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FACULDADES CEARENSES CURSO DE DIREITO MARCELO MARINO DO AMARANTE CONSTITUCIONALIDADE DAS AÇÕES AFIRMATIVAS FRENTE AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE FORTALEZA 2014

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FACULDADES CEARENSES

CURSO DE DIREITO

MARCELO MARINO DO AMARANTE

CONSTITUCIONALIDADE DAS AÇÕES AFIRMATIVAS FRENTE AO

PRINCÍPIO DA IGUALDADE

FORTALEZA

2014

MARCELO MARINO DO AMARANTE

CONSTITUCIONALIDADE DAS AÇÕES AFIRMATIVAS FRENTE AO

PRINCÍPIO DA IGUALDADE

Monografia submetida à Coordenação

do Curso de Graduação em Direito, da

Faculdades Cearenses, como requisito

parcial para obtenção do grau de

Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Giovanni Augusto

Baluz Almeida

FORTALEZA

2014

Bibliotecário Marksuel Mariz de Lima CRB-3/1274

A485c Amarante, Marcelo Marino do

Constitucionalidade das ações afirmativas frente ao princípio

da igualdade / Marcelo Marino do Amarante. - Fortaleza; 2014.

41f. Orientador: Profº. Giovanni Augusto Baluz de Almeida.

Trabalho de Conclusão de curso (Graduação) – Faculdade

Cearense, Curso de Direito, 2014.

1. Discriminação. 2. Igualdade. 3. Ações afirmativas. I.

Almeida, Giovanni Augusto Baluz de. II. Título

CDU 341

MARCELO MARINO DO AMARANTE

CONSTITUCIONALIDADE DAS AÇÕES AFIRMATIVAS FRENTE AO PRINCÍPIO

DA IGUALDADE

Monografia apresentada à Graduação em

Direito da Faculdades Cearenses, como

parte dos requisitos para obtenção do

grau de Bacharel em Direito.

Aprovada em: __/__/____.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________________

Orientador: Prof. Giovanni Augusto Baluz Almeida

Faculdades Cearenses

_________________________________________________________

Prof. Francisco Nazareno Matos Ribeiro

Faculdades Cearenses

_________________________________________________________

Prof. Roberto Silvio Morais Almeida

Faculdades Cearenses

RESUMO

O presente trabalho tem como escopo demonstrar que as ações afirmativas

caracterizam-se como um importante instrumento de concretização do princípio

constitucional da igualdade. Para tanto, a análise traz um estudo histórico acerca da

concepção de igualdade, mostrando as bases jurídicas e históricas que justificaram

a adoção dessas medidas, detendo-se, por último, nas ações afirmativas dentro do

Ordenamento Jurídico Brasileiro. Procura-se, assim, apresentar os objetivos e

modalidades de discriminações positivas, demonstrar de que forma estes

mecanismos foram recepcionados pela Constituição Brasileira, abordar critérios e

limites aplicáveis às ações afirmativas, evidenciando que a igualdade não pode ser

compreendida sob uma ótica puramente formal. Por fim, conclui-se ser

imprescindível que o Estado deixe sua posição de aparente neutralidade e passe a

promover, mediante a implementação de mecanismos de ações afirmativas, a

igualdade substancial, reduzindo as desigualdades e discriminações existentes na

sociedade.

Palavras-chave: Discriminações. Igualdade. Ações Afirmativas.

ABSTRACT

This work has the objective to demonstrate that affirmative actions are characterized

as an important tool for the implementation of the constitutional principle of equality.

Therefore, the analysis brings a historical study of the concept of equality, showing

the legal and historical grounds justifying the adoption of these measures, is holding

Finally, the affirmative action within the Brazilian legal system. Wanted thus present

the objectives and methods of positive discrimination, demonstrate how these

mechanisms were welcomed by the Brazilian Constitution, address applicable criteria

and limits on affirmative action, showing that equality can not be understood from a

purely formal point of view. Finally, it appears to be essential that the state let its

position of apparent neutrality and pass to promote, through the implementation of

affirmative action mechanisms, substantive equality, reducing inequalities and

discrimination existing in society.

Key-words: Discriminations. Equality. Affirmative Actions.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................6

2 CAPÍTULO I - O PRINCÍPIO DA IGUALDADE................................................ 8

2.1 Abordagem histórica....................................................................................... 8

2.2 Igualdade formal e Igualdade material......................................................... 11

2.3 Igualdade de oportunidades e igualdade de resultados............................ 14

3 CAPÍTULO II - AÇÕES AFIRMATIVAS.......................................................... 16

3.1 Precedentes históricos................................................................................. 16

3.1.1 Precedentes históricos no Brasil...................................................................... 20

3.2 Aspectos conceituais.................................................................................... 22

3.3 Objetivos das ações afirmativas.................................................................. 24

4 CAPÍTULO III - AÇÕES AFIRMATIVAS NO DIREITO BRASILEIRO............ 27

4.1 A máxima da proporcionalidade.................................................................. 27

4.2 A juridicidade das ações afirmativas no Brasil.......................................... 29

4.3 Critérios e limites às ações afirmativas....................................................... 34

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................ 38

REFERÊNCIAS........................................................................................................ 40

6

1 INTRODUÇÃO

Com a constatação da fragilidade e da insuficiência da natureza

puramente formal do princípio da igualdade, surgem, como instrumentos de

diminuição das desigualdades sociais, as ações afirmativas, constituindo importante

instrumento de concretização da igualdade material, uma vez que realizam a

igualdade de condições na busca e promoção do bem-estar social. Atualmente, o

tema das ações afirmativas vem recebendo, no Brasil, grande atenção. Quer

seja em razão da aplicação relativamente tímida e tardia desse gênero de

políticas públicas, quer seja em razão da forte oposição que têm sofrido.

O trabalho a ser desenvolvido consiste na análise das políticas de ação

afirmativa à luz da teoria dos princípios. Com a finalidade de orientar as atividades

necessárias ao desenvolvimento do tema, foram estabelecidas as seguintes

hipóteses: (i) as políticas de ação afirmativa estão fundamentadas em princípios

contidos na CF; (ii) as políticas de ação afirmativa, para serem constitucionais,

devem ser proporcionais, pois restringem direitos; (iii) a adoção (ou não) de políticas

de ação afirmativa, se facultativas, é uma questão política, não encontrando

respaldo jurídico apenas se as medidas forem desproporcionais.

Este estudo foi estruturado em três capítulos. O primeiro capítulo,

dedicado ao princípio da igualdade, é dividido em três seções. A primeira seção

dedica-se a abordagem histórica. A segunda trata esse princípio sob o prisma das

faces formal e material. A face material complementa a face formal do princípio, e

implica em um agir positivo do Estado elaborando leis que promovam medidas

eficazes a uma igualdade real e não meramente abstrata, visando diminuir ou

exterminar desigualdades injustificadas e concretizar a dignidade da pessoa

humana. Finalizando o capitulo, a terceira seção refere-se às igualdades de

oportunidades e de resultados como acepções surgidas a partir da necessidade de

concretizar as faces tradicionais.

O segundo capítulo é destinado às ações afirmativas: o que são, como

surgiram e quais são suas finalidades. A primeira seção exporá um breve histórico

desse gênero de política pública. Na segunda seção será investigado o conceito de

7

ações afirmativas, bem como suas características. A terceira seção elenca os

objetivos das ações afirmativas, como medida concretização da igualdade.

O terceiro capítulo consiste na análise da possibilidade jurídica de adoção

de políticas de ação afirmativa no Brasil. A primeira seção aborda a máxima da

proporcionalidade. A segunda seção será focada na possibilidade jurídica de adoção

de medidas de ação afirmativa no Brasil. Será observado que as medidas de ação

afirmativa são um meio possível para que o Estado fomente objetivos veiculados

pela CF, entre os quais a redução das desigualdades socioeconômicas, e que a

análise da constitucionalidade de tais medidas não é possível em abstrato, mas tão

somente caso a caso. Por fim, na terceira seção são discutidos os critérios de

enquadramento das medidas diferenciadoras como constitucionais.

