fanzine da academia cabense de letras

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Fanzine bimensal da Academia Cabense de Letras Editorial A poesia não se entrega a quem a define”. Com essa afirmação o poeta Mário Quinta- na nos salva do racionalismo anti-humano que insiste em nos enquadrar em uma obje- tividade que fragmenta e aprisiona o ser humano em conceitos inquestionáveis. Felizmente a poesia nunca abandona as mãos calejadas de quem lapi- da o cotidiano para fazer seguir a jornada que alimenta a própria existência da humanidade. O que pode a poesia diante de uma realidade social tão complexa e muitas vezes tão difícil de ser vivida? Basta dizer que a poesia faz valer o que há de mais hu- mano em cada um de nós e resgata as emoções e senti- mentos mais próprios da condição de ser pessoa, ou ainda é pouco? Basta afirmar que a poesia é uma via possível na realização da necessária parceria entre ética e estética para o embelezamento do mundo, ou ainda é insuficiente? É necessário dizer que a poesia coloca o humano dentro de um mundo que sofre pela ausência do humano? Precisamos recorrer ao poeta Fernando Pessoa quando, ao mesmo tempo, interroga e questio- na: “Onde é que há gente no mundo?”, em seu “Poema em Linha Reta”? É preciso lembrar que a poesia faz va- ler a nossa subjetividade e grita aos quatro cantos: “Nós não somos pedras”? Pois é, caros leitores, está em suas mãos a edição de lançamento do fanzine da Academia Cabense de Le- tras, o primeiro de muitos que virão. Esperamos que a leitura desse “Café com Letras” alimente a alma e a sub- jetividade de cada pessoa e faça valer o que há de mais humano em cada um de nós. Nelino Azevedo Presidente da Academia Cabense de Letras ELEGIA ÀS COISAS QUE FAÇO Natanael Lima Jr (sobre tema de Mário Quintana) no poema que me traço ameaço e abraço torturo e afago às vezes me faço místico e às vezes me faço louco às vezes me faço coisas restos migalhas lembranças às vezes as coisas fazem renascem brotam ressurgem no poema que me traço eternamente me busco passo a passo frente a frente lentamente no poema que me traço todas as coisas um dia existirão REALIDADE Vera Rocha Na esquina do pensamento, Parei na tua rua. E era uma encruzilhada de ideias. O edifício das recordações Povoado de andares emocionais Mostrava o funeral dos sonhos sonhados. O véu das ilusões despencou, O quociente despiu-se E o universo da realidade Se me apresentou de forma espantosa. O brilho quase opaco parecia As brasas quase em cinzas se tornavam, E uma rajada de tristeza me atingiu Deixando-me perplexa, muda e fria. ENCONTRO NA PRIMAVERA* Jairo Lima Deu-nos o destino a primavera Banhando-nos com flores perfumadas Quando o ninho do pássaro se fizera E copulam as espécies apaixonadas Deu-nos a primavera nosso encontro Em dia festivo dos infantes Tudo até parece estava pronto Éramos sem saber já bons amantes Dar-nos-á esse encontro a certeza Das quatro estações por toda vida No verão teu suor, tua beleza No outono tua alma mais sentida Do inverno, aquecidos com proezas Retornamos à primavera tão querida * Do livro ANTÍDOTO – Poemas em defesa da autoestima e outras prescrições A IDENTIDADE QUE SE VAI Douglas Menezes Q uando Tune saiu de casa pela última vez para se tornar estrela, lá longe no infinito, não ia embora ali, apenas um pedaço de mim, mas uma parte de humano do Cabo de Santo Agostinho se despedia. Mesmo na dor, observei as janelas das casas antigas acenando lenços brancos, no coro triste do adeus. Era meu pai partindo e os humildes, esses que fazem a verdadeira história do mundo, homenageando-o, como fazendo justiça a quem contribuiu, no dia-a-dia, com a cidade que o acolheu. Lembro de um bêbado no velório, chorando muito, pedindo para meu pai não ir embora. Recordo, então, que ali, naquele momento, há vinte anos, começava a morrer uma identidade humana da cidade de Santo Agostinho. E o tempo encarregou-se de confirmar que a partir daquele instante, aos meus olhos, a cidade mudava. Uma geração notável de cabenses desaparecia, lentamente. Eram figuras importantes, não somente por razões econômicas ou culturais, mas por serem o cheiro do Cabo, o próprio ar da cidade, confundiam-se com a flora e a fauna e as casas desta terra, fossem ricos ou pobres. E se foram como Tune do cartório. Onde estão agora? Como disse o poeta Manuel Bandeira: “dormem profundamen- te, profundamente”. Talvez habitem fantasmas, as ruas velhas da cidade, zelando por elas. Caminho no domingo chuvoso pelas artérias centenárias, o silêncio da manhã preguiçosa diz tudo. Eu ando ao lado deles. Em mim, a identidade que se foi permanece. Já o sol a pino de um dia comum. Sou exilado em minha terra. Não conheço ninguém e ninguém me conhece. O Cabo é de todos, que vêm de todos os lugares. Hoje, na cidade de Santo Agostinho, com certeza, a maioria me olha e não me vê. A PEDRA Celina de Holanda Nesta mesa o povo está sentado. Não divaga. Tudo o de que necessita é perto e urgente. Frio e direto, toma a pedra que sou e quebra. Vai construir o mundo. Celina de Holanda é patrona da ACL EDIÇÃO DE LANÇAMENTO - Abril de 2012

