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FALANDO DA CLÍNICA: RELATO DE UM PROCESSO TERAPÊLTICO. Autora: Fabiana Perondini Salomão, Terapeuta Ocupacional Especialista em Saúde Mental pela Escola Paulista de Medicina. End.: Rua Prof. Luís Rosa n 22, apA7 Campinas - S.P. C.E.P. 13 020-260 FALANDO DA CLÍNICA: RELATO DE UM PROCESSO TERAPÊUTICO P. foi encaminhada para os atendi- mentos de Terapia Ocupacional, pois existia segundo o psiquiatra uma difi- culdade de comunicação, o que dificul- tava o processo terapêutico. Torna-se importante relatar alguns fatos da história de P. Atualmente com vinte anos P. é a fi- lha mais nova de uma prole de três (dois irmãos, um de 34 e outro de 30 anos). Foi adotada em 1974, porém nunca sou- be deste fato. Apresentou dificuldades em alimentar-se desde o seu nascimen- to, não aceitou mamadeira (era alimen- tada com colher) e teve dificuldades em aceitar alimentos sólidos. Seu DNPM foi atrasado, chupou chupeta até os 4 anos, sentou-se apro- ximadamente com 9 meses, começou a andar com auxílio de botas ortopédicas com 2 anos e só deixa a ajuda das botas com 4 anos. Aos 5 anos apresenta uma crise convulsiva, e é tratada com remé- dios durante um CUl10período,a crise nunca mais se repetiu. Com essa idade começa o jardim da infância, porém brinca muito pouco com as outras cri- anças, sendo descrita pela mãe como uma garota "inibida". Entra na primei- ra série com 7 anos, repetindo várias vezes, estuda até os 16 anos terminado a quinta série Te\e apoio de uma pro- fessora particular durante todos esses anos. Tem a primeira menarca aos 13 anos e seus ciclos mestruais sempre foram descontrolados. Consulta-se com um endocrinologista mas não apresenta al- terações hormonais. Em 1992, toma uma garrafa de pin- ga com AAS, ficando embriagada. Co- meça andar com algumas pessoas que fazem uso de drogas, chegando a expe- rimentar maconha e crack. Torna-se agressiva com a família sendo interna- da duas vezes em Itapira. Atualmente faz acompanhamento clínico em um posto de saúde, seu diagnóstico é de Hebefrenia. Faz uso de fenergam e tegretol I.M.. Foi encaminhada para o PROAD devido ao seu breve envolvimento com drogas. Apresenta uma relação bastante di- fícil com a família. Respeita muito seu ilmão mais velho que assumiu o papel de "chefe da casa" desde que seu pai sofreu um A.V.C.. Não vai mais a escola, não gosta de ajudar a mãe nos serviços domésticos, não sai para passear, ficando o dia todo em casa assistindo televisão. Após esta contextualização será des- crito o processo terapêutico. Acreditando que P. apresentava di- ficuldades em comunicar-se, foi suge- rido que ela se apresentasse através de desenhos. Tais desenhos eram compos- tos basicamente de representação de si- tuações. Enquanto desenhava relatava o que faz em casa, ressalta a diferença em sua vida após a internação, quando foi questionado o por quê da mudança, -' Página 25 '- P. diz apenas que tomou-se agressiva com os pais. Não foi questionada a res- peito do envolvimento com drogas, o objetivo do atendimento foi de possibi- litar um espaço acolhedor. Terminamos esse encontro com o jogo dos rabiscos, possibilitando um momento de descontração e de maior inter-relacio- namento. Contra-tranferencialmente a sensação foi de que P. precisava de "colo" e que, a possibilidade de comu- nicação existia. Continuamos com os desenhos: si- tuações tristes, felizes e sempre a au- sência de pessoas. Quando questionada sobre o por quê P.coloca imediatamen- te minúsculas pessoas nos desenhos. Nas tristes, as pessoas estão em situa- ções catastróficas (atropelamentos,afo- gamentos, assaltos, etc.), o que desper- ta o pensamento de que para P. qual- quer sentimento de raiva ou tristeza podem ser vividos ou apresentados ao ambiente como situações de destruição e ruína. Concomitantemente a essas ativida- des foram lhe ensinadas técnicas de modelagem em argila para que P. pu- desse trabalhar em casa. A intenção era estimular a construção e dar possibili- dades para que o seu dia deixasse de ser ocupado totalmente pelo devaneio. P. relata que constroe vários objetos, porém nunca os traz para os atendimen- tos. Nessa época o avô de P. adoece e ela falta algumas vezes aos encontros. Foi iniciada a construção de U'l1:l estória, aproveitando a capacidade \JC

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Page 1: FALANDO DA CLÍNICA: RELATO DE UM PROCESSO TERAPÊLTICO. · o que faz em casa, ressalta a diferença em sua vida após a internação, quando foi questionado o por quê da mudança,-

FALANDODA CLÍNICA: RELATO DE UM PROCESSO TERAPÊLTICO.

