa ausência tem omitido a discussão sobre importantes tópicos tais como: funcionamento das favelas como espaços econômicos; diferença das relações econômicas internas das favelas com as que ocorrem em áreas mais ricas; e as conexões estruturais desses espaços com o restante da cidade. Para analisar tais tópicos, acredita o Autor, é preciso reconhecer as áreas faveladas como pequenas macroeconomias abertas, com fronteiras permeáveis, inúmeros fluxos diários de pessoas, bens e capitais. Na sua concepção, esses aspectos têm que ser vistos dentro da complexidade das relações sociais na cidade, e não por meio de uma simplificação radical de análise, na qual os economistas foram treinados. Embora esse resumo do pensamento do Autor também seja uma simplificação radical do seu rico ensaio, concordamos com sua observação de que, de modo geral, os economistas têm ficado de fora das discussões sobre as políticas públicas para as favelas. Feitas essas advertências, e tendo em vista que estão em marcha no Brasil importantes programas de redução da pobreza, coloca-se a questão fundamental enfrentada no artigo: na luta contra a pobreza, desemprego e estagnação dos pequenos negócios nas favelas, é suficiente trabalhar apenas

*26*Sociólogo (IFCS/UFRJ) e Instituto Pereira Passos (IPP) da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Endereço para contato: Rua Gago Coutinho, 52, 6º. Andar, Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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com os programas com base em melhoria de renda, ou deve-se agir também sobre suas estruturas econômicas? Com essa maneira de formular o problema, o Autor evita o dualismo que excluiria a riqueza de possibilidades de atuações concretas na vida real. Não se trata de decidir por uma política ou por outra, mas de analisar se os programas gerais, não focados no território, são suficientes ou se precisam de complementações locais. Definição de favela – longe do consenso A análise de Dymski se desdobra em duas etapas: primeiro, constrói nove diferentes formas de se ver as favelas e, depois, descreve as políticas principais e as abordagens conceituais sobre os problemas econômicos da inner-city, (IC) norteamericana, debatidas ao longo dos últimos 50 anos. Tendo o cuidado de reconhecer a existência de diferenças estruturais entre as favelas brasileiras e as IC, sua análise produz alguns insights relevantes para iluminar as políticas públicas brasileiras para o setor. Assim, começa por descrever diversas visões existentes sobre as favelas – mais precisamente nove leituras - e termina por enunciar a sua percepção, hipotética e impressionística do fenômeno, resumida na idéia de que a favela é “uma comunidade em processo de vir a ser”. Suas últimas palavras, em tom poético e um tanto profético, expressam sua posição pró-favela, ao afirmarem que “ela não tem medo de criar; sabe que deve criar ou morrer” As nove formas de se ver a favela denotam impressionante capacidade analítica do Autor e sua acuidade em interpretar todas as possibilidades de representação, existentes no pensamento contemporâneo brasileiro, seja na vertente “científica”, seja no imaginário do senso comum. Tal esforço não é mero exercício de levantamento etnolinguístico, mas uma necessidade de, através das diferentes leituras, esclarecer os conflitantes interesses em jogo e os diferentes futuros imaginados para as pessoas e espaços hoje ocupados por favelas. Em resumo: as visões1 e 227 percebem as favelas como espaços que podem ser desenvolvidos; a visão 6 define tais assentamentos como 27 Na visão 2, estariam aqueles que vêem a favela como uma paisagem romântica de casinhas multicoloridas encravadas em pitorescas colinas, tanto melhor quanto melhor puder ser fotografada. Tal concepção de tão ingênua deve ser compartilhada por uma insignificante minoria e não parece acrescentar muito à análise do Autor.

