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Cícera Maria Silva Franck Pierre Gilbert Ribard Geovani Jacó de Freitas Sandra Haydée Petit RESPEITAR AS DIVERSIDADES E COMBATER AS DESIGUALDADES ÁFRICA MÃE-PRETA Fascículo 1 Expressão Gráfica e Editora Fortaleza, 2009

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Cícera Maria SilvaFranck Pierre Gilbert Ribard

Geovani Jacó de FreitasSandra Haydée Petit

RESPEITAR AS DIVERSIDADESE COMBATER AS DESIGUALDADES

ÁFRICAMÃE-PRETA

Fascículo 1

Expressão Gráfica e EditoraFortaleza,

2009

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Presidente da RepúblicaLuiz Inácio Lula da Silva

Ministro da EducaçãoFernando Haddad

Secretária de Educação BásicaMaria do Pilar Lacerda Almeida e Silva

Diretor do Departamento de Políticas daEducação Infantil e Ensino Fundamental

Marcelo Soares Pereira da Silva

Coordenadora Geral de Formação de ProfessoresHelena Costa Lopes de Freitas

Coordenadora do Humanas Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada

Maria Neyara de Oliveira Araújo

Universidade Federal do Ceará (UFC)Reitor

Jesualdo Pereira Farias

Comitê Gestor Humanas

Profa. Dra. Maria Neyara de Oliveira Araú[email protected]

Prof. Dr. José Aires de Castro [email protected]

Projeto GráficoRubens Martins

CapaRubens Martins

Ficha CatalográficaFrancisca Danielle Guedes

Gráfica e EditoraExpressão Gráfica e Editora

S586r

Respeitar as diversidades e combater as desigualdades. Fascículo 1 – África mãe-preta. / Cícera Maria Silva, Franck Pierre Gilbert Ribard, Geovani Jacó de Freitas, Sandra Haydée Petit. – Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora Ltda, 2009.

51p.; 21x29,7 cm Inclui dicas de bibliografia e de material áudio-visual.

1. Diversidade racial 2. Relações étnico-raciais e educação 3. África e consciência multicultural I - Título

CDD 379.260981

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Apresentação .....................................................................................................................5

1 ÁFRICA, MÃE NEGRA DO BRASIL OU APONTAMENTOS PARA UMA NOVA CONSCIÊNCIA MULTICULTURAL ...........................................................................111.1 Concluindo e refletindo a partir do contexto cearense ........................................19Para Refletir ......................................................................................................................20Bibliografia citada ...........................................................................................................21Filme..................................................................................................................................22Para Saber Mais ...............................................................................................................23

2 DIVERSIDADE E EDUCAÇÃO: A POPULAÇÃO NEGRA NO COTIDIANO ES-COLAR .............................................................................................................................252.1 Introdução ..................................................................................................................252.2 Raça, Racismo, Etnia .................................................................................................253 Relações Étnico-raciais e educação ............................................................................28Para Refletir ......................................................................................................................35Referências Bibliográficas ..............................................................................................35Bibliografia complementar: ...........................................................................................36Filmes.. ..............................................................................................................................36

3 ZOÉ VISITA SEUS PARENTES ..................................................................................373.1 Zoé e a ancestralidade na escola .............................................................................47Para Refletir (Fazendo) ...................................................................................................49Dicas de Bibliografia e de Material Audio-Visual ......................................................49DVDs........... ......................................................................................................................50Algumas sugestões musicais .........................................................................................51

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ÁFRICA MÃE-PRETARespeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

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APRESENTAÇÃO

Geovani Jacó de Freitas1

Caros(as) professores(as), este fascículo, carinhosamente chamado África Mãe-Preta, é o primeiro de um conjunto de cinco fascículos que compõe o curso Res-peitar as diversidades e combater as desigualdades. A tarefa a que ele se propõe é a de trazer-lhes, de modo muito especial, reflexões históricas e atuais sobre a saga dos negros no Brasil e a produção ideológica das narrativas históricas, sob a óptica do colonizador branco, responsáveis por enormes “vazios cognitivos” na nossa histó-ria real na qual emerge, como agente social ativo, os afro-descendentes.

Para contar esta história, participam deste fascículo três convidados especiais: os professores e pesquisadores Cícera Maria Silva, professora da rede estadual de Ensino Básico; Sandra Petit, da Faculdade de Educação da UFC; e Franck Ribard, do Curso de História da UFC. Eles experimentam, cada um ao seu modo, relações de engajamento intelectual e político nas áreas do conhecimento em que atuam como profissionais e como cidadãos(ãs). Por isto afirmamos: você professor(a), ao aceitar o convite para esta leitura, encontrará não apenas teorias gerais, mas narra-tivas instigantes que põem a teoria em movimento com o real vivido, elucidando-o e pondo luzes em suas zonas de sombras remotas.

E tem mais. As narrativas aqui trazidas pelos nossos convidados, além de nos brindar com ferramentas teóricas, nos levam ao irremediável, ou seja, nos põem no campo da desconstrução de verdades pré-fabricadas e cristalizadas como na-turais. Neste aspecto, os campos simbólico e político dos pré-conceitos, sobretudo do pré-conceito racial e das relações sociais que dele emanam, se nos apresenta como uma orquestra cuja orquestração não precisa mais de um maestro específico, porque a partitura já está introjectada em todos nós, com doses de consciência e in-conscientemente, por intermédio da cultura da qual somos apenas um fragmento dela. Lembrando o pensador indiano Homi Bahbha, para sair desta armadilha do pré-concebido, é necessário serrar o próprio galho onde estamos sentados.

É neste esforço de preencher os ditos “vazios cognitivos” da historiografia ofi-cial tanto tem produzido que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Conti-nuada para as Humanidades, HUMANAS/UFC, tem investido em suas atividades pedagógicas no campo da formação continuada de professores.

1 Graduado em Letras pela Universidade Estadual da Paraíba, mestre em Sociologia Ru-ral, pela Universidade Federal da Paraíba e doutor em Sociologia pela Universidade Fede-ral do Ceará. É professor do Curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência – LEV, da UFC. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada para as Humanidades – HUMA-NAS/UFC, organiza e apresenta a presente coleção.

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ÁFRICA MÃE-PRETARespeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

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O Núcleo é parte de uma Rede Nacional de Formação Continuada de Profes-sores da Educação Básica , com apoio do MEC2. O desafio deste Núcleo é o de reali-zar experimentos e ações formativas na área das Ciências Humanas que aproxime o conhecimento científico e as ferramentas de sua produção, acumulados pelas universidades, e o ensino realizado nas escolas públicas de Educação Básica.

Esta perspectiva do HUMANAS/UFC implica em reconhecer que a formação de professores das escolas públicas do Ensino Básico não deve ser traduzida pela prática de reciclagens isoladas, mas pretendida e realizada, primeiramente, como uma política pública de formação continuada que resulte no alargamento e circu-lação dos conhecimentos produzidos pelas Ciências Humanas e Sociais, associa-dos aos saberes locais, experimentados de maneira crítica e reflexiva.

A formação continuada desenvolvida pelo Humanas, nesta perspectiva, bus-ca o fortalecimento do professor como agente produtor de conhecimentos e não apenas como reprodutor deles. Professores que, tomados pelo prazer de aprender, sejam capazes de também ensinar e, com este desejo mútuo, tomem como matéria-prima das matérias ensinadas, a beleza e a força das transformações que podemos operar com o encontro de teorias gerais, produzidas pela ciência, com o mundo e as experiências significativas, dos professores, tanto no plano individual quanto no coletivo.

A atitude reflexiva do professor-aprendente impõe-se como uma prática peda-gógica essencial nesta proposta de formação continuada de professor do ensino básico. Acreditamos que o confronto criativo entre teoria e empiria, entre pensa-mento e ação, entre verdades cristalizadas e as possibilidades de desconstrução delas, configura-se como espaço de recriação e de produção de saberes mais com-petentes e focados no que a dinâmica da vida na sala de aula e do seu entorno exige para descobrir o que é e acertar no que é fundamental. Este acerto é condição sine qua non para o ato de aprender e de ensinar.

Pensamos que a ação reflexiva como um método na formação continuada, propõe-se a agir diretamente no modus operandi do professor como agente produ-tor de conhecimentos, ou seja, a formação como experimento de oportunidades de acesso a ferramentas teórico-metodológicas visando à qualificação do saber-fazer do professor em formação e do próprio aluno em sala de aula, e à superação da di-cotomia teoria versus prática e da teoria versus metodologia, equívocos epistemoló-gicos produtores da perversa separação entre trabalhadores intelectuais pensantes e trabalhadores intelectuais executantes.

2 A Rede é constituída por dezenove centros localizados em Universidades Públicas e Comunitá-rias, distribuídas em todo o País, e abrange as áreas de Alfabetização e Linguagem, Matemática e Ciências, Ciências Humanas e Sociais, Arte e Educação Física e Avaliação da Educação. O Núcleo Humanas/UFC compõe a área das Ciências Humanas e Sociais, tecendo um fio da trama desta Rede juntamente com a Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Para aprofundamento desta questão, confira a publicação Trabalho, de-senvolvimento e educação: processos sociais e ação docente. Guia didático-metodológico. ARAÚJO, M. N de O.; BRITO, A. R. de S .; FILHO, J. A de C. (Orgs.). Fortaleza: Tiprogresso, 2007.

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desigualdades.

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Nas demais produções teórico-metodológicas já publicadas pelo Núcleo Hu-manas3, voltadas para você, professor(a) do Ensino Básico, tem destaque a idéia de “no chão da escola”, professores(as) enfrentam, a todo o momento, situações cotidianas das mais simples às mais complexas, sem que possam fugir delas e que por elas são requeridos(as) a agir. Acreditamos que mediante uma prática reflexiva que integre experiências acumuladas tanto pelos agentes locais, quanto pelo co-nhecimento produzido pelas Ciências Humanas e Sociais, tais situações não ape-nas serão mais bem compreendidas como superadas, em parte ou no todo.

O foco do Humanas: o conhecimento das Humanidades

Dito isto, é possível compreender mais claramente o foco do Humanas: a for-mação do professor na área de conhecimento das Humanidades, articulando, no conteúdo de seus processos formativos, contribuições teóricas e metodológicas da Filosofia, da Economia, das Ciências Sociais (Sociologia, Antropologia, e Ciência Política), da Psicologia, da Literatura e das Artes em geral como instrumentais de mediação do conhecimento sobre as realidades global e local, o dentro e o fora da escola, de modo que resulte, para os professores, três processos intelectuais e polí-ticos irredutíveis entre si: saber conhecer, saber pensar e saber intervir.

As trilhas deste caminho assumidas pela formação continuada de professores do Núcleo Humanas, são balizadas pelo referencial teórico-metodológico anco-rado na temática geral Trabalho, Desenvolvimento e Educação: processos sociais e ação docente - (TDE).

O aprofundamento destas três categorias gerais visa à compreensão teórica mais ampla de que a escola é um “espaço socialmente contextualizado, onde se en-trecruzam diferentes dimensões da experiência do conhecimento” e que deve ser compreendido sob uma perspectiva relacional e histórica, não dissociada destas categorias significativas para a interpretação da sociedade moderna.

Tendo estes eixos basilares como ponto de partida teórico, a formação conti-nuada do Humanas propõe-se a pensar a escola como produto de relações sociais mais amplas, ao mesmo tempo em que como produtoras e reprodutoras de rea-

3 As publicações expressam as temáticas desenvolvidas na formação, consoante aos eixos teórico-metodológicos dos cursos. No curso Trabalho, Desenvolvimento e Educação, foram produzidos 3 fascículos, versando sobre as três categorias centrais: Fascículo 1: TRABALHO: um conceito para a construção da aprendizagem, de autoria de Maria Neyara de Oliveira Araújo; Fascículo 2: DESENVOL-VIMENTO: uma proposta para a emancipação social, de autoria de Maria Iara de Araújo; e Fascículo 3: EDUCAÇÃO; uma política para a construção da cidadania, de autoria de Francisco Alencar Mota. Para a temática seguinte, intitulada MAPAS, MEMÓRIAS E MENTES: espaço, tempo e conhecimento nas ações humanas, foram publicados três fascículos: Fascículo 1: MAPAS: o mundo está nas mãos e nas mentes de quem busca conhecê-lo, de autoria de Maria Florice Raposo Pereira; Fascículo 2: MEMÓRIAS: as mãos, as mentes e o mundo, de autoria de Frederico de Castro Neves; Fascículo 3: MENTES: nas mãos de quem procura conhecimento está o mundo, de autoria de Milena Marcintha A. Braz, Joannes Paulus S. Forte e Adalberto Ximenes. Os dois conjuntos de fascículos são acompanhados por guias teórico-metodológicos orientadores do seu uso.

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desigualdades.

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lidades sociais locais só compreensíveis pela apreensão histórico-dialética destas realidades, fundadas na diversidade e nas diferenças de atores, de práticas e de significados sociais.

O diálogo entre o geral e particular, entre o global anunciado pela análise dos três processos acima referidos e o local, revelado pelas relações cotidianas engen-dradas no interior desses processos, será apreendido ao nos debruçarmos sobre os significados do espaço, do tempo e do conhecimento, aspectos mediante os quais a ação cotidiana do professor se dá em sua plenitude.

A compreensão da relação espaço, tempo e cultura como esteio da ação coti-diana dos professores e da escola é a tarefa dos conteúdos propostos pela trilogia Mapas, Memórias e Mentes, cuja intenção é possibilitar, ao professor, uma reflexão sobre as conexões históricas e sociais da escola e das próprias histórias e trajetórias sociais de cada um – dos professores e dos alunos – com o conjunto das trans-formações da sociedade brasileira e dos desafios postos por estas relações. O co-nhecimento será válido na medida em que vislumbre a superação do pensamento subalterno e das intolerâncias e das desigualdades sociais, culturais, de gênero, de sexo, de raça e das mazelas sociais deles decorrentes.

A escola e o direito à diversidade

É na mesma perspectiva teórica e metodológica do reconhecimento da com-plexidade do real, que exige, igualmente, um pensamento complexo e não linear sobre ele, que apresentamos o curso Respeitar as diversidades e combater as desigual-dades, a ser realizado pelo Núcleo Humanas junto aos professores da Rede pública do Ensino Fundamental.

Que questões esta problematização nos revelam, à luz das Ciências Humanas e Sociais e das nossas práticas cotidianas? Como estas se imbricam nos padrões normativos dominantes, e convivem, ora como artefatos, ora como artífices da produção dessas diferenças e desses lugares advindos da situação dos agentes, nomeados por critérios diferenciadores dos sexos masculino e feminino, de raça, de etnia, de orientação sexual, de pertencimentos geográficos, entre outras formas classificatórias de pessoas ou grupos sociais?