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FANZINE DA ACADEMIA CABENSE DE LETRAS

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Page 1: FANZINE DA ACADEMIA CABENSE DE LETRAS

Fanzine bimensal da Academia Cabense de Letras

Editorial

“A poesia não se entrega a quem a defi ne”. Com essa afi rmação o poeta Mário Quinta-na nos salva do racionalismo anti-humano que insiste em nos enquadrar em uma obje-tividade que fragmenta e aprisiona o ser

humano em conceitos inquestionáveis. Felizmente a poesia nunca abandona as mãos calejadas de quem lapi-da o cotidiano para fazer seguir a jornada que alimenta a própria existência da humanidade.

O que pode a poesia diante de uma realidade social tão complexa e muitas vezes tão difícil de ser vivida? Basta dizer que a poesia faz valer o que há de mais hu-mano em cada um de nós e resgata as emoções e senti-mentos mais próprios da condição de ser pessoa, ou ainda é pouco? Basta afi rmar que a poesia é uma via possível na realização da necessária parceria entre ética e estética para o embelezamento do mundo, ou ainda é insufi ciente? É necessário dizer que a poesia coloca o humano dentro de um mundo que sofre pela ausência do humano? Precisamos recorrer ao poeta Fernando Pessoa quando, ao mesmo tempo, interroga e questio-na: “Onde é que há gente no mundo?”, em seu “Poema em Linha Reta”? É preciso lembrar que a poesia faz va-ler a nossa subjetividade e grita aos quatro cantos: “Nós não somos pedras”?

Pois é, caros leitores, está em suas mãos a edição de lançamento do fanzine da Academia Cabense de Le-tras, o primeiro de muitos que virão. Esperamos que a leitura desse “Café com Letras” alimente a alma e a sub-jetividade de cada pessoa e faça valer o que há de mais humano em cada um de nós.

Nelino AzevedoPresidente da Academia Cabense de Letras

ELEGIA ÀS COISAS QUE FAÇONatanael Lima Jr(sobre tema de Mário Quintana)

no poema que me traço ameaço e abraço torturo e afago às vezes me faço místico e às vezes me faço louco

às vezes me faço coisas restos migalhas lembranças

às vezes as coisas fazem renascem brotam ressurgem

no poema que me traço eternamente me busco passo a passo frente a frente lentamente

no poema que me traço todas as coisas um dia existirão

REALIDADEVera Rocha

Na esquina do pensamento,Parei na tua rua.E era uma encruzilhada de ideias.

O edifício das recordaçõesPovoado de andares emocionaisMostrava o funeral dos sonhos sonhados.

O véu das ilusões despencou,O quociente despiu-seE o universo da realidadeSe me apresentou de forma espantosa.

