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DISTRIBUIÇÃO GRATUITA. NÃO PODE SER VENDIDO. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. OSSALTIMBANCOS + F ROL V #2 < dezembro < 2006 PUBLICAÇÃO DA PREFEITURA MUNICIPAL DE FORTALEZA LAN HOUSES DA PERIFERIA O PALHAÇO TIRIRICA BREAK NO PANTANAL

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Revista Farol nº2, publicação da Prefeitura Municipal de Fortaleza

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V#2 < dezembro < 2006

PUBLICAÇÃO DA PREFEITURAMUNICIPAL DE FORTALEZA

LAN HOUSES DA PERIFERIAO PALHAÇO TIRIRICA BREAK NO PANTANAL

PREFEITURA MUNICIPAL DE FORTALEZAPrefeita: Luizianne LinsFundação de Cultura, Esporte e TurismodaPrefeitura Municipal de FortalezaPresidente: Silvia BessaEditora-geral: Ethel de PaulaEditora adjunta: Ana Cláudia PeresEditor de fotografia e capa: Drawlio JocaEdição de arte e editoração eletrônica:Andrea AraujoProjeto gráfico: Gil DicelliColaboraram nesta edição: Ana Mary C.Cavalcante, Carolina Dumaresq, CláudiaAlbuquerque, Danilo Patrício, RicardoKelmer e Silvia BessaFotos: Drawlio Joca, GustavoPellizzon,Igor Câmara, José Albano,Ricardo Damito e Wanessa MaltaRevisão: Ana Cláudia Perese Ethel de PaulaJornalista responsável: Ethel de PaulaCE 01189-JPTiragem: 25 mil exemplaresContatos: FUNCET(Rua Pereira Filgueiras, 04 - Centro)Telefone: (85) 3226.0838E-mails: [email protected]ção gratuita na Funcet,Secretarias Executivas Regionais,equipamentos culturais, escolas públicasmunicipais, associações de moradores,organizações não governamentais,universidades públicas e eventos daPrefeitura Municipal de Fortaleza.

EXPEDIENTE

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eu recebia. Aí ele (dr. Evaristo) ia arrecadandoaquele dinheiro e anoiteceu e ninguém sabe nempra onde foram com aquele dinheiro. Teve que seacabar. Entregaram uns (pontos) e outros não.Naquele tempo, a gente pagava 15 mil réis por mêse depois subiu pra 75 centavos. E a gente pagavaa semana ou por dia. Eu comprei o ponto e pagueia estadia pra tá no ponto”, rememora.

E antes mesmo de ser concluído, aquele quedeveria ser o maior mercado de Fortaleza sucumbiuà nova dinâmica da economia brasileira. Vivia-se amodernização. “O mercado aqui, o projeto era praser maior do que o do Mercado São Sebastião. Vendiacenoura, repolho, beterraba, vinha de Guaramiranga,vinha de São Paulo. Era um tempo bom, eu vendiade 26 carradas por semana. O que acabou com essemercado foi a Ceasa (Central de Abastecimento doCeará). Nessa época, em 72, ano em que foiconstruído a Ceasa (N.R. A Ceasa foi inaugurada em1971), era tudo mato e os carros não queriam ir pralá, queriam vir tudo pra cá. Aí o César Cals acaboucom isso aqui porque os caminhões não queriam irpra Ceasa e também porque o Mercado nunca foiconcluído. Eles enrolaram. Aí quando foi em 1974 oCésar Cals mandou a saúde condenar pra poderdesocupar”, conta o morador José Elísio Sampaio,64, num fôlego só.

Naquele tempo, vivia-se os anos de chumbo e arepressão militar também se fez sentir na Duque deCaxias. “O que aconteceu é que quandodesapropriaram, eu já tava com mais de quatro anosno pontinho que eu comprei. Morava com meus filhospequenos. Morava e trabalhava, negociando. Foi

quando desapropriaram e todo mundo saiu, pra nãodizer aquela palavra (mas já dizendo!), com a mãona bunda e outra na frente, sem nada, sabe o que ésem nada? Saia daqui e saia daqui! Chegou a forçasarmadas e todo mundo saiu...”, dona Lurdes recordao tempo em que ficou longe.

Essa era uma particularidade do mercado. Muitosdos comerciantes, com anuência dos proprietários,faziam de seus estabelecimentos lugar de dormida.Por isso, quando o cerco policial cingiu o velhomercado, veio gente de toda a redondeza assistirao triste espetáculo. Quem saía, sentia que perdiamuito mais do que um trabalho. Alguns, com sorte,atravessaram a rua lateral e levantaram paredes detapume em um pequeno terreno desocupado. Outrosforam para bem mais longe. E grande parte, E antesmesmo de ser concluído, aquele que deveria ser omaior mercado de Fortaleza sucumbiu à novadinâmica da economia brasileira. Vivia-se amodernização. “O mercado aqui, o projeto era praser maior do que o do Mercado São Sebastião. Vendiacenoura, repolho, beterraba, vinha de Guaramiranga,vinha de São Paulo. Era um tempo bom, eu vendiade 26 carradas por semana. O que acabou com essemercado foi a Ceasa (Central de Abastecimento doCeará). Nessa época, em 72, ano em que foiconstruído a Ceasa (N.R. A Ceasa foi inaugurada em1971), era tudo mato e os carros não queriam ir pralá, queriam vir tudo pra cá. Aí o César Cals acaboucom isso aqui porque os caminhões não queriam irpra Ceasa e também porque o Mercado nunca foiconcluído. Eles enrolaram. Aí quando foi em 1974 oCésar Cals mandou a saúde condenar “O que

EDITORIAL

ROSTOSPAISAGENS

> 3 <NAVEGAR É

PRECISO

> 12 <NAVEGAR É PRECISO

> 17 <NAVEGAR É PRECISO

> 8 <NAVEGAR É

PRECISO

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> 20 <NAVEGAR É

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ROSA DOS VENTOSEscreva: www.farol.com.brEscreva: www.farol.com.brEscreva: www.farol.com.brEscreva: www.farol.com.brEscreva: www.farol.com.br

ÍNDICE

> 22 <NAVEGAR É PRECISO

> 25 <NAVEGAR É PRECISO

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> 33 <NAVEGAR É PRECISO

> 23 <NAVEGAR É

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Raimundo da Silva esua montanha decarvão, à venda massem comprador. Napágina ao lado, donaLurdes, exímianarradora

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TEXTO < CAROLINA DUMARESQFOTOS < RICARDO DAMITO

NA DÉCADA de 60, a Central deAbastecimento Duque de Caxias fervia. A avenidaque lhe emprestava o nome era a passarela paraos muitos caminhões que rasgavam o País comsuprimentos tão sortidos quanto os boxes daúltima parada comercial. De frutas a verduras, avariedade era do tamanho das possibilidades doalfabeto, de A a Z. Um mercado turco que, após areforma que descaracterizou em parte o pioneiroSão Sebastião, tomou para si a condição de maisantigo mercado de Fortaleza. Assim inicia-se aextensa narrativa do Mercado Velho, um antigoentreposto comercial, cuja histór ia estáintimamente atrelada às muitas gerações defamílias que vivem em seu entorno.

Localizado em uma área estratégica, quandoa Duque de Caxias corta o Otávio Bonfim, há maisde quatro décadas, o impávido Mercado Velhoresiste à sina desbragada da especulaçãoimobiliária. Por ironia do destino, só se manteveerguido porque abriu mão de sua naturezacomercial. Reinventou-se. Hoje, onde deveriamexistir boxes existem casas e os consumidoresderam lugar a aferrados moradores. Muitos dosquais, comerciantes. O Mercado Velho do séculoXXI mais parece uma ocupação para quem passadesavisadamente pela grande avenida. Masaqueles que percorrem seus adensados labirintosse deixam fascinar por sua desconcertanteestética arquitetônica. As diferentes casaslevantadas a partir de eqüidistantes vigas ecolunas pré-existentes lhe dão a um só tempo umaidéia de desordem e harmonia. Ali, o presente équando o futuro vira passado. E tudo se mistura.

A calçada da residência de dona LurdesGaldino,70, guarda pisadas de tempos remotos.Situada no que seria a frente do Mercado, éprovável que tenha sido lá que, há mais dequarenta anos, a firme comerciante tenhatrabalhado de ambulante. Improvisava uma bancana calçada e vendia café, bolo e tapioca aosoperários que construíam o fosso da antiga centralde abastecimento. “Trabalhei na construção dosprimeiros alicerces até o final, quando pararam.Eu sou a única que sei contar essa história eninguém sabe. As que moram aqui não sabem.

MEMÓRIASDE UM VELHOMERCADO

Ali, nas galerias debaixo do chão, eu me sentavaque só faltava me deitar pra entregar um copodesses aqui com café e tapioca lá pra baixo e ohomem se trepava na parede e pegava lá em cimada minha mão. Quando comecei a trabalhar poraqui eu tinha 22 anos de idade”.

Inaugurado o mercado, embora inacabado, donaLurdes comprou um ponto comercial que eratambém residência. Dali vibrou com os gols de Pelé,viu a minissaia ganhar as ruas e serviu muito caféPery. Ouvia falar também na construção de umgrande mercado no caminho de Maracanaú. Umburburinho que varreu a área um pouco antes dosbarulhentos caminhões deixarem de vir e dosconsumidores sumirem. Assim, nos libertários anos70, a Duque de Caxias emudeceu. O Mercado Velhopassou a régua nas suas vendas; o saldo foidevedor. “Foi o seguinte: quem tava construindo omercado foi um homem por nome dr. Evaristo edona Camila. Essa história eu já contei mais deduas ou três vezes. E eles anoiteceram e nãoamanheceram. Era assim: por exemplo, eu soucadastrada, você é cadastrada e ele é cadastrado.Eu pago dois pontos, você paga quatro pontos, elepaga três. Aí, quando acabava de construir o seu,você recebia, quando acabava de construir o meu,

eu recebia. Aí ele (dr. Evaristo) ia arrecadandoaquele dinheiro e anoiteceu e ninguém sabe nempra onde foram com aquele dinheiro. Teve que seacabar. Entregaram uns (pontos) e outros não.Naquele tempo, a gente pagava 15 mil réis por mêse depois subiu pra 75 centavos. E a gente pagavaa semana ou por dia. Eu comprei o ponto e pagueia estadia pra tá no ponto”, rememora.

E antes mesmo de ser concluído, aquele quedeveria ser o maior mercado de Fortaleza sucumbiuà nova dinâmica da economia brasileira. Vivia-se amodernização. “O mercado aqui, o projeto era praser maior do que o do Mercado São Sebastião. Vendiacenoura, repolho, beterraba, vinha de Guaramiranga,vinha de São Paulo. Era um tempo bom, eu vendiade 26 carradas por semana. O que acabou com essemercado foi a Ceasa (Central de Abastecimento doCeará). Nessa época, em 72, ano em que foiconstruído a Ceasa (N.R. A Ceasa foi inaugurada em1971), era tudo mato e os carros não queriam ir pralá, queriam vir tudo pra cá. Aí o César Cals acaboucom isso aqui porque os caminhões não queriam irpra Ceasa e também porque o Mercado nunca foiconcluído. Eles enrolaram. Aí quando foi em 1974 oCésar Cals mandou a saúde condenar pra poderdesocupar”, conta o morador José Elísio Sampaio,64, num fôlego só.

Naquele tempo, vivia-se os anos de chumbo e arepressão militar também se fez sentir na Duque deCaxias. “O que aconteceu é que quandodesapropriaram, eu já tava com mais de quatro anosno pontinho que eu comprei. Morava com meus filhospequenos. Morava e trabalhava, negociando. Foiquando desapropriaram e todo mundo saiu, pra nãodizer aquela palavra (mas já dizendo!), com a mãona bunda e outra na frente, sem nada, sabe o que ésem nada? Saia daqui e saia daqui! Chegou a forçasarmadas e todo mundo saiu...”, dona Lurdes recordao tempo em que ficou longe.

Essa era uma particularidade do mercado. Muitosdos comerciantes, com anuência dos proprietários,faziam de seus estabelecimentos lugar de dormida.Por isso, quando o cerco policial cingiu o velhomercado, veio gente de toda a redondeza assistirao triste espetáculo. Quem saía, sentia que perdiamuito mais do que um trabalho. Alguns, com sorte,atravessaram a rua lateral e levantaram paredes detapume em um pequeno terreno desocupado. Outrosforam para bem mais longe. E grande parte,

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seguindo a orientação dos ventos que sopravam naépoca, lenta e gradualmente voltou. Como anunciavaa música que tocava nos rádios de pilha, o sol brilhoumais uma vez.

O movimento de retorno foi possibilitado pelapresença de um preposto no terreno, que após terse convencido do malogro do negócio, resolveucomercializar irregularmente pedaços da área.Melhor dizer, da construção. O retorno de donaLurdes durou cinco anos. Do Morro D´ouro, ondepassou a morar, encontrava sempre um jeito decolocar o Mercado Velho no trajeto das feiras emque passou a trabalhar. Um dia, parou em frente aomercado desativado e se deu conta da presença deum pequeno comércio informal no seu entorno.Como no passado, decidiu que pararia ali mesmo.“Aí comecei a trabalhar por aqui de novo, na feira. Opai dos meus meninos me deu uma carrocinha queera dessa largurinha aqui, uma geladeirazinha assimdesse tamanho, era carrocinha pra trazer ascoisinhas. Um dia, vim pra feira com cinco pão, umbolo, um litro de café, meio de chá, e cadê vender?!Era sexta-feira e eu amanheci o dia pelejando e aífui ficando, ficando... E eu falei com os antigos donos:‘eu queria que o senhor me desse licença pra irpraquele lado ali’. Eu já tinha morado uns quatroanos por aqui, né? Ele disse: ‘escolha um canto pravocê’. Aí fiquei aqui”. No princípio eram oito casas.No ano seguinte, o dobro. Logo a ocupação passoua crescer desordenadamente em progressãogeométrica. Hoje são quase 200 casas. Não temmais como expandir, embora alguns moradores játenham construído segundo pavimento sobre suasresidências para abrigar agregados da família.

Por esse motivo, muitos dali guardam parentescos.E essa particularidade, sozinha, já explicaria a relaçãovisceral que os moradores têm com o Mercado. Erajustamente sobre isso que dona Maria de FátimaMarcelino, 53, falava enquanto lavava uma pilha semfim de roupas. “Já tentei morar na Parangaba, nãoconsegui e vim embora. Botei as meninas num carroe voltei pra cá. Fui morar no Pirambu também, numacasa que o pai dos meus meninos me deu, de azulejode cima abaixo e também não agüentei. Muita gente

que já saiu daqui voltou. Porque aqui você mora deporta aberta. O meu município é aqui”, sintetiza donaFátima Marcelino. A costureira chegou ainda pequenacom a família, há quatro décadas, e nunca maisconseguiu ir embora.

Quando a filha Jocasta nasceu, dona Maria deFátima era operária de uma fábrica. Leite até tinha,mas o tempo era escasso demais para alimentara recém-nascida. Coube à vizinha, dona Josefa,cumprir a função de mãe-de-leite. Hoje, quandoJocasta chama pela mãe, é atendida por duasmulheres, irmãs por opção. A jovem Jocasta,também mãe, sente orgulho das raízes fincadasnuma terra onde brota água cristalina. “Quem bebea água do Mercado Velho não sai mais”, filosofa.

A observação é antes de tudo uma verdade.Meses atrás, técnicos estiveram na área colhendoamostras da água que jorra do poço profundolocalizado na comunidade. Resultado: águaprópria para o consumo. O mesmo não se podedizer das águas do Riacho Jacarecanga, que corre

canalizado sob as casas do Mercado Velho e quedesponta, fétido, em um terreno vizinho. O maucheiro é conseqüência das inúmeras gambiarrasde esgotos clandestinos.

Já foi pior. Antes da canalização, quando o riachoera corrente, corria água numa velocidade tão grandeque arrastava o que se interpusesse em seu curso.Destemido, era o Mercado Velho a desafiar repetidasvezes a torrente de águas. Uma viga sequer nuncase deixou envergar, mas, como bom soldado, sofreualgumas avarias. Dona Lurdes não precisa puxar pelamemória. “Ai, meu Jesus, nem me fale nisso. Ocorrente trazia lixo era dali pracolá, trazia todo tipo desujeira. Chinela, se não atrepasse, amanhecia o diadescalço. Cansei de atrepar o fogareiro. Amanheciao dia olhando pro chão, de cima da rede”.

Já as crianças faziam a festa nessas ocasiões.“Peguei muita melancia correndo dentro d´água”,diverte-se dona Maria de Fátima, revivendo asperaltices dos seus 13 anos. E lança mão dofantástico ao historiar os episódios do lugar. “Minhamãe contou que um dia de madrugada viu umhomem virando lobisomem bem ali. Quandofechava o mercado, ele pulava o muro”, juraJocasta, retransmitindo a fábula contada pela mãe.

Histórias que passam de geração para geraçãosão uma forma de driblar o descaso da história oficial.Aos mais velhos, cabe o papel de guardiões damemória do lugar. Dona Lurdes é uma dessas quefaz de sua função uma profissão de fé. É ela quematesta a credibilidade dos entrevistados. “O pessoalaqui querem inventar muito é 171. Chegaram bemdepois. De antigo só tem eu, a Fátima, a dona-maria-mãe-da-fátima, seu Manuel e a dona Celeste, queeu acho que já morreu. Tem outra também, a Helena.Meu filho mais novo, eu tive ele depois que acabou-se o mercado. Olha, faz tanto tempo, que ele hojetem 33 anos, olhe bem quantos anos faz”. Por essase outras, não há um só jovem da comunidade quenão conheça a trama enredada pela antiga centralde abastecimento. A preservação da oralidade diz,em outras palavras, o mesmo que profetizou seuElísio. “O Mercado Velho não se acaba, não. Ele nãomorre nunca”.