Para dialogar com estas diferentes implicações, o Curso contempla cinco te-mas que se inter-relacionam pela complexidade teórica e política que os unem: 1) África Mãe Preta, abordando conceitos de raça, racismo e lutas sociais; 2) Todo dia é dia de índio, que busca recobrar a história dos povos indígenas no País e as estra-tégias de afirmação de seus processos identificatórios; 3) Terra, Trabalho e Pão, que traz ao debate o processo histórico de ocupação das terras no Brasil, os diferentes modos e acepções sobre o valor e uso da terra pelos diferentes segmentos sociais, culminado com a politização da luta pela terra e da educação no e para o campo como elementos afirmadores de direitos e de justiça sociais; 4) A Cidade que Devora,

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nos convida a refletir sobre o estágio atual do desenvolvimento das cidades, o es-trangulamento de suas relações advindo das desigualdades sociais que ela encerra, culminando, daí, modalidades diferenciadas de violências urbanas na atualidade e suas expressões particulares no interior das escolas; e 5) Deus é Menino e Menina, que nos traz à reflexão a imposição histórica da normatividade padronizada às possibilidades de expressão da diversidade sexual, produzindo violências física e simbólica na medida em que a intolerância e a incapacidade de viver esta diver-sidade geram formas discriminatórias, como a homofobia e demais preconceitos, sobre grupos identificados como fora dos padrões sociais dominantes.

O conjunto destas temáticas nos descortina, sob diferentes ângulos, a cons-trução social da realidade mediada pelo estudo histórico das mentalidades e das práticas políticas e culturais dos agentes e das classes sociais, ao mesmo tempo, nos interpela a mergulhar, criticamente, no nosso cotidiano ordinário, vivido por todos nós, professores e cidadãos, no interior das escolas e nos demais espaços de convivência social dos quais a escola nos parece uma síntese de suas contradi-ções.

O presente curso tem como material didático, portanto, estas cinco conferên-cias temáticas, gravadas em DVD, e cinco fascículos temáticos correspondentes, constituídos, cada qual, com três artigos escritos pelos expositores de cada confe-rência temática, consoante ao conteúdo exposto.

As atividades previstas do curso, em cada município, serão acompanhadas por professores tutores, já formados pelo Núcleo Humanas, que atuarão como me-diadores das atividades pedagógicas, que se realizam intercaladas entre atividades presenciais e não presenciais. As presenciais, com a mediação direta do monitor, se realizam mediante o uso de dos vídeos-conferência a cada encontro, seguido de debates e reflexões sobre os conteúdos apresentados. Ainda neste processo, o monitor intermedia a socialização dos resultados dos estudos realizados no pro-cesso de trabalho em Células , e dá orientação teórico-metodológica voltada para a elaboração de projetos de intervenção dos grupos em seus locais de trabalho ou na comunidade em que vivem.

Como atividades não presenciais, são considerados os encontros sistemáticos de estudos dos grupos de trabalho, mediados pelas referidas Células4, dos quais resultam: a) produção de textos relacionados às temáticas específicas a que o pro-fessor é convidado a refletir; e b) elaboração de projetos e encaminhamento deles às possíveis instituições de apoio e fomento a essas iniciativas. Estes projetos de in-tervenção são formulados pelos(as) professores(as), agrupados(as) pela própria di-nâmica das Células e que, conclamados por meio desta formação a uma disposição

4 O trabalho em Células contempla três dimensões, a saber: troca de conhecimentos entre os mem-bros dos grupos (estudos em grupos dos fascículos no local dos participantes); socialização dos resul-tados dos estudos em plenária; formulação e proposição de projetos de intervenção na comunidade escolar ou fora dela, inspirados nas temáticas e problemas estudados.

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intelectual e política em relação à adoção de atitudes de combate às desigualdades e pelo respeito às diferenças, possam agir de modo qualificado nos seus espaços de trabalho, de reflexão e de vida.

África Mãe Preta – um convite à história dos afro-descentes brasileiros e suas lutas atuais

Agora, você, caro professor, tem em suas mãos o Fascículo 1 do Curso, intitu-lado África Mãe Preta, composto de três artigos escritos por Franck Ribard, Cícera Maria Silva e Sandra Petit. As questões por eles trazidas nos invocam a problemati-zar certos entendimentos que, muitas vezes, aparecem naturalizados pela socieda-de, como, por exemplo, a pouca reflexão, no nosso cotidiano, de como se expressa o nosso racismo. Somos ou não um país racista? Ou mesmo de nos perguntarmos qual a importância de discutirmos, criticamente, as diferenças conceituais existen-tes entre raça e etnia. Que importância tem este fato? Se há racismo no Brasil, ou se ele existe, de forma velada, cabe-nos indagar qual a base do racismo e da dis-criminação contra negros no País e como ela se expressa? Quais os critérios raciais para se definir as diferenças, não apenas pelo viés da cor, mas também pelo viés da cultura e da religião?

Questões são desveladas neste fascículo que nos leva a uma longa viagem pelo tempo e no tempo. Neste percurso, Zoe, uma jovem negra, se nos é apresen-tada como companheira em toda a reflexão provocada pelos três textos. Zoe não nos abandona na longa trajetória de massacres e exclusão material e simbólica dos africanos e de seus descentes no País. Com ela, nos aperceberemos da importân-cia de lidarmos com a cosmovisão africana, compreendida como o modo de sentir, pensar e agir dos povos afro-descentes no Brasil e no mundo. E mais, que ela deve estar presente e cabe como matéria dentro da escola! Por intermédio do conceito de cosmovisão, descobrimos a força operadora da ancestralidade. Que ancestralidade é esta? Fica o convite à leitura.

Ora, estas questões nos remetem à história do Brasil com a África. Quem sabe desta história? É possível que a história oficial tenha se ocupado em dizer do que hoje sabemos sobre a relação Portugal e Brasil. Mas entre o Brasil e a África? O Bra-sil não teria sido apenas tocado pela África com a chegada de escravos confinados em navios negreiros, e tão somente isso, não é?

Bem, este Fascículo nos remete à necessidade e à importância de desnaturali-zarmos, pela dúvida radical, a produção ideológica que imprimiu e ainda imprime, mediante narrações parciais, “verdades” cristalizadas sob a óptica do colonizador, cuja versão histórica tanto esconde quanto revela representações dominantes so-bre o negro e os esquemas classificatórios produtores do racismo e das relações sociais dele decorrentes.

Agora é com vocês, professores e professoras!

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África, Mãe Negra Do Brasil Ou Apontamentos Para Uma Nova Consciência Multicultural

Franck Pierre Gilbert Ribard5

Os temas da África e das relações entre o Brasil e esse continente, apesar de terem ganhado certo destaque na atualidade, continuam representando questões marginais, exóticas, abordadas muitas vezes de formas confusas. Por sua vez, esta constatação encobre uma realidade mal conhecida ou pouco valorizada: a formi-dável importância do continente africano e das suas populações no processo histó-rico de formação da sociedade brasileira.

Não por acaso, configura-se como tendência, na historiografia contemporânea brasileira, a consciência da subestimação do caráter fundamental do eixo Brasil / África, para a história do Brasil, inscrito na idéia de “Atlântico Negro”6, e da ne-cessidade correspondente de colocá-lo ao lado da relação do Brasil com Portugal, como elemento primordial da análise da colonização brasileira.

Neste sentido, este pequeno texto pretende discutir algumas das implicações, do ponto de vista político, identitário e pedagógico, ligadas à discussão sobre o lugar da África na análise da sociedade brasileira7.

Um ponto de partida interessante para abordar esta discussão reside na na-tureza das imagens, idéias e representações comuns, habitualmente associadas ao continente africano, veiculadas pela mídia, livros didáticos etc que correspondem ao que a opinião pública, de forma geral, entende por “África”. Estas representa-ções são importantes na medida em que elas nos permitem, quando confrontadas com dados mais objetivos da história e das características da África, avaliar a es-pecificidade dos olhares e dos lugares comuns que a sociedade produz sobre uma região que se constituiu como ponto de origem de um fluxo migratório determi-nante, em vários aspectos, na constituição de nosso País e na configuração do que chamo de “povo brasileiro”. Neste sentido e veremos como, as visões da África falam também do olhar sobre o negro brasileiro.

5 Franck Pierre Gilbert Ribard possui graduação em Sociologia - UNIVERSITÉ DE TOULOUSE LE MIRAIL (1992), mestrado em Antropologia Social e Histórica da Europa - Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (1993) e doutorado em História - Universite de Paris IV (Paris-Sorbonne) (1997). Atualmente é professor adjunto do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará. Vice-Coordenador da Pós-Graduação e da Especialização em História da África. Líder do grupo de pesquisa “Trabalhadores Livres e Escravos no Ceará – Diferenças e Identidades”.6 Do título do livro de Gilroy (2001) e do documentário dirigido por Renato Barbieri e escrito em colaboração com o historiador Victor Leonardi (1998).7 Ver por exemplo os trabalhos de Florentino (1997), Da Silva (2003) e Alencastro (2000).

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ÁFRICA MÃE-PRETARespeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

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Por exemplo, na idéia central, já citada, da África como ponto de partida dos escravos trazidos para o Brasil, é interessante notar que o continente é reduzido a um ponto, o de uma origem que se confunde com a “travessia”. A primeira ima-gem associada aos escravos africanos é a figura homogeneizadora do barco negrei-ro. Nesta caricatura redutora, reside uma questão importante para entender o pro-cesso de estigmatização8 dos africanos trazidos para cá: eles pertencem a um tipo só: o “africano” (no Brasil rapidamente associado ao “boçal”), e são caracterizados pelo status genérico de “escravos”. No imaginário coletivo, a condição inferior de escravo aparece então como traço marcante do africano, sinal infamante que cons-tituiu o seu legado para o afro-brasileiro. Deste ponto de vista, a possibilidade de enxergar o impacto cultural, social, religioso, econômico e político da vinda de populações africanas, oriundos de povos diversos e que trouxeram universos culturais complexos e variados, aparece como remota, bem como a possibilidade de ter uma consciência clara do quanto a sociedade brasileira revela até hoje estas influências, muitas vezes compartilhadas e consideradas como genuinamente bra-sileiras.

Sobre a diversidade étnica e social dos povos africanos trazidos para o Brasil, Roger Bastide enfatiza:

A África enviou ao Brasil criadores e agricultores, homens da flo-resta e da savana, portadores de civilizações cujas casas eram re-dondas ou rectangulares, de civilizações totêmicas, matrilineares ou patrilineares, de negros que conheciam reinos muito vastos, outros que só tinham uma organização tribal, negros islamizados e negros “animistos”, africanos que possuíam sistemas religiosos politeístas e outros que cultuavam sobretudo antepassados divi-nizados (BASTIDE, 1971, p. 67).

Acrescento que os africanos que aportaram aqui eram oriundos de diferentes camadas sociais: sacerdotes, guerreiros, reis ou simples pastores, ligados aos mais diversos ofícios e vindo da mais variadas regiões.

A questão agora de conhecer mais e, portanto, de pesquisar e de ensinar mais a história da África e dos povos envolvidos no tráfico negreiro (como escravos ou negociantes de escravos) surge como possibilidade importante de entender a formação multicultural brasileira e o florescimento destes universos negros tão dinâmicos que, além de sustentar a economia e o desenvolvimento do País, impri-miram marcos tão fortes na realidade social. O entendimento do contexto históri-co, marcado pelo elemento central da economia escravocrata e da sua respectiva hierarquização da sociedade, por sua vez, permite enxergar como se constituíram e se desenvolveram as matrizes culturais e identitárias afro-brasileiras e como elas foram tratadas e categorizadas em nome da ideologia racial dominante de inspira-ção européia. Resta que, a visão que se tem hoje da África, da sua relação histórica

8 Ver Goffman (1982).

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ÁFRICA MÃE-PRETARespeitar as diversi-dades e combater as

desigualdades.

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com o Brasil ou mesmo do seu passado mais recente, articula-se com as imagens associadas geralmente ao negro brasileiro.

Outras visões que revelam a marca do preconceito contra a África, os seus povos e os seus descendentes negros brasileiros podem ser encontradas. A imagem deste continente como “selvagem”, “violento”, condenado a um perpétuo “esta-do de natureza” se relaciona com a visão eurocêntrica que identificou e definiu a África como continente bárbaro, inferior e não desenvolvido, corolário necessário à legitimação ideológica da escravidão9 e mais tarde do intervencionismo colonia-lista e imperialista.

Nesta configuração discursiva, a África, incapaz de qualquer desenvolvimen-to técnico, condenada a viver num eterno presente, numa existência “a – histórica” (sem História), teria se beneficiado do contato civilizatório com o branco. Daí a idéia de uma História da África que começa no momento da expansão ultramarina européia10 e do caráter privilegiado dos escravos vendidos aos europeus e levados para a América, em relação aos seus congêneres continuando no continente, na medida em que os primeiros estariam em contato constante com o elemento civili-zatório branco e com o salvacionismo do catolicismo11.

Poderíamos multiplicar estes exemplos, mas nosso objetivo aqui não é nem de descrever, nem de comprovar a existência do preconceito racial no Brasil. Dados do IBGE, relativos, por exemplo, ao acesso à saúde, educação, trabalho (natureza, remuneração por anos de estudos etc.) mostram o caráter estrutural do desequilí-brio existente entre as diferentes vertentes da população, desequilíbrio fortemente pautado na distribuição por cor ou por “raça”12 e cuja perenidade, para não dizer a não superação, aparece como uma característica extremamente preocupante para o futuro da sociedade brasileira.

Nosso propósito, longe disso, procura estabelecer as condições históricas que presidiram a cristalização de certas idéias, aos interesses em jogo que definiram a natureza dos discursos que, impondo-se mediante expressão hegemônica da clas-se dominante, “naturalizaram”13 a existência do preconceito. Deste ponto de vista,

9 A origem da palavra “escravo”, oriunda do nome “eslavo”, das populações do leste europeu, re-vela que a associação entre o status de escravo e as populações africanas correspondeu a um momen-to específico da história, ligado à necessidade de mão-de-obra abundante e gratuita para a produção colonialista e latifundiária da plantation (organização produtiva baseada no cultivo em monocultura da cana-de-açúcar por parte dos escravos numerosos, reunidos na senzala e submetidos ao poder do feitor e do poder patriarcal da “casa grande”). Ver, por exemplo, o livro clássico e bastante fértil para a discussão de Gilberto Freyre, apesar de ter sido publicado em 1933, Casa-Grande E Senzala.10 Apesar do fato que as pesquisas arqueológicas apontam, de forma incontestável, o continente africano como “berço da humanidade”.11 Esta idéia, muito difundida até o século XX, pode encontrar um dos seus primeiros ilustres for-muladores no padre Antonio Vieira (Sermões).12 Dependendo da utilização da terminologia utilizada pelo IBGE ou da terminologia popular uti-lizada no dia a dia ainda pela maioria da população.13 Por “naturalização” entendemos o processo de encobrimento do caráter não natural ou não ob-jetivo de certas idéias ou pensamentos coletivos que tendem a ser apresentados como verdades abso-lutas e, em quanto tal, não questionadas pela população que acaba neste contexto reforçando a força de tais idéias ou princípios.

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a compreensão, correspondendo a um processo de “desconstrução” pedagógica da “verdade racial” estabelecida, representa o caminho mais certeiro de desmis-tificação e de libertação da dinâmica da “violência simbólica”14 que constitui o racismo. Entender a ligação existente entre a discriminação racial e o processo se-cular de exploração econômica e social, baseado na estigmatização do negro e dos seus universos, permite desvendar o caráter forjado dos discursos que visaram legitimar a escravidão, e posteriormente, após a abolição, justificar a manutenção de uma hierarquia social pautada no evolucionismo e na eugenia social e, por fim, não reconhecer o problema racial investindo na ideologia da democracia racial a partir dos anos 1930.

