falsificação e dedução

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ARTIGO ORIGINAL – DOSSIÊ DOI PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V.17, N. 1, P. 159-173, JAN./JUN. 2012 159 FALSIFICAÇÃO, DEDUÇÃO E O DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA: UM ESTUDO SOBRE BACHELARD E POPPER 1 Teresa Castelão-Lawless (GVSU) 2 [email protected] Resumo: Este artigo representa uma analise comparativa entre as epistemo- logias cientificas de dois autores fundamentais para a filosofia da ciencia do seculo 20, Gaston Bachelard e Karl Popper. Como se vera, existem pontos de contacto entre as posicoes apresentadas, mas tambem divergencias fun- damentais que nos ajudam a compreender mais pormerorizadamente aquilo a que a tradicao anglo-saxonica costuma chamar de modelos de pratica cien- tifica. Palavras-chave: epistemologia; inferencia; pratica cientifica Em 1935-6, Gaston Bachelard (1884-1962) escreveu uma crítica ao livro de Popper, Logik der Forschung zur Erkenntnis- theorie der modernen Naturwissenschaft na revista francesa Re- cherches Philosophiques. 3 Nessa crítica, ele argumentou não só que muitos dos tópicos desse livro eram semelhantes aos da filosofia analítica de Viena, mas também que numerosos “argumentos pessoais” davam ao livro “uma orientação que 1 Recebido: 05-02-2012/Aprovado: 10-04-2012/Publicado on-line: 15-09-2012. 2 Teresa Castelão-Lawless é professora do Departamento de Filosofia da Grand Valley State Uni- versity, Michigan, USA. 3 Nesta altura, o Bachelard fazia parte do editorial da revista, juntamente com os filósofos Bréhier, Bougle, Brunschvicg, Janet, Lalande, Le Roy, Lévy-Bruhl, e Rey (CHISSIMO 2001, 108).

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Artigo traçando paralelos entre bachelard e Popper

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  • ARTIGO ORIGINAL DOSSI DOI

    PHILSOPHOS, GOINIA, V.17, N. 1, P. 159-173, JAN./JUN. 2012 159

    FALSIFICAO, DEDUO E O DESENVOLVIMENTO DA CINCIA: UM ESTUDO SOBRE BACHELARD E POPPER1

    Teresa Castelo-Lawless (GVSU)2 [email protected]

    Resumo: Este artigo representa uma analise comparativa entre as epistemo-logias cientificas de dois autores fundamentais para a filosofia da ciencia do seculo 20, Gaston Bachelard e Karl Popper. Como se vera, existem pontos de contacto entre as posicoes apresentadas, mas tambem divergencias fun-damentais que nos ajudam a compreender mais pormerorizadamente aquilo a que a tradicao anglo-saxonica costuma chamar de modelos de pratica cien-tifica.

    Palavras-chave: epistemologia; inferencia; pratica cientifica

    Em 1935-6, Gaston Bachelard (1884-1962) escreveu uma crtica ao livro de Popper, Logik der Forschung zur Erkenntnis-theorie der modernen Naturwissenschaft na revista francesa Re-cherches Philosophiques.3 Nessa crtica, ele argumentou no s que muitos dos tpicos desse livro eram semelhantes aos da filosofia analtica de Viena, mas tambm que numerosos argumentos pessoais davam ao livro uma orientao que

    1 Recebido: 05-02-2012/Aprovado: 10-04-2012/Publicado on-line: 15-09-2012. 2 Teresa Castelo-Lawless professora do Departamento de Filosofia da Grand Valley State Uni-versity, Michigan, USA. 3 Nesta altura, o Bachelard fazia parte do editorial da revista, juntamente com os filsofos Brhier, Bougle, Brunschvicg, Janet, Lalande, Le Roy, Lvy-Bruhl, e Rey (CHISSIMO 2001, 108).