No Mercado Velho, a água que brota do chão é cristalina. Quem bebe jamais consegue sair de lá. Maria de Fátima Marcelino (abaixo) confirma a tese

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Frei Humberto é quase um mito noMercado Velho. Antes mesmo demorrer, há quase dois anos, já eraadorado. Assim como a canalização docorrente, foi dele a idéia de reformaras precárias casas da comunidade emregime de mutirão. Cinco anospassados, os moradores lembram queno início era difícil acreditar que aexperiência daria certo.

Diferente dos vizinhos, a moradoraÂngela Maria da Silva, 35, não tem umretrato do religioso na parede de casa,mas tem motivos de sobra para tê-locomo guia espiritual. Foi a partir domutirão que Ângela reduziu asestatísticas do desemprego eprofissionalizou-se. “Construí 22 casas,fazendo do alicerce à parede até otelhado”, contabiliza a pedreira, semfalsa modéstia.

Ângela entende do riscado. Entendemais ainda da profissão de mecânica,descoberta mais recente. Começoucomo ajudante em uma oficina de peçasdo Mercado Velho e logo viu-se amecânica mais procurada. Em umaquarta-feira, véspera de finados, passavapouco das dez da manhã e Ângela jáconcluía o quinto conserto. O cliente, quevinha de Caucaia, acompanhava ansiosotodo o serviço, sobretudo porque a peçadefeituosa já havia passado por outraoficina. Menos de uma hora depois, amecânica entregou o equipamento emperfeito estado de funcionamento. Ohomem agradeceu, pagou e tiroubrincadeira. Nada desrespeitoso. Ângelapouco sorriu.

PROFISSÃOMECÂNICA

Quando fevereiro chegar, oslabirintos do Mercado Velho vão abrirpassagem para o Maracatu NaçãoAxé de Oxossi, que vai sair pelaprimeira vez em 2007. Estreante, sóele, porque a fundadora, dona Mariade Fátima Marcelino, há muitasdécadas alterna posto de costureirae direção nas agremiaçõescearenses. Ela e toda a família,legítimos cidadãos “mercado-velhoenses”, desde sempre sedeixaram levar pela cadência dobumbo marcado do Maracatu.

Dona Maria de Fátima não tem casa;tem barracão. Parte do ano, anda feitorainha sobre um chão de plumas. Asmáquinas de costura desfiamquilômetros de fios coloridos. E dia enoite viram uma coisa só. Um frenesique só acaba quando a DomingosOlímpio surge em resplendor.“Maracatu significa o tempo dosescravos, a época que existia princesae rei. Uma tradição que vai passandode mim pros meus nove netos. Antes,pra agremiação que eu ia levava meupessoal. Agora, meu maracatu vai sairdaqui, do Mercado Velho, e vai praavenida. Porque o importante é ter omaracatu dentro da comunidade”.

Inês Mapurunga e DescartesGadelha assinam a letra da loa. Maso desafio é vestir as princesas doMercado Velho. “Comprei pena efazenda no cartão da galega, a vizinha.Mas tenho que comprar papelão,conseguir os instrumentos, uma luta”,reconhece, mas sem perder a fé.

AXÉ DEOXOSSI

Quando está no ofício, a mecânicaé séria e pouco afeita a conversas. Foradele, também. O comportamentocontido é uma maneira de proteger-sedo preconceito que admite enfrentarpor ter profissões mais comuns aouniverso masculino. “Alguns chegam enão querem nem falar com a gente.Sou muito discriminada por causadisso, porque eu trabalho com esse tipode serviço e tem muita gente que achaque quem trabalha com isso é sapatão.Aí já pega mais pesado”, lamenta.

Nem por isso pensa em largar oofício. É ela quem sustenta a casa, omarido desempregado e mais trêsmeninos. Mas quem a escuta falar comtanta propriedade do trabalho, desconfiade outras razões. “Sou mecânica,trabalho com motor de geladeira e demáquina, bomba d’água e compressor.Comecei ajudando meu patrão: ele mepedia uma chave, eu dava; e iaobservando quando ele desmontava asbombas e o motor. O mais difícil demontar é a bomba d´água, porque temmais de trinta peças, tem que saberdesmontar e montar tudinho de novo.Nunca montei nenhuma errada. Atéagora, não. Compressor também édifícil. A cabeça de um compressor jácaiu em cima do meu dedo. O mais difícilque eu consertei foi uma bombasubmersa que o homem trouxe, foi umquebra-cabeça danado, eu não tinha aprática e era a primeira vez que eu tavaconsertando uma dessa. Deu trabalho,mas depois me acalmei mais e conseguimontar ela todinha de novo”.

Ângela construiu 22 casas como pedreira e descobriu-se mecânica das boas

Jocasta, filhade Maria de

Fátima, é umadas princesas

do maracatu

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É DIA no Mercado Velho. Os corredores de passagemsão disputados por dois públicos bem diferentes. De umlado, as mulheres que brigam por espaço para a atividadediária de lavar e estender roupas. Do outro, crianças corremcom bola, equilibram malabares, tocam instrumentos,insultam-se. Vão surgindo aos borbotões pelos muitosbecos da comunidade. Assim, de dia no Mercado Velho,escutam-se dois barulhos: da água sendo retirada dasbombas e do peso das bolas dentro das bacias de roupa.

Sentada na soleira da porta, dona Maria Mercedes daSilva, 68, tenta dar conta de um balde de roupa agarradoentre as pernas. “Lucaaaas!”, ela grita pelo neto antesde perdê-lo de vista. Deixa a roupa por alguns instantese vai buscar a escova e o copo d´agua para a limpezados dentes-de-leite do caçula da família.

O marido, seu Raimundo da Silva, 65, permaneceimóvel na cadeira bem em frente à montanha de carvãoque chama atenção na Duque de Caxias. A montanha hámuito não diminui. As vendas estão fracas. “Se vender éuma ou duas latas”, seu Raimundo lamenta. O negócioanda tão ruim que dona Maria Mercedes já se queixadas desvantagens do serviço. “A gente mora junto com ocarvão, é tudo coberto de poeira...”, diz zangada.

Para entrar na residência do casal, tem-se que primeiroatravessar o monturo de madeira escurecida. Na sala,uma rede abriga um menino já crescido, alheio ao barulhoda cidade acordada. Uma grande viga do antigo mercadocorta a parede da cozinha, que acaba em um quintaltomado por carvão. A família “da Silva” mora junto com ocarvão. Mas é dele o maior pedaço.

Outro que domina o pedaço é o Cancão, gralha quedeixou a caatinga para viver nas gaiolas do Mercado Velho.Dona Joana Maria da Conceição não encontrou a identidadepara conferir a idade, mas sabe de cor os benefícios da ave.“Dizem que cancão é bom pra falta de ar. O cancão é umaciência pra defender das coisas ruins que vêm. Aqui muitascasas têm cancão. Esse daqui, hoje mesmo fiz uma misturade castanha pra ele. Ele gosta também de carne crua. Masnão pode botar sal, seca a titela”, ensina a sabedoria popular.

Para tristeza dos criadores do pássaro, a tradiçãodesaconselha alimentar o bicho com milho. Mas sepudesse, a ração tava garantida. Impressiona a quantidadede gente que lida com espigas. Impressiona mais ainda aquantidade de carroças estacionadas nas vias de acessoda comunidade. Sorte que saem cedo. Para voltar pra casasem mercadoria, é preciso madrugar nas feiras da cidade.

As mulheres agradecem. Seria difícil lavar tantos pratoscom os estreitos corredores congestionados de carroças. Eé justamente por considerarem pequena a cozinha quemigram para a amplidão das calçadas. Outra: a hora doenxagüe da louça é também a hora de colocar o assuntoem dia com as vizinhas. A palestra, se não for depois doalmoço, só à noite, na praça da comunidade.

O logradouro do Mercado Velho nada mais é do que umentroncamento de vias poucos metros mais largas do que opadrão local. Mas noite sim, noite não, os moradores deixamsuas casas e em poucos passos desfrutam do melhor convívioque um passeio pode oferecer. Hora dos adultos viraremcrianças. E vão surgindo aos borbotões pelos muitos becosda comunidade.

DO CARVÃOAO CANCÃO

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BASTA um aperto de mão paraperceber a robustez de Manuel Paixão. Depé, a altura chega a intimidar. Não tantoquanto os braços fortes de quem levantatoneladas há 83 natais. Seu Manuel Paixãotem delicadeza no nome e na voz pausadaque nunca se altera. De pé, é um gigantena altura e na retidão de caráter.

Há alguns meses, o vigoroso Manuelquebrou um osso na região da bacia depoisde uma queda. As pernas ficaram fracas eaos poucos se recuperam. Assim como ele,as paredes do Mercado Velho quesustentam as casas perderam a força.Convive-se hoje com o perigo dedesabamento. Diferente de seu Manuel, queestá se recuperando, para as escoras dovelho mercado não existe mais tratamento.Há sobrecarga grande de peso e os ferrosestão num avançado estágio de corrosão.A preocupação de dona Maria Mercedesnão é em vão. “Às vezes tenho medo dissoaqui cair”.

Os problemas da adensada comunidadesão de várias ordens. Falta iluminação,registra-se alto índice de doençasrespiratórias. Além disso, as casas são muitopequenas e as condições de higieneprecárias. Embora saibam de tudo isso,nenhum dos dois moradores quer sair dolugar onde passaram boa parte da vida.“Quero ficar no meu canto pra quando for ahora de me chamar, eu sair daqui mesmo.Pronto”, teima seu Manuel.

O LUGARDA PAIXÃO

Por outro lado, reivindicam melhorias nacomunidade. As assembléias do OrçamentoParticipativo de Fortaleza registraram essademanda. A partir dela, a administraçãomunicipal caiu em campo. Dentre asdiversas possibilidades, apenas umapassou por todas as avaliações técnicas. Omercado terá que ser reformulado. E issosignifica um novo projeto arquitetônico, a serconstruído por muitas mãos. Desde oprimeiro semestre deste ano, a Fundaçãode Desenvolvimento Habitacional deFortaleza reúne os moradores para oficinasde desenho participativo. O objetivo éenvolvê-los nas discussões que vãosubsidiar a elaboração do novo projeto parao mercado. Uma forma do velho permanecerno novo.

bonita não paga,

mas também nãomoça

bonita não

Manuel Paixão quer ficarno seu canto, emboraconheça os riscos de

desabamento doMercado Velho

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ESTAÇÃOA VIDAPASSAPELA

15DEZEMBRO VF ROL 15MARÇO VF ROL

TEXTO: DANILO PATRÍCIOFOTOS: CELSO OLIVEIRAE GUSTAVO PELLIZZON

AS NOTÍCIAS escritas seguem doCentro de Fortaleza para os bairros emunicípios onde o trem alcança. Elasestão nos jornais carregados pelostrabalhadores que todos os dias chegamcedo à Estação Ferroviária João Felipe.Por volta das 6 da manhã, o movimentoainda é calmo no piso vermelho do pátio.As cantinas não abriram as portas parareceber as muitas bocas apressadas. Osprimeiros passageiros sequerenfrentaram fila para comprar seusbilhetes, a R$ 1,30 cada.

Pega-se um trem vago. E o início dopercurso já guarda uma surpresa: ao ladodo São João Batista, existe outro, o“cemitério dos trens”, rente ao muro quedivide o caminho dos trilhos da Rua PadreMororó, no Centrão. Vagões deteriorados,modelos de máquinas antigas, peças forade uso, pedaços de madeira e ferroamontoados. Uma paisagem ocre.

Sem começo nem fim é a imensidãode becos e ruas de uma outra Fortalezavista pelos mais diversos ângulos que aviagem de trem proporciona. Bares,pequenos comércios, feiras, campos defutebol, escolas, varais de roupas, omodesto motel Emoções... Quadro aquadro, a vida vai passando pela janela,enquanto nos vagões viajam lado a ladoe rotineiramente gente das mais diversasprocedências, com destinos vários.

É na Estação do Mondubim que secruzam o trem saído do Centro e o outrode vagões lotados, com destino à EstaçãoJoão Felipe. Indiferente aos slogans dosmotéis ao longo do percurso, ocomerciário Lino Pontes, da Assembléiade Deus Canaã, espalha enfaticamentepelo vagão as palavras de fé, umapregação em alto e bom som capaz deatrapalhar qualquer cochilo. Entre um eoutro preceito bíblico, improvisos paraconvencer. “As coisas velhas passam, etudo se faz novo. Deus mostra o novo,como àquele jovem (aponta para umrapaz convertido no trem). Ele (Deus) faz.Ele transforma. Ele dá vida e não équalquer vida. É uma vida de amor, cheia

(aplausos). Onde tem dois ou trêsreunidos Ele está presente. E aqui temmais, muita gente, gente chique (ri), e Eleestá presente”.

Funcionário de uma casa de peças noCentro, Lino, que reside em Maracanaú,utiliza o trem há 20 anos, mas só passoua pregar no vagão há pouco mais de dois,quando se converteu ou, como prefere,aceitou Jesus como salvador. Para ocomerciário, o percurso do trem “é umabenção, porque muitos aceitam Jesusdurante a viagem, tocados pela palavrade Deus, e nós oramos por eles”. Osevangélicos têm autorização formal daadministração ferroviária para realizaras pregações diár ias no vagão.Autorização concedida “há muito tempo,uns 20 anos”, como atenta o Irmão Lino.Aleatoriamente, os irmãos escolheram oterceiro vagão de cada viagem comolugar para as pregações. “Já éconhecido”, sendo “a palavra de Deuspregada de dia e de noite”, independentedo número de passageiros.

A viagem segue com os cânticos,entoados por um grupo que se concentrano fundo do vagão: Porque ele vive/ Deusensinou seu filho amado/Pra perdoar/Pramim salvar/pra libertar/Ele vive. Tambémevangélico, o autônomo José Alves, queutiliza o trem por ser “mais ligeiro e semengarrafamento”, acompanha o coro.Morador da Vila Peri, diz que muitospassageiros, mesmo não sendoevangélicos, tomam o vagão três embusca de uma viagem, acredita, maisagradável. Segundo o pregador Lino, sãopoucas as resistências manifestadas.Quando acontecem, a resposta vem emforma de parábola, como a do filhopródigo, propagada nas proximidades daEstação Vila Manoel Sátiro: “(...) Faz umafesta e mata aí um cevado pra ele. Glóriaa Deus! Aleluia!”.

Lugar do encontro das diferenças, otrem é estratégico para os pregadoresprofissionais que tentam “ordenar a vidaembaralhada dos passageiros sem Deus”.“No trem tem rico, pobre, negro, branco,alto, baixo. Aí dá certo demais pregar apalavra. Porque Deus não faz distinçãoentre seus filhos. Amém, paz do Senhor!”,justifica o pregador Lino, já apresentando

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o “irmão” Silas Coelho, morador do Jereissati Ie integrante da Igreja Betesda. Silas trabalhana Federação das Associações Cearenses doComércio e da Indústria no Ceará (FACIC) econsidera a viagem de trem uma oportunidadepara “salvar vidas perdidas”. “Às vezes nãoacontece nada no trem, mas em outros lugaresa pessoa fica pensando. É tocado noutro canto”,observa, com ares de estrategista.

A viagem segue abençoada. E as precestambém são dirigidas aos que viajam de modomais arriscado, os surfistas de trem. Algunspassageiros identificam a presença dossurfistas pelas pisadas na parte de cima dovagão. Passageiro há 20 anos, Lino Pontes étestemunha ocular das aventuras e seus finaisnem sempre felizes. “Eles sobem no meio daviagem, batem aqui em cima com força (apontapro alto do vagão), já cheguei a ver acidentepela janela”. Homens aranha, os surfistassobem pelas passarelas das estações, semnecessariamente cumprir o trajeto partida-chegada.

“Antes do trem parar eles pulam e passampro outro lado da grade. Esse ano morreu dois,que eu saiba, que chegou ao meuconhecimento, né?”, narra Gerson Valentim,vigilante das Estações há 13 anos, atualmenteatuando na Estação do Otávio Bonfim. Moradordo Carlito Pamplona, o vigilante vê o trabalho

na Estação como “um negócio muito perigoso”.“O pior dia pra gente trabalhar é o sábado. Agente encontra de um tudo aqui. Tem o quechega tomado (alcoolizado), tem o que tádesempregado e não pode pagar, mas temtambém os que pulam (a catraca) porque numquer pagar a passagem mesmo. Tô por aquitirando esse mau costume. Quando entra(detido na estação), é ele na frente e eu atrás,acompanhando até sair”.

O local de trabalho de Seu Valentim é o pontode chegada da aposentada Maria Niza Garcia.Ela desembarca na Estação do Otávio Bonfimpara visitar a irmã e parentes mais próximos. Otrem lembra sua infância em Baturité, municípiode origem onde não permaneceu por falta detrabalho. Na capital, antes dos aposentos, deuduro nas fábricas de lagosta, peixe e castanha.

O PIOR DIA PRA GENTETRABALHAR É O

SÁBADO, TEM O QUECHEGA TOMADO, TEM

O QUE TÁDESEMPREGADO

Muito suor derramado e uma aposentadoria quenão garante o mínimo de tranqüilidade. Daíporque, além de matar a saudade da família,aproveita a ida ao Otávio Bonfim para oferecerseus préstimos de doméstica entre avizinhança, “nas casas de família”. Moradora daRua 13, no Jeiressati I, “eu e Deus”, dona Nizaé passageira veterana. Tanto que o tempo deviagem já nem é medido pelos anos, mas pelosreajustes dos bilhetes: “Eu comecei a andar notrem era 5 centavos a passagem”.