Na mesma perspectiva, as categorias e conceitos utilizados para descrever a questão racial no Brasil revelam os marcos da violência simbólica. A categoria “raça”, por exemplo, largamente aceita e presente no dia-dia brasileiro15, encon-tra, na sua genealogia, a naturalização de uma visão do mundo em que prevalece a existência hierarquizada de raças biológicas distintas, dotadas de patrimônios genéticos diferenciados e representando estágios diversos do desenvolvimento da humanidade. O caráter fictício, infundado e sem nenhum respaldo científico de tal teoria não impediu a generalização do uso do termo “raça”, cuja acepção, até hoje, é bastante controvertida, envolvendo dimensões ligadas não somente à genética, ou pelo menos à biologia, ao fenótipo, mas também à cultura, identidade e conví-vio social.16 De fato, acompanhando o antropólogo Roberto DaMatta:

[...] o nosso tipo de doutrinação racial é uma variante da euro-péia. Entre nós, o conceito passou a ser, como o sistema que o abriga, totalizante. De modo que para nós raça é igual a etnia e cultura. É claro que essa é uma elaboração cultural, ideológica, não tendo valor científico. (DAMATTA, 1984, p. 84)

Interessante notar, para argumentar no sentido da percepção da relação entre o processo de formação social de determinada sociedade e as imagens e catego-rias semânticas utilizadas, que o termo “raça”, hoje quase banido do vocabulário europeu17, adquire no contexto norte-americano variações, em relação à utilização brasileira, que são ligadas à especificidade da concepção etno-racial dominante18 e ao processo histórico de estruturação da sociedade dos Estados Unidos.

14 Ver Bourdieu (1989).15 Razão pela qual utilizo esta palavra neste ensaio, apesar de ressaltar a necessidade fundamental, do ponto de vista pedagógico, de problematizá-la e de explicar a sua genealogia e as implicações relativas ao seu uso, como tentaremos fazer na continuidade do texto.16 Consultando qualquer um dos dicionários de uso corrente (Houaiss, por exemplo), percebe-se esta indefinição por conta da variedade de acepções ligadas ao termo de “raça”.17 O que não significa, infelizmente, a ausência de racismo na Europa.18 Sem adentrar nos detalhes, podemos citar a concepção do one drope rule (uma gota define) que caracteriza o principio americano segundo o qual uma só gota de sangue (uma ascendência remota, como ter um(a) só avô(ó) negro(a) estabelece o pertencimento à categoria “negro” e que foi a pedra angular do racismo americano.

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A categoria de “raça” possibilita abordar outra dimensão fundamental da pro-blemática racial que é a questão identitária. Assim, me parece importante lembrar que a palavra “raça”, bem como a palavra “negro”, foi definida e utilizada pelos setores dominantes da sociedade para caracterizar certos segmentos da população brasileira19. Neste sentido, historicamente, a categoria “negro” e a idéia de “raça negra” correspondem a identidades prescritas, quer dizer atribuídas, num contexto de assimetria social, de relação de poder desigual, por segmentos dominantes (es-cravagistas, políticos, fazendeiros, representantes da igreja católica, entre outros) que queriam estigmatizar o conjunto da população por eles explorado, no contexto da escravidão e que eles precisaram controlar quando essa população conquistou a “liberdade”. Os valores negativos e infamantes associados inicialmente a estas categorias ilustram o contexto histórico da difamação e da inferiorização do ne-gro20, viabilizado através do “poder de nomear” o outro, aspecto característico da natureza relacional e “interacional” do fenômeno identitário21.

Deste ponto de vista, se a definição hegemônica do termo “negro” na socieda-de global brasileira foi em grande parte alimentada pelas veleidades do poder do-minante, a luta secular de resistência à opressão e à exploração do negro brasileiro representa outro pólo fundamental que me permite descobrir os múltiplos univer-sos de referência da cultura afro-brasileira. Tendo referido, até agora, o contexto global, oficial e institucional que definiu os termos gerais das relações raciais, devo me voltar para as dinâmicas próprias, às vezes autônomas (quilombos), às lógicas de organização, às visões do mundo desenvolvidas ou reelaboradas, bem como às modalidades de enfrentamento, às estratégias identitárias escolhidas pelos africa-nos e seus descendentes no convívio com os seus congêneres e na movimentação no seio do contexto global descrito.

Neste sentido, é importante ressaltar que não se trata de enxergar um suposto processo de conservação, no seu estado de pureza, de culturas ou de mentalidades africanas originais, mas de analisar a dinâmica extremamente complexa e rica de re-significação, de re-elaboração e de síntese cultural de um patrimônio lingüís-tico, organizacional, religioso, filosófico etc. constitutivo das diferentes matrizes étnicas africanas que alimentaram22 a elaboração dos múltiplos universos culturais afro-brasileiros.

19 Os africanos chegando ao Brasil não se percebiam como negros, nem como raça negra, mas, segundo as modalidades do relacionamento interétnico africano, como ashanti, haussá, fon, fulani, benguela, congo, ou sujeitos do Rei Alafin de Oyó ou do Rei de Daomé.20 Deste processo e da “naturalização” destas definições identitárias que o próprio negro, às vezes, incorporou, pode-se compreender a dinâmica de “embranquecimento” ou de “ideal de branquea-mento”, bastante conhecida e que representa um estágio avançado dos efeitos da violência simbólica já citada.21 Sobre a concepção “interacionista e subjetiva” do fenômeno identitário que enfatiza a impor-tância do sentimento subjetivo de pertencimento ao grupo (não podendo ser resumido a critérios objetivos, do tipo biológico) e da necessária negociação com o “outro” do reconhecimento da iden-tidade étnica (no caso preciso, e em função das relações de força, este “outro” (branco) possuindo o poder de caracterizar esta identidade étnica) ver, entre outros, os trabalhos pioneiros do antropólogo norueguês Fredrik Barth (1998).22 Pelos menos até 1850, data oficial do fim do tráfico negreiro atlântico.

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Dentro das condições que engendraram o caráter genuinamente brasileiro23 desta dinâmica e de seus desdobramentos, cito o extraordinário deslocamento que representou, em relação aos contextos de origem, a inserção forçada dos contin-gentes africanos na economia escravagista, dentro de uma sociedade e de uma ordem social novas, no seio de uma convivência com etnias africanas diversas que compunham os plantéis de escravos (grupo constituído pelos escravos de uma mesma propriedade), numa natureza e numa terra alheias que rompiam o laço orgânico da família24 e simbólico da relação com o lugar dos antepassados.

De maneira geral, podemos entender o processo de re-elaboração cultural, ilustrado, na lógica da transmissão intergeracional, pela cristalização de certos ele-mentos e pelo abandono ou desaparecimento de outros, pela constituição de novas formas oriundas de tradições diversas25 como representativo da dinâmica cultural e das suas lógicas de reprodução (mesmo no contexto da manutenção da tradição), entendidas como formas de apreensão do real, de produção de significados e do sentido permitindo ao indivíduo, como à comunidade, se perpetuarem como tal, preservando o sentimento da sua continuidade e, de certa forma, da sua identida-de.

Não caberia aqui citar ou descrever as inúmeras formas que revestiram, do norte ao sul do País, e em função das especificidades regionais e populacionais, as elaborações culturais, religiosas, culinárias, musicais, os folguedos, as danças, os ritmos, as organizações comunitárias, os tipos de sociabilidade, de ver e de “ser ao mundo”26, engendradas a partir de influências bantas27, iorubas28, minas29, jeje30 ou de outras origens africanas, conjugadas e combinadas no seio de uma cultura negra que configura hoje de forma substancial, mesmo se não necessariamente reconhecida e valorizada, o caráter genuíno da brasilidade.

O que nos parece mais pertinente em relação à problemática abordada resi-de na importância da percepção da capacidade extraordinária manifestada pelos negros brasileiros de terem atravessado os períodos da colônia e do império, das diferentes repúblicas, em condições constantes de exploração e de desvalorização,

23 Ou americano se apreendemos o contexto geral do tráfico escravagista transatlântico e da abran-gência das populações negras no continente.24 Mesmo se, no contexto da escravidão, surgiram outras formas e lógicas familiares. Sobre o as-sunto, ver o trabalho fundamental de Robert W. Slenes (1999).25 Como bem revelam as religiões tais quais o candomblé, a umbanda, o catimbó... Que incorpora-ram entidades de origens africanas ou nativas (índias) diferentes.26 Expressos em particular através dos veículos fundamentais que são o corpo e a voz (oralidade). Ver, por exemplo, Ribard (2003).27 Correspondendo aos povos bantofónicos das regiões congo-angolanas.28 Englobando as diferentes cidades-estados do Iorubó (atual Nigéria e Benim) cujas principais foram Ifé, Oyó e Benim29 Do nome da Costa da Mina, e do Forte português de São Jorge da Mina (Elmina), na atual Gana, famoso entreposto de escravos destinados ao continente americano e em particular ao Brasil.30 Como foram conhecidas no Brasil as populações do antigo Reino de Daomé no atual Benim. Ver Pares (2006).

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sustentando, através de estratégias diversas31, a possibilidade de manter viva a consciência da origem, a memória, mesmo que residual, do grupo, das suas vivên-cias e de sua conexão com a raiz, a Mãe África.

Este ponto surge como um elemento essencial para compreender a emergência dos movimentos negros organizados mais recentes, desde o período pós-abolicio-nista brasileiro que, herdeiros das lutas passadas, reivindicaram o reconhecimento do papel histórico do negro e do correspondente direito deste a uma cidadania plena na sociedade32. A Frente Negra Brasileira dos anos 1930, o Teatro Experi-mental do Negro, o Movimento Afro-Baiano, a criação, em 1978, do Movimento Negro Unificado (MNU), dentre outros, correspondem a diferentes “momentos”, partindo de diferentes postulados, da construção de uma consciência identitária negra afirmando-se no seio da sociedade e que busca reverter o quadro histórico da discriminação racial brasileira.

Em jogo nesta luta, a reapropriação, por parte do negro, do direito de dizer quem ele é, de fazer reconhecer a sua própria definição das palavras “negro” e “raça negra”, de passar de uma situação de imposição e de atribuição externa do significado de ser negro a uma dinâmica de “auto-afirmação” do sentido e dos va-lores da negritude33 brasileira. Nesta visão, o movimento de afirmação identitária da comunidade afro-brasileira se contrapôs ao processo histórico de prescrição de uma identidade discriminante ligada às ideologias dominantes já citadas, ali-mentando as antigas categorias discriminatórias (“negro”, “raça negra”) de novos valores, de novos significados e atributos34, permitindo construir uma nova consci-ência identitária negra no Brasil e favorecendo, na sociedade global, novos olhares sobre as comunidades e os universos afro-brasileiros.

Fazendo eco ao lema norte americano do Black is beautifu”, os anos 1980 reve-laram uma explosão criadora negra, uma celebração da sua beleza, da sua estética, da sua espiritualidade, da sua música, mas também da atuação política, da mobili-zação e da conscientização propiciadas pelos diversos Movimentos Negros.

Fruto destas lutas, o reconhecimento institucional da necessidade de garan-tir direitos verdadeiros ao negro, às populações afro-brasileiras, às comunidades urbanas ou remanescentes de quilombos, de garantir o respeito da essência multi-

31 Revoltando-se, fugindo, resistindo, celebrando, suicidando-se, criando organizações e solidarie-dades “subterrâneas”, autônomas, eclesiásticas (Irmandades dos Homens Pretos) ou como na maio-ria das vezes negociando de maneiras diferentes com a ordem dominante. Ver Reis (1989).32 Já que, como colocado, a abolição da escravidão apenas correspondeu a novas modalidades de controle e de coerção do antigo elemento servil.33 Do termo desenvolvido pelo poeta da ilha da Martinica, Aimée Césaire e pelo senegalês Léopold Sedar Sénghor (futuro presidente do seu país) nos anos 1930.34 O sentido político, na luta, da utilização do termo “raça” - “Negro é raça! Preta é cor” dizia uma palavra de ordem nos anos 1980 - baseado no reconhecimento da importância histórica deste como marco e símbolo do combate ao racismo, apesar do seu caráter inconsistente do ponto de vista da ciência, está sendo questionado hoje por militantes e intelectuais que preferem referir-se a noção de “etnia”, mais “neutra” e permitindo colocar num mesmo patamar, numa visão não marcada pela referência implícita, mesmo que criticada, a teoria neo-evolucionista hierarquizante, a etnia negra, a etnia branca ou indígena.

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cultural do Brasil e, a partir disso, do caráter imperioso da criação de novos meca-nismos de inserção social e de luta contra o racismo, inscreveu-se em texto de leis, na Constituição de 1988, ou na Lei 10.639 de 200335, referencial fundamental para os educadores, na perspectiva de garantir as promessas de um futuro melhor.

Esta grande conquista, colocando para a Educação e a Justiça brasileira uma série de importantes desafios, não poderia ocultar a situação econômica e social crítica, na qual ainda encontram-se os segmentos mais desfavorecidos do País, onde negros e índios, proporcionalmente, compõem a maioria. Da mesma forma, o descompasso existente entre, de um lado, o lugar ocupado, na sociedade brasi-leira, pelas vertentes e práticas culturais oriundas ou influenciadas por matrizes afro-brasileiras de origem africana, constituindo inclusive focos importantes do processo de identificação em torno da idéia do “ser brasileiro” e, de outro lado, a dificuldade coletiva crônica de perceber e ter consciência da abrangência de tal fenômeno, aparecem como um sério problema na perspectiva da superação do racismo à brasileira.

Assim, considerando a afro-descendência não como um elemento revelador exclusivo de uma continuidade biológica inscrita num certo fenótipo (negro), mas muito mais como um indicador da consciência da natureza do processo de for-mação do patrimônio sociocultural brasileiro que faz que nas nossas práticas, nas nossas vivências, nas nossas maneiras de comer ou de andar sempre existe uma ascendência, mesmo que simbólica e cultural em relação à África. Esta visão vo-luntariamente subjetivista e ampla da noção de afro-descendência36 reflete para mim o que temos a conquistar, em particular graças à educação: a generalização da consciência da importância e da abrangência da participação e contribuição das populações e culturas africanas e afro-brasileiras na configuração do Brasil e do seu povo.

Do entendimento da natureza deste legado, da sua riqueza e da sua diversi-dade depende certamente a possibilidade de enxergar o afro-brasileiro de forma diferente, de reconhecer e valorizar a sua diferença, bem como a natureza multi-cultural da nação brasileira. Só desta maneira pode-se esperar uma mudança nas relações etno-raciais e no próprio convívio social brasileiro, condições incontorná-veis para realmente trabalhar as desigualdades e pensar numa possível superação do racismo histórico.

35 Ver Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e África. Brasília: DF, 2004.36 E que não significa, evidentemente, que não existem diferentes níveis e graus na experiência afro-descendente.

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1.1 Concluindo e refletindo a partir do contexto cearense

Abordando a temática da relação entre o Brasil e a África, analisei a importân-cia de levar em conta o contexto ideológico, a versão histórica contada oficialmente ou hegemônica para poder entender as representações dominantes em torno do negro, norteadoras das relações raciais.