O brilho quase opaco pareciaAs brasas quase em cinzas se tornavam,E uma rajada de tristeza me atingiuDeixando-me perplexa, muda e fria.

ENCONTRO NA PRIMAVERA*Jairo Lima

Deu-nos o destino a primaveraBanhando-nos com flores perfumadasQuando o ninho do pássaro se fizeraE copulam as espécies apaixonadas

Deu-nos a primavera nosso encontroEm dia festivo dos infantesTudo até parece estava prontoÉramos sem saber já bons amantes

Dar-nos-á esse encontro a certezaDas quatro estações por toda vidaNo verão teu suor, tua beleza

No outono tua alma mais sentidaDo inverno, aquecidos com proezasRetornamos à primavera tão querida

* Do livro ANTÍDOTO – Poemas em defesa da autoestima e outras prescrições

A IDENTIDADE QUE SE VAIDouglas Menezes

Quando Tune saiu de casa pela última vez para se tornar estrela, lá longe no infinito, não ia embora ali, apenas um pedaço de mim, mas uma parte de

humano do Cabo de Santo Agostinho se despedia. Mesmo na dor, observei as janelas das casas antigas acenando lenços brancos, no coro triste do adeus. Era meu pai partindo e os humildes, esses que fazem a verdadeira história do mundo, homenageando-o, como fazendo justiça a quem contribuiu, no dia-a-dia, com a cidade que o acolheu. Lembro de um bêbado no velório, chorando muito, pedindo para meu pai não ir embora.

Recordo, então, que ali, naquele momento, há vinte anos, começava a morrer uma identidade humana da cidade de Santo Agostinho. E o tempo encarregou-se de confirmar que a partir daquele instante, aos meus olhos, a cidade mudava. Uma geração notável de cabenses desaparecia, lentamente. Eram figuras importantes, não somente por razões econômicas ou culturais, mas por serem o cheiro do Cabo, o próprio ar da cidade, confundiam-se com a flora e a fauna e as casas desta terra, fossem ricos ou pobres. E se foram como Tune do cartório. Onde estão agora? Como disse o poeta Manuel Bandeira: “dormem profundamen-te, profundamente”. Talvez habitem fantasmas, as ruas velhas da cidade, zelando por elas.

Caminho no domingo chuvoso pelas artérias centenárias, o silêncio da manhã preguiçosa diz tudo. Eu ando ao lado deles. Em mim, a identidade que se foi permanece.

Já o sol a pino de um dia comum. Sou exilado em minha terra. Não conheço ninguém e ninguém me conhece. O Cabo é de todos, que vêm de todos os lugares.

Hoje, na cidade de Santo Agostinho, com certeza, a maioria me olha e não me vê.

A PEDRACelina de Holanda

Nesta mesa

o povo está sentado.Não divaga.

Tudo o de que necessitaé perto e urgente.

Frio e direto, tomaa pedra que sou e quebra. Vai construir o mundo.

Celina de Holanda é patrona da ACL

EDIÇÃO DE LANÇAMENTO - Abril de 2012

Page 2: FANZINE DA ACADEMIA CABENSE DE LETRAS

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UMA CANÇÃO PARA O DEPOISTereza Helena Soares

Queria saber cantar uma canção doce, capaz de fazer cair as capas mais grotescas do egoComo ficaria depois a face desses vaga-mundos, que demoram e não se arrependem?Essa canção precisaria ir nos labirintos escuros do profundo,quanto mais à tona, menos transmutação...

Quem ficaria para fazer coro com os anjos dessa canção?Quem seria esse vocal que iria fazer adormecer a ira dos infelizes?Essa canção precisaria de toques suaves de flautasbastantes para elevar almas embriagadas de luxúria...talvez harpas fossem necessárias nessa canção,quem sabe não resgataria a dimensão anjo perdida?

Que canção seria essa com instrumentos suficientes para torná-la perfeita em sua função de redenção?Seria o cântico dos pássaros que agonizam no ar carbonizado?Seria o tilintar solitário dos indianos a tocar cartalas?Seria o som da zampona dos andarilhos cordilheiros?