8

2 CAPÍTULO I – O PRINCÍPIO DA IGUALDADE

2.1 Abordagem Histórica

Ao Estado sempre coube promover a efetivação do princípio da

igualdade, porém este jamais foi alcançado, visto que os interesses da minoria

sempre se sobressaíram aos direitos da maioria.

Observar os processos históricos sofridos pelo Estado, ilustrando a

evolução do princípio da igualdade, é imprescindível para demonstrar a

dificuldade de implementação deste no modelo democrático brasileiro, visto

que as normas proibitivas não são suficientes para afastar do cenário a

discriminação, sendo necessário contar as ações afirmativas.

Os primeiros registros a respeito da igualdade datam da Antiguidade

Clássica, quando as ideias de Aristóteles e Platão deram início à formação do

conceito de igualdade. Estes filósofos se destacaram por defenderem a igualdade

de forma proporcional, partindo do pressuposto de que os iguais deveriam ser

tratados igualmente e os desiguais desigualmente. Esse pensamento não quis

disseminar o preconceito entre as diferenças, mas considera que já que essas

diferenças existem que sejam tratadas como tais, com a finalidade de integrar a

sociedade.

Na Idade Moderna, as ideias do teórico Thomas Hobbes se destacam

devido a contraposição à antiga ideia aristotélica-platônica de que a desigualdade

entre os seres humanos era natural, aceitável e, de certa forma, até desejável.

Para Hobbes a desigualdade não era natural, mas era constituída com

a formação do Estado. A igualdade entre os homens gerava ambição e

descontentamento, seria o fator que contribui para a guerra de todos contra todos,

levando-os a lutar pelo interesse individual em detrimento do interesse comum.

Apenas a desigualdade instituída pela lei regulava as relações humanas,

impedindo à busca do atendimento de seus desejos de qualquer maneira, a

qualquer preço e acarretando na paz e na certeza da convivência em harmonia.

O passo seguinte rumo à igualdade na ordem social seria dado por

Jean-Jacques Rousseau, que direcionou todas as suas reflexões filosóficas para

9

as desigualdades oriundas da lei, instituídas pelo Direito na Sociedade.

O filósofo assevera que a desigualdade existente no estado de

sociedade imperava em decorrência do uso equivocado das instituições e da

injustiça da lei civil, que menosprezava as liberdades naturais dos homens,

submetendo-os à autoridade do Estado. Desta forma, para retomar a liberdade

individual natural do homem, Rousseau propõe o Contrato Social, através do qual

estabelecer-se-ia a igualdade jurídica dos cidadãos.

A igualdade foi posta politicamente como um esquema para

transcender ou dirimir o conflito e a contradição entre a liberdade e o poder, entre

governados e governantes, entre o homem e o Estado, entre a maioria e minoria.

Entende o pensador que, estabelecendo-se a igualdade jurídica entre os

cidadãos, terão eles os mesmos interesses, circunstância que conduziria à

eliminação das desigualdades de fato e, por consequência, à unanimidade,

representada pela volonté générale do povo.

Percebe-se na obra de Rousseau que não é preciso que retornemos ao

estado de natureza para que possamos ser iguais. O que devemos fazer é utilizar

o direito e a razão como ferramentas por meio das quais se corrigem as

diferenças exacerbadas entre os seres humanos, como ocorre com as leis ou atos

normativos que instituem ações afirmativas.

As desigualdades, já dizia Rousseau, surgiram com a própria

instituição da sociedade. Enquanto houver sociedade, portanto, haverá

desigualdades, irrelevante o regime político adotado. É possível, no entanto, que

em relação a este ou aquele grupo se alcance a igualização material visada pelas

ações afirmativas, e tão logo isso ocorra, elas não mais devem ser utilizadas.

Nascia, com base no pensamento rousseauniano, a noção de

igualdade civil, pensamento que projetou-se sobre a Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão de 1789, segundo a qual “os homens permanecem livres e

iguais em direitos”.

Abstrato e puramente formal, o princípio da igualdade perante a lei foi

considerado, durante muito tempo, como a garantia da concretização da liberdade

individual.

Entretanto, a utopia de uma igualdade absoluta, alcançada por via da

10

igualdade jurídica, ficou patente quando a reflexão demonstrou que esta última

não eliminava as desigualdades materiais, aumentadas historicamente em razão

da chamada Revolução Industrial, da introdução da máquina e do consequente

surto do capitalismo.

11

2.2 Igualdade formal e igualdade material

A igualdade formal é aquela positivada na Constituição Federal, e que,

portanto, possui força normativa. Por meio dela, fica estabelecido no art. 5º da

Constituição: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,

garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade

do direito à vida, à igualdade, a segurança e a propriedade, (...)".

Logo, é ilícita a distinção de qualquer natureza na aplicação da lei. O

princípio da igualdade tem sede explícita no texto constitucional, sendo também

mencionada inclusive no Preâmbulo da Constituição. Tal preceito constitucional não

é algo inédito, já dizia Silva (2006) que "porque existem desigualdades, é que se

aspira à igualdade real ou material que busque realizar a igualização das condições

desiguais", portanto, o fim igualitário, há muito já era buscado.

Pode-se descrever a igualdade formal como o direito de todo cidadão não

ser desigualado pela lei, visando abolir os privilégios e regalias de classes. Contudo,

a igualdade formal, não garante que todos os brasileiros tenham as mesmas

oportunidades, condições de vida, de participação social, ou seja, não garante que a

igualdade formal seja efetivamente posta em prática (SILVA, 2003).

Existe o desafio de que as desigualdades existentes e estabelecidas em

lei desafiam a inteligência dos juristas ao determinar os conceitos de "iguais" e

"iguais perante a lei". Cabe aqui ressaltar que o significado válido dos princípios é

variável no tempo e espaço, histórica e culturalmente. A partir de então, a igualdade

formal passou a assumir uma segunda interpretação: a igualdade de tratamento

deve ser atribuída não a todos os indivíduos indistintamente, mas, igualmente

àquele grupo de indivíduos, que baseados em aspectos considerados essenciais

pelo legislador para fins de diferenciação e elaboração de lei, se encontrem em

situação de igualdade (BELIZARIO, 2007).

12

A atual interpretação para a igualdade formal deve ser conferida no caso

concreto aos indivíduos que estejam em situação idêntica e que foram classificados

como iguais, conforme a distinção traçada em razão de aspectos considerados

essenciais pelo legislador para efeitos de normalização, ainda que diferentes sob

outros aspectos por ele considerados irrelevantes (BUENO, 2000).

Cabe aqui mencionar a teoria das classificações legislativas do Professor

Carlos Roberto Siqueira de Castro (2003).

[...] importa inevitavelmente em classificar pessoas, bens e valores segundo toda sorte de critérios fáticos. No que respeita em especial a classificação normativa de seres humanos, são eles discriminados juridicamente com base em uma miríade de índices classificatórios, seja em razão de sua qualificação profissional, em razão do montante de sua renda, em razão da idade e assim por diante, segundo uma incontável ordem de diferenciação, para fins de atribuição, a cada pessoa, ou a grupos de pessoas, de consequências jurídicas as mais diversas.

A face material da igualdade também visa um tratamento igualitário entre

todos os cidadãos sob todos os aspectos, inclusive o jurídico, bem como a sua

equiparação no que diz respeito a possibilidades de concessão de oportunidades.

No entanto, não por meio da aplicação, mas através da elaboração da lei, de forma

que para que a igualdade fática seja alcançada a diferença deva ser realçada. É,

portanto, de observância obrigatória do legislador (SILVA, 2003).

De acordo com Belizario (2007), a face material exige a edição de leis que

não apenas proíbam discriminações, mas ainda, que, considerando desigualdades

entre os indivíduos, assuma o conteúdo da premissa aristotélica “de que os iguais

devem ser tratados como iguais e os desiguais como desiguais, na medida de suas

desigualdades”.