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manifestações físicas da nossa elasticidade em enfrentar as desigualdades, um típico produto do “jeitinho” brasileiro; as visões 7 e 8 são enfoques econômicos que, enfatizam, respectivamente, as ligações estruturais com a economia urbana abrangente e o potencial empreendedor da favela; as visões 4 e 5 consideram as favelas como geradoras de situações negativas (dreno dos serviços coletivos da cidade, para o financiamento dos quais não contribuem e território fora da lei, sem respeito às ordenações urbanísticas etc.); pela ótica número 3, os favelados são ocupantes estritamente temporários; finalmente, na visão 9 se sublinha o papel cultural chave desempenhado pelas favelas. Embora o Autor, considere que a ótica da favela como lugar além da lei (visão 5) é amplificado pela transformação de favelas (sobretudo no Rio, e não de todas as favelas) em polos privilegiados das atividades dos traficantes de drogas e milícias e tudo que daí decorre, é necessário ressaltar a especificidade dessa situação que conduz a uma visão também específica. Trata-se bem mais do que perceber nas favelas situações de ilegalidade ou informalidade (que, de resto, também ocorrem em outras condições e lugares), mas de ver determinadas favelas como territórios dominados pelos criminosos, onde reina um poder paralelo ao do estado de direito e vige toda uma “legalidade” imposta, em última instância, pela força das armas e da extrema violência. Essa visão tendeu a generalizar a situação, de forma esquemática e estereotipada, em duas vertentes. Primeiro, considerando toda e qualquer favela como território dominado; segundo, supondo que todo lugar dominado é favela. Seja como for, tal representação, especialmente no Rio, até pouco tempo atrás, era hegemônica e tanto mais forte quanto mais impotente se tornava o Estado diante do poder paralelo3.28.Segundo ela, a dominação de territórios só ocorria na cidade devido à existência de inúmeras favelas, localizadas nos bairros nobres onde se localiza grande parte da demanda por drogas, com uma topografia e uma organização espacial propícia à logística criminal. Em muitas comunidades, a atuação governamental fica apática e pessimista e cresce, insuflada pela mídia conservadora, a tendência à “erradicação” das favelas, na medida em que são identificadas com o crime em si. Recentemente, a situação inverte-se, com a implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) e a “libertação” das áreas dominadas, por meio

328 Dymski, em apenas dez linhas, ao explicar a visão número (5), sintetiza, com grande perspicácia, esse processo, mostrando inclusive como o poder dito paralelo se “cruza” eficientemente com eixos do poder instituído. (pg 7, 2º §).

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de uma ocupação policial maciça. Como se verá mais adiante, revitaliza-se a atuação pública nas áreas liberadas e gera-se enorme apoio à continuidade e ampliação da política pacificadora.

* * * Feito esse acréscimo à lista do Autor, o importante é reter que as visões alicerçam diferentes políticas públicas, objeto que realmente interessa discutir. Nessa altura do texto, são elencadas, sob a forma de indagações, algumas questões fundamentais:

. A favela deve ser vista como permanente ou transitória? A favela é uma comunidade apenas em função das qualidades inerentes à condição de migrantes de sua população ou em virtude das lutas de seus residentes por direitos e reconhecimento ao longo do tempo?

. A favela é um elemento básico para a reprodução da economia urbana ou um dreno dos recursos urbanos? É um espaço econômico coerente ou uma extensão dependente da cidade como um todo? A economia urbana será mais bem servida pela abertura das áreas informais à compra pelos investidores de fora ou a terra deve ser preservada para o uso daqueles que lá vivem?

. É melhor deixar a favela alcançar espontaneamente uma situação de ordem ou é necessária mais tutela governamental? A representação e vocalização democráticas realmente são importantes, e em que níveis? São perguntas que permanecerão, pois os integrantes da sociedade civil, da mídia, da tecnocracia, da classe política, e mesmo dos moradores se dividem, quase sempre sectária e apaixonadamente, em grupos de opinião pró e contra as favelas4.29.Claro que isso denota uma falsa questão, pois não se trata de ser contra ou a favor, mas de reconhecer a existência de uma situação, ou melhor de situações de vários tipos, que englobam vários problemas que precisam ser enfrentados. E esse enfrentamento deveria ser feito pela combinação inteligente de soluções alternativas, o que dificilmente acontece, pois o Estado, normalmente, fica preso à lógica empresarial das grandes empreiteiras que só trabalham com soluções padronizadas e de grande escala e à estreita lógica política que não permite adotar uma boa alternativa, se foi concebida e executada por um adversário.

429 Sobre decisão da Prefeitura carioca de remover favela localizada em área destinada aos Jogos Olímpicos de 2016, Raquel Rolnick, brasileira, relatora especial da ONU para a moradia adequada,declarou ao jornal O Globo (4/10/11) não ver motivos técnicos para a remoção, acrescentando: “ ...Ali me parece mais uma questão econômica, de não se querer uma favela em área valorizada”. Dois dias depois, o mesmo jornal, publicava editorial defendendo o ordenamento urbano abrangente e aplaudindo a remoção.