Deste ponto de vista a problemática do negro no Ceará articula-se com uma série de imagens que compõe e justifica o discurso oficial de ausência ou do caráter muito marginal da presença do negro no Estado37. Nesta versão, sustentada pela historiografia clássica produzida no âmbito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), a escravidão, numa terra dominada pela economia pecuarista, teria sido insipiente, relativamente branda e precocemente desmantelada (1884) pelo pioneirismo do movimento abolicionista cearense. Por estas razões, a parti-cipação negra teria sido tão pouca representativa, a referência ao negro no Ceará desaparecendo inclusive no período republicano38, como se fosse o próprio negro que tivesse sido abolido em vez da escravidão. Neste quadro, a única explicação da presença, até hoje, de um folguedo tradicional negro como o maracatu seria o fato dele ter sido importado de Pernambuco nos anos 1930. Cristalizou-se, então, a idéia da ausência de negros no Ceará, impossibilitando a existência de um espaço social negro na sociedade: os participantes do maracatu pintando-se de preto para fazer o papel de (outros) negros; os negros encontrados remetendo sempre, no imaginário social, a outros contextos espaciais: baianos, pernambucanos ou mara-nhenses.

Este poderia ser o pano de fundo discursivo da ideologia racial e da versão contada da “Terra da Luz”, terra auto-proclamada branca, no máximo cabocla39, onde o negro, diretamente associado ao escravo, só aparece como vítima redimida pela mão magnânima e humanista dos heróis abolicionistas cearenses.

Desta forma, não é de estranhar a presença do racismo na história e no coti-diano da população cearense, nos castigos, nas piadas e nos provérbios, nas ex-periências de vida dos negros cearenses, muitas vezes obrigados a se negar ou se “invisibilizar” como negros.

Felizmente, os tempos mudam e a atuação dos movimentos sociais, dos mo-vimentos negros40, das instituições, das religiões afro-brasileiras e da sociedade ci-vil em geral permitiu abrir outros horizontes, contribuindo para renovar o debate sobre a questão racial no Ceará. Mesmo assim, o caminho para reverter as idéias

37 Ver, entre outros, Das Senzalas Para os Salões. Fortaleza: Secretaria de Cultura, Turismo e Despor-to do Ceará, 1988. Edição Comemorativa do 1º Centenário da Abolição da Escravatura no Brasil.38 Como é o caso na imprensa deste período.39 Apesar de, em 1863, por ocasião da sua instalação, o Presidente da Província do Ceará dá por extinta a população indígena da província.40 Sobre a atuação dos movimentos negros no Ceará ver a dissertação de mestrado de Antônio Vilamarque Carnaúba de Sousa (2006).

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cristalizadas, desfazer as “verdades naturalizadas” continua difícil. A educação, neste sentido, aparece como fundamental, bem como a pesquisa histórica que deve dar substrato a uma nova visão, a uma nova consciência da problemática racial no Ceará.

Esta pesquisa histórica, que privilegiei aqui, de maneira rápida, possibilita, hoje, outros olhares sobre a história do negro no Ceará, permitindo enxergar a sua importante participação no processo inicial de colonização quando, seguindo os fluxos migratórios vindo das províncias do Pernambuco e da Bahia, numerosos negros livres entraram no Ceará a partir da região do Cariri. Este fato desenca-deou uma tendência geral e característica da participação do negro na sociedade cearense até a abolição, contradizendo a visão hegemônica descrita que associa negro a escravo: a larga predominância do número de negros livres41 em relação aos escravos42. Mesmo assim, o papel do escravo foi importante, participando com os negros livres de organizações tais como as Irmandades dos Homens Pretos, presentes em várias cidades do estado do Ceará43 e que, no caso Fortalezense44, originaram, através do auto de coração dos reis de Congo, o maracatu atual. No que concerne ao desaparecimento dos escravos no Ceará, certamente a seca de 1977/79, e a conseqüente venda, para o sul cafeeiro do País45, dos escravos por par-te dos proprietários do interior do Estado (em grande parte arruinados), aparece como um fator determinante, inclusive em relação ao número de escravos liberta-do quando da abolição.

Estes dados e trabalhos, apresentados de maneira sintética, são fundamentais porque abrem o caminho para a elaboração de uma nova história etno-racial no Ceará capaz, no âmbito da transposição didática e da atuação da sociedade civil, reverter o quadro crônico de negação do negro cearense.

Para Refletir

Pensando na contribuição do continente africano, das populações africa-nas trazidas para o Brasil e dos seus descendentes na formação da sociedade brasileira, tente imaginar o que seria este País e a sua cultura sem a relação histórica entre o Brasil e a África.

Reflita, a partir da avaliação do passado histórico do Ceará, da visão do-minante de uma escravidão branda, pouca significativa e da sua abolição pio-neira e heróica, sobre a natureza das relações sociais e raciais no Ceará e sobre o significado da experiência recorrente, até hoje, de “criados” e de “agrega-dos” no nosso cotidiano.

41 Consultar a dissertação de Mestrado de Caxilé (2005).42 Ver o trabalho pioneiro de Funes (2001).43 Sobre o caso de Sobral, ver Souza (2000).44 Ver Rodrigues (2005).45 Sobre o tráfico interprovincial no Ceará, ver o trabalho de Sobrinho (2005).

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DiversiDaDe e eDucação: a PoPula-ção Negra No cotiDiaNo escolar

Cícera Maria Silva1

2.1 Introdução

Este artigo tem o propósito de discutir a inserção da população negra bra-sileira na educação formal, buscando trazer à tona elementos que permitam aos leitores uma reflexão crítica acerca da proclamada democracia racial, bem como analisar e desnaturalizar a forma como a convivência multicultural vem se dando no cotidiano escolar.

Em verdade, Mota (2007, p.21), apresenta a perspectiva multicultural como um dos principais desafios da educação na atualidade, uma vez que, na sua visão, faltou à educação oficial (escolar) integrar parte significativa da realidade humano-social que se define por tal perspectiva e que envolve questões ambientais, rurais, indígenas, sexuais, raciais, dentre outras.

Para cumprir com tal objetivo, entendo ser pertinente fazer uma breve in-cursão na sociedade brasileira, elucidando como vêm se construindo as relações étnico-raciais em alguns espaços como a mídia, o mercado de trabalho, e, de forma mais específica, no cotidiano escolar.

Também farei uma breve discussão acerca dos conceitos de raça, racismo e etnia, por perceber que seu entendimento é de fundamental importância, uma vez que o uso inadequado e indiscriminado de tais conceitos tem contribuído para a consolidação de visões equivocadas acerca dos mesmos, tendo implicações políti-co-sociais.

2.2 Raça, Racismo, Etnia

As palavras raça, racismo e etnia são utilizadas com bastante freqüência, tanto por estudiosos (que, em geral, não explicitam em qual acepção as estão empregan-do) quanto por pessoas comuns, que, por sua vez, as utilizam como sinônimas por desconhecerem as diferenças existentes entre elas. Para aumentar ainda mais a confusão gerada no uso desses conceitos, quando se trata de debater questões re-

1 Cícera Maria Silva é graduada em Ciências Sociais e Mestre em Sociologia pela UFC, integrante do Instituto Negra do Ceará e professora da EEM Liceu Vila Velha. Endereço eletrônico: [email protected]

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lativas à desigualdade racial, há ainda outros dois termos que são freqüentemente empregados: preconceito e discriminação.

Isto posto, penso ser importante fazer uma breve exposição acerca desses con-ceitos, a fim de evitar inadequações e imprecisões na utilização dos mesmos. Para isso, fundamento-me nos estudos de Sérgio Costa (2002), e, sobretudo, de Kaben-gele Munanga (2003).

O conceito de raça, etimologicamente, vem do italiano razza que por sua vez veio do latim ratio que significa sorte, categoria, espécie. Devo lembrar, no entanto, que conceitos não são categorias abstratas e neutras, eles possuem um campo se-mântico, uma dimensão temporal e até política.

Assim, o professor Munanga faz uma digressão histórica da elaboração e utilização do conceito raça, desde quando o naturalista sueco Carl Von Linné (1707-1778) o usou para classificar as plantas, até os dias atuais, demonstrando como o mesmo foi transportado da Botânica e da Zoologia passando a atuar na legitimação das relações de dominação e de sujeição entre as classes sociais.

Embora Munanga não negue a importância das classificações como ferramen-tas para operacionalizar o pensamento, a divisão da espécie humana em raças cul-minou numa hierarquização. No século XVIII, no estabelecimento de diferenças e semelhanças, a cor da pele foi tida como critério fundamental de distinção entre as chamadas raças. No século XIX, acrescentou-se a este critérios morfológicos como a forma do nariz, dos lábios, o formato do crânio, a textura dos cabelos etc. O cruzamento de todos os critérios possíveis deu origem a dezenas de raças e sub-raças.

No entanto, pesquisadores como Franz Boas, observam que características atribuídas a uma determinada raça, podem se apresentar em outra. Assim,

[...] as pesquisas comparativas levaram também à conclusão de que os patrimônios genéticos de dois indivíduos pertencentes a uma mesma raça podem ser mais distantes do que os perten-centes a raças diferentes; um marcador genético característico de uma raça pode, embora com menos incidência, ser encontrado em outra raça. (MUNANGA, 2003, p. 04)

Portanto, definitivamente, o conceito de raça é cientificamente inoperante para explicar a diversidade humana e para dividi-la em raças estanques.

O professor Munanga adverte, no entanto, que a invalidação científica do con-ceito de raça não significa que todos os indivíduos e populações sejam genetica-mente semelhantes. Os patrimônios genéticos são diferentes, mas tais diferenças são insuficientes para classificá-las em raças.

Não obstante o reconhecimento científico da inexistência de raças, isso não implica que, no imaginário social, elas tenham desaparecido. Os naturalistas dos séculos XVIII e XIX, ao classificarem as raças humanas e hierarquizá-las, estabe-

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lecendo uma relação intrínseca entre caracteres biológicos e as qualidades inte-lectuais, psicológicas, morais e culturais, deram origem à teoria denominada de raciologia. Segundo Munanga,

[...] a raciologia tinha um conteúdo mais doutrinário do que científico, pois seu discurso serviu mais para justificar e legitimar os sistemas de dominação racial do que como explicação da va-riabilidade humana. Gradativamente, os conteúdos dessa dou-trina chamada ciência, começaram a sair dos círculos intelectuais e acadêmicos para se difundir no tecido social das populações ocidentais dominantes. Depois foram recuperados pelos nacio-nalismos nascentes como o nazismo para legitimar as extermi-nações que causaram à humanidade durante a Segunda Guerra Mundial. (MUNANGA, 2003, p. 05).

Observa-se, pois, que, embora o termo raça remeta às diferenças biológicas/genéticas entre os indivíduos, hoje ele é conceito político-ideológico, pois no ima-ginário e na representação coletivos, ainda existem raças construídas a partir das diferenças fenotípicas, e, a partir delas, se reproduzem e são mantidas relações de poder e dominação. É com fundamentação nessa acepção político-ideológico de raça que nasce o racismo.

Para fins de definição, o racismo é uma ideologia que postula a divisão da humanidade em raças contrastadas que têm características físicas hereditárias co-muns, sendo tais características físicas suporte das demais – intelectuais, psico-lógicas, morais, estéticas. Ou seja, o racismo é uma crença na existência de raças hierarquizadas, dada pela relação intrínseca entre o físico e fatores sociais como o intelecto, o moral e o cultural. Na cabeça do racista, tais características são conse-qüências diretas dos caracteres físicos ou biológicos.

Considerando tal definição, penso sobre a existência (ou não) do racismo na sociedade brasileira. Historicamente, ouço dizer que o mesmo não existe por aqui. Mesmo pessoas esclarecidas repetem freqüentemente tal afirmativa., Pesquisas re-velam, entretanto, que 87% da população já reconhece que há racismo, mas contra-ditoriamente, 96% diz não ser racista. Ora, como pode existir racismo sem racistas? Talvez tal contradição se explique pelo fato de o termo “racista” carregar um peso muito forte para quem admite sê-lo. Por vezes, as pessoas preferem admitir que têm preconceito2, como se este fosse uma eufemização daquele. Isso se evidencia na afirmativa de que existe preconceito de cor, mas não de raça.

A propósito, a campanha “Onde você guarda o seu racismo?3” obteve como resposta a esta pergunta: “Nas piadas”; “No passado, isso é algo da escravidão,

2 O preconceito é uma atitude negativa em relação a alguém, a partir de um padrão de referência próprio da pessoa que o pratica. 3 A campanha “Diálogos contra o Racismo”, lançada em dezembro de 2004 é uma iniciativa de um conjunto de 40 entidades da sociedade civil que se dedica à troca de experiências e idéias sobre a questão do preconceito racial. Tais entidades formaram o grupo “Diálogos contra o Racismo”. Fonte: <www.dialogoscontraoracismo.org.br>. Acesso em: 18 fev 2008.

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não existe mais”; “No medo”; “No inconsciente”; “Não sou racista. Talvez eu sim-plesmente não goste de gente que faz coisas erradas”. Penso que a partir dessas respostas, posso repensar a existência do racismo em nossa sociedade.

Retomando a discussão anterior, a discriminação racial, por sua vez, se carac-teriza quando ocorre uma ação, manifestação ou um comportamento de forma a prejudicar ou inibir direitos. Vale lembrar, no entanto, que, racismo, preconceito e discriminação racial, além de se constituírem em práticas rejeitadas na ordem jurídica nacional e internacional, são atitudes igualmente danosas às vítimas, tor-nando-se um empecilho à efetivação dos direitos humanos e à consolidação da democracia brasileira.

Quanto ao conceito de etnia, Munanga afirma que o conteúdo da raça é morfo-biológico e o da etnia é sócio-cultural, histórico e psicológico. Etnia seria, então, “um conjunto de indivíduos que, histórica ou mitologicamente, têm um ancestral comum; têm uma língua em comum, uma mesma religião ou cosmovisão; uma mesma cultura e moram geograficamente num mesmo território” (2003, p. 12). Dessa forma, um conjunto populacional, dito “raça”, comporta diversas etnias.

Esse mesmo autor advoga que um novo racismo se alimenta desta noção, uma vez que ela “constitui um lexical mais aceitável do que raça”. Sua utilização esta-ria, assim, vinculada à exigência do “falar politicamente correto”.

Munanga adverte, contudo, que a substituição do conceito de raça pelo de etnia, não muda nada à realidade do racismo, pois o racismo hoje praticado nas sociedades contemporâneas não precisa mais do conceito de raça ou da variante biológica; ele se reformula com base nos conceitos de etnia, diferença cultural ou identidade cultural. Porém, as vítimas de hoje são as mesmas de ontem. Mudaram os conceitos, mas, a dominação e a exclusão permanecem intactas.

Considerando tudo o que foi exposto acima acerca das diferenças conceituais existentes entre raça e etnia, neste artigo utilizarei a expressão “étnico-racial”, por entender que as relações de desigualdade presentes na sociedade brasileira, bem como o racismo e a discriminação se estruturam com base nos critérios raciais (fe-notípicos), mas também nas diferenças culturais e religiosas.

Embora Sérgio Costa (2002, p. 49) afirme que analisar a sociedade brasileira sob a ótica racial constitua um erro teórico-metodológico, uma vez que outras va-riáveis como a de gênero tem aí influência, outros pesquisadores a têm como uma categoria estruturante da desigualdade histórica que a caracteriza. Desigualdade esta que se efetiva nos campos político, econômico, educacional etc.