Para Flávia Piovesan (1998) “[...] do ente abstrato, genérico, destituído de

cor, sexo, idade, classe social, dentre outros critérios, emerge o sujeito de direito

concreto, historicamente situado, com especificidades e singularidades [...]” e diante

desse sujeito faz-se necessária a especificação do sujeito de direito, que passa a ser

visto em sua peculiaridade e particularidade.

Nesta ótica, mulheres, crianças, população afrodescendentes, pessoas

portadoras de deficiência, dentre outras categorias vulneráveis, devem ser vistas

nas especificidades e peculiaridades de sua condição social. Ao lado do direito à

igualdade, surge, também, como direito fundamental, o direito à diferença.

13

Santos (2003) acrescenta:

[...] temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.

A face material vem, portanto, complementar a face formal do princípio, e

implica em um agir positivo do Estado elaborando leis que promovam medidas

eficazes a uma igualdade real e não meramente abstrata, visando diminuir ou

exterminar desigualdades injustificadas e concretizar a dignidade da pessoa

humana.

A obtenção da igualdade substancial pressupõe um amplo reordenamento das oportunidades: impõe políticas profundas; induz, mais, que o Estado não seja um simples garantidor da ordem assente nos direitos individuais e no título de propriedade, mas um ente de bens coletivos e fornecedor de prestações. (CANOTILHO; MOREIRA, 1993).

14

2.3 Igualdade de oportunidades e igualdade de resultados

Ao lado das faces tradicionais surgem, a partir da necessidade de

concretizar a face material do princípio da igualdade, duas outras acepções que

podem ser denominadas igualdade de oportunidades e de igualdade de resultados.

A primeira relaciona-se com proliferação direitos e a segunda à limitação de bens e

direitos na sociedade.

Inicialmente os direitos implicavam numa não intervenção estatal,

atingindo o patrimônio jurídico dos homens apenas em sua esfera individual. Tendo

como conteúdo os direitos à liberdade, segurança e propriedade. Dentro deste

paradigma, os direitos fundamentais acabaram concebidos como limites para a

atuação dos governantes, em prol da liberdade dos governados. Eles demarcavam

um campo no qual era vedada a interferência estatal, estabelecendo, dessa forma,

uma rígida fronteira entre o espaço da sociedade civil e do Estado.

Posteriormente surgiram os direitos de cunho social, assegurando o

princípio da igualdade, requerendo do Estado que preste políticas públicas, tratando-

se, portanto de direitos positivos, impondo ao Estado uma obrigação de fazer,

correspondendo aos direitos à saúde, educação, trabalho, habitação, previdência

social, assistência social, entre outros.

Após a segunda guerra mundial, os direitos da fraternidade ganham

relevância, ressaltando não apenas o indivíduo e sim o gênero humano, com foco

nas questões relacionadas ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente

equilibrado, à comunicação e à propriedade sobre o patrimônio comum da

humanidade.

A escassez de bens e situações jurídicas obsta sua concessão a todos

aqueles que almejam seu alcance. Não há empregos para todos os desempregados,

não há terras para todos que gostariam de ser proprietários, não há leitos para todos

que necessitam de atendimento nas redes públicas de saúde, não há vagas para

todos que se candidatam em concursos públicos.

Com isso vem à tona a noção de igualdade de oportunidades e igualdade

de resultados. A primeira visa desobstruir o caminho a ser percorrido para a

persecução dos bens, como define Belizario (2007):

15

[...] igualdade de oportunidades diz respeito ao oferecimento aos indivíduos de iguais oportunidades de alcance dos bens que limitadamente existem na esfera social. Oportunidade concedida através da implementação de medidas legais, administrativas ou particulares que eliminem quaisquer obstáculos fáticos que, possam vir a impedir que em igual “ponto de partida”, os indivíduos alcancem os bens que almejam.

Ainda por Belizario (2007), a igualdade de resultados refere-se

[...] à possibilidade de real alcance dos bens para aqueles que por serem vítimas de preconceitos e discriminações, ainda que concorram em igualdade de oportunidades, em igual ponto de partida, em total ausência de obstáculos fáticos, não consigam adquiri-los por si só. O entendimento é de que, sendo assim, é necessário, portanto, sejam-lhes conferidas, intencionalmente, algumas vantagens no ponto de partida para que de fato venham a atingir o ponto de chegada, noutras palavras, os resultados objetivados.

Assim, entendemos que a igualdade de resultados significa que todos os

indivíduos devem ser considerados em tudo iguais, e que todos devem ter o mesmo

nível de sucesso. É fundamental que o Estado crie condições para que os indivíduos

atinjam o “ponto de chegada”, e não somente políticas de fomento para que tenham

o “ponto de partida”. Para tanto é necessária a implementação de medidas legais,

administrativas ou mesmo particulares, que baseadas numa diferenciação que

discrimine positivamente, possam dar de forma imediata àqueles em situação de

partida desvantajosa a igual possibilidade de aquisição de bens. É o que se observa

Bellintani (2006) ao afirmar que

[...] em face da necessidade de obrigatoriedade de diferenciação, nos casos em que a fomentação da igualdade de oportunidades não for suficiente para promover uma igualdade de resultados, esta poderá ser fomentada através de discriminações positivas.

Em síntese, pôde-se constatar que o princípio da igualdade, absorvendo

as mudanças, as necessidades e as aspirações da sociedade em cada época,

deixou revelada a disparidade existente entre a visão que lhe era dada nos primeiros

tempos do constitucionalismo, e, a visão atual de que a obrigatoriedade de

diferenciação incorporada admite quando da feitura e aplicação das leis, um “lançar

mão” de políticas intencionalmente discriminatórias, visando ao final promover a

igualdade.

16

3 CAPÍTULO II - AÇÕES AFIRMATIVAS

3.1 Precedentes Históricos

A primeira manifestação de ações afirmativas aconteceu nos Estados

Unidos durante o governo do Presidente Franklin Delano Roosevelt (1933-1945)

com a Executive Order 8.806 de 25 de junho de 1941, que impedia, segundo

Menezes (2001),

[...] a discriminação racial na contratação de funcionários por parte do próprio governo federal e das empresas bélicas que mantinham com o mesmo relações contratuais, além de instituir a Fair Employment Practices Commission (FEPC), que ficou incumbida de investigar a ocorrência dessa prática no mercado.

No entanto, foi na década de 1960, nos governos dos Presidentes John

Kennedy (1961-1963) e Lyndon Johnson (1963-1969), que as ações afirmativas se

consolidaram e se expandiram.

Originariamente, as ações afirmativas surgiram como política pública

tendente a assegurar a igualdade substancial a todos, independente de raça, credo

ou idade.

Pode-se dizer que as ações afirmativas são fruto de decisões oriundas do Poder Executivo, com o apoio, a vigilância e a sustentação normativa do Poder Legislativo; do Poder Judiciário, que além de apôr sua chancela de legitimidade aos programas elaborados pelos outros Poderes, concebe e implementa ele próprio medidas de igual natureza; e pela iniciativa privada. (GOMES, 2001).

A expressão ação afirmativa surgiu na Executive Order 10.925, de 6 de

março de 1961, de iniciativa do Presidente John Kennedy. Esta Executive Order,

além de comprometer organizações públicas e privadas numa nova prática do

princípio constitucional da igualdade no Direito e promover a diversidade racial,

consagrou pela primeira vez, num texto legal, a expressão affirmative action.

O contratante não discriminará nenhum empregado ou candidato ao trabalho por motivo de raça, credo, cor ou origem nacional. O contratante adotará ação afirmativa para assegurar que os candidatos sejam empregados e que os empregados sejam tratados sem qualquer consideração à raça, credo, cor ou origem nacional. (ESTADOS UNIDOS,1961).

17

É de se salientar neste contexto de surgimento das ações afirmativas o

esforço empreendido por diversos ativistas negros e defensores dos direitos civis,

tais como Martin Luther King Jr. e Malcom X, bem como a pressão de grupos

organizados pela sociedade civil norte americana.