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Lições da América: semelhanças e diferenças A análise histórica de Gary Dymski sobre as políticas públicas para as (IC) se estende desde o discurso inaugural do ano político de 1964, feito pelo Presidente Lyndon Johnson - em que foi lançado o programa “Guerra contra a Pobreza” -- até a era Obama. Em quase seis páginas, ele disseca o suceder de políticas que, ora privilegiam ações globais de combate à pobreza, ora se voltam para o desenvolvimento local dos guetos, ao sabor dos governos de republicanos e democratas e do contexto econômico geral. O Autor considera que os esforços para desenvolver e reduzir a pobreza de tais áreas têm produzido diferentes quadros para pensar sobre as dinâmicas econômicas das subáreas urbanas, sejam elas as IC americanas ou as favelas brasileiras. O ensaio, como definido em seu propósito inicial, abre o debate. Na perspectiva comparativa, quando analisa as políticas americanas, consegue ser mais afirmativo e conclusivo do que quando se volta para as brasileiras. No entanto, na exposição das soluções adotadas para as IC, ao longo de 50 anos, levanta questões quase sempre pertinentes para se pensar a situação de suas congêneres – as favelas brasileiras. Congêneres? Eis a questão: ao menos, uma delas. Até que ponto as IC podem ser tomadas como uma formação socioespacial válida para a comparação com as nossas favelas? O Autor não negligencia essa dúvida e aponta importantes diferenças históricas e estruturais. Contudo, isso não desestimula sua análise comparativa, que acaba sendo muito útil. Ao sublinhar certas diferenças, contribui para fornecer características essenciais das favelas brasileiras e sugestões importantes para o aprimoramento das políticas públicas a elas destinadas. Mas hão de me permitir, os leitores, que acrescentemos algumas outras “essencialidades” às nossas favelas. Comecemos pela categoria “favelas brasileiras” tão usada no texto. Não há novidade no que vamos dizer, mas é preciso alertar sempre para a simplificação dessa categoria. Na realidade, as favelas são tantas, tão diferentes, com peculiaridades advindas da região, do estado, ou da cidade em que se situam, da sua história, dos seus tamanhos em termos de área e população, da sua forma, do quadros político e cultural geral e particular, são tantas... que é sempre bom relativizar a generalização “favelas brasileiras”5.30.530 O programa de urbanização de favelas “Morar Carioca”, lançado em 2010, pela Prefeitura do Rio, prevê seis políticas diferentes, conforme a classificação das mesmas, em termos de situação no tecido urbano (isoladas ou em agrupadas em complexos), número de domicílios e grau de urbanização. Ver Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Morar Carioca; plano municipal de integração de assentamentos precários informais. Rio de Janeiro: julho 2010.

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Tudo indica que o Autor esteja se referindo mais às favelas, consolidadas, antigas e de porte médio ou grande. Os poucos exemplos citados são de comunidades cariocas, mas a análise se aplica a outras tantas similares, existentes nas metrópoles brasileiras. Mas se tomarmos o Rio como referência6,31,e isso faz sentido por ser a cidade brasileira que melhor expressa a diversidade do objeto favela e a importância emblemática que ele representa na sua história urbana, veremos que estamos lidando com formações socioespaciais muito diferentes entre si:

• podem abrigar desde 10 casas, ao longo de um arremedo de rua, a 40 mil habitações de variadas tipologias (casas, cômodos, apartamentos, casas de vilas etc.), com comércio, serviços públicos e privados, pequenas oficinas, enfim um bairro, em toda sua complexidade;

• podem ser pequenos núcleos surgidos recentemente, com construções muito precárias, sem serviços e urbanização, correndo o risco de serem removidas por ação dos proprietários originais ou assentamentos centenários, com três ou quatro gerações de nascidos no local, sem viabilidade política de que seus terrenos sejam retomados;

• podem estar implantadas no tecido urbano da cidade como pequenas unidades isoladas ou como complexos que reúnem várias “comunidades”, cada uma com certa identidade, embora completamente conurbadas;