Outro aposentado que espera o trem namesma Estação é Francisco Pereira dos Santos,morador do Centro e vendedor dos salgadosfeitos por ele mesmo. “De primeiro era bom essavenda aqui, mas depois começou o tempo daperturbação, com os guarda empatando dagente vender uma coisinha dentro dele (trem)”.Sonho, panqueca, filhoes e pimba de macacosão alguns dos nomes das merendas de seuFrancisco. E os nomes, ele explica, “dependemdo lugar, no Cariri já se diz diferente daqui deFortaleza...”. Nascido em Juazeiro do Norte,ganhou a vida na agricultura, “no serviçogrosseiro, pela roça”, isso até “ir pra padaria” eaprender a fazer massas.

A trajetória de Seu Francisco sintetiza a demuitos migrantes que fizeram do trem uma ponteentre sertão e cidade, pela fuga da seca e pelabusca das novidades salvadoras prometidas pela

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urbanização. “Eu sou lá do Cariri. A gentecomeçou andando no trem. Vendia umacoisinha, trazia fruta, fui ficando e em 82 passeia morar aqui, no Centro. Moro numa casa só,mas tem um bocado de filho encostado. Tudo écamelô no Centro”, revela.

O trem que é meio de vida também é, naboca do povo, o melhor meio de transporte paraquem tem limitações físicas. Manoel da Silva,do Novo Mondubim, é um cadeirante que pegao trem a cada seis meses para renovar a senhado benefício salarial. Já o artesão ReginaldoFerreira, diariamente se desloca do NovoMondubim para o Centro, onde comercializao que produz. Há seis anos, Reginaldo sofreuum acidente que o deixou paraplégico. “Cedoeu vou pra Estação. Minha esposa ajuda eme deixa lá. É melhor o trem do que o ônibus,porque o trem tem rampa e o ônibus é escada.Só uma das estações num tem. Aí vou epasso o dia na Praça José de Alencar. Tenhouma banquinha lá. Quando é quatro e meiada tarde eu volto pra casa”, diz o cadeirante,despojado em sua calça preta larga etatuagem à mostra.

Os dois cadeirantes, Reginaldo e Manoel,chegam por volta de 8 horas na Estação JoãoFelipe. O movimento já é intenso. Os mórmonschegam para outras pregações, os policiaisferroviários apenas conversam diante dospassos apressados de quem segue para ospostos de trabalho. Perto da venda de bilhetes,um cartaz avisa sobre o que passa a ser proibidotransportar no trem: bicicleta, animais, botijãode gás, sacos de alimentos, varas de cano...Decisões das tantas siglas que administram aEstação, controle do viver de quem transita oupensa em ganhar a vida sobre os trilhos.

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Ao lado dos guardas, um rapaz conversa com aamiga pelo telefone e, pausadamente, asseguraestar com “um dossiê sobre o namorado” da mesma.Mais adiante, alheia às regras de comportamento,a vendedora Myliane Siqueira, com aplicadainsistência, aborda os passageiros apressados,oferecendo supostas vantagens dos cartões decrédito. “Fazer, jovem? Cartão!”. Myliane trabalha hátrês meses na Estação, onde consegue uma médiade seis vendas por dia, para sonhar com uma vidamelhor. O pátio da Estação é praça para outrasvendas. Visivelmente cansada, dona Antônia jáestava de pé às 3h30min pra fazer a massa dossalgados. “O salgadim é 10 centavo, mas o trabalhonão tem preço não”. Aos 54 anos, luta pelo sustentodos filhos. Canudinho, pastel, pipoca doce. “O povogosta disso no trem. Uns saíram sem comer de casa,

na pressa. Outros gostam de bagüiar mesmo. E temos que compra pra ajudar”, elenca. “Mas agora tãodizendo que num pode mais vender. Os fiscaispastora a gente. Já chegou até de ter que descernuma estação e andar a pé pra outra. Com isso sepassa vergonha. O povo fica olhando pensando queé ladrão”, reclama com a voz embargada, insistindono trabalho honesto.

Após o movimento mais intenso da manhã, avendedora de sorvetes já pode abrir o espelhopara cuidar da beleza. Ao mesmo tempo em queos servidores zelam a Estação pelo resto do dia.A turma da limpeza trabalha firme. Aos 65 anos,Seu Françuar (“escreva desse jeito rapaz”!)trabalha oito horas diárias, de segunda a sábado.Chega à Estação João Felipe às 7h, vindo doParque Jerusalém, um lugar que “num tá incluído

no mapa, chamado lá dentro como Canindezinho”.De tanto ver gente passar tem pressa, foge daconversa e vai lustrar o mural onde figuramtrabalhadores pintados pelo artista plásticoDescartes Gadelha.

Nova movimentação intensa somente no final datarde, com a volta dos passageiros do trabalho. Ànoite, o trem segue levando o cansaço do povo, avontade de chegar em casa. Cruza o Rio Cocó, oMaranguapinho. Mas não sem antes passar porcampos de futebol, lagoas, lixões. Igrejinhas de oitãopintado e terreiro limpo. Pela janela, a Fortaleza rurale o sertão de sol causticante: hortas, mangueirasfrondosas, plantações de bananeiras. As flores doParque Albano, os coqueiros já em Caucaia. Ocomprido dia de trabalho vai terminando no cochiloda volta nos vagões.

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VIDA DEMAQUINISTA

O maquinista Narcélio Costa Lima “jáconhecia ferrovia” bem antes de ser aprovadono concurso para a profissão, realizado em1980. “Eu andava com meu pai nos trem,quando ele era maquinista da ativa. Viajavapra todo canto. Ia pra Recife, saindo daquisexta à tarde. Durava 23 horas a viagem,parando nos canto, eu passeando comoturista”, brinca, relembrando a infância sobreos trilhos. O pai, Severiano da Costa, aindavivencia o universo das ferrovias,só que agorana Associação dos Ferroviários Aposentadosdo Ceará (AFAC), cuja sede fica ao lado daEstação João Felipe. Todos os dias, pelamanhã, o veterano “bate ponto”. Anualmente,no dia 20 de outubro, pai e filho viajam juntospara o Cedro, no centro-sul cearense, ondeuma grande festa é realizada em homenagemao dia do maquinista.

Seu Narcélio é de uma família demaquinistas. Auxiliar de escritório, agente deEstação e mestre de linha foram algumas dasfunções desempenhadas pelas geraçõesanteriores da família, incluindo as mulheres.“Comigo, lá em casa são três irmão maquinistae um cunhado maquinista. Só na nossa famíliaforam oito, três na ativa e cinco aposentado.Antes era mais fácil o filho ser maquinista, tinhaprioridade, o incentivo no concurso”, observaSeu Narcélio, mencionando a antigalegislação, uma espécie de cotas para osdescendentes de maquinistas que buscavama profissão.

Maquinista experiente, Seu Narcélio diz quea escolha da profissão se deu pela “vocaçãode dirigir” descoberta logo cedo: “se eu numviesse pra cá eu ia ser caminhoneiro. O meunegócio é dirigir e viajar”. A satisfação com aprofissão está em transportar “milhares emilhares de passageiros diariamente, numsistema seguro, apesar de antigo. Nem assaltotem, pois “passageiro de trem nem dinheirotrem”.

Nos trens e estações, a figura do maquinistaimpõe respeito. No caso de seu Narcélio, querealizava viagens para o interior do Ceará eoutros estados, mais ainda. “A gente fica muitoconhecido. Você chega num canto: ‘ei rapaz,ali é o maquinista’. Cria amizade com aspessoas que a gente encontra vários dias eno mesmo horário”. No “fim da linha” aconversa é mais demorada. Afinal, são“milhares e milhares de pessoas semprequerendo alguma informação, mesmodomingo ou feriado”. Mas a curiosidade maioré mesmo em relação ao funcionamento dostrens. “Tem gente que chega curioso, admirado,aí pergunta: ‘cadê a direção do trem? ’. Numfoi só uma nem duas vez não. Tem pessoa quenunca andou de trem, fica admirada e quer

conhecer. A gente responde que a direção é opróprio trilho (ri). E a pessoa fica satisfeita”, ri-se.O bom maquinista tem resposta para tudo. “Chegagente perguntando sobre acidente. A negadachega e diz: ‘O trem num pára não? Por que vocêsó para depois que pega (a vítima)? O trem pára,mas só depois que você vê (o obstáculo). A gentefreia, mas só pára depois, devido o sistema. Agente tenta, mas não consegue. Não tem comoevitar. É como um serviço de um policial, às vezesnum depende da gente, num tem como tirar domei (da frente). A maioria dos casos é (tentativade) suicídio. A gente sente, responde processopor isso, como é obrigado, mas tem que tápreparado (emocionalmente)”, esclarece.

A profissão de maquinista sofreu poucasmudanças ao longo dos anos. Mudanças mesmoforam as sofridas pela cidade e acompanhadaspelo maquinista, de 1980 até hoje: “casas econjuntos (habitacionais), indústrias, residência

nova em beira de linha, além do trânsito queaumentou muito”.

Hoje, é restrita a “família” dos maquinistas.“Cinquenta e poucos, mas unidos no ambientede trabalho, amigos de verdade”, diz, contente,seu Narcélio. O leva e traz de gente tambémdiz sobre o leva e traz de histórias. “As fofocatodo dia tem. Maquinista é que nem marinheiro,é fofoca, é conversa... A conversa é que faz odia passar mais rápido”, confessa.

Bom de prosa e bem humorado, enquantonão chega a hora da próxima viagem omaquinista cumprimenta os passantes,sentado em um banco da coberta ao lado dasala dos funcionários. E conta: “Era um dia dedomingo e eu vinha trazendo um cargueiro, deQuixeramobim. Já em Fortaleza, aqui naAguanambi, um bebo entrou duma vez e setacou por cima do trem. Aí ele disse pra mim:você num tem culpa não, eu pago tudo. Faça oserviço no seu carro que eu faço no meu. Tavatão bebo que pensou que tinha batido noutrocarro”, conta Seu Narcélio, gargalhando.

O maquinista sabe que o trem transportahistórias e estórias. “Eu já dei entrada na minhaaposentadoria e às vezes fico pensando quedaria pra escrever um livro com as estória daqui.Quando a gente se reúne é que vai lembrandomais, vai saindo”, diz, já citando a mancada deum colega. “O maquinista saiu no trem e numengatou os vagão de passageiro. Era andandoe se admirando, só dizendo ‘ô máquina boa, ômáquina boa (fala alto)’. Quando parou numaestação, uma pessoa perguntou: - ‘dá pra levaressas coisa aí?’ – ‘Rapaz, bote aí na máquina’– ‘Que máquina? Que ele olhou pra trás, cadêos vagões?”.

Nos trens, Seu Narcélio observa que “cadaum tem um sistema diferente de trabalhar”.“Tem o cuidadoso, o medroso, o desligado.Varia muito, né? Cuidadoso é uma coisa,agora o excesso de cuidado já é medo. Aquitinha uma pessoa que se preocupava tantoem zelar a máquina que atrasava o trem. Mastrem tem que gostar. No começo (daprofissão), quando tinha uma viagem, sótinha data pra sair, pra voltar num tinha. Iapra Quixeramobim, chega lá ia pra Iguatu,Crato, Sousa (Paraíba)...o que aparecesse”,recorda o maquinista.

O ferroviário é Ferroviário. “Eu sou torcedordo Ferroviário, mas a minha vibração mesmoé a seleção brasileira. É o único jogo que euperco tempo de assistir, mesmo amistoso.Qualquer hora tô lá tomando minha cervejinhae vibrando. Na copa de 82 eu tava trabalhandono trem. Tirei a bateria do carro, botei natelevisão portátil e fui assistindo dentro do trem.O Brasil perdeu, mas eu num perdi o jogo”,conta, vitorioso.

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PERFIL PIRRITA

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TEXTO > ANA MARY C. CAVALCANTEFOTOS > RICARDO DAMITO

O BAIRRO ELLERY ocupa o noroeste deFortaleza, a quatro quilômetros do centro comercialda Capital. Está inserido entre os limites dos bairrosÁlvaro Weyne (norte), Alagadiço/São Gerardo (sul),Carlito Pamplona e Monte Castelo (leste) e PresidenteKennedy (oeste). Chega-se lá seguindo as avenidasSargento Hermínio e Francisco Sá (no sentido leste-oeste) ou pela rua Olavo Bilac e avenida PadreAnchieta (norte-sul). O bairro cresceu muito, desde oloteamento Parque Themóteo dos anos 40. Possuitrês conjuntos habitacionais (construídos em mutirão),dois chafarizes (um na ativa), duas praças, a Capelade Nossa Senhora de Lourdes, a Igreja Adventista, ocentro espírita, o terreiro de umbanda, oito igrejasevangélicas. Nove bandas de música (samba/pagode,rock, axé, gospel...), seis clubes de futebol, duasquadras esportivas, três quadrilhas juninas. Cincoindústrias de confecção, 47 fábricas de portões egrades, 14 salões de beleza, 17 bares/lanchonetes,11 mercadinhos, igual número de mercearias, quatrofrutarias, cinco frigoríficos/peixarias, sete oficinas paraautomóveis, outras seis para consertar bicicletas, dezarmarinhos (miudezas), oito pontos de jogo do bicho...

As informações, precisas, são do sítiowww.bairroellery.com.br. Sítio mesmo, como foi obairro na década de 1950. “Ao invés da palavrainglesa site, pela valorização de nossa cultura,costumes e língua”, idéia do Conselho deDesenvolvimento do Bairro Ellery (fórum dasentidades populares locais) e prática da comunidade.No princípio, era “um sistema de som comirradiadoras”, reconstitui Aguinaldo José de Aguiar,funcionário da ONG Cearah Periferia e morador daregião desde 1978. As primeiras experiências decomunicação alternativa, ali, datam de 1986, quandose organiza a Associação Comunitária. O som iadas ocupações aos campos de futebol; tanto protegiao território, quanto transmitia o jogo. Foi o embriãoda FM comunitária (no ar, de 1998 a 2003). Quandoa rádio fechou, “ficou um vazio medonho. O bairrotambém mudou, não dava mais sustentação paraas lutas, como na década de 80. Muitas pessoas játinham conseguido casas...”, conta Aguinaldo.

Para reunir o povo, o movimento comunitárioexperimenta novo tom: o do bloco pré-carnavalescoSai na Marra, que recreia-se nas ruas conduzido porum tema social (em 2007, a violência contra a mulheré o mote da marchinha). “E ele junta o mais rico, queé o dono de uma revendedora de veículos, ao maispobre (o que restou das antigas ocupações de risco:a Comunidade do Canal, a Cidade Alta e a ruaCristal)”, assegura Aguinaldo. O sítio, na Internet, veioatrás do bloco. As fotografias virtuais do últimocarnaval que passou provocaram “uma loucura, nobairro. Teve congestionamento nas lan-houses!”,comemora Aguiar. O foco do sítio eletrônico é,justamente, dar visibilidade ao cotidiano e à memóriado bairro Ellery.

O link “Agenda do bairro”, por exemplo, monta umpainel mensal de eventos. A comunidade fica a parde quando acontece o Feirão da Economia Solidária,o Congresso do Plano Diretor em Fortaleza, o

Encontro Social do Bairro Ellery (agenda dedezembro)... Da lan-house mesmo, em um clique,tem-se ainda “Notícias do mundo” (extraídas doportal www.terra.com.br) e “Notícias do bairro”.Este último link, formado também por artigos ecrônicas, percorre a cidade: vai da “denúnciaambiental de poluição no riacho do açude do rioPici” à “preservação de árvores no Benfica”,passando pela “luta contra a Aids” e asmanifestações sobre a “violência contra a mulher”.Os organizadores do sítio já pensam em criarum portal para a região, multiplicando a idéia dosítio nos diversos bairros da Capital. “A gente querter foto-repórteres e correspondentes na Igreja,na escola”, planeja Aguinaldo Aguiar,vislumbrando o sucesso do sítio eletrônico.

Ainda na net, um “Álbum de fotos” esboça obairro Ellery em mapas e documentos oficiaisde “batismo” do lugar e em flagrantes do dia-a-dia das ruas. Em cena virtual: a Paixão deCristo, o passeio ciclístico de 2006, os enfeitesda última Copa do Mundo, a quadrilha juninainfantil... Um cotidiano sem pressa. Como o deseu Geraldo e dona Mocinha, casados há 55anos (nunca se separaram, “nem empensamento”) e que ainda namoram “24 horas”– assegura a noiva. “É só aqui, nesse cantim...”,resume o simpático senhor de olhos marinhos,o dia-a-dia ao lado da mulher, enquanto o feijãocozinha. “Sempre a gente ficou assim,conversando pertim um do outro. Na hora doalmoço, do jantar, na dormida...”, destrinçadona Mocinha. Da sombra da árvore, lá fora,para a cadeira de balanço no alpendre. A vidaficou mais larga aos 83 anos. “Eram muitosamigos, mas foi diminuindo, diminuindo...”,subtrai seu Geraldo. Resta um ou outro “noCarlito, que ele vendia ambulante”, aponta amulher, “e amigas também”, ressalta. “Asmeninas do Carlito...”, vai buscar o rapaz, no ire vir da cadeira de balanço. “... As meninas eraque ainda me fazia uma comprazinha”.

Seu Geraldo Freire da Silva e donaFrancisca Costa da Silva, 73, moram na ruaAlmeida Filho, beirando a praça da igreja, há42 anos. Vieram da então rua do Escondido,acolá. São dos mais antigos do bairro Ellery.“Chegamo aqui, não tinha casa. Tinha umano mei do quarteirão e outra na esquina”, refazseu Geraldo. “O tanto de casa que tinha,contava tudim: ‘Tem tantos bico de luzacesa...!”, completa dona Mocinha. A casaonde moram, de terraço e quintal, diz daprimeira, de taipa e sobre as águas do açude

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bairroellery.com.br

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João Lopes. Seu Geraldo quem aterrou econstruiu. Os sete meninos do casal brincarammuito por ali. “Quando chegamos aqui, meu Deus,esse açude parecia o mar! Chega fazia onda!”,admira-se dona Mocinha.