3.Relações Étnico-raciais e educação

Antes de adentrar pelo conteúdo central deste tópico, gostaria de trazer à tona algumas estatísticas relativas à população negra brasileira, no intuito de informar, mas também para usá-las como base para a discussão que seguirá.

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O Brasil tem a segunda maior população negra do mundo, só superado pela Nigéria. É a maior população negra fora da África, equivalente a 45,3% dos bra-sileiros. Esse aspecto quantitativo, embora significativo, pouco tem contribuído para a firmação da dignidade4 dessa parcela populacional. Afinal, somos 70% dos indigentes e 63% dos pobres brasileiros.

Em relação ao Índice de Desenvolvimento Humano5 (IDH), o Brasil se situa na 76ª posição. Entretanto, ao desagregar este índice por raça, quando se trata da população branca, essa posição sobe para o 46º lugar, mas cai para a 107ª posição ao se referir à população negra.

Estas desigualdades sociais gritantes, construídas historicamente com funda-mentação racista, permanecem até hoje e se expressam nas várias áreas sociais. Na saúde, por exemplo, o tempo da consulta médica de uma pessoa negra é menor do que o de uma pessoa branca. Profissionais de saúde, em alguns casos, deixam de aplicar anestesia em pessoas negras por julgarem que estas são resistentes à dor. Segue abaixo outros índices desoladores.

Entre os 10% mais pobres da população, 65% das pessoas são negras (pretas ▪e pardas);A expectativa de vida para a população branca brasileira é, em média, seis ▪anos superior à estimada para a população negra;Entre as pessoas assalariadas com nível superior, negras e negros recebem, em ▪média, 64% do salário recebido por brancas e brancos;Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano (BRASIL, 2005), em 2001, ▪a taxa de homicídios dos homens de 20 a 24 anos era de 102,3 por 100 mil ha-bitantes, entre a população branca. Para os jovens negros, porém, a taxa era duas vezes maior: 218,5 a cada 100 mil deles foram vítimas de assassinato. Em relação à violência policial, o mesmo Relatório aponta que a proporção de pretos entre as vítimas é três vezes a proporção desse grupo na população do Estado do Rio de Janeiro. Esta realidade levou os integrantes da banda “O Rappa” a afirmarem em uma de suas canções que “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”;Segundo dados do Balanço Social Ibase ▪ 6, negros e negras são apenas 13,7% do total de pessoal efetivo das empresas e ocupam somente 4,3% das posições de chefia;

4 O termo dignidade origina-se do latim dignitas e designa o que merece consideração, respeito, mérito ou estima.5 O conceito de "Desenvolvimento Humano" parte do princípio que, para aferir o avanço de uma população não se deve considerar apenas a dimensão econômica, mas também outras características sociais, culturais e políticas. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) foi criado por Mahbub ul Haq, com a colaboração de Amartya Sen, ganhador do prêmio Nobel de economia de 1998. Com a pretensão de representar uma medida geral e sintética do desenvolvimento humano, o IDH oferece um contraponto a outro indicador muito utilizado, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita, que con-sidera apenas a dimensão econômica do desenvolvimento. Fonte: <http://www.pnud.org.br/idh/>. Acesso em: 19 fev 2008.6 Instituto Brasileiro de Análises Econômicas e Sociais.

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Dos 2000 diplomatas brasileiros, 99,3% são brancos enquanto apenas dez são ▪negros.Na Igreja Católica brasileira, existe apenas um bispo negro brasileiro e nunca ▪um negro foi sagrado cardeal;As mulheres negras constituem 56% das trabalhadoras domésticas; ▪Na mídia, raramente os negros aparecem como protagonistas de novelas e, ▪quando aparecem, é na condição de representantes da “cor do pecado”. O mercado publicitário também não costuma reconhecer os negros como cida-dãos, mas os reconhece na condição de consumidores, mesmo que seja para lhes oferecer produtos para alisar os cabelos “ruins” e para “clarear” a pele;Em 2003, pela primeira vez na história do Brasil, foram nomeados ministros ▪negros para o primeiro escalão do governo.Esses dados colocam em questão a tese da democracia racial brasileira, há bas-

tante tempo questionada por Florestan Fernandes e atacada com veemência pelos integrantes do Movimento Negro em todo o Brasil. Ademais, Vera Baroni (2005, p.11) afirma que “a decantada miscigenação brasileira não foi fruto do Amor e sim produto do Estupro de mulheres e meninas negras e índias, cometido por brancos civilizados e cristãos”.

Para finalizar, de fato, causa-me estranheza a afirmação da existência de uma democracia racial no Brasil, quando este foi o último país a abolir a escravidão e o que mais importou pessoas da África para serem escravizadas (cerca de quatro milhões).

Tratando agora da questão educacional de forma mais específica, vejamos al-guns indicadores:

De acordo com o último censo do IBGE, entre as pessoas que não tiveram ▪oportunidade de freqüentar a escola formal, 22% são afrodescendentes contra 9% de eurodescendentes;O analfabetismo da população negra é quase três vezes maior do que o da ▪população branca (7,5% dos brancos são analfabetos em detrimento de 20% dos afrodescendentes);Na faixa etária de 14 a 15 anos, o índice de pessoas negras não-alfabetizadas é ▪12% maior do que o de pessoas brancas;Entre os estudantes do ensino superior, 19,4% são negros, pardos ou indíge- ▪nas. Os brancos representam 79% desse total;O tempo de estudo dos afrodescendentes é de 4,2 anos enquanto que para os ▪eurodescendentes esta média é de 6,2 anos;Enquanto 11% da população branca concluíram um curso universitário no ▪Brasil, entre a parcela negra esse percentual é de apenas 2,6%.Ao se apropriar destes novos dados, talvez você se veja com o seguinte pen-

samento: “Está explicado o fato de a maioria dos negros serem pobres. Eles não

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gostam de estudar!” Ora, não se assuste com seu pensamento, pois este argumento é muito comum. Geralmente, se explica a pobreza dessa população pelo seu pa-tamar educacional. Porém, penso ser pertinente só mais uma estatística: cerca de 40,5% das crianças negras entre 10 e 14 anos encontram-se trabalhando, enquanto 15% das crianças brancas, nessa mesma faixa etária, vivem essa situação. Assim, criou-se um ciclo histórico e social danoso: por pertencerem a famílias pobres, as crianças deixam de estudar para trabalhar, e, por não terem estudado, tendem a permanecer na condição de pobreza. Observem que se trata de 40% das crianças negras – quase a metade delas.

Por outro lado, cabe questionar sobre as oportunidades de estudo que foram concedidas (a palavra é essa!) à população negra brasileira. Só para ilustrar, cito abaixo uma passagem de um documento oficial do Estado brasileiro:

O Brasil, Colônia, Império e República, teve historicamente, no aspecto legal, uma postura ativa e permissiva diante da discri-minação e do racismo que atinge a população afro-descendente brasileira até hoje. O decreto nº 1.331 de 17 de fevereiro de 1854, estabelecia que nas escolas públicas do país não seriam admiti-dos escravos, e a previsão de instrução para adultos negros de-pendia da disponibilidade de professores. O decreto nº 7.031-A, de 6 de setembro de 1878, estabelecia que os negros só podiam estudar no período noturno e diversas estratégias foram monta-das no sentido de impedir o acesso pleno dessa população aos bancos escolares. (MEC, 2004, p. 07)

Florestan Fernandes (1989, p.162), reforça tal afirmativa ao denunciar que a massa da sociedade era tida como “a gentinha” e para ser a gentinha, a educação seria como uma pérola que não deveria ser lançada aos porcos.

Mediante tais citações, compreendo que o Estado brasileiro acumula uma dívida para com a população negra, sobretudo no que diz respeito às políticas educacionais. A própria necessidade da existência de uma política de cotas é eluci-dativo disso. Também concluo que os dados relativos à condição socioeconômica dessa população não podem ser explicados sob suposto desinteresse ou desprezo pelos estudos.

Assim sendo, a partir de qual (ou quais) outra ótica podemos compreender a exclusão dos negros da educação formal? Proponho que, para isso, você faça o seguinte questionamento: como se dão as relações étnico-raciais no cotidiano esco-lar? Como você, mesmo que não seja negro/a, as vivencia ou as vivenciou?

Vou desenhar um quadro um tanto quanto desanimador, mas que se repete, cotidianamente, na maioria das escolas brasileiras. Trata-se da relação entre pro-fessores e alunos negros. A pesquisadora Eliane dos Santos Cavalleiro afirma que no dia a dia, a prática de muitos educadores é inaceitável, havendo a existência de fortes componentes racistas, falas preconceituosas e atitudes que, mesmo não conscientes, demonstram situações de humilhação e agressão contra crianças ne-

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gras e por elas são percebidas. Essa constatação baseia-se na observação da dinâ-mica da pré-escola e de um olhar não naturalizado sobre as relações étnico-raciais. Cavalleiro (2006) mostra o seguinte quadro:

Há um tratamento diferenciado e mais afetivo dirigido às crianças brancas. Com estas, as professoras aceitam o contato físico por meio de abraço, beijo ou do olhar. Porém, o contato físico é mais escasso na relação professor/aluno negro. Nesse caso, geralmente, as professoras mantêm uma distância que inviabiliza o mesmo.

As crianças brancas recebem mais oportunidades de se sentirem aceitas e que- ▪ridas do que as demais. A atenção, o carinho e o afeto são distribuídos de ma-neira desigual, sendo que a categoria raça regula o critério de distribuição.Assim como nos processos de adoção, as crianças brancas recebem constante- ▪mente convites para tomarem parte da família da professora, o que não ocorre com as crianças negras.É notável, no cotidiano escolar, uma desvalorização sistemática das caracte- ▪rísticas estéticas das crianças negras, presentes nas afirmativas: “Você precisa falar para a sua mãe prender o seu cabelo. Olha só que coisa armada!”.Na avaliação das atividades das crianças brancas, o elogio é feito à criança. ▪Exemplo: “Você é muito inteligente!” Porém, nas atividades das crianças ne-gras, o elogio se dirige à tarefa e não a elas. Ex: “Está bonita a sua lição!” Isso constitui num dado significativo para a sua auto-estima.Na existência de situações e práticas preconceituosas, as professoras tendem a ▪minimizar a reclamação da criança negra, o que pode levá-la a silenciar diante de novos conflitos e a naturalizar sua suposta inferioridade.Compreende-se assim, que ▪

[...] a escola é um espaço que não efetivou de fato a inclusão posi-tiva do grupo negro. A criança negra vive na escola um sistemá-tico processo de exclusão. Ela está presente na escola, mas dela efetiva e positivamente não participa. A pré-escola oferece pou-cas condições ambientais estimulantes para o desenvolvimento intelectual, mental e afetivo de crianças negras (CAVALLEIRO, 2006, p. 232).

As situações vivenciadas repetidamente pelas crianças negras no interior das escolas podem levá-las a cristalizar um sentimento de vergonha, medo e raiva de ser negro. Esse é um resultado bastante perverso desse processo educacional que silencia quanto à diversidade étnico-racial: a recusa dos indivíduos negros em per-tencer a esse grupo étnico-racial. Porém, como aceitar uma identidade socialmente construída em bases negativas? Afinal, as pessoas negras na sociedade brasileira são associadas ao feio, fedido, inferior, preguiçoso e com tendência à marginalida-de. Ouvimos com freqüência as pessoas afirmarem que o próprio negro é racista. Prefiro afirmar que alguns internalizaram um racismo existente fora de si (na so-

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ciedade), uma vez que a história do negro é de uma permanente negação – da sua identidade, da sua história, da sua cultura, da sua religiosidade, da sua beleza, da sua inteligência, dos seus direitos e do seu ser.

Pode-se afirmar, então, que a educação formal tem contribuído, desde a educação infantil, para o desenvolvimento de crianças negras com identidade fragilizada, levando-as a cristalizar um autoconceito negativo e auto-estima rebaixada, o que resulta quase sempre em um sentimento de ausência de capacidade pes-soal, apatia, medo, inibição intelectual (CAVALLEIRO, 2006, p. 229).

Vemos, pois, que “as dificuldades para negros e negras ascenderem no siste-ma educacional está ligada ao círculo vicioso da pobreza, mas também, de modo fundamental, à violência do racismo nas escolas: piadas, agressões, desvalorização sistemática da cultura e da história da população afrodescendente” (SANTORO, 2004, p. 58).

Porém, pensando bem, vou voltar atrás: acho que existe sim um pouco de desinteresse dos negros pelos estudos, pois como se interessar por uma escola que discrimina, segrega e exclui? Por que estudar uma história na qual não me inclui como partícipe? De que forma desenvolver o gosto pela leitura, se não me reconhe-ço nos livros didáticos?

A propósito, uma pesquisa que analisa a forma como os negros são represen-tados nos livros didáticos constatou que, das 20 coleções analisadas, apenas cinco possuem capítulos específicos sobre a história da África. No entanto, há um silên-cio, um desconhecimento ou uma visão eurocêntrica sobre ela e uma associação simplista e naturalizada de que negro remete ao significado africano, sinônimo de escravo..

Em síntese, na pré-escola e nos demais níveis educacionais, pouca ou nenhu-ma atenção é dada ao aspecto multicultural existente na sociedade e no cotidiano escolar. Tratar desta questão é entendido como algo “cansativo e desnecessário” por parte dos profissionais da educação. Via de regra, o racismo histórico brasi-leiro bem como o atual processo discriminatório contra os negros não representa questão importante a ser discutida e pensada. Logo, a ausência deste tema no pla-nejamento escolar e no Projeto Político Pedagógico impede a promoção de boas relações étnico-raciais.

Mota (2007), advoga, que, abordar a diversidade cultural no contexto escolar implica

[...] pensar tais segmentos como possuidores de experiências vi-venciais que precisam ser respeitadas quando da implantação dos conteúdos escolares que lhes serão ministrados, de forma a garantir os elementos básicos de sua cidadania, posto que se trata de sujeitos sociais portadores de culturas tradicionalmente desconsideradas pela escola oficial. (2007, p. 21-22)

Um bom começo para contemplar esta demanda seria a implementação nas

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escolas da Lei federal nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003, que torna obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares de todo o país. Dessa exigência, uma pergunta decorre: o que sabemos sobre história e cultura afro-brasileira? Como trabalhar tais conteúdos positivamente, de modo a não reforçar preconceitos, es-tigmas e a visão eurocêntrica?

Soma-se a isso, a preocupação de que a inserção curricular do conteúdo étni-co-racial, da cultura afro-brasileira e africana, não se esgote em temas afins, nem tampouco se reduza à chamada “pedagogia de eventos”, em que esta temática é abordada apenas no dia da consciência negra (20 de novembro), ou durante a semana cultural. Este assunto tem que ser tratado seriamente, devendo ser traba-lhado de forma mais intensa e extensa, fazendo parte da rotina diária da escola e não se tratar de uma abordagem pontual e isolada. Antes disso, diz respeito ao incremento da formação inicial e programas de formação continuada e também ao fazer pedagógico cotidiano, juntamente com outras temáticas como relações de gênero e a homofobia, entre outras diferenças presentes na escola.