• independente do tamanho da área ocupada, podem se implantar em encostas íngremes, suaves, mistas, em planícies estáveis ou inundáveis, de forma linear ao longo de rios, em palafitas sobre cursos dágua, em áreas de risco geotécnico, como ilhas dentro de áreas totalmente urbanizadas, no interior de matas e florestas etc. Destaque-se também que as diferenças intrafavela, sobretudo nas maiores, não são desprezíveis. Com efeito, tanto é difícil refletir sobre o tema com base na generalização “as favelas brasileiras”, como usar uma expressão, muitas vezes reducionista, como “a favela”. Voltando à análise do processo norteamericano empreendida pelo Autor, nota-se que algumas das suas considerações são muito úteis para se pensar o processo brasileiro. No que diz respeito à sustentabilidade dos programas públicos, tanto lá como aqui, dada a semelhança das nossas estruturas políticas, poucas mudanças no plano geral podem alterar

631 Como venho há cerca de 30 anos trabalhando com o tema na Prefeitura do Rio, além de razões teórico-empíricas, a escolha da cidade, com um quinto de sua população morando em favelas, como referência facilita muito a tarefa.

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amplamente o curso dos programas de cunho social. Analogamente, tensões e retaliações entre governos locais e central podem minar iniciativas federais, se a concorrência política entre as lideranças dos dois níveis se acirrar a tal ponto. Ao mesmo tempo, a atuação governamental de cima para baixo libera a energia organizativa e as vocalizações participativas de baixo para cima. Manter o equilíbrio entre as duas forças foi impossível de se sustentar nos EUA e tem sido crescentemente problemático para os governos petistas nos últimos 15 anos. Finalmente, como supõe o Autor que tenha ocorrido nos EUA, corre-se o risco de substituir programas efetivos por puramente simbólicos se não houver movimentos que forcem intervenções econômicas que ataquem os problemas estruturais das IC ou das favelas. Origem, configuração espacial e conectividade das favelas O Autor sublinha uma diferença que é essencial para se entender a questão da localização, que, ao mesmo tempo em que condiciona a configuração espacial das favelas, por ela é condicionada. Os guetos americanos só ocuparam terrenos usáveis por pessoas socialmente excluídas, depois que seus usos prévios, como centralidades urbanas, tinham cessado. Já as favelas se localizam em terrenos considerados, ao longo da história da cidade, como não úteis ou de muito difícil ocupação. Mas, talvez, o mais importante para o tema em discussão seja o fato de que se as IC representam espaços contíguos, conectados internamente, em muitas cidades americanas, o mesmo não é reproduzido pelas favelas, distribuídas como ilhas desconexas no espaço urbano de muitas cidades brasileiras. Ora, se os problemas de interconexão e escala afetam os esforços de desenvolvimento econômico das IC, muito mais agem sobre o possível desenvolvimento das favelas. Uma outra cruel característica a impedir a integração interfavelas, especialmente, presente na realidade carioca é o seu domínio territorial por grupos criminosos, divididos em facções rivais, em constante guerra para ampliar o controle/exploração do espaço e dos moradores. Tal ampliação conduz a maiores lucros por meio do processo de obtenção-armazenamento-distribuição de drogas e outros bens e serviços ilegais. Embora, como se verá mais adiante, a realidade comece a mudar com a implantação do Programa

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das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), muitas áreas (favelas, conjuntos, loteamentos) continuam submetidas ao poder paralelo dos criminosos, em proporções inimagináveis de tirania e violência. Outra “essencialidade” relativa às políticas governamentais é a necessidade de enfrentar a complexa questão da urbanização. Certamente, isso não é uma preocupação de mesmo grau, no tocante às IC, mas para muitas favelas, a urbanização é uma condição sine qua non. Para tantas outras, ela pode ser técnica e financeiramente inviável e seria recomendável o reassentamento, já em algumas o grau de urbanização atingido é satisfatório e é preciso conservar e aprimorar. O fato é que sem que as pessoas vivam num ambiente minimamente urbanizado, sem áreas de risco, com infraestutura, equipamentos e serviços urbanos básicos – e moradias razoáveis - não se pode ir muito adiante com os programas de desenvolvimento socioeconômico. Idêntico raciocínio, e com muito mais razão, deve ser feito para territórios dominados por criminosos: não se trata de abandoná-los enquanto não forem pacificados, mas as melhorias serão sempre limitadas e passíveis de serem revertidas7.32.