O açude João Lopes é a principal referência dobairro Ellery. Foi construído, por particulares, nadécada de 1940, ligando-se ao riacho homônimo. Oriacho corre 2,7 quilômetros ao norte da avenidaBezerra de Menezes (atrás da Igreja de São Gerardoe da Secretaria de Agricultura), forma um belopantanal no Campus do Pici e continua até desaguarno rio Maranguapinho (zona oeste de Fortaleza). Oaçude e o riacho estão visivelmente poluídos e nemde longe lembram a fartura do tempo de dona Mazé-lavadeira. “Pegavam cará bem aí”, aponta para acalçada. Nos invernos dos anos 60 e 70, o açudetransbordava, alcançava a praça e a vizinhança(onde, hoje, estão a Capela de Nossa Senhora deLourdes, a Associação Comunitária, a casa de donaMazé) e abastecia as cacimbas das lavadeiras.

Dona Maria José da Silva Moura, 80, dobroumetade da vida no bairro Ellery. “Eu reformava

borracha pra panela de pressã desentup racha

Geraldo e Mocinha(abaixo), casados há55 anos, e donaMaria José, 80:guardiões damemória no bairroEllery

cadeira, rebocava casa, pintava. Matava porco,bode, mandava meu marido vender pelo Pirambu.E lavei roupa 20 anos”. Não sobrava tempo, nemgosto, pra se divertir. “Andei tanto entregandoroupa, que abusei de andar. As freguesas eralooonge, mulher! Pra banda do São Sebastião,Barra do Ceará. E era a trouxa na cabeça”,percorre dona Mazé. O bairro também não ofereciamuita opção. “A casa que tinha era a do seuGeraldo. E ali era só mato e pé de manga”, indica.

A propósito das frutas que pincelavam a região, “ocajueiro é daquele tempo”. E já estamos acomodadosno vasto alpendre da professora Aurora, aproveitando,com os gatos, o vento abundante. Sapoti, cacau,acerola, canela e açaí (legítimo do Pará, terra daprofessora), entre roseiras em flor e palmeiras,preenchem o sítio da rua Capitão Nestor Góes.Barulho, ali, só o do trem (que passa, de meia emmeia hora, na esquina) e das folhas das árvoresbrincando com a ventania. Professora do bairrodurante 40 anos, ensinou Português e Matemáticacom disciplina: “Antigamente, uma palavra errada, agente fazia a criança escrever 20 vezes. Calculadora?

Só depois de aprender a tabuada”. Mas antes depassear nas horas, ela pede licença, tinha acabadode aguar as plantas, vai “ao menos pentear o cabelo”.Volta para as fotos, de brinco, batom e perfume.

A casa-sítio brotou no “meio de uma mata de toragrossa”, meio século atrás. Quando a família Ellery –dona Aurora Recen, 71, tem a mais, no sobrenome,os donos do bairro - desbravou o terreno, “foiencontrado cama, fogão, que os ladrões jogavam”. Ocunhado, Francisco Humberto Ferreira Ellery, mandou“abrir a rua e botar ônibus e luz elétrica”. Nessa época,a vizinhança era de taipa e de amigos: “Dona Paixão,dona Isaura... Aqui em frente, o pessoal do seuJoaquim Carneiro, finado, já está pro alto”. A turmacostumava aproveitar a vida ali, no alpendre, onde“se fazia aquelas tertúlias com a luz negra. Dançavamrock e música lenta”, circunda a professora.

“É o novo! O som era o da radiola! As músicaseram internacionais: os Pholhas, Dana Summer,Elton John...”, ri-se o comerciante Raimundo IvanRocha Júnior, 47, que batia ponto, aos sábados edomingos, nas tertúlias do bairro. A festa, anunciava-se de boca em boca e se improvisava afastando o

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sofá, na sala. Bebida, no máximo, um coquetelzinho.Flerte, à vontade. “Muita moça bonita e muitalembrança também... O flerte é o tempero da vida,né? É um segmento, a humanidade, em si, precisadisso”, deleita-se. Do tempo das tertúlias, flagra-setambém o futebol em torno do açude João Lopes.“Tinha os jogos e, em seguida, o banho no açude”.

Sobrou pouco, no bairro Ellery. Nem rastro dasruas líquidas, vindas do açude, que serpenteavamentre casas e infâncias. Nenhum campo de areia mais.Fizeram as quadras esportivas, nas praças; pode-sealmoçar no Pólo de Lazer da Sargento Hermínio (debatismo, Pólo de Lazer Alagadiço), inventar umpiquenique dia de domingo. Ah, sim, claro! O blocoSai na Marra, de ano em ano. É o comerciante, antigofreqüentador das tertúlias e sócio de carteirinha dopré-carnaval, quem faz questão de lembrá-lo: “Elesurgiu de uma própria brincadeira da turma doAlmeidão, a macharada mesmo”. Almeidão? “É umafamília aqui do bairro, campeã, inclusive, dasquadrilhas juninas”. Pois bem, as reuniões do blococomeçaram “na sede do Almeidão, que é naresidência deles. E, aí, já arrumamos um espaço naAssociação”, completa Júnior.

“As ‘meninas’, o macharal todo vestido demulher” anuncia o carnaval três sábados antes,desfilando nas ruas do bairro Ellery ao som deuma bandinha. O Sai na Marra, asseguram osorganizadores, preza pela segurança e “diversãosadia”. Ainda que se misturem torcedores fiéis doFerroviário (a família do Almeidão), do Fortaleza(a maioria) e do Vozão – como o Júnior, que fezquestão de tirar as fotos com seu cachorro branco-e-preto, “Ceará”, óbvio.

Para não perder a deixa, bate-se palma naporta de dona Maria, conhecida pelo time de

futebol que possuiu. O cachorro, embora preso,festeja as visitas. Os pintos e os galos novos,detidos na gaiola, também se alvoroçam. DonaMaria Souza da Silva, 60, deixa os afazeresdomésticos de lado, inúmeras bacias com roupae panelas de molho, e vai chamar a mãe, na casaem anexo. Quer que dona Raimunda Alves deSouza, 82, conte da herança de dona Francisca,a avó descendente de índio, que pousou ali em1913. “Era tudo mato”, repassa a neta, “meu avôfoi quem devorou tudo, fez a casinha de palha. Aí,foi botando pra frente: fez uma saída pro trilho”. Otrem apita próximo, confirmando a história.

“Toda qualidade de fruta tinha aqui: abacate,laranja, tangerina... Só comprava feijão, e quando nãotava no inverno. Porque plantava aqui, tudo dava!”,enumera dona Maria. Essa era parte da sustânciados 14 filhos de dona Raimunda. A outra, era uma

a pra panela de pressã desenpra panela de >>>

brincadeira do lado de lá do trilho, “quando meu paideixava”, ressalta dona Maria: “O divertimento quenós tinha aqui, era um boi, que hoje chama ‘os careta’.Quando dava o mês de julho, começava”. Os paisabreviavam o dia, naquele tempo. “Jantar era seishoras. Sete e meia pra oito horas, já tava tudo na suaredinha”, diz dona Raimunda, da criação.

O mundo, vasto mundo, cabia em redor doaçude João Lopes. “O açude era muito grande. Euma coisa linda! Começava perto da Guanabara(uma garagem de ônibus atual), mais pra lá, noMonte Castelo. Descia, vinha até a (rua) HenriqueEllery. Não tinha casa, ele tomava conta de tudo.O que tinha muito era (pé de) mapirunga, murici.Quando sangrava, sangrava pras três cacimbasque minha avó fez”, desenha dona Maria. DonaRaimunda ainda distingue a sombra das cacimbasna Praça Manoel Dias Macedo (a principal dobairro, a da Capela de Nossa Senhora de Lourdese da Associação Comunitária): “Tinha umacacimba de aguar a horta, uma de nóis beber e aoutra de lavar a roupa. O sangrador dele passavaaqui (na porta de casa). Tinha um rapaz quematava traíra, aí, na frente, de facão”.

O divertimento de dona Raimunda se resumiaem olhar a “pescaria” de dentro de casa. “Mepregunte do mar... Passei nele pra ir pro médico.Não sei o que é orgia, como diz o povo”. Não saíada casa onde nasceu, criou-se, casou epermanece nem para assistir aos jogos de futebolque a filha organizou durante 15 anos (entre 1985e 2000). Os campos de areia são outra marca namemória do bairro Ellery. Havia o Campo doIracema e do JK (próximos a onde, hoje, está oPólo de Lazer), o Campo do Cruzeiro (antes daPraça Manoel Dias Macedo existir) e o maior, o

Campo do Humaitá. Dona Maria vai buscar asfotos do time, mostra os craques: “Esse aqui erao melhor goleiro que tinha. O pé dele é 44!”.

“Era muito difícil a gente perder. Mas eu fiqueicom raiva porque passei seis meses lutando,ganhei o campeonato, quando foi no último jogo,na decisão, o goleiro se vendeu-se. Aí, foi a derrota.Se vendeu-se por R$ 50,00. Aí, eu disse: ‘Vouparar o time por uns tempos”, chateia-se a dona.O time chamava-se “Coca-Cola”, a pedido de umex-funcionário da fábrica de refrigerantes que,demitido, virou treinador. Durou até o goleiro sercomprado pelos adversários e até o filho mais novode dona Maria adoecer. Ela tenta concluir ahistória, interrompida pelo latido insistente docachorro. “Cala a boca, Sprite!”, sentencia a donado time da Coca-Cola. Mas o cachorro continua omonólogo e o balé, a rodopiar entre as pernascompridas do fotógrafo. Acaba conseguindo seusinstantes de fama. “Ele tá batendo retrato, olhaaí!”, diverte-se dona Maria. “O Sprite, aqui, tásendo famoso!”. Tanto quanto o bairro Ellery, nonoroeste de Fortaleza, que o mundo, agora, vaidescobrindo pela Internet.

26 DEZEMBROVF ROL

MAMBEMBES,SIM SENHOR

27DEZEMBRO VF ROL

Texto: Ethel de PaulaFotos: Drawlio Joca e Jacques Antunes

Milenar, a arte circense deixa pistas de suaexistência em pinturas de quase cinco mil anosna China, nas pirâmides do Egito e em rituaissagrados da Índia. Na Grécia, confundiu-se comas modalidades olímpicas. Dentro do Coliseu, viusua face desfigurar-se ao resvalar paraespetáculos sangrentos de perseguição a cristãosimpiedosamente atirados às feras. Em feiraspopulares, de cidade em cidade, os saltimbancosrecuperaram o brilho do circo, somando àsexcentricidades e habilidades incomuns, animaisexóticos, acrobacias, engolidores de fogo, truquesmágicos, malabarismos.

Em 1770, no primeiro circo fixo europeu, PhilipAstley, um oficial inglês da Cavalaria Britânica,anunciaria seus cavalos, equilibristas, saltadorese palhaço sob o rufar de tambores, com toda apompa, para uma Londres chique e extasiada.Muitos e muitos séculos depois, no Nordeste doBrasil, o espetáculo continua. Se não em Londres,no London Circo, instalado temporariamente naSerrinha, um dos bairros da grande periferia deFortaleza.

Nem pompa nem circunstância. Hoje, a maiorparte dos intrépidos representantes da arte quechegou ao país de carona com os ciganos pedepassagem em carros volantes fora de linha ecom tanque na reserva. Na melhor dashipóteses, a cada partida e chegada em umanova “praça”, cabe aos opalas, maveriks oucaravans o difícil reboque dos traillers tambémsucateados, que servem de camarim e moradiapara um elenco formado basicamente porjovens, casais fortuitos e crianças nascidas ecriadas ao redor dos picadeiros, “naturais”herdeiras da profissão dos pais e da grandetrupe de artistas mambembes irmanados. Emterrenos de chão batido cedidos pelo poderpúblico ou alugados a particulares, as famíliascircenses crescem e teimosamente aparecem,a cada três ou quatro semanas, em um bairrodiferente da periferia local.

Mas se falta infra-estrutura, sobra criatividade.Assim é que, do porta-malas de um velho opalaem marcha lenta, salta o “garoto-propaganda”do London Circo. Vestido de preto, usando umamáscara de Lobisomen e urrando, o palhaçotravestido surpreende quem sai às ruas,enquanto o motorista-locutor anuncia aomicrofone as atrações do espetáculo que logomais à noite vai trazer crianças de todas as idadespara debaixo da lona gasta e improvisada, todaela feita a mão, na marra, com sobras de outdoorse blimps publicitários vendidos a preçosacessíveis aos donos de circos populares. O

resultado vê-se de baixo para cima: um “céu” demultimarcas e grifes cobre as cabeças de umaplatéia com pouco ou nenhum acesso ao que,por necessidade e força das circunstâncias,acaba sendo indiretamente propagandeado.

Na Serrinha, a propaganda do London Circo -não a da lona, mas a do carro volante -, vemgarantindo casa cheia por semanas seguidas. Oolho do dono, Antônio Reginaldo Moura Soares,50, o palhaço Garrafinha, já havia antevisto osucesso. “Se a meninada seguir o rastro dos pneuse se amontoar logo cedo em frente à bilheteria,na maior algazarra, é porque vai dar público”,vaticina. A boa estréia carece de doses de reforço.“Se a gente colocou o Lobisomem na primeiranoite tem que anunciar novas atrações nassemanas seguintes, porque senão o pessoalenjoa. Então, vem o Cavalo Maluco, o Casamentodo Palhaço, o homem ou a mulher mais gulosa,que é quem come 50 bananas mais rápido nopicadeiro. A gente convida e o vencedor ganhauma caixa de cerveja. E assim vamosmovimentando o bairro”, inventa o ex-seminaristae entregador de contas da Coelce que um dia seofereceu, ainda rapazote, para puxar cortinas emum tal Circo Europeu que passava pelo Montese,seu bairro de origem.

“Fiquei um ano dentro do Circo Europeu,aprendendo tudo de circo. Saí de lá para montaro meu, carregando inclusive a maioria dos artistascomigo”, gaba-se. Na época, Reginaldo já era opalhaço Garrafinha, o corpo magro justificandoo codinome. Nas suas mãos, o circo mudava denome e cor sempre que o tino empresarial assimdeterminasse. Hylon, Disneylândia, Garjane,esse último graças a uma fusão das iniciais deseu nome e sua “sócia” na época, um travestirebatizado Jane. “Isso era porque eu circulavamuito, repetia os mesmos bairros, então tinhaque ir mudando os nomes do circo. Assim o povoachava que era outro circo”, confessa o truque.

London foi um nome que deu sorte. “Armeino Parque da Criança, no Parque do Cocó, aminha lona e as minhas barracas foram asprimeiras alugadas aqui em Fortaleza paragrandes eventos. E, como palhaço, inaugureio Iguatemi e o Jumbo do Center Um da SantosDumont, o primeiro shopping center da cidade.No passado, a praça boa era na Praia deIracema, ganhei muito dinheiro lá, armei naPonte Metálica, no Estaleiro, uma hora dessaa água, pum! dentro do circo. Nessa época,não tinha lona em cima. E passamos muitotempo assim, só com o pano ao redor. Porqueaventura do circo é o pano de roda, oimportante é o miolo. Lona se vê da rua, podeaté ser bonita, mas se o espetáculo nãoagradar não valeu de nada”, ensina, satisfeito.

28 DEZEMBROVF ROL

Hoje, vem batendo o cansaço. Garrafinha já nãopinta a cara para rir um riso sem dentes. Dedica-seexclusivamente à administração do circo e às vidasque vêm cruzar com a sua. É patrão, mas tambémpai e avô de criação de quem vive, mesmo quetemporariamente, dentro de seus traillersambulantes. “Não tive casamento e há muitos anosmoro no circo. Criei um rapaz que hoje administrao circo comigo, o Narciso, e agora crio outro, o Tiago.Quando dá, onde a gente vai carrega um. Aquelamãe de periferia pede pra levar o menino que nãoquer estudar, não quer obedecer. Levo se for como consentimento e o acompanhamento dasfamílias, que confiam. E aí viro aquele segundo paideles. Entrou aqui é difícil trocar de circo. A maioriaentra garotinho e fica”, garante, dando colo eprometendo levar a “neta” Sayuri Lima, 1 ano e 11meses, filha de um de seus palhaços agregados,para um passeio no aeroporto - o substituto tronchodo shopping center na Serrinha.

O circo mambembe é, de fato, movido a amor.Não à toa, o palhaço veste a carapuça de “ladrãode mulher”. “É muito comum e natural as meninasse apaixonarem pelo palhaço. Mas veja: elas seapaixonam pelo personagem. Só que quando opalhaço já é casado isso dá uma confusão danada.Eu aqui separo muita briga de casal e quando onegócio pega fogo querem logo arrumar as coisase ir embora. Aí lá vai eu conversar. Faço issoporque já senti na pele como é, a mulherada se

oferece, mesmo se for casada. Quando dá fé temum marido afobado na bilheteria procurando opalhaço”, diverte-se Garrafinha.