Em 1960, estudantes negros da Carolina do Norte iniciaram uma série de manifestações pacíficas em protesto contra a segregação nas lojas Woolworth e noutros estabelecimentos do comércio varejista. Em 1961, ativistas de grupos inter-raciais brancos e negros ocuparam ônibus destinados ao extremo sul do país, em protesto contra a segregação que perdurava nos ônibus e noutras formas de transporte público. (BOWEN; BOK, 2004).

O trabalho desenvolvido por Martin Luther King Jr. em prol da igualdade

entre brancos e negros foi de grande destaque. Em sua luta contra a exclusão dos

negros, Luther King organizou diversas marchas e protestos em várias cidades dos

Estados Unidos (Rodrigues, 2008).

Diante das inúmeras pressões e do empenho do Presidente Lyndon

Johnson nas questões raciais e na realização da igualdade, o Civil Rights Act foi

aprovado pelo Congresso dos Estados Unidos em 1964. Mas os esforços do

Presidente Lyndon Johnson não pararam com a aprovação do Civil Rights Act,

segundo Vilas Boas (2003) o discurso proferido pelo Presidente foi considerado um

avanço na tentativa de criar mecanismos de combate à desigualdade. Relata a

autora:

O discurso proferido por Johnson na Howard University, em Washington, tornou-se marcante. Eis que em um dado momento afirmou que não se podia pegar alguém que esteve preso pelos pés durante muito tempo e colocá-lo na linha de largada e, simplesmente, dizer: “pronto, agora você pode competir com todos os outros. Isto não é o bastante para abrir as portas da oportunidade. Todos os nossos cidadãos têm que ter capacidades para atravessar aquelas portas. Este é o próximo e o mais profundo estágio da batalha pelos direitos civis. Nós não procuramos somente liberdade, mas oportunidades. Nós não procuramos somente por eqüidade legal, mas por capacidade humana, não somente igualdade como uma teoria e um direito, mas igualdade como um fato e igualdade como um resultado.

A expressão affirmative action consolidou-se com a Executive Order 11.246

de 1965, do próprio Presidente Lyndon Johnson. Através dela a celebração de

contratos com a Administração Pública só seria possível se a empresa a ser

18

contratada atuasse em prol da diversidade e da integração de minorias

historicamente discriminadas e socialmente excluídas.

A expressão ação afirmativa passou a significar, desde então, o favorecimento de algumas minorias socialmente inferiorizadas, vale dizer, juridicamente desigualadas, por preconceitos arraigados culturalmente e que precisavam ser superados para que se atingisse a eficácia da igualdade preconizada e assegurada constitucionalmente na principiologia dos direitos fundamentais. Naquela ordem se determinava que as empresas empreiteiras contratadas pelas entidades públicas ficavam obrigadas a uma ‘ação afirmativa’ para aumentar a contratação dos grupos ditos das minorias, desigualados social e, por extensão, juridicamente. (ROCHA, 1996)

Apesar de o termo “ações afirmativas” ter surgido nos Estados Unidos,

há registros de que foram tomadas medidas de discriminação positiva em vários

outros países das mais diferentes correntes ideológicas. Hoje estão presentes na

Índia, onde se busca equiparar direitos das “castas inferiores”; no Sri Lanka, para

favorecer os cingaleses prejudicados em relação aos tâmeis; na Nigéria, para

oportunizar direitos das várias etnias; na Malásia, para que os malaios possam ter

direitos iguais aos chineses.

Neste contexto, em diversos ordenamentos jurídicos surgem políticas

sociais de apoio e de promoção de determinados grupos socialmente fragilizados e

discriminados. Na esfera internacional, podemos citar: a Convenção nº 111 da OIT,

a Convenção da Unesco contra a Discriminação na Educação, a Convenção

Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, a

Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a

Mulher, dentre outras.

O surgimento das ações afirmativas se dá a partir da fusão do modelo de

sociedade construído pelo Estado diante dos problemas sociais juntamente com a

mudança do conteúdo do princípio da igualdade, que passa de um conceito estático

e ultrapassado para um conceito dinâmico e atento às mutações sociais. É o que se

deduz das palavras de Vilas Boas (2003) quando fala sobre o princípio da igualdade:

19

O que transforma esse princípio em um princípio inovador nos Estados sociais decorre do fato de que a vida social nada mais é do que uma forma de competição que tem como objetivo a aquisição de bens escassos. Desta forma, entende Maren Guimarães Taborda que, visando à colocação de todos os indivíduos da sociedade de forma que tenham iguais condições de competição por aqueles bens da vida tidos como essenciais, é preciso favorecer alguns indivíduos diante de outros, criando, de forma artificial, discriminações que de outro modo não existiriam. Passamos a ter uma desigualdade para se atingir uma igualdade, posto que esta desigualdade visa corrigir uma desigualdade pretérita. A nova igualdade passa a ser o ‘resultado da equiparação’ entre duas desigualdades.

20

3.1.1 Precedentes Históricos no Brasil

No Brasil, os primeiros registros históricos que propiciaram um progresso,

ainda tímido e sem repercussões significativas, no sentido de diminuir

discriminações e desigualdades, datam de tempos remotos. Cite-se, como

exemplos, a lei áurea, diploma legal que aboliu o regime escravocrata; a fixação do

Estado laico no Brasil, assegurando a liberdade de culto e igualdade entre todas as

religiões.

Desde os anos 30, do século XIX, existiam vários grupos ligados aos

movimentos sociais que reivindicavam uma adoção de políticas públicas para que se

garantisse o direito da população negra à educação em todos os seus níveis. Nos

anos de 40 e 50 do mesmo século, os movimentos em prol da população negra

retomaram suas reivindicações, tendo a educação como principal foco.

Em 1968, as ações afirmativas foram mencionadas através de uma

manifestação do Ministério do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho, que

requeriam uma lei que obrigasse as empresas privadas a possuir um percentual de

vagas destinados a empregados negros.

Nos anos de 1980, para atender à população carente e negra, surgiam no

Brasil os denominados cursinhos pré-vestibulares, objetivando a melhor formação

dos estudantes e um aumento na chance de ingressar em curso superior nas

universidades públicas.

A questão da igualdade teve sua amplitude alargada com a Constituição

de 1988, passando a abranger a igualdade material entre os indivíduos. Em face da

consciência de que as desigualdades injustificadas existem e de que devem ser

dissipadas, a Constituição Federal em vigor demonstra a preocupação em se

estabelecer uma igualdade de oportunidade e de resultados na sociedade brasileira,

é o que se depreende das normas emanadas dos arts. 1º a 4º da Constituição. Tais

normas denotam preocupações com a dignidade da pessoa humana, com a

erradicação da pobreza e marginalização e a redução das desigualdades sociais e

regionais e, com a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,

sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação.

Em 1996 foi elaborado, durante o governo do ex-presidente Fernando

21

Henrique Cardoso, o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), tendo por

objetivo identificar os principais obstáculos à promoção e proteção dos direitos

humanos no Brasil, eleger prioridades e apresentar propostas concretas de caráter

administrativo, legislativo e político-cultural que buscassem equacionar os mais

graves problemas que impossibilitassem ou dificultassem a plena concretização dos

direitos humanos no Brasil (BELISARIO, 2007).

No ano de 2000, por meio de leis estaduais, algumas universidades

instituíram cotas sociais para alunos de escola pública e depois, em 2001,

instituíram cotas raciais para negros e indígenas, tendo início assim a várias

iniciativas semelhantes na grande massa das instituições públicas de ensino

superior, a maioria embasada em leis estaduais (COMPARATO, 2001).

Atualmente verifica-se a presença de várias medidas de discriminação

positiva, como, por exemplo: formular políticas públicas para a defesa dos direitos

das mulheres, incentivar ações de iniciativa privada que promovam discriminação

positiva a favor dos negros, bem como propor normas relativas ao acesso dos

portadores de deficiência ao mercado de trabalho e ao serviço público.

Por oportuno, deve-se ressaltar que, efetivamente, as ações afirmativas

ganharam destaque a partir da polêmica inserção do sistema de cotas nos exames

vestibulares de algumas universidades públicas, destinadas ao acesso ao nível

superior a grupos desfavorecidos. Além das cotas raciais, as Instituições vêm

adotando as cotas sociais, que englobam os deficientes físicos e os estudantes

vindos de escola públicas.