Movimento de moradores ou luta de trabalhadores? Subjacente à discussão sobre a maior eficácia de políticas gerais de distribuição de renda ou de intervenções locais pró-desenvolvimento, o artigo rememora um eterno debate, travado no campo político-social. Nesse debate era discutido se as visões e respectivas lutas sobre questões específicas (gênero, meio ambiente, minorias étnicas, reforma urbana) eram em si relevantes ou deveriam ser incluídas e empreendidas dentro de um contexto maior. Ou seja, até que ponto o conflito fundamental da sociedade (luta de classes, capital x trabalho) englobaria todos os outros, que nada mais seriam do que suas manifestações específicas e por ele causalmente explicáveis. Por essa lógica, que a história real dos movimentos sociais parece ter tornado ineficaz e puramente “teoricista”, o enfrentamento do conflito fundamental iria resolvendo os demais problemas, sempre vistos como secundários e dependentes.

732 Como mera especulação, pode-se perguntar se não haverá um efeito de desigualdade “positivo” para as favelas com UPP, em relação às que não a têm, dada a magnitude dos projetos, investimentos, serviços e atuação de governos e ONG’s que vêm recebendo. Se assim for, o bom caminho é restaurar a equidade pela ampliação das pacificações e não nivelar por baixo.

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No campo da presente discussão e em certa sintonia com o velho debate, Gary Dymski resgata preocupações de estudiosos, cujo ponto essencial pode ser assim resumido: Haveria uma extração sistemática dos excedentes econômicos produzidos nos guetos? Estaria o gueto sendo explorado (ou espoliado) por ser um espaço subordinado per se ou por que lá haveria um enorme número de residentes que trabalham nos espaços capitalistas de produção? Em outras palavras, a contradição básica residiria na natureza exploradora intrínseca do capitalismo, que atinge os trabalhadores como um todo, onde quer que morem ou o que quer sejam (mulheres, negros, homossexuais etc.) e não na segregação racial ou espacial. Interessante é que todos os trabalhos citados por Gary Dymski, nessa passagem do texto, são das décadas de 70 e 80 do século passado, tanto os que levantaram a questão quanto aqueles que desfizeram o seu simplismo dualista. A íntegra do texto é rica de explicações e referências bibliográficas, mas aqui vamos sumarizar o que nos parece ser as principais conclusões, apontadas pelo Autor:

• Uma forma de exploração (a segregação espacial/racial) reforça a outra (a exploração econômica) e vice-versa.

• A segregação racial/espacial levou à superexploração dos trabalhadores, porque o gueto é uma reserva de mão-de-obra que tem mobilidade restrita no mercado de trabalho, justamente por sua condição de minoria étnica e por seu local de moradia;

• O pagamento de salários mais baixos às minorias segregadas contribui para abaixar os salários dos demais trabalhadores. Sobre isso, Pero, Cardoso e Elias8,33,em estudo sobre a influência de morar nas favelas cariocas na situação no mercado de trabalho, concluem que, só relativamente, há algum tipo de discriminação, mas que o “custo-favela” necessita de análise mais cuidadosa. Isso porque os dados utilizados não permitiram que se controlasse a influência da “qualidade” da educação, atributo muito valorizado pelo mercado de trabalho. Assim, se o ingresso às melhores universidades consideradas como tal, por exemplo, é mais restrito

833 Pero, V. Cardoso, A. e Elias, P. A discriminação no mercado de trabalho: o caso dos moradores nas favelas cariocas. Rio de Janeiro: Coleção Estudos Cariocas, 20050301, 2005. <http:// portalgeo.rio.rj.gov.br/estudoscariocas/>

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para os moradores de favelas, haverá menor acesso aos melhores postos de trabalho, com reflexos negativos sobre a renda. Ou seja, se fosse possível controlar estatisticamente a “qualidade” da educação “e o efeito negativo nos rendimentos dos moradores de favelas persistisse teríamos evidência de que existe discriminação mo mercado de trabalho contra esse grupo populacional” (p.17). Os autores terminam por advogar que, além de melhorar a qualidade da educação, é preciso desenhar políticas multisetoriais e específicas para os residentes em favelas.