Menino malino também pode dar dor de cabeça.“No meu espetáculo à tarde, que é só para criança,meu palhaço pega leve nas piadas. É só a ginástica.E não tem números perigosos, como faca. E mesmoquando tem, à noite, a gente avisa que não podefazer em casa. Porque criança é assim: aqui a gentetem o número do chicote, menina quando dá trêsdias tá tudo que é menino na rua com um pedaçode cabo de vassoura e um cordão pendurado,chicoteando os outros. Quando dá fé chega um de

braço quebrado. E lá vem a mãe: “Ah, seuGarrafinha, inventaram um trapézio no quintal láde casa e taí o resultado!”. Por isso prefiro fazertorta na cara, torneio de menino com menino, botoo palhaço com uma caixa de chocolate na mão. Eassim a gente empolga a platéia mirim”, defende.Difícil é persistir sem capital de giro ou apoiosgovernamentais permanentes. “A gente tem quemanter esse povo que recebe por semana,pagando em dia. Pago em torno de R$ 120,00 aopalhaço, são dois. E mais cachê para todos osartistas e empregados. Hoje, aqui, deve ter umas20 pessoas. Eles todos moram e são alimentadospor minha conta, não é aquele artista que trazbagagem não. Aí tem que pagar uma licença praPrefeitura a cada temporada, aí vem CREA,bombeiro, Coelce, termina com uma despesa, sópra funcionar, de pelo menos mil reais. Cobrandoingresso a R$ 2,00 e R$ 1,00! No dia da mudança,os carros que temos não dão conta, aí é R$ 150,00pra alugar o caminhão. Uma blitz uma vez mepegou foi quatro vezes numa mudança só,arrastando os traillers. Até montar na outra praçasão três dias parado, então calcule... Por isso, os15 circos de Fortaleza ainda estão em situaçãoirregular. A gente monta o circo na raça, dequalquer jeito, essa é a realidade. Nessa hora, soumais mágico do que palhaço”, ironiza Garrafinha,batendo no peito, orgulhoso, por jamais ter lacradoa janelinha da bilheteria.

Garrafinha: patrão, pai e avô de criação da trupe

29DEZEMBRO VF ROL

Aos 15 anos, trabalhava como empacotadorem um mercantil. Isso até o dia em que o CircoSão Jorge do Coronel Zé Pelado passou pelacidade de Iguatu e lá fez temporada. “Umempregado do circo me chamou para fazerserviços gerais. Disse que era bom, ganhavadinheiro, arrumava namorada e tal. Topei. Efazia de tudo, botava água nas barrracas e ànoite pastorava as cercas pra ninguém passar.Aí levantava o pano e ficava brechando o queacontecia no picadeiro. Logo, logo já comeceia ajudar os palhaços, entrar nas palhaçadas,dar as deixas. Depois disso só sonhava emser artista mesmo”, recorda Carlos MarianoSousa Filho, 35, o palhaço Motoka, hoje maisfamoso por seus shows humorísticos de caralimpa e programas de rádio afins.

O sonho ganhou contornos em Fortaleza,depois de garantida a passagem com umvereador local. E o resto foi na cara e nacoragem. “Cheguei e fui atrás do Circo deVariedades, no bairro Santo Amaro, do DiOrange. Já tinha ouvido falar, era pano de roda,não era coberto não. Ele só dava o cachê, nãocobria a alimentação como fazemos hoje, prossolteiros tem a cozinha do circo, os casadoscozinham nos próprios traillers. Moral dahistória: fiquei três meses me alimentando compão e mortadela. Tinha 17 anos e conheci oBolachinha, hoje ele tá rico, com um circo muitobom, carro importado, lá em Pernambuco. Na

época, tinha um trailler e um maverik. Fiquei umbom tempo com ele. Passei a ganhar mais e játinha comida”, ri-se.

O casamento precoce dividiu o palhaço ao meio.Circo só nas horas vagas entre algum empregofixo capaz de sustentar as três filhas. Até que em1993 o Circo Miami desembarcou em Fortaleza àcata de palhaços para grande temporada. Só doisselecionados: Tiririca e... Motoka. “Fazia cachê evoltava para casa. Mas aí teve o festival de depalhaço no teatro bar Chico Anysio e eu saívencedor. Recebi o troféu do palhaço Carequinha.Depois disso, abriu as portas. Inclusive para umpalhaço diferente, pra show infantil. Fiz muitosshows na Aldeota, ganhei muito dinheiro com isso.A ponto de comprar uma lona de segunda mãopara iniciar o próprio circo”, gaba-se.

Há um ano, o casamento foi para o brejo,levando junto a lona e mais sete traillers. “Saí semnada e recomecei do zero, mas fiquei com duasdas minhas filhas, o que já me possibilitou formaruma companhia, já que uma é contorcionista e aoutra malabarista”, anima-se o hoje representantedo Ceará na Câmara Setorial de Circo da Funartee mais forte candidato à presidente da futuraAssociação dos Proprietários, Artistas e Escolasde Circo, em fase de implementação.

A nova lona feita com sobras de outdoor saiu dasmãos do amigo e também palhaço Garrafinha, porencomenda. Hoje, 11 pessoas estão envolvidas noCirco do Motoka. Todos recebem cachê, inclusiveas filhas de 15 e 17 anos, e têm ganho extra dentrodo próprio circo, desdobrando-se entre o picadeiroe as banquinhas de venda que funcionamestrategicamente na hora do intervalo do espetáculo.Enquanto um vende algodão doce, xilitos e pirulitos,outro lucra com o pastel industrializado feito na hora.A maçã do amor sai como água e os bombons echocolates enchem os bolsos. “É a segundabilheteria do circo”, sustenta Motoka.

Fincadas as bases no Parque Jerusalém, o Circo

do Motoka tem atraído cerca de 200 pessoas acada noite de espetáculo. A platéia que pagaentre R$ 2,00 (adulto) e R$ 1,00 (criança) vibracom os números de contorsão em tecido, o baléaéreo, os vôos no trapézio, a precisão de quemcorta pedacinhos de papel ao meio com umchicote. São pares e pares de olhos grelados noHomem Vulcão que solta fogo pela boca, nosque se equilibram sobre arames e nos malabarisque não escapam das mãos. Mas é na hora dosbailados e das dublagens que as arquibancadasde madeira puída balançam, mas não caem. “Aminha esposa faz a Tiazinha. Pode botar umamulher ou um homem dançando algumas dessesforrós da moda que a gaiatice começa”,conta.Conquistar o carinho e o respeito dopúblico ainda é um desafio em alguns bairros dacidade. “Tem lugar que o cara não conseguetrabalhar, é pedra voando, ameaça, roubo. NoServiluz, por exemplo, circo nenhum quer ir.Porque ninguém respeita, os caras invadem acerca e nós trabalhamos de graça”, lamentaMotoka. Para fugir do prejuízo, também valeseguir certas normas de conduta criadasinformalmente. “Antes de tudo, o dono do circoprecisa procurar saber quanto tempo faz que nãovai um circo naquele bairro. Não adianta botar ocirco logo depois que um outro saiu da praça,porque leva couro. Tem que deixar a praçadescansar no mínimo seis meses”, avisa.

E para ampliar o público? “Aí são outros 500.Os circos de bairro têm que dar uma sacudida.Tem que tá bonitinho, limpinho, pintado, osartistas arrumadinhos. Mas não. Uns chegamrasgados, sujos, as arquibancadas quebradas,aí não dá. O João Redondo dá, mas quer seragradado”, avalia, ciente de que as dificuldadesfinanceiras enfrentadas pela maioria não permiteo esmero. “Eu mesmo tenho que fazer shows dehumor em Fortaleza e no interior para podercomplementar a renda”.

A BONITEZADO JOÃOREDONDO

30 DEZEMBROVF ROL

O MELHORLUGAR DOMUNDO ÉAQUI

SÃO DOIS DVDs do Cirque do Soleilguardados como relíquias e assistidos incontáveisvezes. Aulas de contorsão em domicílio e muitomachucado até dominar a técnica do balé aéreo eda acrobacia em tecido. Nayendy Pamela, 17, filhamais velha do palhaço Motoka, não pensou duasvezes ao trocar o candidato a namorado pelo circo.“Não tenho paciência nem tempo. Prefiro ensaiar,aprender novos números e me preparar para seruma grande contorcionista. Aliás, mais que isso:quero ser dona de circo, embora meu pai diga quejá sou”, afirma, categórica, a estudantesecundarista que vai prestar exame paraEducação Física.

Filha de peixe, não pára quieta. “Já estouaprendendo bambu e doble trapézio também”,conta, empolgada. O professor é o colega depicadeiro Marcos Gomes, 24, administrador-auxiliar do Circo do Motoka. Cria do projeto Circo-Escola, vinculado à Febemce, ele é o bamba dotrapézio e do arame, jogando charme extra a cadafinalização de um número, quando rebola ao somde música baiana, levando a platéia feminina àloucura. “Nos circos de bairro é assim: um vaiensinando o outro e cada um treina quando ecomo pode, na base do improviso, caindo elevantando para fazer de novo”, revela.

No circo-escola, Marcos conheceu a esposaFernanda, grávida do terceiro filho. Ela mora coma mãe e as filhas no bairro Bom Jardim, ele divideum trailler com os rapazes do serviço geral noCirco do Motoka. Sobra o fim-de-semana para afamília. Com um cachê de R$ 110,00 por semanae mais a venda extra de pastéis e batata frita nosintervalos dos espetáculos, garante que vailevando. Circo grande já não o atrai. “Meu gostosempre foi trabalhar em circo pequeno. Quanto

maior o circo, menos tradicional ele fica. Veja oSoleil: é lenda, muito mais teatro e dança do quecirco. E os artistas nem chegam perto do público.Aqui a gente olha a platéia no olho, você vê aminha cara mesmo, do jeito que eu sou, e eu vejoa sua, é mais verdadeiro. Em circo grande, o artistanão passa de empregado, nem fala com o donodo circo. Aqui, a gente é tratado na palma da mão.O que vale não é a lona, mas o artista nopicadeiro”, defende.

Cabelos descoloridos em tons de verde eamarelo, 56 tatuagens pelo corpo. O passado demenino de rua, abandonado pela mãe - “ela nãogostava de mim” -, contrasta com a pinta de artistade hoje. Amarildo Ramos, 19, voa no trapézio ecospe fogo, literalmente. “Conheci uns amigos narua e eles me levaram prum circo pano de roda.Comecei peão, vigiando o circo e fui aprendendona marra, tive a coluna desviada, engessei oespinhaço e fui em frente. Há seis anos moro noscircos. Não quero outra vida. A gente só trabalhaà noite e ainda se diverte. É uma namorada emcada bairro. O circo me salvou, eu usava droga ehoje o meu vício é isso aqui”, declara o radicalcuspidor de fogo que no Circo do Motoka aprendeuaté a preparar o mel da maçã do amor.

bambu, doble

trapézio,

aro russo,

qudrante am

ericano,

vulcão

31DEZEMBRO VF ROL

SETE traillers, sendo três para casais comfilhos e os demais para os solteiros. No LondonCirco, a convivência diária em grupo desafiaa pouca idade da maioria dos ar tistasagregados. Tudo é de todos, nada é deninguém e um ajuda o outro, invariavelmente.Adriano Alves Lima, 28, o palhaço Cacareco,vive apertadinho com Lorena Pereira, 18, mãede Sayuri, de 1 ano e 11 meses, e Iuri, de 9meses. “Tenho 20 anos aqui dentro, tinha 8quando o circo armou perto lá de casa, noParque Santo Amaro, e todo dia a mãe ia mebuscar com o Juizado de Menor”, diverte-seo hoje também malabarista. Nenhum pingo dearrependimento. “Onde chego faço meu nome,em todo bairro o circo é lotado. Todo mundo édoido pelo Cacareco”, diz, sem falsa modéstia.A prova está nos quatro cantos do trailler docasal. Berço, roupinhas, bolsas, fraldas elençóis, tudo ofertado como presente pelosmoradores dos bairros da periferia que, entre

uma piada e outra, descobriam a segunda“gravidez” do palhaço ruivo.

No quadrado metálico sob sol a pino, ondecabem quatro, cabem mais. Além do berço, umacama, um fogão, uma geladeira, uma TV, um DVD,um ventilador e mais a visita incessante dos fãsdo Cacareco, crianças que não param de entrar esair da casa ambulante. Lorena era do tamanhodessa garotada quando o “ladrão de mulher”passou com o circo pelo seu bairro, o Barroso.“Depois de um tempo, quando voltamos lá, ela jáestava uma moça, aí arrastei. Ainda era de menor,mas a mãe entregou pra mim”, conta o marido,enquanto enrola os papéis dos chirulitos vendidosem tábuas e aos montes a cada noite deespetáculo. Pai entusiasta, Cacareco é o maiorincentivador de Sayuri, que já tem calos nas mãosde tanto treinar em trapézio de brinquedo. Aaprendiz já é atração à parte no picadeiro. E quevenha o caçula. Para ele, o pai, que também criagalinha, porco, carneiro e cachorro do lado de forado trailler, já tem planos: “vai ser palhaço e fazerdupla comigo – Cacareco e Catrevagem”.

Menos idade e a mesma paixão tem o casalFrancisco Antônio Costa Martins Jr., o palhaçoEspigão, e Natália Alves da Silva, 16, pais deGabriele, um mês de vida. “Nos primeiros dias deresguardo fui pra casa da minha mãe. Mas já eracontando os dias pra voltar. A gente que mora emcirco não se acostuma mais com a vida normal nacidade. É muito parado”, diz a mãe de primeiraviagem. O marido e confesso pai-coruja dá o

suporte. Lava, cozinha, engoma, limpa o traillere ainda faz maçã do amor e pipoca branca. Issodentro de casa. Lá fora, solda, pinta e cuida damanutenção do circo. A diversão, além de pintara cara, é ouvir música coladinho na mulher. MCMarcinho, forró, música lenta. Na TV, programasde humor e novelas. “É o que precisa paraatualizar as piadas”, garante.

Na carcaça de uma Kombi, mais um casal, outraninhada. Francisco de Assis Costa Barbosa Jr., 24,tem um filho de um ano com Ligia Maria Costa, 25.Na barriga dela, há seis meses, cresce o segundoherdeiro do Dj do London Circo. “A dormida équente, apertada, mas Deus abençoa o lugar quetem criança. E o circo do Garrafinha mais pareceuma creche-circo, por isso é tão abençoado, temtanto axé”, acredita. De boné e brinco, ele diz qualé o som que ultimamente mais faz a cabeça dopúblico jovem da periferia que vai ao circo: “CalcinhaPreta, em primeiro lugar. Mas a galera tambémgosta quando a gente bota um pagode ou um funk,todo mundo acompanha na palma, alguns gritame tal”. Contagiar a massa com música não é a únicafunção do Dj. “Para cada número tem uma trilha-sonora. E você tem a responsabilidade de colocare tirar a música na hora certa. Além disso, tem quecomandar o jogo de luz e acertar com o volume domicrofone do mestre-de-cena, que é o apresentadordo circo. Então, o Dj é um dos personagensprincipais, só que quase ninguém percebe isso”,regozija-se, mostrando o acervo de mais de 100CDs gravados em lan houses de periferia.

ARTISTASAPESARDE

O palhaço Cacareco é o primeiroa estimular a filha Sayuri, de

apenas um ano, a subirprecocemente no trapézio. Ela já é

atração à parte no picadeiro

32 DEZEMBROVF ROL

MADAME BORBOLETANO FINAL da linha de ônibus do bairro Quintino

Cunha, onde finda a comprida avenidaIndependência, duas amigas de longa data,dependentes uma da outra e declaradamenteinseparáveis, armaram barracas para pousar e amodesta lona de um circo que atende pelo nome dedois santos: Nossa Senhora de Lourdes/PadreCícero. No terreno diminuto e irregular, umdescampado ao lado do canal, o esgoto corre a céuaberto, animais improvisam pasto e as muriçocasse multiplicam. A resposta ao cenário de pobreza?Batom, rouge, perfumes, espírito altivo e um humorinoxidável. Maria de Lourdes Rocha Ribeiro, 40,maranhense de nascimento, mulata de cabeleiradourada, administra junto com Márcia, ou melhor, ofranzino Wedson Costa de Assis, 48, o negócio defazer rir e chorar.

“Ela já tinha sido empregada do meu circo panode roda, que na época se chamava Cambalacho,por causa da novela. Mas minha mãe faleceu eacabou. Nove anos depois é Márcia quem armaum circo na minha rua e me arrasta de volta propicadeiro. Lá que eu conheci o homem que maisamo nessa vida. E ainda hoje nós estamos juntos.

O problema é que ele é casado”, conta Lourdes,entre triste e alegre. “E qual o problema, negonaescândalo?! Importante é amar!”, escracha aparceira que tem no braço da amiga de infânciaum guia imprescindível. É que Márcia perdeu avisão depois de cair do trapézio, o que lhe valeuuma aposentadoria precoce por invalidez.

O infortúnio não afetou a obstinação. “Nãotenho recalque, apesar de precisar de ajuda otempo todo para me locomover e já não meapresentar no circo como antes. Mas faço alocução e ainda curto muito a vida, namoro, brinco,bebo, danço, me atraco com os bofes... em todobairro tem um namoradinho. No mais, minha filha,quando morrer quero virar borboleta”, vibra otravesti, elegante em um vestido colado ao corpo.

Mãe de 12 filhos - “sendo que só seis vingaram”-, Lourdes sonha com o dia em que vai podercomprar um trailler e dar mais condições detrabalho para os 16 ar tistas mambembesarranchados ali, trupe de abnegados que fazmalabarismos, mexe com fogo, ri do precário, masdorme e acorda sem saber se o circo vai garantiro pão. “Nós estamos praticamente sem material

de cena porque o pouco dinheiro que pegamosinvestimos no som”, observa. Para apurar umextra, ela fabrica perfumes. A seu modo, diz que écapaz de chegar à fórmula dos mais disputadosaromas. “Por exemplo, compro um Azarrô ou umTed Lapidous original e descubro as essências.Aí faço a mistura e deixo descansar por três dias.Você jura que é o verdadeiro. Isso só faço pra gentechique mesmo”, propagandeia.