Autora: Fabiana Perondini Salomão, Terapeuta OcupacionalEspecialista em Saúde Mental pela Escola Paulista de Medicina.End.: Rua Prof. Luís Rosa n 22, apA7Campinas - S.P. C.E.P. 13 020-260

FALANDO DACLÍNICA: RELATO DEUM PROCESSOTERAPÊUTICO

P. foi encaminhada para os atendi-mentos de Terapia Ocupacional, poisexistia segundo o psiquiatra uma difi-culdade de comunicação, o que dificul-tava o processo terapêutico.

Torna-se importante relatar algunsfatos da história de P.

Atualmente com vinte anos P. é a fi-

lha mais nova de uma prole de três (doisirmãos, um de 34 e outro de 30 anos).Foi adotada em 1974, porém nunca sou-be deste fato. Apresentou dificuldadesem alimentar-se desde o seu nascimen-to, não aceitou mamadeira (era alimen-tada com colher) e teve dificuldades emaceitar alimentos sólidos.

Seu DNPM foi atrasado, chupouchupeta até os 4 anos, sentou-se apro-ximadamente com 9 meses, começou aandar com auxílio de botas ortopédicascom 2 anos e só deixa a ajuda das botascom 4 anos. Aos 5 anos apresenta umacrise convulsiva, e é tratada com remé-dios durante um CUl10período, a crisenunca mais se repetiu. Com essa idadecomeça o jardim da infância, porémbrinca muito pouco com as outras cri-anças, sendo descrita pela mãe comouma garota "inibida". Entra na primei-ra série com 7 anos, repetindo váriasvezes, estuda até os 16 anos terminadoa quinta série Te\e apoio de uma pro-fessora particular durante todos essesanos.

Tem a primeira menarca aos 13anose seus ciclos mestruais sempre foramdescontrolados. Consulta-se com um

endocrinologista mas não apresenta al-terações hormonais.

Em 1992, toma uma garrafa de pin-ga com AAS, ficando embriagada. Co-meça andar com algumas pessoas quefazem uso de drogas, chegando a expe-rimentar maconha e crack. Torna-seagressiva com a família sendo interna-da duas vezes em Itapira. Atualmentefaz acompanhamento clínico em umposto de saúde, seu diagnóstico é deHebefrenia. Faz uso de fenergam etegretol I.M.. Foi encaminhada para oPROAD devido ao seu breveenvolvimento com drogas.

Apresenta uma relação bastante di-fícil com a família. Respeita muito seuilmão mais velho que assumiu o papelde "chefe da casa" desde que seu paisofreu um A.V.C..

Não vai mais a escola, não gosta deajudar a mãe nos serviços domésticos,não sai para passear, ficando o dia todoem casa assistindo televisão.

Após esta contextualização será des-crito o processo terapêutico.

Acreditando que P. apresentava di-ficuldades em comunicar-se, foi suge-rido que ela se apresentasse através dedesenhos. Tais desenhos eram compos-tos basicamente de representação de si-tuações. Enquanto desenhava relatavao que faz em casa, ressalta a diferençaem sua vida após a internação, quandofoi questionado o por quê da mudança,

-' Página 25 '-

P. diz apenas que tomou-se agressivacom os pais. Não foi questionada a res-peito do envolvimento com drogas, oobjetivo do atendimento foi de possibi-litar um espaço acolhedor.Terminamosesse encontro com o jogo dos rabiscos,possibilitando um momento dedescontração e de maior inter-relacio-namento. Contra-tranferencialmente a

sensação foi de que P. precisava de"colo" e que, a possibilidade de comu-nicação existia.