Enfim, não há como negar que a adoção de políticas de ação afirmativa

se expandiu para além das fronteiras americanas destinando-se a diferentes

minorias com a finalidade última de inseri-las e igualá-las quando da conquista de

bens e situações na sociedade.

22

3.2 Aspectos conceituais

Hodiernamente entende-se por ação afirmativa uma gama de políticas,

estratégias e mecanismos legais e administrativos, de caráter temporário, que

podem existir tanto na área pública quanto privada, e que promove maior igualdade

de direitos entre os grupos desprivilegiados e discriminados, por fatores como sexo,

raça, opção sexual e idade, desigualando os desiguais pra que eles possam ter

maiores possibilidades de ser inseridos na sociedade, apesar das situações sociais

escassas.

É importante relevar que a intervenção do Estado por meio das ações

afirmativas é o instrumento capaz de superar a inacessibilidade aos direitos

fundamentais e garantir a igualdade de tratamento. Para a Professora Carmen Lúcia

Antunes ROCHA (1996): "A ação afirmativa é, então, uma forma jurídica para se

superar o isolamento ou a diminuição social a que se acham sujeitas as minorias”.

Nas considerações de Bergmann (1996), se observa a amplitude social

que as ações afirmativas podem se manifestar, podendo ser empregadas das mais

diversas formas, pelo estado ou por particulares, formalmente escritas ou

simplesmente realizadas pela consciência de qualquer indivíduo preocupado.

Por isso que Menezes (2001) conceitua que as ações afirmativas são

medidas especiais que buscam eliminar os desequilíbrios existentes entre

determinadas categorias sociais até que eles sejam neutralizados, o que se realiza

por meio de providências efetivas em favor das categorias que se encontram em

posições desvantajosas.

Bellintani (2006) reconhece dois sentidos, um de caráter mais genérico, a

partir de definição dada pela Comissão norte-americana de Direitos Civis, e, outro

mais específico. Naquele, refere-se a quaisquer medidas adotadas para corrigir ou

impedir novas discriminações, neste, trata-se de políticas específicas que concedem

determinadas preferências aos indivíduos pela simples pertença a algum grupo

minoritário.

Para Comparato (2001), ações afirmativas são uma forma jurídica para de

algum modo, superar o isolamento ou a diminuição a que se acham sujeitas as

minorias, coibindo a discriminação do presente e eliminando os efeitos

23

persistentes (psicológicos, culturais e comportamentais) da discriminação do

passado, que persistem em perpetuar.

Ferreira Filho (2006) sintetiza seu conceito dizendo tratarem-se de

[...] distinções no sistema normativo, em benefício de grupos determinados – negros, mulheres, etc. -, que visam a equipará-los (igualá-los) a grupos outros que servem de padrão d e referência. [...] Justificam-se tais distinções pela finalidade de igualar e não desigualar, mas igualar corrigindo tratamentos discriminatórios [...] Refletem elas a ideia do tratamento desigual dos que se apresentam desigualados na sociedade.

Conforme Gomes (2001):

[...] as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física [...] visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação, mas também a discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade [...]. Em síntese, trata-se de políticas e de mecanismos de inclusão concebidas por entidades públicas privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicionais, com vistas à concretização de um objetivo constitucional universalmente reconhecido – o da efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm direito.

Sarmento (2007) define que:

Ação afirmativa são medidas públicas ou privadas, de caráter coercitivo ou não, que visam promover a igualdade substancial, através da discriminação positiva de pessoas integrantes de grupos que estejam em situação desfavorável, e que sejam vítimas de discriminação e estigma social. Elas podem ter focos muito diversificados, como mulheres, os portadores de deficiência, os indígenas ou os afrodescendentes, e incidir nos campos mais variados, como educação superior, acesso a empregos privados ou a cargos públicos, reforço à representação política ou preferências na celebração de contratos.

Portanto, o campo de atuação das ações afirmativas deve ser amplo, e

sua característica principal é a concretização de direitos fundamentais, onde a

igualdade apresenta-se como o direito norteador base, em busca da materialização

dos demais direitos sociais.

24

3.3 Objetivos das ações afirmativas

O principal objetivo visado com a implantação dessas ações afirmativas

se revela na busca pela concretização da igualdade, mitigando ou extirpando

desigualdades injustificadas existentes na sociedade.

Já se sabe que as ações afirmativas são instrumentos de inclusão de

minorias, visando o combate não apenas das manifestações ostensivas de

discriminações, mas também daquelas estruturais, do cotidiano, enraizadas na

sociedade.

Para que sejam eliminadas essas desigualdades injustificadas é

necessária uma mudança de mentalidades, no sentido de se formar uma maior

conscientização social em torno de sua não justificação. Dado a isso, figuraria como

objetivo almejado com as políticas afirmativas o de

[...] induzir transformações de ordem cultural, pedagógica e psicológica, aptas a subtrair do imaginário coletivo a ideia de supremacia e de subordinação de uma raça em relação à outra, do homem em relação à mulher. O elemento propulsor dessas transformações seria, assim, o caráter de exemplaridade de que se revestem certas modalidades de ação afirmativa, cuja eficácia como agente de transformação social poucos até hoje ousaram negar. (GOMES, 2007)

Gomes (2007) assinala ainda que os defensores das ações afirmativas

justificam sua adoção com o argumento de que esse tipo de política social seria apta

a atingir uma série de objetivos que restariam normalmente inalcançados caso a

estratégia de combate à discriminação se limitasse à adoção, no campo normativo,

de regras meramente proibitivas. E acrescenta que não basta proibir, é preciso

também promover a igualdade.

No Brasil, embora medidas afirmativas inclusivas sejam possíveis, parece

que a consequência da implantação de algumas dessas medidas, em especial

quando implantadas numa modalidade mais agressiva como as cotas, ocorre por

aqui de forma inversa. Ou seja, no Brasil a adoção de medidas de ação afirmativa

socialmente mais agressivas, acabam por diminuir o equilíbrio na sociedade,

causando descontentamento por parte daqueles que se vêm prejudicados com

tensões sociais entre os indivíduos (BELISÁRIO, 2007).

25

Outro objetivo primordial e geral que decorre das ações afirmativas é o

ideal de concretização da igualdade substancial. Ou seja, provocar uma efetiva

igualação na esfera social, política e econômica, superando o isolamento ou

inferiorização social em que encontram algumas minorias.

Tal objetivo se consubstancia num caminho que desemboca em duas

vias. A primeira concernente à possibilidade de formação de exemplos

emblemáticos que sirvam de estímulos àqueles que se enquadrem como minoria, e,

ao revés, desestímulo aos que se vêm como superiores. E a segunda, referente a

implantação de uma certa diversidade e de uma maior representatividade dos

grupos minoritários a posições sociais importantes nos mais diversos domínios de

atividade pública e privada, dessegregando as elites e tornando sua composição

mais representativa do perfil demográfico da sociedade (GOMES, 2007)

É necessário ressaltar que as ações afirmativas, quando criadas, têm um

fim específico, agem dentro de um limite temporal determinado, atingindo somente

áreas determinadas da sociedade e, ainda, devem ser racionalmente justificadas

para que com sua adoção, e o consequente tratamento diferenciado dispensado, o

princípio da igualdade não seja lesionado, e os objetivos sejam atingidos

(BELISÁRIO 2007).

Segundo Villas Boas (2003), deve-se estipular um prazo dentro do qual

devem ser implementadas as medidas de discriminação positiva, podendo ser o

mesmo preestabelecido ou, ainda, mantido até quando o objetivo daquela ação

afirmativa for atingido. E acrescenta que a abrangência das ações afirmativas ficaria

restrita e definida de forma que somente algumas áreas específicas seriam visadas

por essas políticas.