À revelia das dificuldades, Márcia também nãodesce do salto. “Já possui carro, mobilete, trailler,mas tinha dois irmãos que bebiam e infernizarama minha vida. Perdi tudo, menos a minha belezanatural. Não uso um pingo de maquiagem, podever. O único problema é o branco do cabelo, masaí taco o vermelho intenso, pinto a unha no mesmotom e pronto, arraso!”, gaba-se. No guarda-roupasde porta quebrada, modelitos de algodão e seda,com apliques de lantejoulas, supercoloridos,atestam a vaidade comum às duas. Há ainda lugarpara o singelo. No aperto do quarto improvisadode Lourdes, sua coleção de ursinhos de pelúciadiz sobre a criança que ainda é. E que nem sonhaem parar de brincar. “No picadeiro, sou outrapessoa, um personagem, uma mulher linda.Quando o espetáculo termina, tudo bem, sou umasimples dona-de-casa. Mas lhe digo: não tem coisamelhor do que o aplauso do público e aquelaalegria contagiante do circo”, acredita.

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33DEZEMBRO VF ROL

PIRÂM

IDE

HUMAN

A E

SANG

UÍNEA

O MUNDO que o World Circo carrega no nome cabe sobuma lona. Isaac Brito Silva, 58, o dono e patriarca de umatípica família circense, descobriu isso ainda na barriga da mãe.“Nasci debaixo de uma tenda, meu pai foi dono de circo. Metornei equilibrista e hoje, além de mim, tem a mulher e cincofilhos diretamente envolvidos com a arte circense, fora osgenros e agregados”, contabiliza. Depois de rodar o Brasilinteiro integrando as trupes de circos renomados como Bartolo,Mônaco, Di Napoli, Le Cirque e outros, os Brito inauguraram opróprio circo em plena passagem do ano de 2002 para 2003.

“Meu pai vendeu a casa que tínhamos em Fortaleza ecompramos a lona. Nosso número de maior sucesso passou aser justamente a Pirâmide Humana, justamente com ele e minhamãe na base, sustentando eu, meu irmão e minhas duas irmãsnos ombros. É o ponto alto do nosso espetáculo porque qualquerdescuido pode ser fatal. Quanto mais quietinho, melhor a exibição.Treinamos muito, ensaiamos tudo dentro de casa”, conta IsaacJr., 20, que hoje acumula as funções de paradista, locutor e mestrede cena. A pouca idade não impediu que o filho do donoacompanhasse a lenta evolução do circo ao longo das décadas.“Antigamente a lona de circo era de tecido de algodão e nãotinha cobertura, era só o pano de roda. Por isso, na brincadeira, agente chamava de Circo Tomara que Não Chova”, recorda.

Isaac e o irmão Jocélio, 19, são os únicos da família Brito queoptaram por morar no circo, o mais novo já com esposa e filhorecém-nascido em um dos quatro traillers. Os pais mudaram-separa uma casa no Mondubim, levando junto a caçula Monique,14. Casada com um cabeleireiro, Edislândia, a irmã do meio, sóchega na hora das apresentações, à noite. Já Elizângela, a maisvelha, aceitou o convite do Beto Carrero World para viajar o Brasile o mundo, integrando a festejada trupe junto com o marido. Parafuncionar plenamente, hoje o World Circo congrega em torno desi cerca de 20 pessoas, entre elenco fixo e biscateiros temporários.Gente que, via de regra, faz “gato” para garantir energia, come oque for preparado na cozinha coletiva, e se oferece para pagar aconta de água de alguma residência próxima a fim de garantir oabastecimento durante aquela temporada.

Para manter tantas bocas, haja malabarismo. “Aqui é sangueno olho mesmo. Cada dia inventamos uma atração para atrairpúblico, além das tradicionais. Temos o Táxi Maluco e a FamíliaTrapo, veja ali (aponta para a carcaça de um Fiat toda pintada), oconcurso de forró, o cachorrinho adestrado Pingo, o Mister Mcômico, Sarah, a Mulher Vulcão que tem a pele de gelo e a mulherque é degolada viva... esse número meu pai faz com a minhamãe, uma mágica que não deixa de ser uma prova de amor econfiança dela para ele”, ri-se. Para ter chance de casa cheia, ocirco ainda compete com a televisão. Não à toa, virou convençãoentre os mambembes iniciar o espetáculo pontualmente às20h30min. No Jardim Castelão não foi diferente. “Nem adiantacomeçar antes de terminar a novela”, frisa Isaac Jr.

Isaac pai sabe que a história já foi bem diferente. “Antes daTV, o teatro era dentro do circo. A gente apresentava peças comoA Escrava Isaura, O Céu uniu dois corações, O Cangaceiro... Nomeu tempo de solteiro fiz Alibabá e os 40 Ladrões, Branca deNeve e até A Paixão de Cristo dentro do circo. Era sucessoabsoluto de público, concorridíssimo. E olhe que a propagandaera feita de perna-de-pau pelas ruas, a meninada correndoatrás...”, recupera. Agarrado às lembranças, o veterano anunciao desejo de “pendurar as chuteiras” e “passar o bastão”.

Os filhos persistem. “Queremos continuar a ser artistas decirco e nos profissionalizar. Com essa estrutura, ainda nãopodemos nos apresentar na Aldeota, mas espetáculo e figurinopra isso nós temos. Minha mãe é a costureira oficial. Já costuroupara grandes circos até da Argentina. No dia em que tivermosapoio, Fortaleza vai assistir ao maior espetáculo circense quejá passou por aqui”, promete Jocélio, enquanto remenda comcola PVC a lona já gasta pelo tempo que foi comprada semi-nova, em Brasília, há dois anos, quando servia a cultos religiosos.

Isaac Jr. e o irmãoJocélio, a terceira

geração da famíliaBrito, mambembe por

excelência

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A SIMPLES aparição, em si, já é uma piada.Ao som de “quem é o gostosão daqui? Sou eu,sou eu, sou eu”, a barriga entra em cenaprimeiro, saliente toda, depois ele, de corpointeiro, desengonçado, pernas abertas, sorrisãode orelha a orelha sem um dente na boca, narize cara de palhaço, ultracolorido. Metido em ummacacão frouxo com suspensórios, José deAbreu Brasil, o palhaço Pimenta, é festa paraos olhos e, sem dúvida, o mais aplaudido artistano picadeiro do Circo do Motoka. Aos 62 anos,com 50 de palhaçada nas costas, sabe do seuvalor. “O palhaço é o que tem de mais importanteno circo, é a alma do negócio. Por isso a genteganha mais do que os outros. Se o circo nãotiver um bom palhaço, pode fechar as portasque não tem ginástica que dê jeito”, gaba-se.

O início foi dureza. “Nasci em Jaguaribe, minhamãe me deixou em frente ao alpendre de umacasa e quem me criou é da família do Dedé Brasil,Mário Braga Brasil. Mas acabei fugindo de casa,vim pra Fortaleza e passei a morar e trabalharnuma vacaria no Pici. Quando ia deixar leite numburro pela Costa e Silva vi aquele circo. Era circoIara. Parei na frente pra perguntar o que era. Medisseram. E de noite fui ver. Vinte mil réis a entrada.De cara, gostei dos palhaços. E vim a segundanoite e a terceira e a quarta. Quando o circodesarmou botei minhas coisas dentro de um sacoe fui embora com ele”, descreve. Até chegar aotopo, o novato suou. Trabalhou de “peão”,ajudando a montar, limpar e desarmar o circo,

passou a porteiro de cadeira, ensaiou demadrugada até ter a chance como trapezista e, nodia em que o palhaço faltou ao trabalho, não fezfeio, para surpresa do dono do circo.

“Ficou Pimenta porque eu comia muitapimenta. Ainda fui até os 35 anos comotrapezista, mas o povo queria mais era o palhaço.É uma arte que ninguém ensina, sabe? Aprendivendo os palhaços antigos: Manhoso, Dengoso,Tatuzim, Fumaça, Bicolino... Segredo de palhaçoé ser feliz, não guardar rancor, ter a consciêncialimpa pra trabalhar sem preocupação. Agora, navelhice, vem a experiência, aí fica mais fácil fazero povo rir”, diz. O palhaço que morou de circoem circo ao longo de 30 anos, viajando o Brasilinteiro, precisou dar uma rasteira no alcoolismopara não perder o posto de um dos maisengraçados do Ceará. “Passei oito anos fora decirco por causa da bebida, fui vender pirulito,marmita na praia, tudo pra fugir daqueleambiente, que era propício, na época. Mas tá comtrês anos que não boto cachaça na boca. E queromorrer no picadeiro. Bufo! O coração parou,pronto, pode me enterrar ali mesmo com a carapintada e roupa de palhaço”, garante.

PALHAÇOSPARA SEMPRE

borracha pra panela de pressã de

Quando a Indesejada chegar, Pimenta já terásucessor de mesmo sangue: o neto Wanderson LúcioFreitas Brasil, o Baratinha. Aos 8 anos de idade, ele éo palhaço sensação do Mirtes Circo, que leva o nomeda avó nascida em circo e falecida em 2002. Hoje é opai, Círio dos Santos Brasil, 33, quem arma e desarmaa lona de bairro em bairro na periferia de Fortaleza.Um pai-coruja que acredita e investe no potencial dofilho. “Senti que era pra ele quando comecei a ver acapacidade que tinha de decorar as piadas e contardo seu jeito. Aí a avó batizou, em homenagem até aopadrasto do Tiririca, que era Barata. Tá com quatroanos que ele é palhaço e agora os donos de outroscircos vêm contratar o show dele aqui”, comemora.Baratinha não quer parar por aí. “Quero fazer tambémparada, bola, trapézio, tiro, tudo. Mas já tô famoso”,avisa, cheio de si.

Para justificar a fama, faz questão de contar umapiada. O pai pergunta: qual a diferença entre o circoe o vestido da mulher? Ao que o filho responde,serelepe, vozinha fina e ligeira: “O circo cobre umapopulação inteira. O vestido da mulher só cobreuma leiteira, uma padaria e um parque de diversão”.Como essa, Baratinha tem umas 50 no repertório.Mas também se dá bem de improviso. “Uma vezele me esculhambou em cena, o povo morria de rire eu não sabia o que dizer”, conta o pai, divertindo-se. O figurino também é ele quem compõe. Alémda peruca descabelada, absolutamenteindispensáveis são as meias com furos nosdedinhos dos pés com estampa d’os Rebeldes.

No Circo Mirtes, são sete vivendo em ummesmo trailler. Com cinco filhos para sustentar, ocasal Cirio, 33 e Ana Lúcia, 26, brincam com asdificuldades: “pelo menos não precisamoscontratar artistas de fora no futuro. Temos o elenco

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sentup pra fogão a gás >>>

Avô e neto: amesma vocação

natural para fazer rir.Pimenta é o ídolo de

Baratinha

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TI IRICAR

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TEXTO > RICARDO KELMER

O PALHAÇO, essa figura arquetípica. Meiolouco, meio sábio, ele acompanha a humanidadedesde velhos tempos, como se pra lembrá-la queé preciso rir da vida, sempre. O palhaço animoufeiras nas aldeias onde os viajantes seencontravam pra fazer comércio. Entreteve ezombou de reis e rainhas em seus paláciossuntuosos. Durante séculos cativou gerações egerações nos antigos circos que visitavam ascidades e faziam as crianças, possuídas dealegria, correrem pela rua atrás do sujeitodescabelado, de roupas e trejeitos estranhos, orosto pintado como quem não está nem aí praseriedade do mundo.

Hoje, na era dos jogos eletrônicos, o palhaçoainda resiste. E se esforça em acompanhar o ritmodo mundo pra poder continuar lembrando àhumanidade do que ela não pode esquecer. É oque faz Francisco Everardo Oliveira Silva, umcearense nascido em Itapipoca em 1965. Com onome artístico de Tiririca, posto pela mãe porconta de seu gênio forte, ele soube manter vivaem sua vida a antiga missão do palhaço.

Vindo dos cirquinhos do interior do Ceará, opalhaço Tiririca correu pros circos maiores dacapital, segurando a calça frouxa pra ela não cair.Depois tropeçou na casca de banana e foi pararnos Shopping Centers da Aldeota. Depois fez umapirueta e, puff, homenageou com uma música umaantiga namorada de nome Florentina e virousucesso nas rádios. Aí deu uma cambalhota e caiudentro da televisão. Hoje o picadeiro do Tiriricafica na sala, quem diria – na sala da casa daspessoas de todo o Brasil. Atualmente ele écontratado da Rede Record e, junto com outroscomediantes como Shaolin, da Paraíba, e PedroMassan, do Rio de Janeiro, integra o programade Tom Cavalcante, exibido aos sábados ereprisado às terças.

A trajetória não foi nada fácil. Além de enfrentarpobreza e preconceito, Everardo ainda teve devencer uma desgastante luta judicial: por contados versos de uma música de seu primeiro CD,em 1996 ele foi acusado de racismo. Seus CDsforam apreendidos. Mais dificuldades, depressão.Mas foi absolvido. Hoje ele mora na cidade do Riode Janeiro com a esposa Nana e três filhos deoutra relação. A caçula tem o nome de seu maiorsucesso: Florentina Evellyn. O casal vai toda

semana a São Paulo pra gravar o programa detevê. Foi no meio desses compromissos queencontramos uma brechinha e eles me receberam,muito bem, por sinal, no hotel onde a Record oshospeda, na avenida Paulista, o centro financeiroda cidade de São Paulo.

A entrevista rolou fácil, Everardo é um bichimfaladorzim que é danado. E fala rápido, misturaos assuntos, vai e volta - é o jeito dele de contarhistória, amolecado, quase infantil, jeito queespero não ter se perdido no texto escrito. Percebique valoriza bastante sua trajetória de dificuldadese que tudo o que passou é uma espécie de bússolaem sua vida. Percebi que a mãe tem muitaimportância em tudo isso. E percebi também quea sagrada missão do palhaço prossegue firmenele, olha que coisa boa.

E coisa boa também foi isso: reencontrar umconterrâneo que tão bem encarna a simplicidadee a gaiatice, essa coisa moleque que tanto fazfalta na vida do cearense que larga a terrinha evai se aventurar, ou se perder, nas paulicéias davida. Everardo deixou a terrinha, foi fazer marmotano imenso circo sem lona do mundão sem fim, foi.Mas a terrinha parece que não vai deixá-lo nunca.Ô coisa boa.

FAROL - Como foi a sua infância? E quando vocêdescobriu a vocação pro humor?TIRIRICA - Minha infância foi muito sofrida. Eusou artista circense, de família tradicional do circo.Praticamente não tive infância, aos oito anos tivede trabalhar pra ajudar a sustentar minha mãe,em Itapipoca. Ela tocava fole no circo e eu comeceia aprender esse negócio de trapézio, andar no

arame, salto. Aí a gente foi pra Fortaleza. Tinhaum circo lá, no bairro João 23, que um dia faltou opalhaço oficial. No circo mambembe o palhaço éo âncora, é quem segura o circo. O dono, JoãoDuarte, falou que ia pintar minha cara, me ensinouumas piadinhas e eu entrei e... arranquei riso dagalera. Com oito anos. Achei isso legal. Mas aí opalhaço oficial voltou e eu fiquei só fazendotrapézio, salto, malabares, essas coisas... De tudodo circo mambembe eu sei um pouco. Aí, quandoeu tinha quinze anos, eu pensei: rapaz, essenegócio de palhaço é legal, não se arrisca muito,eu vou pintar a cara de novo. Aí, num cirquinho depano de roda, que no Ceará ainda tem muito,aconteceu a mesma coisa, o palhaço faltou. Aí eupintei a cara de novo. Pimenta era o nome dopalhaço oficial, o melhor do Ceará, ele aindatrabalha, é muito bom. Aí fiquei uma semana nessecirco lá no Serviluz, palhaço Tiririca, que esseapelido foi minha mãe quem botou, porque eu fuicriado pelo meu padrasto e ele não gostava muitode mim... Eu era menino chato, nojento, sabe, nãotive infância, só trabalho, e meu padrasto pegou amamãe já com dois filhos, naquela época eracomplicado pegar mulher com filho. Aí eu faziaumas músicas, eu sou compositor, fazia paródia,era legal, e isso foi repercutindo nos circosmambembes e eu e o Pimenta fazia disputa praver quem atraía mais público, era pau a pau,Tiririca e Pimenta. Teve até uma vez, saiu no jornal,Tiririca, o melhor palhaço de subúrbio deFortaleza. Ave Maria, pra mim foi uma coisafantástica, eu tinha 18 anos.

FAROL - Começo da década de 80...TIRIRICA - É. Aí depois eu montei um circo pramim, viajei pro Maranhão, nisso eu já tava casado,com a minha ex, e lá aconteceu uma tragédia, omacaco mordeu uma criança e aí tocaram fogo nocirco, a galera revoltada. Aí nós voltamos, eu, amulher e minha filha de três anos, de carona. Aíquando eu cheguei no Jockey Club, um amigo meu,Jorginho, me viu jogado numa esquina. Aí eu conteia história pra ele: bicho, eu perdi tudo, tô sem nada.Aí ele falou com a mulher dele, a Margarida:Margarida, o Everardo tá aqui, corre atrás de umacasa pra ele aí, faz uma feira. O cara foi assimfantástico, ele morreu já, mas a Margarida aindaexiste. Aí a Margarida fez isso, pegou a gente nomeio da rua, alugou uma casinha lá, colocou a gentedentro, emprestou um fogãozinho, fez uma feira de

DE CARA LIMPA

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um mês pra gente. Aí eu fiquei nesse bairro, e comoeu já tinha nome lá, já tinha passado com o circo, eufui na galera lá e consegui uma quadra de futebolpra fazer um show. Aí pintei a cara e comecei adivulgar no bairro, com os meninos correndo atrás:hoje tem espetáculo, tem, sim senhor, oí, gente, eutô voltando, quero montar um circo com a ajuda devocês e pá e pá. Aí a quadra encheu, bicho, eu fiqueiuma semana fazendo show nessa quadra, não tinhamicrofone, não tinha som, era na boca mesmo. Showde palhaço, eu sozinho. Aí neguim trazia madeira,pano, pra eu poder montar o circo. Aí um mágicopor nome Shabu, ele me viu e disse: caramba, bicho,no Shopping Aldeota tá precisando de palhaço prafazer animação de festa infantil e tal e tudo, posso teindicar? Pô, chegou na hora certa, eu tôdesempregado. Aí eu já tava com meus vinte epouco. Aí eu fui fazer. O cara gostou, só que eledisse que era muito palhaço, muito circo, você coma cara pintada, o que tá rolando aqui é humor. OTom já tinha vindo pra cá, a nível nacional, já tavaestourado na Escolinha do Professor Raimundo.