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    prepara uma filosofia original. Bachelard elogiou Popper pela clareza da sua exposio, o carcter incisivo da sua an-lise das relaes entre as leis gerais e a singularidade das su-as condies de aplicabilidade, e tambm pelas nuances na sua distino entre causalidade, explicao e deduo de previses.4 Tambm fez notar que Popper estava bem cien-te dos elementos subjetivos, metafsicos, cientficos, e obje-tivos inerentes ao clculo das probabilidades. Admirou tambm a sntese que Popper fez das teorias da interpreta-o das frequncias de Von Mises, e as relaes que ele en-controu entre o princpio da indeterminao de Heisenberg e a interpretao estatstica dos fenmenos fsicos.

    Bachelard deve ter lido o trabalho de Popper com enorme curiosidade, pois ele prprio tambm refletia nessa altura sobre a induo, o valor do erro em cincia, o critrio de demarcao, e o significado epistemolgico, para o de-terminismo clssico, da mecnica quntica de Bohr e de Heisenberg. No Essai sur la connaissance aproche (1928), La Valeur inductive de la relativit (1929), Le Nouvel esprit scienti-fique (1934), La Formation de lesprit scientifique (1938), e La Philosophie du non (1940), para mencionar apenas alguns dos livros que Bachelard publicou antes e pouco depois do Lo-gik, atestam da profundidade do seu interesse por estes pro-blemas. Mais, tanto Bachelard como Popper despenderam muita energia intelectual lutando contra o absolutismo, o dogmatismo positivista (POPPER 1953, 38), o fundacio-nalismo, o dualismo, o convencionalismo5 e o psicologis-mo.6 Ambos tambm reconheceram logo, desde o incio das

    4 Este o ttulo da seco 12, captulo III da Logik. 5 Apesar desta rejeio, ambos foram influenciados pelo convencionalismo de aproximao s teo-rias cientficas de Poincar. 6 interessante notar que ambos foram acusados pelos seus crticos de terem cado na armadilha Cont.

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    suas investigaces, a importncia da metafsica e do fracasso em cincia. Partilhavam a opinio de que a filosofia preci-sava tomar em conta as consequncias epistemolgicas tra-zidas luz pela relatividade e pela teoria quntica. Poderamos ser levados a pensar que as semelhanas filos-ficas entre Popper e Bachelard teriam levado este ltimo a reconhecer esse fato a partir 1936.7 Mas isso nunca aconte-ceu.

    Neste artigo, identifico mais detalhadamente os parale-los que podem ser estabelecidos entre os modelos de desen-volvimento da cincia de Bachelard e de Popper no que diz respeito s relaes inferenciais que ambos encontraram en-tre a teoria e a testagem experimental, bem como a sua con-cepo de erro cientfico. Tambm me referirei ao seu apenas aparente desacordo relativamente aos problemas da deduo, da induo, e da demarcao/falsificao.

    As consideraes sobre a falsificao e sobre a induo feitas por Popper no Logik no devem ter passado desperce-bidas a Bachelard. O Essai,8 por exemplo, revela o trabalho despendido por Bachelard a reconceptualizar o critrio de verificao e assim conseguir acomod-lo ideia de que a cincia consegue apenas aproximar-se da verdade. Ele tambm argumentou que o reconhecimento dos limites do conhecimento cientfico, da tenso e das idiosincrasias da prtica cientfica, no roubam cincia o seu estatuto de objectividade ou fazem dela um tipo de conhecimento rela-

    do psicologismo. 7 H partes do trabalho de Bachelard que no teriam necessitado o reconhecimento desta influn-cia, pois tratam de assuntos completamente diferentes daqueles desenvolvidos por Popper. o caso da filosofia da qumica, e dos estudos histricos sobre os obstculos epistemolgicos. 8 Este foi uma das teses de doutoramentro de Bachelard. A segunda tese intitulava-se Etude sur lvolution dun problme de physique: la propagation thrmique dans les solides , e foi publicada em 1929 (Paris: J.Vrin).