A Lei acima referida é uma tentativa do atual governo de reparar os danos psicológicos, materiais, sociais, políticos e educacionais sofridos pela população negra em solo brasileiro. Aliada a ela, estão a instituição das cotas nas univer-sidades, a criação da SEPPIR7, entre outras políticas voltadas para comunidades quilombolas.

Devo ressaltar, no entanto, que o movimento negro teve participação ativa e decisiva na efetivação de tais políticas, ao pressionarem o governo brasileiro no cumprimento do acordo firmado por ocasião da Conferência Internacional contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas (Durbhan, África do Sul, 2001) que definiu como maiores vítimas de tais intolerâncias as mu-lheres, as pessoas negras, os povos indígenas e os ciganos. Por outro lado, o movi-mento negro brasileiro tem tido a peculiaridade de buscar a igualdade racial por meio da incidência direta nas políticas públicas.

Espera-se que as ações afirmativas8 atuais venham, de fato, alterar o quadro de desigualdades étnico-raciais na sociedade brasileira, de modo que a ascensão social dessa população não seja motivo de estranhamento nem objeto de matéria publicitária por seu caráter extraordinário. Também para que o País não mais se depare com afirmativas de que “negro só se for na cozinha do RU, cotas não!” e “Voltem para a Senzala”9. Aliás, que as cotas sequer sejam necessárias.

7 Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. 8 Políticas ou programas de ações afi rmativas são um conjunto de ações políticas dirigidas à cor-Políticas ou programas de ações afirmativas são um conjunto de ações políticas dirigidas à cor-reção de desigualdades raciais e sociais, orientadas para oferta de um tratamento diferenciado com vistas a corrigir desvantagens e marginalização criadas e mantidas por estrutura social excludente e discriminatória. 9 Frases pichadas na área ao redor do Campus da Universidade Federal do Rio Grande do Sul ( UFRGS), em Porto Alegre. Fontes: <http://www.irohin.org.br/imp/template.php?edition=20&id=93>, <http://www.al.rs.gov.br/Ag/noticias.asp?txtIDMATERIA=177702&txtIdTipoMateria=1>. Acesso em 19 fev 2008.

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Para Refletir

1 Que ações de combate à desigualdade racial vêm sendo desenvolvidas nas escolas brasileiras?

2 Como a perspectiva multicultural da educação deve ser incluída no Projeto Político Pedagógico da sua escola?

Referências Bibliográficas

BARONI, Vera. Direitos Humanos, Raça e Democracia. In: Triálogos Feministas – Raça e Democracia. Ano 3, n. 5, nov/2005, pp. 08-15.

BRASIL, Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Afri-cana. Brasília, DF: 2004.

_______. PNUD. Relatório de Desenvolvimento Humano: Racismo, pobreza e violên-cia, 2005. Disponível em: <www.pnud.org.br/rdh> Acesso em: 19 fev. 2008.

CAVALLEIRO, Eliane dos Santos: Educação Pré-escolar: o início do fim da intole-rância. In: Programa de Educação Continuada em Ensino de História e Culturas Afro-Brasileiras e Africanas: Lei 10.639/2003 (Educação – Africanidades – Brasil). CEAD, UNB, 2006.

COSTA, Sérgio. A Construção Sociológica da Raça no Brasil. In: Revista Estudos Afro-Asiáticos. Ano 24, n. 1, 2002, pp. 35-61.

FERNANDES, Florestan. O desafio educacional. São Paulo: Cortez, 1989.

MOTA, Francisco Alencar. Trabalho, Desenvolvimento e Educação: processos sociais e ação docente. Fascículo 3: Educação: uma política para a construção da cidadania. Fortaleza: Tiprogresso, 2007.

MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racis-mo, identidade e etnia. Palestra proferida no 3º Seminário Nacional Relações Raciais e Educação. Rio de Janeiro, 05/11/03, mimeo.

SANTORO, Maurício. Onde você guarda o seu racismo? In: Revista Democracia Viva, n. 24, out, dez/2004, pp. 56-60.

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desigualdades.

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IROHIN. Profetas do terror e a distorção da história. Jornal impresso. Editorial, ed. n. 20 Disponível em <http://www.irohin.org.br/imp/template.php?edition=20&id=93>. Acesso em: 19 fev 2008.

Bibliografia complementar:

BERND, Zila. O que é negritude. São Paulo: Brasiliense, 1988.

MUNANGA, Kabengele e GOMES, Nilma Lino. Para entender o negro no Brasil: Histórias, realidades, problemas e Caminhos. São Paulo: Global Editora e Ação Educativa, 2004.

Filmes:

Quase deuses. “Something the lord made”, de Joseph Sargent. EUA, 2004.

Vista a minha pele. Curta-metragem produzido pelo CEERT e dirigido por Joel Zito Araújo, Brasil, s/d.

Kirikú e a feiticeira, “Kirikou et la Sorcière”, de Michel Ocelot, França, 1998, 2002.

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Zoé visita seus PareNtes

Sandra Haydée Petit1

Quando Zoé fez 15 anos, a mãe dela falou: “você é uma moça negra, linda, inteligente. Está na hora de você conhecer seu povo negro, conhecer sua história. Então tem aqui uma passagem, dinheiro e mochila para você viajar todo um mês. Sei que você é esperta e vai saber se virar. Faça o maior proveito e depois venha me contar o que viu”.

Pensem na felicidade de Zoé! Era o melhor presente que ela poderia ter rece-bido pois ela adorava viajar mas conhecia muito pouco, apenas algumas vilas vizi-nhas. Agora estava ela aí com o desafio de viajar sozinha pelo mundo e descobrir as histórias de seu povo negro. Zoé não sabia como agradecer sua mãe por tanta alegria. O pai de Zoé também ajudou na empreitada com alguns bons conselhos. Lembrou a Zoé de todo dia fazer alongamentos para continuar uma moça linda e flexível e não cansar na longa jornada. Deu umas dicas de como cuidar de sua alimentação, recomendando muitas frutas e raízes, particularmente o inhame e a macaxeira. Pediu para Zoé manter um diário de viagem onde deveria contar tudo o que aprenderia e descobriria sobre o que seja ser negro e negra. O pai insistiu que isso era muito importante para Zoé e deu-lhe um caderno. Zoé ficou se perguntan-do se ela ia ter coragem de estar sempre escrevendo, será que isso valia mesmo a pena, pensou para si mesma, mas não falou nada em voz alta para não contrariar seu pai. O pai disse-lhe ainda: “não esqueça de sempre dançar pois na vida de nós negros a dança é vida, é passado, presente e futuro, é terra e céu”. Zoé não enten-deu muito bem essa recomendação e mesmo achando seu pai muito sábio, ela não prestou muita atenção na hora porque estava ficando impaciente. “Chega de tanta conversa pai, quero partir”, respondeu Zoé, já um pouco irritada com a demora.

Enfim, pronta para a aventura, Zoé partiu. Resolveu iniciar a viagem pela ci-dade de Fortaleza. Tinha ouvido falar de seus parentes que lá havia muitos negros na periferia e que algumas comunidades tinham até maracatus2 formados por ne-

1  Sandra Haydée Petit possui graduação em Línguas Estrangeiras Aplicadas - Université de Paris VIII (1986) e Doutorado em Ciências da Educação - Universite de Paris VIII (1995). Atualmente é professora da Universidade Federal do Ceará. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação Popular e nas relações étnico-raciais, atuando principalmente nos seguintes temas: sociopoética, educação popular, escola pública, educação afrodescendente e cosmovisão africana, educação indígena.2 Cortejo carnavalesco de coroação de uma Rainha Negra realizando um momento de louvação, que baila ao som de uma bateria de percussão.

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gros. Quando chegou num desses bairros, viu todo tipo de gente, mas dentre eles, reconheceu os negros. Eram negros um pouco diferentes dos que ela conhecia na sua vila, então pôs-se a observar.

Observou que havia um homem-menino cujas pernas pareciam uma onda. Ele estava ligado a outro homem negro por uma trança grossa de cabelo crespo. O outro homem negro era já um senhor, mas parecia um acrobata, tinha umas asas que o tornavam leve, fazendo com que tivesse muita facilidade para movimentar-se. Mantinha uma perna dobrada, mas não perdia o equilíbrio porque era muito forte e firme. Zoé percebeu que os braços compridos se esticavam, mas depois vol-tavam para si. Já as pernas pareciam sair de si como se quisesse alcançar o sol, o morro e a terra. Esse homem possuía até uma terceira perna. Zoé perguntou por que tinha uma perna a mais, o homem respondeu que sua terceira perna era como um terceiro olho ou um sexto sentido. Era uma forma de ele ser mais sábio e mais ágil. “O homem negro precisa ter muita agilidade, na mente e no corpo todo, dis-se”. Curiosa com toda a cena, Zoé perguntou ainda: “Por que vocês estão trança-dos juntos, você e o menino?” O homem negro olhou para Zoé, estranhando a pergunta, pois para ele a resposta era muito óbvia. Respondeu: “eu sou o passado dele, seu ancestral, e ele é a minha continuidade, meu descendente, não podemos viver separados”. Zoé achou interessante a resposta, nunca tinha pensado sobre isso.

Mais adiante, reparou uma figura disforme, parecia uma la-craia. Zoé se assustou, pois para ela lacraia é perigo. Mas como é muito curiosa, Zoé terminou se aproximando para enxergar melhor e aí viu que a cabeça possuía duas antenas e que os braços do homem-lacraia saiam enrolando-se do tronco, forman-do dois círculos. Notou ainda, que o corpo não era todo reto, parecia encaixar-se em qualquer lugar, andando em círculos. O homem-lacraia se torcia e se retorcia, enroscando-se todo.

Olhando assim de perto o homem-lacraia parecia frágil, mas era melhor ter cuidado porque podia ter veneno dentro. Zoé resolveu vencer o medo e pergun-tar por que ele tinha duas antenas na cabeça. “Ora mais, que pergunta boba, para andar antenado claro!”, respondeu o homem-lacraia. “Todo mundo sabe que o negro precisa andar muito atento”. Zoé sentiu-se um pouco sem graça mas mes-mo assim arriscou fazer outra pergunta pois estava realmente estranhando a for-ma do homem-lacraia e precisava entender por que seu corpo era todo torcido.

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O homem-lacraia olhou para ela e disse: “Dá pra ver que você não é daqui. Tudo você estranha! O meu corpo é assim para eu poder me adaptar a várias situações, se alguém me ataca, eu tenho veneno para me defender. Quando está tudo em paz, eu consigo usar meu corpo flexível para me movimentar em todos os cantos da natureza, nado, vôo e rastejo, dependendo da necessidade. Dessa forma, ninguém pode comigo! Nós negros temos que ser assim, temos que ter muito jogo de cintura para sobreviver”.

Realmente, tinha muita coisa para descobrir nessa viagem, pensou Zoé, será melhor eu escrever algumas coisas no meu caderno pra não esquecer. Zoé pegou o caderno e a caneta que seu pai tinha colocado na mochila e pôs-se a fazer algumas anotações sobre as descobertas daquela manhã.

Quando terminou de escrever, andou mais um pouco até chegar perto de ou-tro homem negro. Ficou impressionada com ele. O homem estava sentado no chão com as pernas e os braços abertos. O mais esquisito era que seu sexo ficava ao lado dele, destacado do corpo, e era um sexo bem grande. Zoé imaginou que se tratava de um marinheiro ou de um estivador pelos braços fortes e a característica boina na cabeça. Zoé não resistiu à vontade de perguntar, queria saber se estava adivi-nhando certo. O homem respondeu ser um marinheiro. Feliz por ter acertado, Zoé indagou então sobre o fato dele estar sentado com as pernas e os braços abertos, ela achava curioso o marinheiro ter escolhido sentar dessa forma, como se estivesse fa-zendo algum dos alongamentos que seu pai lhe recomendava fazer. O marinheiro explicou: “Como marinheiro eu viajo muito e já estive na África. Percebi que lá as pessoas sentam muito assim e ficam mais descansadas porque estão sempre alon-gadas. Aprendi a sentar assim como meus ancestrais africanos e agora fico dessa forma sempre que quero descansar”. Zoé queria também indagar sobre o sexo dele ficar fora de seu corpo, mas estava com vergonha, será que ele iria se zangar com essa pergunta? O marinheiro percebeu que Zoé estava olhando o membro ativo dele e aí imaginou o seu pensamento: “Está se perguntando por que meu sexo fica aí? Quando eu não preciso dele eu gosto de deixá-lo assim do lado porque ele é muito pesado e eu canso muito carregando ele. E também porque tenho orgulho dele, sou um negro muito macho”.

Essa cidade tem cada ser Negro estranho! Esse aí então, é muito convencido para meu gosto! – pensou Zoé, anotando rapidamente os novos detalhes no seu caderno.

Zoé já estava para deixar esse bairro quando encontrou uma menina negra deitada no seu quintal à frente de várias panelas espalhadas e vazias. Parecia estar repousando depois de ter terminado os afazeres da cozinha. O que chamou a aten-ção de Zoé foi um pimentão gigante, quase do tamanho da menina. “Para que você guarda um pimentão desse tamanho?”, perguntou Zoé, sempre enxerida. Disse a menina: “guardo ele para mostrar que nós negros sempre estamos procurando

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desigualdades.

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temperar a vida. Sem tempero, a vida do negro não é mais vida, por isso eu como negra dou um jeito de manter, apesar das dificuldades, minha vida bem tempera-da”.

Zoé estava cansada de tanto caminhar visitando bairros com gente negra. Re-solveu deitar um pouco debaixo de uma mangueira, antes de prosseguir, queria ir até o Maranhão. Quando começou a cochilar, aconteceu algo muito estranho. De repente, Zoé se encontrou, ainda deitada, numa vila africana há quinhentos anos atrás, debaixo de um enorme baobá.

Á frente dela ela via um homem montado num animal, talvez um boi. Possuía braços muito compridos que tocavam no animal, segurando as rédeas. Ele era um cavaleiro branco que estava chegando naquela vila como uma autoridade e andava com uma pose arrogante. Uma mulher negra ajoelhada e de braços abertos reve-renciava o tronco que estava à sua frente. Um homem negro fazia saudação ao sol. Zoé percebeu que os negros estavam expressando a sua religiosidade. Com medo de ser vista, ficou calada, só observando.

De repente, o cavaleiro branco começou a sufocar o animal. O animal reagiu erguendo o tronco e desequilibrando o cavaleiro. O ca-valeiro já não conseguia mais se-gurar o bicho. Junto com as outras duas pessoas negras chegam ago-ra uns cachorros e aparecem umas panelas cheias de alimentos gosto-sos. O cavaleiro xinga o animal e as divindades que os negros esta-vam chamando.

O cavaleiro branco é castigado com a perda do braço direito e o animal fica encolhido. Zoé entende agora o que aconteceu: As divindades puniram o cavaleiro pela sua ar-rogância. Os outros dois que res-peitaram as divindades foram agraciados com fartura e a com-panhia dos animais.

Quando Zoé acorda, ela fica na dúvida se viajou para trás na história dos seus ancestrais ou se foi apenas um sonho. Será que um sonho pode ser tão real assim? Sem saber direito, Zoé pega sua mochila e par-te para o Maranhão.

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desigualdades.