O princípio da igualdade não é uma ilha e, sendo assim, para que não

seja suscitada a sua violação a marca da proporcionalidade, por exemplo, deve ser

uma constante (BELLINTANI, 2006). De igual forma, Kaufmann (2007) leciona que

[...] para sabermos se, em determinado caso concreto, a política afirmativa adotada ofende ou não o princípio da isonomia, deve-se analisá-la sob a ótica da proporcionalidade, de acordo com o contexto sócio e cultural para o

qual foi estabelecida.

Disso resulta que, o que se quer na sociedade brasileira é a consciência

26

que estabelecer a diferença é necessário e indispensável para a garantia do

princípio da isonomia, por diminuir as desigualdades injustificadas, e que a adoção

das políticas afirmativas é uma inclusão que gera mudança positiva no imaginário

social.

27

4 CAPÍTULO III - AÇÕES AFIRMATIVAS NO DIREITO BRASILEIRO

4.1 A máxima da proporcionalidade

O STF tem utilizado a máxima da proporcionalidade como meio de se

resolver a colisão entre princípios. Contudo, não o faz baseando-se em uma teoria

única, o que gera dúvidas quanto à definição de proporcionalidade, provocando

insegurança. Assim como ocorre com o vocábulo “princípio”, o vocábulo

“proporcionalidade” também é polissêmico, mesmo no discurso jurídico. Cumpre,

portanto, analisar como se dá a resolução de uma colisão entre princípios e qual é

a estrutura da máxima da proporcionalidade.

A função da máxima da proporcionalidade é fornecer os critérios para

que a intervenção a um princípio seja considerada justificada ou legítima, para

que seja uma restrição, e não uma violação. Toda intervenção em um princípio

deve passar pelo exame da proporcionalidade. A máxima da proporcionalidade

fornece o instrumental necessário para a otimização dos princípios.

A máxima da proporcionalidade se divide em três elementos:

adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. A análise de

cada um dos elementos deve ocorrer nessa ordem e, por essa razão, Silva (2002)

chama a atenção para a relação de subsidiariedade, já que a aplicação da

máxima da proporcionalidade nem sempre implica a análise de todas os referidos

elementos (SILVA, 2002). Logo, se for constatado que uma medida que intervém

em um princípio não é adequada, será considerada desproporcional, não sendo

necessário averiguar sua necessidade e sua proporcionalidade em sentido estrito.

A adequação de uma medida diz respeito ao fato de ela fomentar ou

promover um objetivo constitucionalmente previsto; contribuir, em qualquer que

seja o grau, para a realização desse objetivo. Cumpre dizer que uma medida não

será adequada a um objetivo se não fomentar em nenhum aspecto a realização

deste. O objetivo constitucionalmente determinado pode ser requerido por um

princípio constitucional ou se confundir totalmente com ele.

O exame da adequação é um exame absoluto, pois não se compara a

medida examinada com as demais medidas que fomentam o mesmo objetivo, mas

28

apenas a relação entre meio e fim. A análise da adequação pode parecer muito

fácil, até mesmo óbvia, e é possível imaginar uma infinitude de casos absurdos em

que a inadequação é patente. Contudo, em alguns casos pode ser necessário

recorrer a campos científicos altamente especializados e a estudos complexos

para se concluir pela adequação ou inadequação de certa medida.

O critério da necessidade representa o exame referente a existência de

meios que possam promover o mesmo fim sem restringir na mesma intensidade

os direitos fundamentais afetados, ou seja, representa que não existe outra forma

mais eficaz ou menos gravosa de restrição dos direitos fundamentais colidentes.

O exame da necessidade não significa a obrigatoriedade de eleição do

meio menos gravoso, que só será obrigatório se as medidas comparadas forem

igualmente eficientes no fomento do objetivo.

No terceiro elemento da máxima da proporcionalidade, (o exame da

proporcionalidade em sentido estrito) a dimensão do peso característica dos

princípios se faz presente. É nessa fase que se procede ao sopesamento entre os

princípios colidentes, nos termos da lei da colisão, momento em que a

argumentação jurídica assume função central.

No exame da proporcionalidade em sentido estrito, deve-se analisar a

medida à luz da “lei do sopesamento”: quanto maior for o grau de não-satisfação

ou de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da

satisfação do outro.” Isso implica estabelecer enunciados que digam respeito ao

grau de afetação e à importância dos princípios, o que só pode ser levado a cabo

mediante o recurso a qualquer meio de argumentação jurídica.

No que diz respeito à proporcionalidade de medidas que estabelecem

tratamentos jurídicos desiguais, os passos sucessivos significam que se deve,

primeiramente, averiguar-se a intensidade de afetação ao princípio da igualdade

jurídica e a outros princípios eventualmente afetados no caso em análise.

Posteriormente, deve-se comprovar o grau de realização do princípio da igualdade

fática e de outros princípios eventualmente fomentados pela medida. A terceira e

última fase cuida de averiguar se a importância do cumprimento do princípio da

igualdade fática justifica o prejuízo ou não cumprimento do princípio da igualdade

jurídica.

29

4.2 A juridicidade das ações afirmativas no Brasil

Há medidas de ação afirmativa constitucionalmente obrigatórias,

proibidas ou simplesmente permitidas. Esse fato, por sua vez, exclui a análise

abstrata da constitucionalidade das medidas de ação afirmativa ou dos critérios de

diferenciação de que essas medidas se valem. A análise deve ocorrer

necessariamente caso a caso (CRUZ, 2011).

Primeiramente e excepcionalmente, há medidas de ação afirmativa

constitucionalmente obrigatórias. Mais uma vez se cita o exemplo da reserva de

cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência (art. 37,

VIII da CF). O legislador ordinário não tem escolha: deve estabelecer a medida de

ação afirmativa ordenada na modalidade estabelecida.

Outro exemplo seria a gratuidade do registro civil de nascimento e da

certidão de óbito para os reconhecidamente pobres (art. 5º, LXXVI da CF), que é

caso de medida de ação afirmativa concretizada mediante uma imunidade

tributária (CARVALHO, 2005). Tais medidas não despertam grandes problemas.

A grande discussão reside nas medidas facultadas ou proibidas,

principalmente em razão da infinitude de medidas de ação afirmativa que se

podem enquadrar nesses modais. De fato, a CF não traz especificamente quais

são os critérios para se distinguir, a priori, as medidas de ação afirmativa

permitidas das proibidas. Isso não significa, contudo, que outras medidas de ação

afirmativa não previstas na CF não possam ser adotadas: significa apenas que o

constituinte não estabeleceu previamente a solução para algumas colisões entre

princípios, em especial entre o princípio da igualdade fática e o princípio da

igualdade jurídica, deixando-a a cargo do legislador.

Deve-se, neste ponto, lembrar que tantas serão as relações

condicionadas de precedência quantos forem os casos concretos em que há

colisão entre princípios. Com base no princípio da igualdade fática, é

perfeitamente possível estabelecer tratamentos jurídicos diferenciados,

restringindo-se o princípio da igualdade jurídica ou outros princípios. O fato de a

CF não trazer autorização geral expressa para a adoção de medidas de ação

afirmativa, bem como seus critérios, limites e modalidades, não significa que esse

30

gênero de políticas públicas seja vedado porque supostamente violaria o princípio

constitucional da igualdade jurídica ou outros princípios igualmente relevantes.

No caso brasileiro, aliás, é curioso notar que se pode afirmar, seguindo

a linha de respeitável parte da doutrina, que há previsão expressa de hierarquia

constitucional para a adoção de medidas de ação afirmativa que se utilizam dos

critérios etnicorracial e de gênero. Seriam, assim, medidas expressamente

permitidas.