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    tivista. Mais, no La Valeur inductive de la relativit (1929), a caracterizao que Bachelard fez do papel do raciocnio in-dutivo, um problema que ele comeou a tratar j no Essai, est mais prximo da caracterizao que Popper fez da de-duo do que da concepo de induo enquanto universa-lizao do particular para o geral. Por outras palavras, a deduo para Popper significa o mesmo que a induo para Bachelard. Estas posies j esto todas presentes desde o Le Nouvel esprit scientifique (1934). Olhemos mais pormeno-rizadamente para estas questes.

    No Essai, Bachelard dedicou um captulo inteiro ao conceito de retificao e sugere ao longo de toda esta obra que o carcter dinmico da investigao cientfica nos obriga a reconhecer que o esprito cientfico mvel, e tambm que a cincia est sempre dependente dos quadros de refrencia intelectual e tcnico dentro da qual ela cons-truda. O conhecimento, afirma ele, sempre [] uma referncia a um domnio antecedente, a um corpo de ele-mentos de racionalidade que ns aceitamos e em relao ao qual se mede a ligeira aberrao dos fatos (BACHELAR 1987, 243). Esta aberrao inevitvel no domnio da mi-cro-epistemologia onde as variveis se tornam to numero-sas, to sensveis, to irregulares que, experimentalmente falando, o seu jogo toma a forma de uma contingncia (Id., 279). Por isso, neste nvel, o erro est verdadeiramente in-corporado a ponto de ser inevitvel e de ser mesmo um elemento necessrio [e positivo] (Id., 280).

    A rejeio por parte de Bachelard da teoria da corres-pondncia, aliada ao fracasso do representacionalismo (Id., 296) e irremedivel falha do conhecimento (Id., 277) fizeram-no inventar o termo de conhecimento apro-ximado. Este termo anlogo ao conceito popperiano de

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    Annhrung entre conhecimento e verdade, bem como afirmao de Popper, no Logik, de que no podem haver de-claraes ltimas em cincia (POPPER 1959, 47). Bachelard afirma que aquilo que os cientistas aproximam no a ver-dade desencorpada (como a verdade tinha sido definida pe-los positivistas) mas antes uma ligao satisfatria mas sempre incompleta e temporria entre duas metodologias metafsicamente distintas, isto , o matematismo formal e a testagem instrumental. Os modelos matemticos impem quadros de referncia explicativos realidade. Depois, esses quadros de referncia tm que ser retificados a partir das condies instrumentais que permitem a deteco dos fe-nmenos.9

    Como Bachelard apontou inmeras vezes, a realidade no dada mas construda. De facto, o dado [], do nosso ponto de vista, essencialmente tardio. Ns devera-mos localiz-lo onde o encontramos e quando finalmente se torna um obstculo a uma ideia, ou seja, no instante em que uma ideia atacada por dificuldades intransponveis (BACHELARD Op. Cit., 275). Estas afirmaes indicam que a posio de Bachelard decididamente contra a indu-o, redutora, do cartesianismo.10 A cincia moderna no comea com uma observao mas com um modelo racional que imposto s regularidades fenomenais e que , em se-guida, retificado por elas mas atravs de metodologias expe-rimentais. O resultado a realizao do racional na experincia (BACHELARD 1978, 9). Esta reflexo mui-to semelhante teoria de Popper do mtodo dedutivo de

    9 Embora Bachelard use o termo verificao em mltiplas ocasies, parece quase sempre preferir o termo retificao , especialmente no contexto da experimentao. 10O mtodo cartesiano redutivo, no indutivo. Esta reduo falsifica a anlise e impede o de-senvolvimento extensivo do pensamento objectivo. (BACHELARD 1978, 142)

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    testagem, ou [] a posio de que uma hiptese s pode ser empiricamente testada depois de ter sido postulada (POPPER 1959, 30). Popper tambm afima que a teoria domina o trabalho experimental desde o seu planejamento inicial at os retoques finais no laboratrio (Id., 107). Mais tarde, Bachelard chamar este modelo da cincia contem-pornea de racionalismo aplicado11, um termo que impli-ca que a direco tomada pelo esprito cientfico no espectro epistemolgico teoria-experincia no de obser-vaes singulares para princpios gerais (como seria no caso da induo), mas de generalizaes a priori, intuitivas e no empricas, para retificaes experimentais.