O mundo real – otimizando oportunidades sem resolver todas as lacunas A título de melhor compreender o funcionamento do processo de tomada de decisões que define as políticas sociais públicas para as favelas, apresentamos uma espécie de roteiro que descreve o que vem acontecendo, neste campo, na cidade do Rio de Janeiro, de 2009 ao dias de hoje. No início dos anos 2000, a sensação política na cidade e no estado do

Rio de Janeiro era de que o “problema era muito grande” e não se anteviam soluções factíveis. Reconhecia-se também que os recursos de todos os tipos (financeiros, técnicos, de gestão e de articulação política) eram escassos; A partir de 2009, uma grande oportunidade se desenha a partir do

raríssimo alinhamento político (e de certa forma, programático) das três esferas de governo. O clima de esperança melhora muito com a escolha do Brasil para sede da Copa do Mundo de 2014 e do Rio para ser a cidade olímpica em 2016, depois de duas tentativas fracassadas. O programa federal de aceleração do crescimento (PAC), gerenciado

pelo governo do Estado, intervém em grandes complexos favelados, com obras de urbanização e construção de equipamentos e unidades habitacionais; Embora insuficiente para enfrentar todas as dimensões da pobreza

nessas verdadeiras cidades, o governo local só atua nas áreas do PAC, de forma complementar e centra seus esforços em desenhar outros programas que contemplem favelas de outros tamanhos e em outras localizações (Morar Carioca-MC , fase 2 e Favela-Bairro, fase 3); Mesmo quando os três programas dirigidos para atuação em

territórios estiverem em plena ação, muitas das pequenas e grandes favelas ficarão de fora, bem como outros tipos de habitats, alguns muito pobres, como loteamentos irregulares e conjuntos habitacionais periféricos;

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Na periferia, sobretudo nos bairros mais distantes, a Prefeitura desenvolve um intenso programa de saúde da família e, ao mesmo tempo, amplia fortemente o número de beneficiados pelo Bolsa-Família federal, ambos programas evitados pelo Prefeito anterior, por questões político-eleitorais. O projeto federal Minha Casa, Minha Vida (MCMV) aliviou a

necessidade de os governos municipal e estadual construírem novas habitações populares, tanto para repor as demolidas pelos projetos de urbanização quanto as usadas para reassentar populações em áreas de risco e desalojadas pelas grandes chuvas anuais; Tanto o MCMV quanto o PAC nos grandes complexos de favelas e o

MC- fase 1, precisariam de projetos socioeconômicos complementares, mas estes ou existem desarticuladamente entre os três níveis de governo ou são desenhos ainda muito incipientes; A partir de 2009, o governo estadual implanta em territórios

dominados pelo tráfico de drogas, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) que, representam um enorme avanço na melhoria da qualidade de vida das populações beneficiadas. As UPP se concentram num espaço que circunda a zona sul (bairros de classe média e classe alta) da cidade, com duas áreas situadas mais a oeste. A mão pesada e a cabeça quadrada do Estado pouco conseguem fazer

pelo desenvolvimento cultural das comunidades pobres. Aí, jovens artistas e ONG’s têm conseguido agitar as cenas e revitalizar os movimentos artísticos e de autoidentificação cultural. Assim como na área esportiva e de lazer orientado, as iniciativas são insuficientes. O melhor que o Estado tem feito é apoiar, não atrapalhar e aplaudir. As favelas “liberadas” representam excelente oportunidade para uma

atuação governamental concentrada, uma vez que não há mais empecilhos de segurança e a visibilidade política e midiática das ações é enorme. Estado e, mais tarde, Município, se movem para oferecer projetos, especialmente, na área da atenção social a grupos vulneráveis. Muitas das áreas liberadas carecem de obras e serviços de urbanização,

que são muito mais difíceis de acontecer, em curto prazo. Daí, a preferência pelos projetos sociais que impulsionam a criação de um grande programa articulador de iniciativas já existentes, cunhado como UPP Social. Nascido

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no governo do Estado é transferido para o Município e cresce, baseado no binômio participação e articulação inter e intragovernamental. No plano do desenvolvimento econômico em favelas e similares,

as ações são ainda tímidas. Mas, não é a toa que a primeira experiência de formalização de negócios (o programa municipal Empresa Bacana) se dê na Cidade de Deus, a segunda comunidade a receber uma UPP (fev. 2009) e a primeira na cidade a dispor de um banco comunitário e de uma moeda própria (set. 2011). Essa sequência de acontecimentos, às vezes complementares, às vezes contraditórios, quase sempre insuficientes revela a importância da análise de Dymski, seja no vetor da política comparada Brasil-Estados Unidos, seja no olhar das peculiaridades das nossas favelas e, sobretudo ilustra o quanto sua reflexão é importante para o aperfeiçoamento das políticas públicas brasileiras.