FAROL - Então já estamos nos anos 90. OShopping Aldeota ainda não tinha feito a expansãopraquele prédio grande...TIRIRICA - Não. Era ali naquelas lojinhas, tudotérreo, tinha um palquinho. Aí o cara lá falou: nessepalco aqui já passou o Tom, já passou Rossicléa, jápassou Paulo Diógenes, Ciro Santos, LailtinhoBrega, o que pega aqui é humor. Aí eu digo: o que éhumor? Eu não sabia o que era humor. E ele: é sema pintura, essa roupa de palhaço, você topa? Aí eudisse: topo, bicho. Aí eu tirei a pintura, fui mudandoa roupa, o nariz de palhaço, só deixei a peruquinhaloira e o chapeuzinho. Aí fiquei fazendo o mesmoshow que fazia no circo, só que de cara limpa, issopra mim era novo. Mas aí, quando você tá chegando,é difícil da galera te aceitar. Então lotava mas foinove meses pra eu poder conquistar o público. Noquinto mês era que a galera ia achando graça. Aípassei a fazer terça, quinta e sábado. Porque tavadando lotação. Mas só que ninguém não ria, bicho,acho que preconceito, eu tá vindo da periferia, e como lance lá da Aldeota, tá entendendo? A galera nãoaceitava. Então chegava o Paulo Diógenes, podiafalar qualquer coisa e a galera: rá, rá, rá!!! Chegavaa Rossicléa: rá, rá, rá!!! E se eu chegasse, podiafalar a mesma coisa e a galera não aceitava. Aí eufui quebrando, brincando... Um levantava pra ir probanheiro, aí eu falava: ei, vai ajudar. Aí, pumba, comnove meses eu já tava o bam-bam-bam do ShoppingAldeota. Aí a galera começou a me assistir, essesgrandes humoristas: rapaz, tem um cara aí, Tiririca,um palhacinho... Aí eu já tava bem, né, andando deônibus e tal, mas com um dinheirim. Aí o Tom tavacom um espetáculo lá, no Centro de Convenções,aí ele soube e foi me assistir. Aí, caramba, o Tom meassistindo! Aí eu reconheci ele na platéia, comeceia tirar onda, brincar em cima dele e tal, pá, pá, etudo, sabe? Porque a galera não me falou com medodeu amarelar, né? Aí, nada, quando eu vi o cara foique eu me soltei mesmo e tal e tudo. Aí quandoterminou o show ele me chamou na mesa dele lá, eaí, rapaz, como é que tá a situação? Bicho, tô indoaí... E os cachês? É, tá dando pra... Aí ele me deuum cheque, na época, cara, era... era um milhão, agente chamava um milhão, mil reais hoje... na época

era um milhão de cruzeiros, se não me engano. Não,bicho, que é isso? Não, é uma ajuda que eu tô tedando, é de coração. Nós ficamos amigos ali, sabe?Aí ele me deu o cheque. Aí eu digo: não, não queronão, e já recebendo. Não quero não e já pegando,obrigado, bicho, que Deus te abençoe...

FAROL - Ah, ah, ah! Se você não pegasse, eupegava.TIRIRICA - Peguei. Aí o cara da choperia lá disse:rapaz, eu troco o cheque pra você. Porque eu...cheque, cara?, eu não tinha conta, nem nada. Aíme deu em dinheiro. E pra mim pegar ônibus,bicho, altas horas da noite, com esse dinheiro? Tué doido! E o medo, bicho? Porque era muita grana,era miúdo, trocado, mil reais. Aí a gente ficou sefalando por telefone, ele na Escolinha,estouradaço. Aí pronto, começou a abrir as outrascasas pra mim. E eu foi que inaugurei a ShoppingPizza com show de humor. Aí foi legal, eu já tinhaas casas certas pra fazer, barraca de praia,barraca Olodum na época, aí a coisa começou aandar. Aí quando ele ia a Fortaleza, me ligava praver meu show. Aí nós ficamos amigos. Mas só quea amizade dele pra mim já era tudo, nunca chegueipra ele pra dizer assim: bicho, me dá uma forçaaí, me coloca lá. Pô, ele ligava pra mim, botavapra mim falar com os amigos dele e tal, fala aquelavoz que tu fala e tal. Daí eu já tinha mandadotrabalho meu como comediante pras emissoras,pras rádios, pra tudo e nada. Aí o Lailtinho Bregafalou: rapaz, o que dá certo é CD. Porque eu faziafita cassete. Vai atrás de patrocínio. Aí eu fui nasbarracas. Aí uma barraca, de nome Rebu, na Praiado Futuro... a dona, a Vanda, falou com o esposodela, o Dedé, na época, e disse assim: tudo bem,a gente banca mil CDs teus mas tu faz olançamento na minha barraca. Tá feito. Pô, bicho,mil CDs... Aí nós vendemos CD pra caramba.

FAROL - O CD da Florentina.TIRIRICA - Da Florentina. Aí aFlorentina, com esse CD, a pirataria foitrazendo, foi rodando pelo Brasil,Florentina, Florentina, Florentina... Aí eujá tava bem pra caramba em Fortaleza,já com minha casinha, meu carrinhoimportado, meu celular... Era 95. Aí umcara duma rádio pegou o CD e ficoutocando na Bahia e em Pernambuco,

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quarenta e duas cidades. Aí o Will Nogueira, darádio Verdes Mares, me ligou: bicho, manda o CDque vai ser o maior sucesso aqui. Aí eu mandei eele começou a tocar. Aí foi sucesso. Porque o meusonho era fazer sucesso no Ceará. Mas aí eu játava fazendo sucesso no Nordeste todo, tinhadezoito pessoas trabalhando comigo, tavaviajando de avião, óia, já era uma empresa. Aírecebi prêmio da música mais tocada na rádioBand, de São Paulo. Aí um dia... Eu tava fazendoshow no Maranhão e o Arnaldo Sacomanni,produtor, mandou um cara atrás de mim, aí eu fuipra São Paulo e assinei com ele. Aí um mês depoisele me levou pra Sony. Aí vim fazer o programa doGugu, já contratado da gravadora Sony Music. Aífoi uma loucura, show pelo Brasil todo. Aí vim pracá. Foi em 96. Mas todo artista tem seus altos ebaixos, né, veio a separação, veio aquela históriado racismo, o processo, aquela polêmica toda,depressão... Mas graças a Deus fui absolvido, deia volta por cima. Estourar é fácil, difícil é conseguirmanter. Aí passou a maré ruim e eu me mantivecomo comediante, como palhaço que eu sou. Etamos aí até hoje.

assim, pra que eles sejam pé-no-chão, sabe, comsuas amizadezinhas, seus coleguinhas, sabendoo quê que é, quanto vale isso, quanto custa essacoisa. O sucesso só sobe pra cabeça de burro.Sempre quando dá na minha agenda, eu vou fazercirco. Falo com os caras e vou lá pro interior deMinas, Pernambuco...

FAROL - Dizem que palhaço é ladrão de mulher.Mas mulher também pode roubar palhaço?TIRIRICA - Pode. Aconteceu comigo. Quandoeu era mais jovem... aconteceu de uma moça meinduzir... praticamente ela me levou, sabe? Issofoi no bairro Panamericano. Eu era de menor eela de maior, ela tinha fugido comigo do circo.Naquela época era diferente... o circo tinha umamagia, sabe, o jovem queria aprender algumacoisa de circo, as moças se encantavam pelopalhaço, queriam saber quem tava por trásdaquela pintura... Eu fui parar na delegacia, a mãedizendo que eu tinha levado ela, tava iludindo... Odelegado deu foi um esporro na mãe: que é isso,minha senhora, esse menino é uma criança...

FAROL - Você acha que nesse mundo de internete diversões tecnológicas ainda tem espaço procirco?TIRIRICA - Cara, era pra ter mais espaço procirco. Eu falo isso pra caramba no meu show.Porque eu sou artista circense e sei o que ospequenos circos passam. Tá faltando maisincentivo do governo, o circo não pode acabar, ocirco é fantástico, é a melhor escola que tem. Ocirco é uma magia, coisa de criança. Dão espaçopro Circo de Solieul. Circo de Solieul lá precisade espaço! Pô, dá mais valor pra gente, maisespaço pro circo das periferias, circo do Nordeste.Hoje é uma burocracia muito grande, você temque pagar isso, pagar aquilo... Só quem temcondições de pagar isso são os grandes circos.O nosso circo... é muito difícil... o terreno, puxaruma instalação, uma água... O Beto Carreiro temcondição de pagar mas o circo da dona Jocélianão tem. Tem transporte, tem os artistas que vocêtem que manter...

FAROL - Você ainda mantém contato com omundo simples das pessoas pobres?TIRIRICA - Bicho, o que mudou na minha vidafoi só mesmo o reconhecimento. Mas eu sou oFrancisco Everardo Oliveira Silva, o Tiririca, daperiferia, sabe, mambembe, daquele pano deroda. Eu não levo minha vida cheio de frescura,cheio de coisa não. Eu levo com o pé no chão. Eos meus filhos, moram três filhos comigo, a de16, o de 11 e a de 9, então eu mantenho eles

sério. Então depende de cada um, da tua criação.Mas é possível sim.

FAROL - Conta aí um caso engraçado queaconteceu na tua carreira.TIRIRICA - Ah... teve muitos. Deixa eu ver... Ahistória dos dentes. As mães vieram reclamar,porque as crianças me imitam, né, mas aí elasqueriam ser banguela também, queriam ficar quenem eu, não pode, né? Era engraçado, o palhaçobanguela, mas... Aí eu conversei com a Nana, agente achou melhor botar os dentes, não podiainfluenciar as crianças. Porque tem gente que querficar igualzinho mesmo, é uma coisa louca. Eu tenhouns covers, Tiririca cover, que me imitam na roupa,a peruca, tudo. Tem até os que tiraram os dentesda frente, acredita? Né não, Nana? É verdade. Temum que pintou o cabelo e deixou assim mesmo, dacor do cabelo do Tiririca. Uma vez, no GilbertoBarros, ele botou um cover meu lá... Bicho, era muitoparecido! Me deu até uma coisa assim ruim, sabe...eu me vendo ali na minha frente. O cara era bommesmo, era igualzinho, perfeito.

FAROL - Tem algo que você não gosta nessavida agitada que leva hoje?TIRIRICA - Tem uma coisa... Eu fui atrás dosucesso, né... mas... tem hora que incomoda. Tuquer sair com tua família, pro shopping, probarzinho da esquina, pra jantar fora... Mas os fãste vêem toda vida como artista, querem te versempre daquele jeito, cadê a peruquinha, contaaquela piada e tal. É legal, é bacana, porque sevocê não tem isso, você sente falta. Mas tem horaque tu quer curtir com tua família e não dá. Temuns mais atirados, que vêm na mesa, e se tu nãorecebe, ah, esse bicho passava fome e hoje émascarado, na televisão é uma coisa e ao vivo éoutra... Eu sou um cara brincalhão, então eu levona brincadeira. Mas tem hora que você diz: pô,bicho, já tiramos foto, agora dá um tempo, já tedei autógrafo, já falei com tua família toda notelefone... É, porque eles botam pra falar até como cachorro da vizinha.

FAROL - Hoje você é artista famoso de tevê. Dápro palhaço circular nesse mundo dos grandesnegócios sem perder a inocência?TIRIRICA - No meu caso dá, bicho, porque écomo eu te falo, eu não mudei nada. Tá aqui minhamulher de testemunha, eu sou mais palhaço forada televisão de que na televisão. No meio dosmeus amigos, em casa, eu sou mais moleque.Meu filho mais velho que me falou isso e realmenteeu percebi. É tanto que minha esposa vem mefalar sobre um problema: pô, tu não leva nada a

FAROL - O que você diria pra uma criança quedeseja ser palhaço de circo?TIRIRICA - Circo é bacana, é legal. Pô, se éo sonho dela, mete a cara mesmo e vai. Agora,não pode deixar de estudar, sem estudo vocênão chega em canto nenhum, não vai mesmo.Principalmente hoje, a modernização, né, cara?Se tu tem um tempo, vai, mas não pode deixara escola. Se tu tem um sonho, qualquer sonho,não precisa ser de palhaço não, tem que correratrás, batalhar mesmo, não pode é ficar parado.Pode demorar um ano, dois, dez, mas vem.

FAROL - O Tiririca tem um grande sonho? Ou járealizou todos?TIRIRICA - Eu ainda tenho sonhos aconquistar. São vários... No meio dessesvários... (longa pausa, pensando) é... o lanceda minha mãe, cara. O sonho dela... era sercantora, sabe?... (olhos marejados) e... chegoua gravar CD e tudo mas... não deu certo. O nomedela é Maria Alice. Ela ainda é viva. Ela adoracantar. Eu já falei até com minha esposa sobreisso, eu gostaria de armar um lance assim,gravar um CD pra ela... entendeu? Mas a coisanão é fácil. Sabe, as músicas que ela gosta decantar, fazer um show dela, convidar osamigos... Show da Maria Alice.

RICARDO KELMER é escritor, letrista e roteiristae mora em São Paulo, Terra, 3a pedra do Sol

borracha pra panela de essãde sentup pra foo a gás >>>

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Escola

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“Nesse bairro, não conheço nenhumacriança que nunca tenha tido contato comcomputadores”, radicaliza Viviane, de 20anos, que freqüenta uma das várias lan housesdo Jardim Iracema.

“Venho para ver e-mails, usar o Orkut,falar no MSN... procuro as máquinas comwebcam”, esclarece Larissa, 14 anos, num doscyber cafés do Álvaro Weyne.

“Faço pesquisa no Google. Gosto doYouTube. E copio em CD as fotos dacâmera digital”, diz Rogério, 19 anos, no bairrovizinho, o Carlito Pamplona.

“Já gostei de Counter-Strike e Warcraft,mas hoje prefiro Ragnarök. É maisemocionante”, comenta Ivan, de 20 anos, quemora no Cambeba mas joga no Montese.

“Meus interesses são: interagir com

amigos, ver e fazer comentários, ouvirmúsica, alimentar meu fotolog e usar oMessenger”, enumera Alex, 17, freqüentador deum cyber café nos limites da Aldeota com Praiade Iracema.

Uma imensa rede invisível aproxima bairrosdistantes e magnetiza vizinhos que sedesconhecem, espraiando-se pelas ruas da cidade,atropelando diferenças sociais e escrevendo umadifusa gramática de uso cotidiano. Mesmo semPlayStation, iPod ou PC próprio, a menina do JardimIracema distingue bits, bytes, links e flogs,interagindo com ajuda do Skype e seduzindo comapoio de uma câmera, na direção da qual pisca osolhos, confiante. A bússola de navegação dessesmares que seus pais sequer imaginam onde ficam,custa apenas um real. A hora.

A GALERAE SUAS

CONEXOES

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VOCÊ JÁ FOI NALAN DA ESQUINA?

É NAS LAN HOUSES e cyber cafés,existentes e efervescentes em todos os bairrosda cidade, que se percebe mais claramente aenergia tentacular da Web, essa “rede do tamanhodo mundo”, em sua tradução literal, que abriucanais ignorados, com vazão para novas formasde relações, interações e vivências. Embora ocaminho da inclusão digital ainda seja longo eacidentado, alguns atalhos passam pelasfacilidades desses estabelecimentos, que pululamem bairros de chips profundamente desiguais,com preços que acompanham o mapeamentosocial da cidade.

Entre os mais jovens, em especial, há umapeculiar fluidez de uso, natural interesse de acessoe total desassombro por aventuras virtuais.Sozinhos ou em bando, eles estão sempre lá, nassalas muitas vezes escuras e apertadas de acessopago, principalmente os que não têm computadorem casa, desejam mais rapidez na conexão,buscam privacidade para bate-papos, queremampliar o circuito de comunicação oudesenvolveram o insaciável vício de jogar em rede.

Acessar programas de mensagensinstantâneas, ler o correio eletrônico, baixarmúsicas e vídeos, entrar num bate-papo virtual,criar comunidades orkutianas, alimentar blogs,flogs e fotologs, conhecer sites do mundo inteiro,usar simuladores de vôo para vencer batalhas daSegunda Guerra Mundial, perseguir terroristas emonstros sinistros com armamento bélico pesado,e de quebra, fazer pesquisas escolares com oauxílio do espantoso arquivo Google, sãoperipécias que saem por R$ 1,00, no mínimo, eR$ 4,00, no máximo, durante uma hora, emqualquer lan ou cyber café da cidade.

Em Fortaleza o número real dessas casas é

certamente o triplo do que supõe o Sebrae, e nãopode ser especificado pela Junta Comercial doCeará. Três computadores conectados à Internetnum quartinho improvisado, com ou sem ventilador,mais uma máquina xerox (para alavancar osganhos), já definem a configuração de boa partedesses points de fofocas instantâneas, paquerascyberespaciais e jogos multiplayers.