    Bachelard sugere que a cincia trabalha contra a natu-reza, isto , contra a percepo sensorial ingnua e contra as variedades do realismo, variedades essas que pressupem que as observaes experimentais nunca so infectadas pe-las teorias, pelas explicaes passadas, pela vida do incons-ciente, e por todos os tipos de arbitrariedades subjetivas. De fato, a cincia representa uma ruptura epistemolgica com os modos de conhecer do senso comum, pois os cien-tistas no comeam com a realidade fsica mas com o pen-samento abstracto. Em Le Nouvel esprit scientifique Bachelard deixa bem claro que os instrumentos so extenses materi-ais da mente cientfica, e que a cincia a realizao do matemtico ou a realizao do racional [] que corres-ponde a um realismo tcnico (BACHELARD 1978, 8). Mais tarde, no mesmo livro, reitera que a experimentao depende de uma construo intelectual prvia, que olha pa-ra o lado do abstrato para provas da coerncia do concreto (Id., 42) e que no domnio do matemtico que esto as 11 Le rationalisme appliqu o titulo do livro que Bachelard publicou em 1949.

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    razes do pensamento experimental contemporneo (Id., 138). Por isso, embora Bachelard evite neste contexto usar o termo deduo, e mesmo criticar o pensamento deduti-vo, em La Valeur inductive de la relativit, como incapaz de descrever o raciocnio tpico da cincia contempornea, ele est de fato a falar de deduo, pelo menos no sentido que Popper deu ao termo. Ambos concordam que a metodolo-gia cientfica no pode ser simplesmente uma induo, mas antes uma deduo a partir de princpios universais ou de hipteses que so sujeitas a testes rigorosos12, os quais con-firmam ou no o seu poder explicativo (Id., 16). Bachelard acrescenta ainda que o modo de pensar na Relatividade indutivo, mas que a deduo que demonstra a fertilidade das suas consequncias (Id., 180). Parece ento que o papel que Popper d s conjecturas arrojadas em cincia corres-ponde posio de Bachelard relativamente ao valor heu-rstico da induo. Bachelard a define como uma tese antecedente, um plano de observao polmico (Id., 16) ou um projecto bem estudado (Id., 13) que os cientistas impem natureza e que precede, inspira, e justifica o ins-trumentalismo da cincia emprica. A verdade torna-se en-to a retificao de um erro de longa durao, enquanto a experincia a retificao de uma [] iluso (Id., 177).

    Para Popper, a falsificao de hipteses significa o mesmo que testabilidade ou decidibilidade parcial, e a tes-tabilidade para Bachelard significa o mesmo que retificao emprica (Id., 17), revisibilidade (Id., 152), ou verificao aproximada das teorias (BACHELARD 1987, 273). Em ambos os casos, a verificao no nem validao, nem confirmao completa das hipteses. Como Popper aponta, 12 Neste contexto, Bachelard nunca usa o termo deduo.

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    as teorias cientficas nunca ficam completamente justifica-das nem verificadas mas [] so de qualquer modo test-veis (POPPER 1959, 44). De um modo semelhante, Bachelard argumenta que a validao e a verificao dei-xam de ser sinnimas. O nosso conhecimento ainda vli-do para fins especficos, mas no pode jamais ser rigorosamente verificado, pois a experincia do detalhe pe as aberraes cada vez mais em evidncia (Cf. BACHELARD Op. Cit., 272-274). De fato, a verificao f-sica essencialmente ambgua (BACHELARD 1929, 18).