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temperar a vida. Sem tempero, a vida do negro não é mais vida, por isso eu como negra dou um jeito de manter, apesar das dificuldades, minha vida bem tempera-da”.

Zoé estava cansada de tanto caminhar visitando bairros com gente negra. Re-solveu deitar um pouco debaixo de uma mangueira, antes de prosseguir, queria ir até o Maranhão. Quando começou a cochilar, aconteceu algo muito estranho. De repente, Zoé se encontrou, ainda deitada, numa vila africana há quinhentos anos atrás, debaixo de um enorme baobá.

Á frente dela ela via um homem montado num animal, talvez um boi. Possuía braços muito compridos que tocavam no animal, segurando as rédeas. Ele era um cavaleiro branco que estava chegando naquela vila como uma autoridade e andava com uma pose arrogante. Uma mulher negra ajoelhada e de braços abertos reve-renciava o tronco que estava à sua frente. Um homem negro fazia saudação ao sol. Zoé percebeu que os negros estavam expressando a sua religiosidade. Com medo de ser vista, ficou calada, só observando.

De repente, o cavaleiro branco começou a sufocar o animal. O animal reagiu erguendo o tronco e desequilibrando o cavaleiro. O ca-valeiro já não conseguia mais se-gurar o bicho. Junto com as outras duas pessoas negras chegam ago-ra uns cachorros e aparecem umas panelas cheias de alimentos gosto-sos. O cavaleiro xinga o animal e as divindades que os negros esta-vam chamando.

O cavaleiro branco é castigado com a perda do braço direito e o animal fica encolhido. Zoé entende agora o que aconteceu: As divindades puniram o cavaleiro pela sua ar-rogância. Os outros dois que res-peitaram as divindades foram agraciados com fartura e a com-panhia dos animais.

Quando Zoé acorda, ela fica na dúvida se viajou para trás na história dos seus ancestrais ou se foi apenas um sonho. Será que um sonho pode ser tão real assim? Sem saber direito, Zoé pega sua mochila e par-te para o Maranhão.

Quando chega lá, passa por uma comunidade onde as pessoas, todas negras, estão se reunindo em torno de uma fogueira com um tacho tampado cozinhando comida para muita gente. Zoé é logo convidada a participar e comer também. Zoé nota que está sendo preparado um prato bem substancial que será degustado

por todos. Na mesma hora, um indivíduo se põe de quatro enquanto outro brin-ca de pular nas costas do mesmo. Muitos outros estão brincando também, tanto crianças como adultos, uma espécie de capoeira. Zoé lembra de sua comunidade onde os negros também gostam de se reunir assim para comer e jogar capoeira. Ser negro é brincar com os corpos, pensa Zoé, é gostar de estar se comunicando corpo a corpo.

Zoé encontra-se agora no Amapá, no norte do Brasil. Está passeando por uma comunidade negra quando pára diante de uma cena inesperada.

Vê uma alma cami-nhando com olhos arrega-lados, afogueados e braços abertos. Zoé se assusta e se esconde para assistir à cena a uma distância segura. Uma criança deitada numa cesta, de barriga e olhos para cima, pede socorro. Ela se move para fora da cesta, inquieta. Um negro se apressa diante da pre-sença do ser fantasma. Por

trás do fantasma-alma há um rochedo que veio rolando até ali e serviu de esconde-rijo para a alma. Ele só anda rastejando, pois não desenvolveu as pernas. O corpo do negro está todo contorcido pelo medo que começa a se manifestar. Há pessoas em pé que se apóiam umas nas outras num ritual de dança. As pessoas estão cha-mando os deuses da proteção, cantando e dançando. Do seu esconderijo, Zoé tenta acompanhar o canto.

Zoé se lembra que lá em casa sempre se contavam histórias de assombra-ções, mas nunca tinha visto uma de perto. Felizmente, a dança junto com o canto ajudaram a afugentar a alma e agora tudo está em paz novamente. Zoé respira aliviada.

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Faltam só quatro dias para a data do retorno. Zoé se apressa para sair do Bra-sil e visitar uns negros de outro país. Decide ir a Cuba, no Caribe.

Chegando lá é convidada a conhecer uma comunidade onde se comemora o dia do Gigante Ancestral. Nessa festa que é ao mesmo tempo diversão e reli-

gião, as pessoas dançam até ficar em transe. Os sacerdotes mais experientes ficam tocando a mão de um enorme boneco negro gi-gante, que representa o Ancestral mais antigo da comunidade. Os sacerdotes anunciam e cantam louvações, enquanto as demais pessoas trazem oferendas para o Gigante. Zoé presta atenção a

quatro pessoas sentadas, três adultos e uma criança, que estão sendo assistidas por vários sacerdotes menores, vestidos de manta. Os sentados estão se recuperando do transe, após terem dançado muito para o ancestral.

Zoé percebe que a força do ser negro também é gigantesca quando a comuni-dade se reúne para cultuar seus ancestrais.

Zoé termina a viagem participando de uma despedida feita para ela.As pessoas ficam em roda dançando

em volta de uma fogueira. Duas pessoas entram no centro da roda para dançar mais fortemente. Daqui a pouco outras pessoas se revezam no centro para se destacar na dança enquanto as demais batem palma. Uma das pessoas da co-munidade está vestindo uma máscara gigante, carregada nas costas, e fazendo uma dança bem especial. Outras duas pessoas ficam dançando de forma acro-bática uma com a outra.

A dança do ser negro/a é mesmo muito diversa, reflete Zoé, o pai tinha razão quando disse que a dança é a própria vida do negro. Feliz, Zoé se põe a dançar também, empolgada com a música e o entusiasmo dos participantes. A festa termina de madrugada após muita movi-mentação. Zoé se despede e toma o vôo de retorno ao Brasil e à cidade de onde veio. Está cansada e com muita saudade de casa, cheia de novidades para contar e o caderno repleto de histórias do ser negro e negra, todas muito interessantes.

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Valeu a experiência, Zoé se sente agora orgulhosa de conhecer tantas histórias de seu povo espalhado pelo mundo.

Quando fui convidada pelo projeto HUMANAS a escrever um texto sobre o tema ÁFRICA, MÃE PRETA que servisse de fundamentação, reflexão e material didático para professores do ensino público no Ceará, envolvidos em educação e distância, pensei logo em tratar esse assunto pelo ângulo das africanidades3 e da cosmovisão africana. Senti que a forma de expressão desse texto devia ser literária, de preferência na forma de conto ou lenda, como modo de valorizar a oralidade como veículo de transmissão de conhecimento muito próprio aos povos africanos e afrodescendentes. Abordar a cosmovisão africana na escola como o exige impli-citamente a lei 10.639/2003 que modifica a LDB, colocando a obrigatoriedade da história e cultura africana e afro-brasileira nos currículos do ensino básico, supõe incorporar métodos de ensino-aprendizagem dinâmicos e criativos, condizentes com o modo de ser, pensar e agir africano e afrodescendente. Daí a opção em ini-ciar esse texto por um conto criado por mim, por ocasião de uma pesquisa socio-poética4 no quilombo5 Água Preta, no município de Tururu, interior do Ceará. Lá realizamos oficinas respectivamente com grupo de crianças e jovens. Durante as oficinas os participantes eram incentivados a expressarem seus conceitos acerca do que seja ser negro/negra, mediante diversas linguagens artísticas e simbólicas. Foi numa dessas oficinas com o grupo de crianças que foram realizadas as esculturas de argila que se encontram no conto acima, a partir do tema gerador ser negro/ser negra. Como facilitadoras desse grupo, minha colaboradora e eu anotamos as impressões que tivemos das esculturas. Na fase seguinte, escrevi esse conto, inspi-rada nas impressões levantadas, conto esse levado posteriormente ao grupo para socialização e interação com o mesmo. Ao trazê-lo para este texto, o intuito é o de formular, de maneira simbólica e metafórica, alguns dos valores que permeiam a cosmovisão africana.

As culturas africanas são de arkhé, termo grego que o estudioso Muniz Sodré (1988) utiliza para referir-se às culturas que se fundam na vivência e no reconheci-mento da ancestralidade. A ancestralidade, mais do que o culto aos ancestrais, é o reconhecimento que todos temos raiz e Origem, Origem essa que não é sinônimo

3 Aqui no sentido de modos de ser, viver, sentir e agir próprios dos negros, bem como, as marcas do legado cultural africano, independentemente da origem étnica.4 A sociopoética é uma abordagem de pesquisa onde o grupo-alvo participa junto com o/a pesquisador/a oficial de todo o processo, da produção dos dados, até a análise dos mesmos. A pro-dução dos dados acontece mediante oficinas onde se recorre a linguagens corporais, artísticas e sim-bólicas, no intuito de suscitar a criação de novos conceitos acerca de um determinado tema gerador.5 Também chamadas de terras de preto, trata-se de comunidades de população negra constituídas a partir de diversos processos, como as fugas, as heranças, doações e compras realizadas durante o sistema escravocrata e posteriormente a este.

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de início e sim de “eterno impulso inaugural da força de continuidade do grupo” (idem, p.153). Saber-se parte de uma linhagem que envolve a família extensa (pais, irmãos, filhos, tios, tias, primas/os, agregados/as) e a comunidade de pertencimen-to (localidade, tribo, etnia) significa conhecer as histórias, os fatos e os mitos fun-dadores que perpassaram as gerações anteriores e que nós iremos continuar trans-mitindo aos nossos descendentes. Os negros e as negras trazidos à força ao Brasil nunca perderam a sua raiz apesar de todas as tentativas brutais de apagamento de suas culturas, filosofias e conhecimentos. Assim são muitos os marcadores cul-turais dos africanos que permeiam a atual sociedade brasileira. O que falta é um reconhecimento e uma valorização desses marcadores, uma auto-consciência da li-gação ancestral, que todos, negros/as e não negros/as possuem com a África, inde-pendentemente de sua cor de pele. Assim, quando a Zoé é dada a oportunidade de conhecer aspectos de sua história e cultura, trata-se de uma viagem iniciática, de conexão com a ancestralidade, mediante algumas de suas atualizações cearenses, brasileiras e caribenhas, que são como os galhos de uma mesma árvore cujas raí-zes são africanas. Nesse sentido, visitar os parentes, não significa necessariamente conhecer a família biológica nem o território africano de onde viemos e sim atar laços com a comunidade maior dos/as negros/as, que compartilham uma mesma raiz, como filhos espalhados de uma mesma mãe.

Durante esse percurso, Zoé (re)descobre alguns dos valores e práticas im-pregnados da cosmovisão africana, tais como: a importância de conhecer a sua história, a relação de continuidade na ancestralidade (passado, presente e futuro não se separam), a esperteza, agilidade e flexibilidade do corpo como filosofia de vida, em culturas onde o corpo é referência tanto nos rituais religiosos, como nos demais aspectos do dia a dia, pelo jogo (a capoeira, a brincadeira), a dança (tam-bém chamada de brincadeira) realizada sem barreiras de idade, das formas mais diversas, a música, a culinária temperada; a desmistificação do sexo visto como algo natural, ao invés de algo pecaminoso (daí que o marinheiro do conto fala de seu membro ativo com naturalidade para a menina), a relação com a natureza e a reverência feita a ela (com gestos, dança, oferendas), a simbologia do fogo e da fogueira como fontes de energia e de conexão com os elementos da natureza, o princípio de circularidade (rodas de dança, de prática religiosa, rodas para comer juntos), o sentimento comunitário, a solidariedade e a hospitalidade (comparti-lhando comidas e festas com Zoé, que mesmo sendo forasteira é imediatamente integrada às atividades pela vivência).

Na cosmovisão africana, o corpo é o lugar de onde tudo parte, é a referência. Como ressalta Oliveira, o corpo (2007, p.103), além de fonte de movimento e ação, é o que inaugura a existência, existência essa que é imediatamente coletiva: “o corpo é a forma cultural que dá forma ao corpo”. O corpo social é, portanto, a ex-tensão do corpo individual. Por isso o que afeta um membro da comunidade afeta a todos.

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desigualdades.

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O corpo é um dos veículos do axé, a força vital. Esta não se trata de força física nem de dominação e sim de poder de realização, de engendramento. Nos terrei-ros, o axé se planta tanto na terra como nos indivíduos, associando-se ambiente físico e humano. As pessoas recebem o axé através de seu corpo, pelo sangue, pelos frutos, pelas ervas e oferendas rituais bem como pelas palavras pronunciadas. O axé é força de fecundidade (biológica e material), de proteção (contra os inimigos e as doenças) e de melhoria da condição social. É também uma força de potenciali-zação, que dá autoridade aos componentes da comunidade e à comunidade como um todo. Acredita-se na preeminência dos mais velhos como detentores de axé pela sabedoria adquirida na vivência. Pior do que o roubo de sua força de trabalho, o desenraizamento imposto ao negro levou ao roubo de sua força vital, obrigando-o a criar para si novos territórios de sustentação e de multiplicação do seu axé, sendo o terreiro um desses espaços de renovação do axé, mas também outros ter-ritórios mais profanos como os maracatus e os sambas de fundo de quintal que na sua origem sofreram influência direta dos valores comunitários dos terreiros.

O corpo é, sobretudo, “o modo do preexistente existir” (idem, op.cit). Segun-do um mito iorubano, o corpo origina-se da lama e foi construído pelo seu criador (Olorun) que lhe instilou o sopro da vida (emà), que se materializa na respiração. Assim, o corpo é natureza e a natureza é corpo. Na tradição africana, não há se-paração entre o ser humano, as plantas, os animais e os minerais. Ao contrário do que faz o racionalismo ocidental dominante, que insiste em distanciar as pessoas cada vez mais da natureza, a cosmovisão africana é ecológica, pois reconhece a indissociabilidade da natureza e da cultura.

O corpo é sagrado e é nele que são inscritos os símbolos do universo. Assim, por exemplo, num ritual de feitura de um santo, no candomblé, o corpo é raspado, marcado, cuidado. Elementos minerais, animais e vegetais são inscritos no corpo, manifestando que a pessoa é um ser da natureza, integrado a ela e ao território maior da comunidade. Incisões e pinturas corporais são signos identitários desse corpo-território feito comunidade-natureza. Diferentemente do corpo ocidental dessacralizado, que é frequentemente racionalizado, objetivado e mercantilizado, na tradição africana, o corpo é espaço de comunhão com os deuses, chegando a habitar nele por ocasião dos transes. Daí serem fundamentais o cuidado e a pre-ocupação com a saúde espiritual, alimentar, física e estética do mesmo, uma vez que essas dimensões são inseparáveis. Cuidar-se, implica cuidar o outro e todo o meio ambiente em que se está inserido/a, já que, como vemos, esses aspectos estão interligados.

A centralidade do corpo nas culturas de arkhé implica também na predomi-nância do sensível. Os sentidos são aguçados num corpo que respira, cheira, fala, canta, chora, grita, dança, ginga e toca. Infelizmente, a cultura escolar prevalecen-te, ao invés de promover a expressão dos diversos gingados do corpo, opta pelo

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disciplinamento e pela opressão das expressões corporais, admitindo apenas duas posições (em pé e sentado) e favorecendo somente a leitura e escrita.