Continuamos com os desenhos: si-

tuações tristes, felizes e sempre a au-sência de pessoas. Quando questionadasobre o por quê P.coloca imediatamen-te minúsculas pessoas nos desenhos.Nas tristes, as pessoas estão em situa-ções catastróficas (atropelamentos,afo-gamentos, assaltos, etc.), o que desper-ta o pensamento de que para P. qual-quer sentimento de raiva ou tristezapodem ser vividos ou apresentados aoambiente como situações de destruiçãoe ruína.

Concomitantemente a essas ativida-des foram lhe ensinadas técnicas de

modelagem em argila para que P. pu-desse trabalhar em casa. A intenção eraestimular a construção e dar possibili-dades para que o seu dia deixasse deser ocupado totalmente pelo devaneio.P. relata que constroe vários objetos,porém nunca os traz para os atendimen-tos.

Nessa época o avô de P. adoece e elafalta algumas vezes aos encontros.

Foi iniciada a construção de U'l1:lestória, aproveitando a capacidade \JC

Page 2: FALANDO DA CLÍNICA: RELATO DE UM PROCESSO TERAPÊLTICO. · o que faz em casa, ressalta a diferença em sua vida após a internação, quando foi questionado o por quê da mudança,-

por fantasias infantis (%A=56). A ma-neira como percebe este ambiente é bas-tante rígida, principalmente nas situa-ções que envolvem mais diretamente aafetividade (%F coloridas = 92,3).Nota-se também uma grande suscepti-bilidade aos estímulos afctivos menos

socializados (lmp= 1,17). Uma grandesusceptibilidade de um lado e rigidez erestrição por outro, sugere a existênciade mecanismos defensivos atuando.

Um aspecto marcante do protocolode G. que merece ser comentado é aparcialização das figuras humanas, quetambém poderia ser formulada comouma incapacidade de consideração dooutro na sua totalidade e complexidade(H=O; p (-)=5). Fica também evidente adesvitalização do humano (prancha IV:"pode parecer um corpo e uma escultu-ra. Agora só vejo a escultura."). E:-.tetipode dado nos faz pensar, com base na teo-ria das rc!w;ões objetais , que G. tenhatido dificuldadescom umafiguraque pu-desse ter sido usada como modelo, o queacaba por gerar problemas na percep<.:ãodo outro, no aproveitamento dos rclacio-

namentos bem como no estabelecimento

de umà identidade segura (M=O; m= I).Os vários elementos agressivos presen-tes no protocolo provavelmente contlibu-em para dar aos relacionamentos uma to-nalidade ameaçadora.

Vários dados levam-nos a supor umadificuldade no contato configurando umdilema em termos de proximidade, não-proximidade (na prancha IX vê váriosbichos que depois diz monstrosempilhLKivs,justapostos, mas sem ne-nhuma relação).

De modo geral, vários elementosdescritos parecem estar a serviço daevitação da intregração e, conseqÜen-temente, da rcJação.

CONCLUSÃO

No início do atendimento ficamos

:unbas impactadas pelo sofrimento dopaciente quc vinha sc arrastando h:1tan-to tempo. A scnsação de impotência e aparalisia vivida por nós frente a difícilcompreensão do quadro fez com que

I'Ú~illa 21\

nossa primeira atitude fosse de ,h..~ ..10junto com sua angústia e a aP'C'_do sintoma paranóide. Tal mo\il-r'cpermitiu o gradual alívio da tensik;~

terna e o apareci mcnto de um semi .~C'to de confiança em nós, resultanu~formação de uma fOl1ealiança. No "L~ r

dimento de terapia ocupacional foi :"sível envolvê-Io em um projeto v"

pôde exercer sua criatívidade e a:, ~

rância à frustração, melhorandc ,~ _

auto-estima e desenvolvendo fle\:!:: ...

dade frente às novas situações. No LU" ~-

dimemo clínico psiquiátrico foi p~" -veluma intervenção no ambiente fL.:n..,liar trazendo às consultas seus fal1'

res, permitindo uma importante troc~ "'_percepções entre eles, al0m do ar- ~_medicamentoso. Após oito meses, :"~-eebemos que uma etapa do all'ndill'..to se completou quando ouvimo~contar que esteve numa loja de rOl.ne apesar da insegurança quc sentiu frLte ao espelho, conseguiu comprar l.calça jeans. Notamos qUl' ele passestabelecer um contato mais pró'com scus scnti mL~ntosc outras quc.."-do seudia a dia.