    Gostaria de tomar estas afirmaes de Bachelard como sinal de que, tal como Popper o tinha feito na Logik, Bache-lard no tomava seriamente o critrio de testabilidade como verificao-confirmao completa das hipteses, e que por-tanto tambm ele considerava que verificabilidade e falsifi-cabilidade so assimtricas (POPPER Op. cit., 41)

    H partes do Essai que Bachelard dedica inteiramente ao raciocnio indutivo. Nessas sees, Bachelard equaciona a induo com a conceptualizao e usa a induo para am-pliar o seu argumento sobre o carcter aproximativo da ci-ncia. Ele a toma como um princpio que aplicado realidade, e no como um sumrio da experincia (como a induo tradicional), mas enquanto possibilidade da pr-pria condio experimental (BACHELARD 1987, 127). Diz tambm que uma induo que desconfirma mais decisiva do que a induo por confirmao (Id., 137). Esta posio est muito mais prxima da metodologia dedutivista en-quanto falsificao de Popper do que do indutivismo en-quanto verificao dos positivistas.

    O La Valeur inductive de la relativit (1929) completa o estudo iniciado no Essai, e o livro inteiramente dedicado induo na Relatividade. Contrariamente a Popper, que a

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    viu como uma instncia dedutiva, Bachelard v o raciocnio indutivo como mais caracterstico desta teoria. Embora ad-mita que a complexidade matemtica com que a relativi-dade estuda os fenmenos poderia ser um argumento a favor da tese dedutivista, ele tambm acrescenta que, mesmo assim, o domnio das suposies por ele iniciado tem que ser conquistado, e aqui que entra o jogo das in-dues intuitivas, das generalizaes, e especificamente das analogias matemticas (BACHELARD 1929, 62-3). Para ele, o valor objectivo das doutrinas relativistas que elas apresentam a prpria realidade como o resultado que uma espcie de induo, [] corresponderiam a uma realidade que encontramos no topo e no na base de um movimento de pensamento (Id., 11).

    Apesar da terminologia indutivista que empregou em La valeur inductive de la relativit, evidente, uma vez mais, que Bachelard no est falando aqui de induo no sentido tradicional do termo. O que Bachelard diz que a teoria da Relatividade implica uma reverso da causalidade (ver op. cit., 126/141) onde o comeo no a realidade mas o pen-samento abstrato, e onde o que deduzido dessa induo no um princpio geral mas a prpria realidade (ou pelo menos a realidade cientfica). Pois, se Bachelard diz que h uma ruptura epistemolgica entre o realismo ingnuo e a cincia, ento o incio do verdadeiro conhecimento no a realidade mas a razo. E se as hipteses requerem retifica-o para serem realizadas empiricamente, ento elas tm que ir do geral, ou do reino da pura possibilidade algbrica (Id., 80-1), para o particular, como na deduo, e no do particular para o geral, como na induo.

    Mas, se de fato a induo definida como uma suposi-o, como uma tendncia a generalizar previamente a uma

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    retificao emprica, e o comeo da possibilidade de um ideal que no informado pela experincia (Id., 143), ento, uma vez mais, temos aqui um exemplo de raciocnio indutivo e no de inferncia dedutiva. Esta sobreposio do dedutivo e do indutivo torna-se bvia quando Bachelard ar-gumenta em La valeur inductive de la relativit que, tomados na sua raz, os princpios relativistas so claramente a priori. Eles esto, de fato, distanciados da experincia imediata. Ns no os derivamos de uma anlise da realidade, mas de uma reflexo sobre as condies da realidade (BACHELARD 1929, 139).