Ora considerando nosso corpo como fonte de conhecimento, passamos a no-tar que a audição não serve apenas para ouvir o/a professor/a, mas também para perceber os sons do próprio corpo, da natureza, dos objetos, dos instrumentos, da respiração e do silêncio. A visão não serve somente para olhar as palavras escritas e sim também para enxergar no escuro, contemplar a lua, observar seu corpo e o comportamento dos bichos e demais seres da natureza (plantas, minerais). Quando aguçado, o olfato permite acessar melhor a intuição, desenvolver a sensibilidade do corpo e do pensamento. Um paladar menos padronizado, aberto a descobertas de novos temperos, especiarias e à diversidade que a natureza fornece (envolven-do frutas, vegetais, grãos e raízes), para além da exagerada predominância das carnes e massas, gera um corpo mais conectado com a nossa ancestralidade. O tato nos propicia sentir as diferentes texturas de chão, duna, pedra, graveto, galho, folha seca, grama. Entramos numa lagoa e sentimos seu fundo de lama cremosa formada pelos resíduos das folhas, numa serra coletamos as mangas e as bananas tocando-as para verificar se estão de vez.

Encerrando as nossas considerações, há de se ressaltar também, a importância da oralidade na cosmovisão africana. Essa não é como muitas vezes se reduz, a prevalência da fala sobre a escrita. Na tradição africana, a fala é mais do que verbo, é uma percepção total: “Quando Maa Ngala [o Criador] fala, pode-se ver, ouvir, cheirar, saborear e tocar a sua fala” (BÂ, 1982, p. 185). A fala é um dom divino que tanto pode criar harmonia como destruir, segundo o uso que é feito dela. É, sobretudo, a materialização das vibrações das forças que o ser humano herdou do Criador. Para suscitar força, as palavras devem ser entoadas de forma rítmica, a fim de gerar movimentos. Assim temos que o tambor também fala, e por isso mesmo é considerado um instrumento sagrado. A tradição oral se funda, ainda, na iniciação e na experiência, o que produz formas de aprendizagem totalmente di-versas das predominantes no ocidente. Essa aprendizagem inclui histórias, lendas, mitos, provérbios, adágios e a genealogia da família e da comunidade. São conteú-dos passados essencialmente pela experiência e segundo as circunstâncias da vida. Como a vida não é cortada em fatias, o conhecimento é passado de forma global podendo envolver simultaneamente diferentes dimensões da vida e das ciências. O grau de conhecimento de um sábio “não é medido pela quantidade de palavras aprendidas, mas pela conformidade de sua vida a essas palavras. (...) é necessário conhecer as palavras herdadas e vivê-las (...) Pois existem coisas que não se expli-cam, mas que se experimentam e se vivem” (IBID, p. 193, grifo do autor).

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Estão no fogo que se apaga,Nas plantas que choram,

Na rocha que geme, Estão na casa.

Nossos mortos não morreram. (Ancestralidade. Birago Diop, poeta africano).

3.1 Zoé e a ancestralidade na escola

Não é fácil conectar-se à ancestralidade africana na escola que temos. Como professora, Zoé sabe disso, pois teve dificuldades para convencer seus colegas da escola da necessidade de realizarem mudanças nos currículos para a cultura afro-brasileira também ter seu espaço, não apenas como folclore, e sim como visão de mundo, como um jeito próprio de ser, sentir, pensar e agir. Descansando na esteira, lembra ela das primeiras experimentações que permitiram quebrar o gelo. No iní-cio, houve as conversas com colegas e núcleo gestor para obter a oportunidade de propiciar uma vivência coletiva à escola. Para tanto, Zoé usou de seus conhecimen-tos, de relatos de algumas experiências concretas que a influenciaram, tais como a sua viagem, aos quinze anos de idade, por alguns povos negros, a descoberta da mitologia africana e das lendas dos orixás, o seu ingresso na capoeira angola6, a participação no maracatu, as vivências corporais no Espaço de Ancestralidade Tempo Livre em Fortaleza7, envolvendo danças e atividades ao ar livre. Recorda que precisou de muitos argumentos de convencimento, mesmo existindo uma lei para respaldá-la. Afinal, os preconceitos existem e raros(as) são os/as colegas que tiveram oportunidade de se conectarem com a ancestralidade africana na sua tra-jetória de formação. Tudo isso era compreensível, pois a experiência sempre fala mais alto que o discurso em si. Por isso foi tão bom quando finalmente a vivência ocorreu!

Zoé rememora o dia em que apresentou a proposta inicial, levando bonecas negras para a sala dos professores, logo pedindo para que as pegassem e tocassem, houve muito estranhamento, mas ajudou a refletir sobre a nossa relação com a ne-gritude e as africanidades.

Finalmente, o dia chegou! Nessa primeira experiência foram os/as colegas que aceitaram participar, dentre eles, o núcleo gestor e alguns funcionários, inclusive vigia e pessoal de serviços gerais. Essa quebra da hierarquia e da segmentação foi muito importante para gerar um sentimento de pertencimento comunitário. Foram para uma área de praia que possui uma mata e fica relativamente próxima a uma lagoa. Nesse dia trajaram roupas leves (de banho) e foram descalços. Após um breve alongamento, andaram até a mata. Ao entrarem nela, realizaram um

6 Tipo de capoeira caracterizada pela inventividade, malícia, esquiva e ginga, baseada nos movi-Tipo de capoeira caracterizada pela inventividade, malícia, esquiva e ginga, baseada nos movi-mentos naturais do corpo, executados em ritmo lento e com prevalência dos planos médio e baixo. 7 Casa situada em Fortaleza que promove diversas práticas e terapias corporais baseadas nos prin-Casa situada em Fortaleza que promove diversas práticas e terapias corporais baseadas nos prin-cípios da consciência corporal e ensinamentos da ancestralidade africana.

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gesto de reverência à mãe terra, tocando a terra com as mãos, percebendo os chei-ros da natureza. Lá dentro caminharam, procurando manter o silêncio e, em de-terminado momento, pararam para escutarem com mais atenção os sons da mata. Acharam umas árvores mais grossas e cada um/a foi abraçar uma árvore, sentindo a energia que ela transmite. Em seguida cada um/a foi incentivado/a a apropriar-se de algum elemento da mata, quer fosse vegetal, mineral ou animal. Então, sen-taram em roda e cada um/a explicitou o motivo de sua escolha e os sentimentos suscitados por esse momento. Após devolverem o elemento apropriado, saíram da mata, foram para as dunas, onde também deitaram, sentindo a energia da areia. Em seguida tiraram a areia mergulhando na lagoa, e por fim, tomaram banho de mar. Dessa forma, experimentaram várias texturas e espaços geográficos. No com-partilhamento da roda de conversa que encerrou, comeram frutas e beberam água, evitando deixar lixo. Foram tantos os sentimentos e as sensações acessados!

A experiência gerou uma verdadeira revolução na escola! Os que não tinham ido ficaram sabendo e se sentiram contagiados/as pelo entusiasmo e a emoção nos relatos vibrantes dos/as participantes. A partir daí, essas vivências foram orga-nizadas com as turmas de alunos/as, sempre misturando os grupos com funcio-nários/as da escola e até alguns pais de alunos/as. Os/as alunos/as adoraram! O encantamento foi tão grande que outras atividades foram incorporadas, como: dar comida a um animal, fazer carinho nele, banhá-lo, conversar com ele; plantar uma mangueira e depois usar suas mangas para merenda; fazer uma horta e aproveitar as plantas comestíveis para alimentação na cantina e as medicinais para as práticas de saúde; realizar mais momentos festivos onde, ao som de músicas de raiz, ou de instrumentos fabricados pela própria comunidade escolar, a dança fosse praticada em roda, permitindo a participação de professores/as, alunas/os, funcionários/as, pais, todo o mundo misturado, passando por cima das barreiras sociais e de faixa etária. Aos poucos a escola foi mudando, procurando modos mais interdiscipli-nares de funcionamento, escolhendo temas geradores que permitissem tratar dos assuntos da cosmovisão africana sob os mais diversos ângulos. Pessoas idosas, artesãs e artistas eram convidadas para compartilharem seus conhecimentos de vida mediante ensinamentos práticos, reforçando-se assim os laços com a comu-nidade. As principais lições foram o reconhecimento da vivência concreta como ponto de partida para as ações pedagógicas e a maior conexão possível com a natu-reza. Leituras, escritas, observações, assistir vídeos, pesquisar na internet, escutar depoimentos, tudo isso era sempre precedido de vivências, conforme o adágio africano “dizer é fazer”. Foram muitas mudanças, algumas encontrando resistência por parte de pessoas conformistas, mas as experiências terminavam seduzindo e convencendo quase a todos/as e hoje a escola era outra: mais viva, popular e libertária, sobretudo mais (afro)-brasileira, deixando de ser unilateralmente racio-nalista européia. Que satisfação! Pensava Zoé, já levantando da esteira para se

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arrumar, pois estava na hora dela ir se encontrar com a turma ansiosa por novas experiências criativas.

Para Refletir (Fazendo)

Reflita sobre a relação que você estabelece com seu corpo e o meio ambiente ▪e as mudanças ocorridas nessa relação na sua vida (possivelmente seu corpo de criança era mais solto e interligado à natureza) e analise como você pode tornar essa relação hoje mais natural e integrada na sua vida e, conseqüente-mente, na escola que você trabalha. Procure reconhecer os sinais da sua ascendência africana no seu corpo e na ▪sua família, buscando formas de valorizá-los. Reflita sobre as formas concretas de potencialização do corpo nas atividades ▪curriculares da sua escola - o que pode ser mudado na metodologia de ensino e nos conteúdos para o corpo ser aproveitado como fonte de conhecimento?Reflita sobre o significado filosófico da roda (círculo) e porque esta forma ▪circular está tão presente nas africanidades; em seguida imagine como traba-lhar a roda como tema gerador nas disciplinas da escola. Descubra quais as marcas culturais da cosmovisão africana que se encon- ▪tram no seu cotidiano e no dos/as seus/suas alunos/as e veja de que forma esses valores, práticas e conhecimentos podem ser incorporados no ensino, de forma criativa. Descubra quais os locais que podem ser visitados e aproveitados para vivên- ▪cias na região que você ensina: espaços naturais tais como serras, cachoeiras, rios, pedras, dunas, mares, lagoas, mas também lugares “encantados”, que carregam símbolos da africanidade existente na sua localidade.

Dicas de Bibliografia e de Material Audio-Visual

ADILSON DE OXALÁ: Igbadu- a Cabaça da Existência, mitos nagôs revelados. Rio de Janeiro: Pallas, 2001.

ALMEIDA, Rosane Pires de, LIBANIA, Celeste, SOUSA, Andréia Lisboa de, SOUZA, Edileuza, Penha de. Ancestralidade e diversidade na travessia do Ocea-no Atlântico. In: Edileuza, Penha de. (org): Negritude, cinema e educação – Caminhos para a implementação da Lei 10.639/2003. Vol.1. Belo Horizonte: Mazza, 2006.

BÂ, Hampaté A. A Tradição Viva In: VERBO, J-KI: História Geral da África. São Paulo:Ed. Ática: 1987. Páginas 181-218.

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CRUZ, Norval Batista, PETIT, Sandra Haydée: A arkhé enquanto fonte de inspiração para o ensino da história e da cultura afro-brasileira. Trabalho publicado nos Anais do VIII Congresso Ibero-americano de História da Educação da América Latina. Buenos Aires: SAHE, 2007.

MARTINS, Adilson: Lendas de Exu. Rio de Janeiro: Pallas, 2005.

MEC: Valores afro-brasileiros na educação. Boletim 20. Brasília: MEC/SEED/SF Novembro de 2005 (Traz contribuições dos professores Henrique Cunha, Carlos Moore, Azoílda Loretto da Trindade, Maria de Lourdes Siqueira, Juarez Tadeu de Paula Xavier).

MEC: Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: SECAD/SEP-PIR (2004).

MILITÃO, João Wanderley Roberto (Pingo de Fortaleza). Maracatu Az de Ouro – 70 anos de memórias, loas e batuques. Fortaleza: OMMI, Solar, 2007.

OLIVEIRA, Eduardo. Cosmovisão Africana no Brasil – Elementos para uma filosofia afrodescendente. Fortaleza: LCR: 2003.

OLIVEIRA, Eduardo David de. Filosofia da Ancestralidade – Corpo e Mito na Filo-sofia da Educação Brasileira. Curitiba: Editora Gráfica Popular, 2007.

SODRÉ, Muniz (1988): O Terreiro e a Cidade. Salvador: Imago, 1988..

E ainda: os livros de contos de Edmilson de Almeida Pereira, Joel Rufino dos San-tos, Rogério Andrade Barbosa, Prisca Agustoni, Gcina Mhlophe.

DVDs

ATLÂNTICO NEGRO – NA ROTA DOS ORIXÁS: A relação de ancestralidade entre Brasil e África através das cosmologias africanas e afro-brasileiras; SEXTA-FEIRA: o que aconteceu na ilha onde Robinson Crusoé naufragou, do ponto de vista do nativo negro e de seus valores civilizatórios. Questiona a rela-ção que um Branco Europeu estabelece com o nativo quando pretende “civilizá-lo”.

KIRIKU: conto que traz à tona valores ligados à cosmovisão africana mediante a

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história do menino que, embora pequeno, se mostra mais sabido, esperto e criati-vo ao enfrentar a rainha malvada que oprime o povoado.

MADAME SATÃ: baseado em fatos reais, retrato da personalidade forte de um Negro, malandro homossexual no bairro popular e boêmio da Lapa (Rio de Janei-ro) e que luta para ser reconhecido como artista.

BUENA VISTA SOCIAL CLUB: uma viagem por Cuba onde velhos músicos re-descobertos se encontram para tocarem juntos. Um retrato comovente de músicos de raiz cubanos.

ACÚSTICO MARCELO D2: a música desse cantor que mistura rap e samba.

CUBA FELIZ: musicalidade do povo cubano na viagem do cantor popular El Gallo.

Algumas sugestões musicais

Reggae: (Bob Marley, Peter Tosh, Ponto de Equilíbrio, Cidade Negra, Natiruts, Kaya na Gandaia de Gilberto Gil) Músicas de Gilberto Gil, Martinho da Vila, Dona Ivone Lara, Jackson do Pandeiro, Elza Soares (notadamente A Carne, Hoje é dia de festa), Carlinhos Brown (por ex, Alfagamabetizado) Timbalada, Dona Edith do Prato (samba de roda) Ilê Aiyê (ijexa), Dona Tetê (ritmo cacuriá do Maranhão), Pingo de Fortaleza (notadamente Maracatu-ARÁ e a música Maculelê), Lia de Ita-maracá (cirandas de Pernambuco), Virgínia Rodrigues (CD Nós com música do Ilê Aiyé em versão erudita), Rappin’ Hood (Sujeito Homem I, em particular a faixa “eu sou negão” e Sujeito Homem II, em particular Os Guerreiros, Zé Brasileiro, Dia de Desfile, Axé), o CD A Cara do Povo, de Leci Brandão (em particular, Negro Zumbi e Saudação a ba), Naná Vasconcelos (jazz experimental com instrumentos afro e indígenas); Música Africana: Lokua Kanza, BONA, Habib Koité, Angélique Kidjo, Frères Guissé, Fanga (respectivamente, Congo, Camarões, Mali, Costa do Marfim, Senegal, Nigéria).

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