Isso ocorre por conta da internalização da Convenção Internacional

sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (promulgada pelo

Decreto nº 65.810/1969) e da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas

de Discriminação contra a Mulher (promulgada pelo Decreto nº 4.377/2002). Por

serem tratados internacionais que versam sobre direitos humanos, seriam

internalizados com hierarquia constitucional, ao contrário dos tratados que versam

sobre outros temas, internalizados, esses sim, com hierarquia de lei ordinária. Em

virtude do art. 5º, § 2º da CF, vislumbram esse regime jurídico diferenciado para

os tratados que versem sobre direitos humanos (MONTEBELLO, 2005) e, por

conseguinte, muitas categorias de medidas de ação afirmativa estão

expressamente autorizadas:

Assim, à luz desta respeitável doutrina, pode-se concluir que o Direito Constitucional brasileiro abriga, não somente o princípio e as modalidades implícitas e explícitas de ação afirmativa a que já fizemos alusão, mas também as que emanam dos tratados internacionais de direitos humanos assinados pelo nosso país (GOMES, 2001)

Mesmo se não for adotada a teoria da hierarquia constitucional, como

parece ser a postura do STF, há, pelo menos, autorização legal geral para a

adoção de medidas de ação afirmativa que se utilizam dos critérios etnicorracial e

de gênero que sustenta formalmente o estabelecimento dessas medidas de ação

afirmativa por atos normativos infralegais.

Isso decorre da exigência de competência para restringir um direito

fundamental, exigência formal ao lado da exigência material (BOROWSKI, 2003),

ou seja, para que as restrições possam, eventualmente, se justificar

materialmente, devem ser estabelecidas pelo sujeito competente. Como não há

exigência formal específica para a restrição do princípio da igualdade jurídica,

31

nem para a restrição da maioria dos princípios constitucionais que podem

eventualmente ser restringidos por medidas de ação afirmativa, diplomas com

hierarquia de lei ordinária podem formalmente determinar tais restrições.

Contudo, mesmo diante da ausência de autorização geral expressa,

seja ela de hierarquia constitucional, supralegal ou legal, as medidas de ação

afirmativa baseadas nos critérios etnicorracial e de gênero não seriam proibidas

per se, assim como não são proibidas as medidas de ação afirmativa baseadas

em outros critérios. Isso ocorre porque atos normativos infraconstitucionais em

sentido amplo podem restringir certos princípios constitucionais desde que sejam

sustentados por outros princípios constitucionais.

Em outros termos, atos normativos que estabelecem uma medida de

ação afirmativa, desde que observada a proporcionalidade em sentido amplo,

podem estabelecer validamente restrições ao princípio da igualdade jurídica,

mesmo que não sejam leis em sentido estrito, que só seriam necessárias se

ocorresse, mediante o estabelecimento de uma medida de ação afirmativa, uma

restrição severa ao princípio da igualdade jurídica ou a outro princípio

eventualmente colidente.

São excluídas a priori condutas, estados ou posições jurídicas do

âmbito de proteção do enunciado da igualdade, o que traz como consequência

deficiências na argumentação constitucional: pressupõe-se que tais condutas,

estados ou posições jurídicas estão ou não estão incluídas no suporte de fato do

enunciado da igualdade (SILVA, 2010).

Assim, são comuns recursos argumentativos como: “diversos

dispositivos da Constituição da República de 1988 parecem legitimar os

movimentos de discriminação positiva” (MONTEBELLO, 2005) ou “já que se

busca promover o bem de todos então temos uma determinação para que

possamos utilizar as ações afirmativas.” (VILLAS BOAS, 2005) Em comum, essas

linhas excluem, sem maiores questionamentos, aspectos incluídos no suporte de

fato da igualdade jurídica restringida pelas medidas de ação afirmativa.

Dessa forma, exige-se pouca ou nenhuma fundamentação para a

adoção de medidas de ação afirmativa, pois se intui sê-las permitidas, quando, na

verdade, exige-se uma sólida fundamentação para tais medidas restritivas do

32

princípio da igualdade jurídica e de outros princípios igualmente relevantes. O

mesmo vale para o contrário, ou seja, para quem procura excluir a priori medidas

de ação afirmativa que se baseiam em certos critérios de diferenciação (a

exemplo do gênero ou raça) do suporte de fato do princípio da igualdade fática.

Outro problema consiste na utilização do que será chamado de

“proporcionalidade clássica” na análise da constitucionalidade das medidas de

ação afirmativa no lugar da máxima da proporcionalidade delineada neste estudo.

A proporcionalidade clássica consiste, grosso modo, na noção de adequação

entre meios e fins surgida no campo do Direito Administrativo, daí ser possível

chamá-la também de “proporcionalidade administrativa”, não se confundindo com

a máxima da proporcionalidade que serve para apurar a legitimidade de

vulnerações a princípios constitucionais.

A proporcionalidade administrativa aduz que “os atos cujos conteúdos

ultrapassem o necessário para alcançar o objetivo que justifica o uso da

competência ficam maculados de ilegitimidade” (MELLO, 2009), ou seja, deve-se

adotar a conduta menos gravosa possível na persecução do interesse público

ponderando-se meios e fins. Desde logo se percebe que o fim a ser atingido é um

ponto fixo a partir do qual se analisa a proporcionalidade clássica dos meios a

serem utilizados para sua consecução.

O raciocínio calcado na proporcionalidade clássica, conquanto seja um

instrumento essencial para se aferir a legalidade de atos na esfera do Direito

Administrativo, não se mostra apropriado no espaço da dogmática dos direitos

fundamentais, onde não há aquele ponto fixo representado pelo fim estabelecido

nas leis. No âmbito dos direitos fundamentais, os próprios fins constitucionalmente

determinados colidem entre si: são mais integrantes da equação que pontos de

referência.

De qualquer maneira, o problema não reside na proporcionalidade

clássica em si, é instrumento de suma importância no Direito Administrativo, mas

no fato de se fazer uso da proporcionalidade clássica para a análise da

constitucionalidade de tratamentos jurídicos diferenciados.

A título de exemplo, toma-se o fomento a algum aspecto qualquer do

princípio da igualdade fática como o fim a ser atingido, pressupondo-se que é um

33

fim ordenado, o ponto fixo, o que traz como consequências ser esse fim superior

aos muitos outros fins também estabelecidos na CF e a limitação da discussão ao

estabelecimento do meio menos gravoso para se atingir aquele fim. Na verdade,

segundo a máxima da proporcionalidade, os próprios fins estabelecidos por

princípios constitucionais devem entrar na análise da proporcionalidade em

sentido amplo.

34

4.3 Critérios e limites às ações afirmativas

Se, por um lado, é tranquila a constatação de que o princípio da igualdade

é relativo e convive com diferenciações, por outro lado, evidencia-se que nem todas

as diferenciações são aceitas e toleradas pacificamente. A dificuldade é determinar

os critérios a partir dos quais uma diferenciação é aceita como constitucional.

Para se aferir se um dado tratamento diferenciado ofende, ou não, o

princípio da igualdade, o douto jurista Celso Antônio Bandeira de Mello sugere que

devem ser analisadas três questões essenciais:

a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação; b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator

erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado;

c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interessados absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados.(MELLO, 2006)

Em suma, o ilustre professor enumera como critérios para identificação do

desrespeito à isonomia a análise do critério discriminatório adotado, da justificativa

lógica, racional e plausível para a discriminação proclamada e, por último, da

correlação entre a citada justificativa e os valores e princípios prestigiados no

sistema normativo constitucional.

Neste contexto, para saber se as ações afirmativas violam ou não o

princípio constitucional da igualdade, utilizar-se-á os critérios sugeridos acima.

Com efeito, no que tange às medidas de discriminação positivas, o

legislador, ao observar as diversas situações, erige algum ou alguns grupos de

pessoas aos quais atribui tratamento diferenciado em razão da realidade social em

que estes estão inseridos.

Assim, tomando como “fator de desigualação” o aspecto raça, o que

autoriza esta discriminação é a situação de manifesta exclusão e desigualdade

social e econômica em que permanecem os negros e afro-descendentes desde a

época da escravidão.

Ora, se aos negros são relegados os menores salários, os piores

empregos, poucos cargos de destaque, poucas oportunidades de empregos em um

país em que a maioria da sua população é enquadrada como preta ou parda, como

35

dispensar-lhes tratamento igual aos brancos?