    La Formation de lesprit scientifique: contribution une psychanalyse de la connaissance scientifique (1938) foi um dos primeiros livros que Bachelard publicou depois da resenha crtica da Logik de Popper, em 1936.13 O livro no tinha nada a ver com induo nem com deduo. No entanto, ele aponta j para o problema da demarcao de um modo que s aparentemente diverge do critrio de falsificao poppe-riano. Quando leu a Logik, Bachelard deve ter notado que Popper estava tentando estudar o problema da deduo sob dois ngulos diferentes, isto , enquanto metodologia da testagem cientfica e enquanto um modo de demarcar a ci-ncia da pseudocincia. Bachelard tambm deve ter visto Popper rejeitar a lgica indutiva por esta ser incapaz de dis-tinguir o emprico do ideolgico (POPPER 1959, 34). Ba-chelard, por seu turno, viu o critrio de demarcao como um problema a ser resolvido atravs da psicanlise, da his-tria da cincia, e do acordo intersubjetivo e, s depois, de-

    13 O outro livro LExprience de lespace dans la physique contemporaine (1937). No me refiro a ele aqui pois estava demasiado prximo da resenha crtica que Bachelard fez da Logik para ter dele re-cebido alguma influncia.

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    pendente da testabilidade das teorias. Aqui, o contraste en-tre os dois bvio. Bachelard usa a psicanlise como um instrumento para poder escavar at as profundezas do in-consciente cientfico de modo a identificar os erros que se perpetuam em obstculos epistemolgicos ao progresso cientfico (BACHELARD 1986, 13) enquanto que Popper considera a psicanlise como um exemplo perfeito de pseu-docincia. De qualquer modo, Bachelard afirma que a psi-canlise se torna necessria quando uma construo racional incapaz de cumprir o seu papel de preparar cui-dadosamente as experincias cientficas, e quando ela deixa o mundo do imaginrio ou do esprito pr-cientfico (Id., 14) domin-la a si ou s racionalizaes prematuras (Id., 40-1).

    Segundo Bachelard, os obstculos epistemolgicos tam-bm podem ser detectados nos registos do desenvolvimento da cincia. Erros tais como o realismo, o idealismo, o mate-rialismo, o animismo e o substancialismo (Id., 21) determi-nam a direo tomada pelas teorias cientficas e a sua relao com a pesquisa. Eles tambm ajudam a identificar a sua cincia respectiva atravs das pressuposies ontolgicas e epistemolgicas que resistem a mudanas. De fato, a partir desta perspectiva de desenvolvimento histrico (Id., 17) que se reconhece que a cincia no seno uma srie de erros retificados (Id., 10).

    Obviamente, Popper no v na histria da cincia o papel de clarificar referenciais intelectuais e ideolgicos que Bachelard lhe atribuiu. De qualquer modos, as posies de ambos sobre os mecanismos da mudana em cincia no di-ferem radicalmente entre si. De fato, Bachelard refere-se ao fracasso do experimento de Michelson-Morley como um exemplo histrico do que significa retificar uma experincia

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    por meio da sua negao, isto , de uma testagem rigorosa (Id., 49) e tentou mostrar a partir desse e de outros exem-plos que o erro em cincia no necessriamente malig-no (Id., 243). Este foi tambm o exemplo que Popper usou na Logik para explicar a necessidade de tentar sempre a fal-sificao experimental de uma teoria (POPPER 1959, 108). Alm do mais, ambos concordam que a falha em no nos comprometermos com a tentativa de falsificar teorias, ou, como Bachelard diz, uma falha em inquietar a razo e em perturbar os hbitos do conhecimento objectivo (BACHELARD op.cit, 247) podem levar ao dogmatismo em cincia, e portanto sua sobreposio com formas autorit-rias de pseudo-cincia. Popper tambm acrescenta que a base emprica da cincia objectiva no [] tem nada de ab-soluto. A cincia no est fixa numa base rochosa slida [] Ns paramos simplesmente quando estamos satisfeitos [] pelo menos por agora (Id., 111). Bachelard no poderia de deixar de concordar com esta assero.