Seria o congo dos chineses?Seriam os ventos uivantes das tormentas anunciando a destruição?Seriam os sons mântricos dos monges budistas?Seria a voz interior cantando a bem-aventurança perdida?

Seria o uivo do lobo na floresta queimada?Seria a quinta trombeta anunciando o apocalipse?Seria o silvo dos discos voadores que farão o arrebatamento?Seria o próprio silêncio das pedras?Como seria essa canção???

FELICIDADENelino Azevedo

A felicidade existeÉ arteTrela de criançaNota solta que voa e faz a dançaFronteira aberta pelo riso da esperançaA felicidade sobrevoa as cidadesE busca os desvalidosAcalma os ofendidosOcupa os resignadosConforta os de dor embriagadosDeita no colo dos desconfortadosAbriga os oprimidos

A felicidade não se estampa em neonNão se reveste nas fitas palacianasE não se olha nas vitrines da bonançaA felicidade está no chão onde caminham os pésE entra pelos poros como o sal na águaE se entranha na carne, no coração, na almaE ocupa todos os campos físicosE se exala nos espaços metafísicosE extrapola os limites do oníricoE se denuncia realA felicidade nunca bate a portaPois já ocupa as salas e os porõesPrecisa apenas que cada um se descortineE se enxergue nessa grande história lidaQue é o ato chamado vida.

BARROQUILHAS*Ivan Marinho Nas madrugadas insonesSinto o tropel de chegada,Sem ordem, desarrumadas,De palavras, letras, nomes.

Balançam, saltam, deslocamSem ritmo ou direçãoE da inquietaçãoAlgo parece que evocam.

Todas de tanto madurasEncontram-se a se encaixar,Como que a despertarDo sonho que se inaugura.

Então se cruza o ensejoCom o anseio ancestral,Nivelando ao animalO instintivo desejo.

E preterindo o futuro,Faz da noite a luz do dia

E a esfera, por magia,Amolece o papel duro.Pois o papel do poetaÉ deixar claro o escuro.

* Este poema venceu o Festival Jaci Bezerra de Poesias do Centro de Estudos Superiores de Maceió em 2007.

MENSAGEIRA DAS VIOLETAS (para Florbela Espanca)Antonino Oliveira Júnior

Ó construtora de versos e rimas,Flor bela que espalha lirismoE espanca meu ser com poesias,Conquista-meCom a força de tuas palavras,Envolve-me com teus mistériosE desbrava os sertõesDos tempos que me separam de ti.

Estendo mãos e coração para além-mar,Na espera inconseqüenteDe encontrar-te em ventos, em chuva,Em raios que doiram tua imagem,Para alcançar-te, quem sabe,Na esperança vã de te impedir o gestoQue te levou como corpo

E te deixou em forma de versos...

E não és, sequer, a razão do meu viver...

Ó, construtora de versos e rimas,Flor bela que espalha lirismoE espanca meu ser com lirismo!

ProduçãoNelino Azevedo

CoordenaçãoJairo Lima

DiagramaçãoWilson Firmo

RevisãoDouglas Menezes

Tiragem20 mil exemplares

Eventos literários IX Bienal Internacional do Livro do Ceará (9 a 18 de abril) Bienal do Livro de Minas (18 a 27 de maio) VII Feira Nacional do Livro de Poços de Caldas (28 de abril a 6 de maio) Feira do Livro de Joinville (12 a 22 de abril) Festa Literária Internacional de Paraty – FLIP (4 a 8 de julho) Feira Literária Internacional de Tocantins – FLIT

(25 de julho a 3 de agosto) Festa Literária do Jaboatão dos Guararapes – FLIGUARA

(Setembro/2012)

Blogs dos Acadêmicos http://www.domingocompoesia.blogspot.com/ - Natanael Júnior http://drjoaosavio.blogspot.com/ - João Sávio http://antoninojr.blogspot.com/ - Antonino Júnior http://fredericomenezes.blogspot.com.br/ - Frederico Menezes http://arte-pos-contemporanea.blogspot.com.br/ - Ivan Marinho