O mesmo ocorre com as mulheres, os deficientes físicos, os idosos,

dentre outros, que se caracterizam, em muitas situações, como grupos

desfavorecidos e discriminados social, política e/ou economicamente. Celso Antônio

B. Mello assinala que qualquer elemento residente nas coisas, pessoas ou

situações, pode ser escolhido pela lei como fator discriminatório, donde se segue

que, de regra, não é no traço de diferenciação escolhido que se deve buscar algum

desacato ao princípio isonômico.(MELLO, 2006)

Consoante averbado acima, cumpre agora proceder ao exame da

correlação lógica entre o fator erigido como de desequiparação e o tratamento

jurídico construído em função da desigualdade afirmada. Ou seja, cumpre perguntar

se as ações afirmativas, quando discriminam positivamente um determinado grupo,

guardam relação de pertinência com o fim a que se destinam? Há justificativa

racional para atribuir tratamento diferenciado a estes grupos?

Conforme já assinalado laudas acima, as ações afirmativas se fundam na

diminuição das desigualdades e discriminações sofridas por alguns grupos, como

forma de promoção da igualdade substancial.

Desta feita, tomando como exemplo de discriminação positiva a regra

contida no Estatuto do Idoso que assegura prioridade na tramitação dos processos e

na execução dos atos e diligências judiciais em que figure como parte ou

interveniente pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, em qualquer

instância, tem-se que a correlação lógica reside, exatamente, no elemento

senilidade como critério escolhido para justificar a prioridade nas filas processuais,

uma vez que uma pessoa idosa não goza de tempo e de saúde para esperar

indeterminadamente pela prestação jurisdicional pretendida.

Portanto, o que torna admissível a discriminação positiva efetuada pela

regra acima transcrita é a adequação entre fator “senilidade” e o regime dispensado

aos que se inserem nesta categoria. Em outras palavras, há nexo plausível entre

facultar aos idosos prioridades na tramitação dos processos por se presumir que não

desfrutam mais da mesma saúde e tempo de vida para aguardarem um julgamento

moroso.

Não haveria, contudo, esta correlação lógica, por exemplo, no caso de

36

uma lei que permitisse aos proprietários de carros vermelhos isenção no pagamento

de IPVA e vedasse aos demais proprietários tal benefício. Neste exemplo, a cor do

carro é o elemento tomado como critério distintivo. Contudo, não faz sentido algum

conceder aos proprietários de carros vermelhos isenção ao pagamento do Imposto

sob Propriedade de Veículo Automotor, uma vez que entre uma coisa e outra não

existe qualquer nexo plausível.

Por derradeiro, para que uma discriminação legal não viole o princípio da

igualdade, impende que haja consonância da discriminação com os interesses

protegidos na Constituição Federal. E para isso pergunta-se: as ações afirmativas,

estão em consonância com os princípios contidos na Carta Maior?

Para responder a esta última pergunta, é necessário analisar, sobretudo,

se os tratamentos diferenciados propostos pelas ações afirmativas se fundam em

razão valiosa e resultam em benefícios para a coletividade.

Mello assinala que

[...] as vantagens calçadas em alguma peculiaridade distintiva hão de ser conferidas prestigiando situações conotadas positivamente ou, quando menos, compatíveis com os interesses acolhidos no sistema constitucional.(MELLO,2006)

A própria Constituição Federal já estabeleceu, em alguns de seus

dispositivos, regras e princípios que servem de base e fundamento para as ações

afirmativas. Cite-se, como exemplo, o artigo 1 º da Constituição Federal de 1988 que

preceitua como fundamentos da nossa República, dentre outros, a cidadania e a

dignidade da pessoa humana. Porém, não se pode olvidar que a noção de ação

afirmativa está diretamente ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana e à

ideia de cidadania, uma vez que a igualdade interpretada de modo substancial,

como um mecanismo de equiparação e redução de desigualdades, busca,

intrinsecamente, o bem-estar que dignifique o homem.

Seguindo esta linha, tem-se o artigo 3º da Constituição Federal que

preceitua como objetivos fundamentais da República

[...] construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.(Art. 3º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988)

37

Desta feita, ao objetivar a eliminação dos diversos tipos de discriminação,

a carta constitucional, mais uma vez, dá ensejo para que as ações afirmativas façam

parte do arcabouço jurídico pátrio.

Por fim, no artigo 5º da Constituição assegura-se o princípio da igualdade

a determinar que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.

Conforme já visto, sua interpretação deve ser sistemática e em consonância com os

fundamentos e objetivos da República. Ocorre que o princípio da igualdade previsto

no artigo 5º resplandece sobre quase todos os outros princípios previstos como base

do ordenamento normativo fundamental. É guia de quase todos os outros princípios

que informam e orientam o modelo constitucional positivado. Mas, indiscutivelmente,

é guiado apenas por um, ao qual lhe ser como substância: o da dignidade da pessoa

humana.

Assim, pode-se afirmar indubitavelmente que, à luz dos princípios

constitucionais, objetivos e fundamentos da República, a medidas de discriminação

positiva estão em plena consonância com o ordenamento jurídico constitucional

brasileiro.

38

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procedeu-se uma abordagem sobre o princípio da igualdade. Após um

relato de seu transcurso histórico, constatou-se que agregou diferentes significações

que lhe alargaram o sentido ao longo do tempo. Inicialmente observado apenas em

sua vertente formal, nos dias atuais, o princípio da igualdade é considerado pilar

normativo de qualquer sociedade que se diga democrática, assumindo diferentes e

complementares faces: as tradicionais faces formal e material, e as inovadoras faces

da igualdade de oportunidades e da igualdade de resultados, surgidas da

necessidade de concretização da igualdade quando da concorrência d os indivíduos

pelos bens socialmente escassos. Para tanto, percebeu-se que a busca pela

igualdade deveria envolver não só a proibição de discriminação, mas também, se

justificável, uma obrigatoriedade de diferenciação, adotada com vistas a mitigar ou a

extirpar as desigualdades injustificadas entre os indivíduos.

Percebeu-se que as medidas de ação afirmativa são, por sua

própria natureza, medidas restritivas de direitos fundamentais, mas, por outro lado,

também são formas de realização de direitos fundamentais. São medidas que

se baseiam, por definição, no estabelecimento de tratamentos jurídicos

desiguais e, portanto, vulneram o princípio da igualdade jurídica. Essa

vulneração jamais seria legítima se não houvesse fundamentos constitucionais

para tanto; na verdade, o próprio princípio da igualdade fática serve de

sustentação material para o tratamento diferenciado estabelecido pelas medidas

de ação afirmativa, que podem se servir, ainda, a depender do caso, de

outros fundamentos contidos na CF.

Restrições a direitos fundamentais com a estrutura de princípio não

são apenas possíveis, mas são comuns e frequentes. O mesmo se aplica ao

princípio da igualdade jurídica. Tratamentos juridicamente desiguais são, desse

modo, possíveis, ainda que seja ordenado o tratamento jurídico igual caso não

haja razões suficientes que justifiquem o tratamento jurídico desigual.

Passa-se, agora, à confirmação das hipóteses iniciais que nortearam o

estudo:

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(i) As políticas de ação afirmativa estão fundamentadas em

princípios contidos na CF: as medidas de ação afirmativa operam

mediante o estabelecimento de tratamentos jurídicos

diferenciados de modo a fomentar o princípio da igualdade fática.

(ii) As políticas de ação afirmativa, para serem constitucionais,

devem ser proporcionais, pois restringem direitos: mediante o

estabelecimento de medidas de ação afirmativa ocorrerão

necessariamente vulnerações ao princípio da igualdade jurídica

se esta for proporcional, contudo, será constitucional, ou seja,

será uma restrição e não uma violação aos direitos fundamentais

com a estrutura de princípio atingidos.

(iii) A adoção de políticas de ação afirmativa, se facultativas, é

uma questão política, não encontrando respaldo jurídico

apenas se as medidas forem desproporcionais: de acordo com

o ordenamento constitucional brasileiro, percebe-se que há ampla

liberdade de eleição de meios para se atingir os objetivos

constitucionalmente determinados e não há qualquer vedação

geral para a adoção de medidas de ação afirmativa; a eleição

de meios é uma questão política e só será juridicamente

inaceitável se desproporcional.

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