    Assim, apesar do seu desacordo no que diz respeito ao valor e ao papel da psicanlise na compreenso da cincia e das suas opinies divergentes relativamente ao que conta como histria, os seus critrios de demarcao so anlo-gos. Isso torna-se claro em La Philosophie du non (1940), quando Bachelard explica que a ordem tradicional da ex-perincia realista est invertida, pois o nmeno guia a pes-quisa [] e explica o fenmeno por meio da sua contradio (BACHELARD 1994, 62). Os captulos deste livro so dedicados lgica e no esto, como acontecera em livros anteriores, dominados pela deciso de escolha en-tre um vocabulrio dedutivo ou um vocabulrio indutivo, mas mais pela sua funo no desenvolvimento da cincia moderna.

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    A negao, para Bachelard, no significa destruio sumria de cincia, mas uma abertura do carcter construti-vo da fsica matemtica, da novidade, e do aumento da ra-cionalidade (Id., 37). verdade que Bachelard acredita que a relatividade einsteiniana nega a fsica newtoniana. Mas is-to no quer dizer que uma implique a rejeio da outra. Como Popper concordaria, isto significa apenas que uma mundiviso circunscreve mais cuidadosamente os limites de aplicabilidade da outra, num processo de constante reti-ficao de erros. Para Bachelard, a negao no significa o mesmo do que falsificao para Popper, j que o primeiro requer uma anlise histrica que est ausente na Logik, on-de a falsificao parece ser mais inter-terica. De qualquer modo, isso no impede que haja uma clara semelhana lo-cal entre a testabilidade de teorias de Popper e a retificao no-emprica das indues de Bachelard, pois aqui o crit-rio de demarcao idntico para ambos.

    *

    Espero ter demonstrado que as posies de Bachelard e de Popper relativamente ao desenvolvimento da cincia so compatveis. Ambos afirmam que: 1) as observaes em ci-ncia esto sempre viciadas por pressuposies tericas an-teriores; 2) no h uma linguagem observacional neutra que garanta uma objetividade cientfica transcendental; 3) os ci-entistas comeam sempre o seu trabalho com generalizaes a priori ou dedues, e no com observaes primeiras; 4) as teorias tm que ser sempre falsificveis para evitar o an-quilosamento ontolgico e epistemolgico do conhecimen-to cientfico; e 5) a cincia ao mesmo tempo objetiva e uma aproximao permanente de uma verdade que no absoluta mas que relativa ao estgio epistemolgico e on-

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    tolgico do seu prprio desenvolvimento.

    Abstract: This article is a comparative analysis between the scientific episte-mologies of two authors who are fundamental in twentieth-century philoso-phy of science, Gaston Bachelard and Karl Popper. As it will be seen, there are points of contact between the positions here presented. But thare are al-so fundamental dibergencies which help us understand in better detail that which the Anglo-Saxon tradition usually calls models of scientific practice.

    Keywords: epistemologia; science; inference; scientific practice.

    REFERNCIAS

    BACHELARD, G. Logique et pistmologie. in Re-cherches Philosophiques, Vol. V (1935-36), pp. 446.

    ______. Essai sur la connaissance approche. Par-is: J. Vrin, 1987.

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    ______. La Philosophie de non: essai dune philos-ophie du nouvel esprit scientifique. Paris: Presses Universitaires de France, 1994.

    ______. La Valeur inductive de la relativit. Paris: J. Vrin, 1929.

    ______. Le Nouvel esprit scientifique. Paris: Press-es Universitaires de France, 1978.

    BHASKAR, R. Feyerabend and Bachelard: Two Phi-losophies of Science. In: New Left Review, 94 (Nov.-Dec. 1975), pp. 31-55.

    BRUDNY-DE LAUNAY, M-I. Once Upon a Time: A Short Story of the Reception of Karl Popper in

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    SOBRE BACHELARD E POPPER

    PHILSOPHOS, GOINIA, V.17, N. 1, P. 159-173, JAN./JUN. 2012 173

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