Foram assim os primeiros dias da Diginet, quehoje tem 10 máquinas, quatro delas com webcame microfone, no Jardim Iracema. Também foi assimque começou a Bilai Lan House, que há três anosera uma das únicas casas do gênero no BairroEllery, hoje repleto de salas iguais. De três anospara cá, por sinal, a concorrência cresceu tantoque já desanima empreendedores, como JeanBatista, dono do pioneiro entre os cyber cafés doCarlito Pamplona.

“Quando comecei, distribuí panfletos nos colégiose em uma semana a casa lotou”, recorda. Hoje osdoze computadores de Jean continuam disputados,mas ele garante que já viu horizontes mais azuis.Digitação, impressão, xerox, cópia de CD/DVD eformatação de currículos são os extras apresentadospor vários cyber cafés que desejam melhorar o lucro,já que “o acesso à Internet não rende tanto”.

As casas mudam de público e interesse conformea localização, mas em qualquer ponto atraemadolescentes e jovens adultos. No Centro, são oscomerciários que animam os cyber cafés, para ondese dirigem na hora do almoço, a fim de acessarprogramas de mensagens, colorindo as salas comuniformes de lojas, farmácias, restaurantes elanchonetes. A paisagem é bem diferente da que sevê nas lan houses de outros bairros, em que asfardas têm emblemas de colégios e os interessesse voltam para mais para os jogos em rede.

46 DEZEMBROVF ROL

“Ragnarök é o jogo da liberdade”, diz Felipe,lançando as mãos para o espaço. Um espaçopequeno, aliás. Estamos na BC Net, na agitadaAvenida Gomes de Matos, Montese, ondeRonaldo Jr. e Brenda Camila começaram seunegócio com cinco computadores, e hoje têmdez máquinas para esfuziantes partidas emgrupo. A casa atrai um público de 11 a 20 anos,que nesta manhã é predominantementemasculino.

Aqui a galera busca principalmente jogoscomo Counter-Strike (ação), Need for Speed(corrida), Warcraft (estratégia) e Ragnarök(RPG). Como em qualquer lan house, o bommesmo é entrar em partidas com a participaçãosimultânea de vários jogadores, que formamgrupos fur iosos para enfrentar desafioscoletivos; prodígio impossível nos antigosvideogames, que embalaram outras geraçõesem tantas aventuras. Quanto maior a afinaçãona turma, menores as chances de sair do jogo.

ADRENALINAVIRTUAL:

Apesar da variedade de seduções virtuais, naBC Net os clientes não encontram o polêmicoCarmageddon, um game cujo sinistro objetivoinicial era atropelar pessoas e animais, numacorrida maníaca em que o vencedor nem tinhaque chegar primeiro, mas precisava matarbastante. “Tirei das minhas máquinas. Recebomeninos de todas as idades”, diz Ronaldo, quenão permite alunos uniformizados na BC Net (“poisnão sabemos os horários dos colégios, e nãoqueremos confusão com os pais...”).

Hoje, num sábado sem aulas, muitos garotosestão aqui, na disputa de Ragnarök, aos berros de“vamos levar esse campeonato!” Com algumapaciência e muito entusiasmo, eles resumem aenormidade da sua paixão. O Ragnarök é umMMORPG, ou seja, um RPG on-line para múltiplosjogadores, com gráficos em 3D e balões para afala dos personagens. Nele, você pode interagir commilhares de aliados (ou oponentes) em tempo real,escolhendo uma profissão, conquistando zenys (amoeda local) e desenvolvendo habilidades.

Os personagens enfrentam monstros como osgelatinosos porings; conversam e interagem entresi, através de mensagens escritas na tela; e podemse organizar em grupos de poucos jogadores ouem clãs como o Horizon, com mais de 100

membros. As aventuras, baseadas num mangácoreano de mesmo nome, têm um toque demitologia nórdica e se passam em Rune-Midgard, um reino com quatro feudos, cadaqual com cinco castelos.

“O Ragnarök não tem fim...você cria a suaprópria história. É como The Sims, em que ojogador pode ter a sua casa, colecionarchapéus, ficar rico, ter manias”, sintetiza oestudante Ivan Arthus, 20 anos, que veio doCambeba para participar do campeonato,organizado pela Level Up, empresa que temos direitos de sete jogos, dentre os quais oRagnarök e o City of Heroes.

As aventuras em Rune-Midgard podem servividas sem que se saia de casa, desde que ogamer tenha um PC próprio e adquira“créditos”, vendidos em forma de cartões. “Ospais vêm muito aqui para comprar. É bom,porque conhecem o ambiente e deixam de terpreconceito”, acredita Ronaldo. Preconceito,convém deixar claro, nunca foi o problema deFabíola Gouveia, 41 anos, mãe do jogadorFelipe, de 17.

Ela não participa do campeonato, mas veioacompanhar o filho, e costuma jogar em casa.No Ragnarök, Fabíola é uma sacerdotisa denível base 86 (o número corresponde aoestágio de evolução alcançado pelopersonagem). Aliás, no cyberespaço de Rune-Midgard, toda a família vai bem: Felipe é umferreiro de nível base 96. Seu irmão Valmir, de14 anos, é um arquimago 76, e a caçulaFernanda, de 10 anos, é uma cavaleira 96.

“Muita mãe critica, porque não conhece, masisso é bobagem! Meu filho acabou de passarno vestibular. Os outros vão bem na escola. Eudou a eles acesso ilimitado. Podem usar o

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47DEZEMBRO VF ROL

Lara da Insinuante. Francisco da Rabelo.Fátima da Zenir. Sônia das Lojas Maia. É assimque Reinaldo Afonso, um ex-viciado em lanhouses e hoje sócio-proprietário da Cyber Trixidentifica os clientes, muitos deles assíduos.“Temos um cadastro com 200 freqüentadoresfiéis”, computa o proprietário. Esses ganham umagrado: a cada quatro horas de conexão, umahora de acesso gratuito. Porém, nada de jogos:Reinaldo e o sócio Luiz Pedro não querembarulho na salinha amarela.

Sim, aqui no Cyber Trix, vizinho ao Gig@net,as paredes são amarelas, as divisórias brancase o café, de graça. A calma local é perturbadapelos passos de uma garota da Esquisita, queinterrompe o bate-papo on-line para pegar umcopo de água gelada (também oferta da casa),retornando célere para a sua máquina comwebcam e microfone. Ela molha os lábios e sorripara a câmera, mandando róseos beijos etéreospela rede mundial de computadores.

Quem entra ali, olhando em volta, tem novechances em dez de encontrar a morena AnaKelly, 22 anos, moradora do Mondubim ecomerciária numa loja de acessórios parabolsas, em algum ponto da Rua São Paulo, deonde escapa quase diariamente, entre o meio-dia e as duas da tarde, para matar a fome decontatos cibernéticos. A moça gosta daorganização e privacidade da casa, onde osclientes ficam de costas para as paredes, etodos são orientados a circular pela frente doscomputadores, nunca por trás.

São detalhes que fazem a diferença. Afinal,“cyber café e lan house, hoje em dia, é que nemcabeleireiro: tem em todo lugar”, diz Reinaldo,que mora longe do trabalho, na Serrinha, umbairro em que o preço médio da hora deconexão dificilmente ultrapassa R$ 1,50. “NoCentro as despesas são outras. Um cara quecobrava R$ 1,50, aqui perto da galeria PedroJorge, fechou em três meses”, asseguraReinaldo, comunicando à Luciana das LojasMarisa que ela ainda tem 13 minutos paragastar. A jovem de olhos oblíquos sorri,bochechas iluminadas pela tela, e mergulhanovamente nas inumeráveis seduções da Web.

FULANO DALOJA TAL

ATIREEM QUEMPUDER E

Ragnarök não é o forte do estudante PauloSilvestre, 17 anos, um alucinado por jogos detiro, nos quais a perícia do jogador éproporcional aos barris de sangue queesguicham na tela. Paulo é um integrantehabilidoso da legião de aficionados por Counter-Strike, ou simplesmente CS, um MOD (oumodificação) do game Half-Life, que faz sucessohá anos.

No CS o jogador pode ser terrorista ou contra-terrorista, escolher armas de acordo com seutime e defender objetivos, como salvar reféns edesarmar bombas. É um jogo de ação eestratégia em “primeira pessoa”, no qual se vê ocenário sob a perspectiva do personagem, o quetorna as batalhas mais emocionantes. No CS

Rio, a ação se passa numa favela carioca, ondeo jogador escuta até um sambinha de Bezerrada Silva e se depara com um outdoor dasorganizações Tabajara.

Como muitos craques, Paulo gosta tambémde Warcraft, outro hype entre os games, queune povos de várias raças, cavaleiros, monstrose dragões em mapas diferentes. Ele já participoude cinco campeonatos. Dois de Warcraft, na BCNet, e outros três de CS. Numa dessas ocasiões,formou um time de três e saiu vice. Nascido ecriado no Montese, o jogador trabalha cincohoras por dia no ambiente rumoroso que maiso atrai. Uma lan house.

O bico, mesmo ficando na Vila União, é umexpediente prático para o gamer que desde os12 anos enfrenta virtualmente as emboscadasmais traiçoeiras e as piores guerras do milênio.“Como trabalho numa lan, consigo jogar tododia, uma hora por dia, no mínimo”, diz ele, queaos domingos, quase sempre, troca a luz daPraia do Futuro pela penumbra da BC Net, alan mais próxima da sua casa. Nesses domingossem sol, Paulo trucida inimigos com lançadoresde mísseis e outras armas inteligentes.

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48 DEZEMBROVF ROL

No desassossego do Centro da cidade,algumas ilhas de silêncio concentram lojistas,comerciantes, passantes e avulsos de todos osbairros, que reservam as horas de folga parapalestrar virtualmente, além de assistir vídeose ouvir música. Estamos nas adjacências daPraça do Ferreira, área em que os cybers cafés,e não as lan houses, atraem os que trabalhamo dia inteiro.

Aqui o preço médio da hora de acesso é R$2,00, e os campeões de audiência são oMessenger, o Orkut, as salas de bate-papo e oGoogle, numa configuração que se repete em todosos cyber cafés da cidade. Embora o movimentotenha as suas oscilações, o horário de pico costumaser entre o meio-dia e as duas da tarde.

O CENTRONERVOSO DOSCYBER CAFÉS

É exatamente esse o intervalo que BrunaRocha, de 20 anos, tem para o almoço, ocasiãoem que checa suas mensagens virtuais, numasalinha de 10 metros quadrados, onde seapertam quatro computadores velozes, todoscom webcam. Ela trabalha no setor de crediárioda Loja Otoch e freqüenta o WebFortal.com, queé o cyber café mais próximo do seu trabalho.

No teclado ao lado, o jovem Allan Kardek,de 21 anos, manda recados pelo Orkut. Moradordo Bairro Ellery, Alan trabalha na Aldeota (“soufaz-tudo numa lanchonete”) e vem diariamentepara a Rua Major Facundo, onde fica aWebFortal.com. “Uso pouco as lan houses domeu bairro, porque gosto do sistema fracionadodaqui”, justifica. O “sistema fracionado” é assim:caso o cliente não possa usar a hora pela qualpagou, fica com crédito para os dias seguintes.

Para muitas pessoas, a exemplo dosfuncionários dos bancos circundantes, os cybercafés do Centro funcionam como um espaçopara contatos de negócios extensivos, espéciesde “escritórios virtuais” improvisados, bemdistintos do ambiente às vezes escuro e quasesempre barulhento das lan houses.

UMA GALERIADE MUITOSACESSOS

Com suas paredes e divisóriasmelancolicamente azuis, como umaquário artificial de peixes-elétricos,todos imersos em megabytes, oGig@net é um dos cyber cafés daefervescente Galeria Pedro Jorge,point democrát ico de vendas eserviços, que costuma arrastar as maisvar iadas tr ibos para o coraçãopulsante da Rua Senador Pompeu,centrão de Fortaleza.

Hora após hora e pelo dia adentro, noborbulhante aquário azul, o toc toc tocdas teclas embala monitores iluminados,tornando a clientela indiferente aozunzunzum que vem lá debaixo, numafuga livre pelo vão da galeria. Umaespécie de estremecimento abafadosobe as paredes do segundo andar, ondeestamos. É na hora do almoço queValdenizia da Silva Oliveira, 21, aparecepara passar e-mails, dar uma “volta” peloMSN e conferir scraps.

Ela trabalha no setor de crediário dasCasas Pio e, às vezes, vem com amigasde idades aproximadas, todas damesma loja de calçados. Nesses dias,o uniforme verde-escuro das moçascontrasta com o cobalto das paredescircundantes. No domingo, via de regra,Valdenizia não vem. Prefere ir para a lanhouse do seu bairro, o ConjuntoEsperança. “Não tenho computador emcasa. Vou numa lan ou cyber café pelomenos duas vezes na semana”, sorri acomerciária, enquanto olha o relógio. Ahora do almoço acabou.

49DEZEMBRO VF ROL

“Antigamente eu tinha medo; não sabia nemdigitar. Então fiz um curso de informáticabásica”, diz Natalina Santiago de Oliveira, 19anos, que hoje bate-ponto num cyber café doseu bairro, o Jardim Iracema, duas ou três vezesna semana. Sua mãe lava e passa roupa desegunda a sábado, e gosta de saber que a filhaestá entre a tela e o teclado, “em segurança”.

O cyber café que Natalina freqüenta com asamigas, todas do mesmo bairro e de igual faixaetária, ocupa dois cômodos de uma casa ondemoram oito pessoas, pertinho da Igreja Universalda Avenida Coronel Carvalho. O proprietário damicro-empresa familiar (R$ 1,00 a hora), que hojetem 10 máquinas e também faz currículos,convites para eventos, duplicação de fotos exerox, pede para não ser identificado (“vocêtrabalha na Prefeitura?”).

Natalina acha graça. Já vai longe o tempoem que ela não dominava nem o Windows.Hoje, é uma tranqüila usuária do MSN, acha oGoogle útil e copia fotos em CD. Para nãoenciumar o namorado, cometeu recente“orkutcídio” (é melhor, né?). Costuma baixarvídeos e músicas (“gosto de tudo, menos debrega”). Só rareou a vida cibernética por causado vestibular. A mãe deu duro no tanque paraque ela e a irmã tivessem curso econseqüência. Natalina, uma futura psicóloga(“se Deus quiser”), vende produtos Avon parater um extra no fim do mês.

Suas amigas, Elisângela, Sônia Virgínia eCarla Karine, navegam pelas mesmas ondas.Na rota, fofocas, pesquisas, novidades,segredinhos e a programação do final-de-semana. As que têm computador próprioreclamam que “a Internet discada é muito lenta”.Elisângela, cujo pai mantém uma mercearia emcasa, prefere o cyber café. “Na Internet,encontro todo mundo”, diz ela, que participade uma comunidade orkutiana do JardimIracema.

Um parêntese. O Jardim Iracema tem muitas

comunidades no Orkut. A maior delas, com 900membros até o fechamento dessa edição,descreve o bairro como “um lugar tranqüilo de semorar, com os mesmos problemas de todas ascomunidades”. E arremata a auto-definição comum remoque para marinheiros de outras plagas:“para que viver no Morumbi se Iracema é meugrande amor?”.

Continuando, as meninas. Sônia Virgínia, a Vivi,filha do dono de uma oficina mecânica noHenrique Jorge, mexe em computadores desdeos 14 anos, fazendo trabalhos escolares na casade uma amiga, que na época era a felizproprietária do único PC das vizinhanças. “Hojeestá mais fácil. Quem não pode ter, vai numa lan.Minha sobrinha de 11 anos tem MSN, acredita?”.Vivi, que só troca o YouTube pelo vôlei de praia,

PONTOS DECONVERGÊNCIA

tem duas comunidades criadas para ela no Orkut(“Adoramos a Vivi” e “A Vivi já furou comigo”).

Sua prima Carla Karine gosta dos mesmosprogramas virtuais: bate-papo com amigos, ver eenviar e-mails, baixar música, copiar fotos eorkutar (no Orkut, enumera suas paixões: “meusCds, meus livros, amigos, família e minha lista decontatos”). Jogos, não. Quem gosta é Carlos, oirmão de sete anos. Apesar de muitas meninasserem craques em games, especialmente os mais“fofinhos”, como Mario Kart, Diddy e We LoveKatamari, ou os “românticos”, como Final FantasyVIII, essa é mesmo uma seara de domíniomasculino.

Vejam o caso de Kleber, 17 anos, freqüentadorde uma lan house na Tenente Benévolo, Aldeota,onde paga R$ 2,00 a hora. “Adoro games,principalmente os de tiro. Me atrai competir, matarsem matar mesmo, essa coisa da rivalidade”. Jogopreferido? Counter-Strike, é obvio. Ao lado deKleber estão Alef, Alex e Vitor. Os quatro temidades entre 16 e 17 anos, são companheiros debaladas e usuários da Internet em diferentesníveis. Alef, por exemplo, já foi mais “viciado”,inclusive em games. Par ticipou de vários“corujões”, as rodadas noturnas de jogos em rede,que se estendem até o sol raiar. Nas férias, insonee infatigável, ia para a lan todos os dias.

“Agora estou mais interessado em contatosreais. Cansei do ‘método’ virtual”, filosofa o ex-dependente, com a sabedoria dos 17 anos e todoo tédio da juventude. Mesmo tendo doiscomputadores em casa, o teórico de classe médiaainda vai à lan com os amigos, e usa a Internetespecialmente para marcar encontros, alimentaro fotolog, ver sites de coberturas de festas e, válá, se distrair com um bom game, de vez emquando, que ninguém é de ferro.

Realidades sociais e bairros diferentes, asmeninas do Jardim Iracema e os garotos da

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