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Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia FAJE Alex Gonçalves Pin Antropogênese: A Concepção de Homem em Pierre Teilhard de Chardin _____________________________________ Belo Horizonte – MG 2008 1

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Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia

FAJE

Alex Gonçalves Pin

Antropogênese:

A Concepção de Homem em Pierre Teilhard de

Chardin

_____________________________________

Belo Horizonte – MG

2008

1

Dedico este trabalho a dois companheiros

jesuítas que descobriram a grandeza de

Teilhard de Chardin e num gesto audacioso

escreveram obras que me auxiliaram nesta

pesquisa: aqui meu respeito e admiração a

Pedro Dalle Nogare e H. C. de Lima Vaz.

2

Apenas numa unificação pessoal com algo de pessoal no todo, com a personalidade do todo, poderemos ser fundamentalmente e inexaustivamente felizes. Tal é o último apelo do que se chama amor. Logo, a substancial alegria da vida encontra-se na consciência de que, através de tudo o que experimentamos, criamos, suportamos, descobrimos ou sofremos, em nós mesmos ou no próximo, em toda e qualquer linha possível, de vida ou de morte, aumentamos por degraus o crescimento da Alma ou Espírito universais1.

Pierre Teilhard de Chardin

SUMÁRIO

1 –

Introdução________________________________________________________

0

5

2 – PRIMEIRO CAPÍTULO – A mensagem teilhardiana e a lei da

evolução2.1 – A mensagem teilhardiana

_________________________________________

0

72.2 – A lei da evolução 1

1 Apud CUENOT, Claude. Aventura e Visão de Teilhard de Chardin. Tradução [Camilo Martins de Oliveira.] Lisboa: Livraria Duas Cidades, 1966, p. 49.

3

_________________________________________________ 2

3 – SEGUNDO CAPÍTULO – O sentido da evolução e o terceiro infinito3.1 – O sentido da evolução

____________________________________________

1

63.2 – O terceiro

infinito_________________________________________________

1

9

4 – TERCEIRO CAPÍTULOConsciência reflexiva, transcendência e

imanência_________________________

2

5

5 – Conclusão

________________________________________________________

3

0

6 –

Bibliografia________________________________________________________

3

2

INTRODUÇÃO

Existem na história da cultura personalidades de grande relevância,

cuja contribuição através de escritos e grandes feitos encetaram um novo

rumo ou significado à marcha da humanidade. Há, pois, personalidades que,

para além de escritos e feitos, marcam a história, fundamentalmente, pelo que

são e pelo modo de viverem o cotidiano. Essa foi, em muitos sentidos, a

complexa e poliédrica personalidade do padre jesuíta Pierre Teilhard de

4

Chardin2, afamado cientista, pesquisador incansável e profeta místico do nosso

tempo.

Teilhard de Chardin exerce um fascínio especial sobre os seus

leitores pela visão do homem que ele apresenta: uma visão dinâmica,

evolutiva, colocada numa justa relação com a visão do universo. Este, pois, não

é mais concebido como uma realidade estática, mas, conforme os dados mais

recentes das ciências positivas, é uma realidade em movimento, em evolução.

O pensamento de Teilhard de Chardin, em seu conjunto de obras,

forma uma concepção da totalidade do universo; i.é, mundo, homem, Deus.

Trata-se da articulação das ciências empíricas, em especial a física, filosofia e

teologia numa única ciência superior do fenômeno. O plano sobre o qual

Teilhard de Chardin trabalha é exatamente este: o fenomênico, mas o

fenômeno em sua totalidade. Nas palavras de Teilhard de Chardin, ver e fazer

ver.

No presente trabalho pretendo fazer ver a concepção de homem – e

não mais que esta – possível de ser encontrada na principal obra de Teilhard

Chardin, O Fenômeno humano3. Portanto, apresso-me em dizer: estarei

fazendo um certo recorte que ajude a ver o homem dentro deste plano:

mundo, homem, Deus. O recorte começa com a obra, estarei usando

2 Dados biográficos de: CUENOT, Claude. Aventura e Visão de Teilhard de Chardin. Tradução [Camilo Martins de Oliveira]. Lisboa: Livraria Duas Cidades, 1966. Apresento um pequeno resumo da vida de Teilhard de Chardin: O primeiro registro da família Teilhard data de 1325. Uma escritura prova a existência de Pierre Teilhard, um notário em Dienne, atual Auvergne, França. Em 1686 nasce Marguerite Catherine Arouet irmã de Voltaire, bisavó de Berthe Adélie de Dompierre d´Hornoy. Data de 1816 a carta na qual Luis XVIII confirma nobreza de Pierre Teilhard avô de Pierre-Cirice Teilhard. Este, em 1841, casa-se com Marie Marguerite Victoire Barron de Chardin, donde a aquisição do nome ‘de Chardin’ pelos filhos de Pierre-Cirice Teilhard, dentre os quais, Emanuel Teilhard de Chardin que se casará, em 1875, com Berthe Adélie de Dompierre d´Hornoy os país de Marie-Joseph Pierre Teilhard de Chardin. Pierre Teilhard de Chardin nascido na França em 1881 e tendo falecido nos Estados Unidos em 1955, entrou na Companhia de Jesus em 1899. Estudou matemática, filosofia e teologia antes de fazer-se padre, depois, continuou os estudos em geologia e paleontologia. Foi professor no Cairo, Egito. Pesquisador na China, Mongólia, Índia, África do Sul e Estados Unidos. Tendo viajado quase o mundo todo e sendo pessoa de personalidade empática, humilde e profunda, conquistou muitos amigos que, após sua morte, organizaram-se na Association des Amis de Teilhard de Chardin (site: http://www.teilhard.org), com representação em mais de seis paises e que ainda hoje organiza e publica escritos de ou sobre Teilhard de Chardin. Entre os grandes feitos científicos de Teilhard de Chardin, conta-se a participação da expedição que em 1930, na China, encontrou o fóssil do Sinanthropus Pequinenses, ancestral distante do homo sapiens. As obras completas somam mais de doze volumes, dentre as quais, as mais conhecidas são O Meio Divino (1927-28) e O Fenômeno Humano (1938).

3 TEILHARD DE CHARDIN, Pierre. O Fenômeno Humano. Tradução [José Luiz Archanjo]. 1ª Edição, 6ª Re-impressão. São Paulo: Cultrix, 2006.

5

exclusivamente o livro citado, com particular atenção à terceira parte

destinada a tratar o pensamento.

Outra advertência importante é quanto à necessidade de entender

que Teilhard de Chardin não é um pensador de escritório, mas um filho do

mundo, um peregrino cujo pensamento tem um correlato vivencial. Sua obra

não é sistemática, mas, no conjunto, forma um sistema que é evidência do

fenômeno. Nesse sentido, esforcei-me para reproduzir o modo de expressão

teilhardiano – valor vivencial da experiência expressa em um discurso de

linguagem coloquial em primeira pessoa.

A seqüência deste trabalho é: apresentação da mensagem

teilhardiana seguida da compreensão particular que o jesuíta tem da evolução.

O segundo capítulo retoma o primeiro, procurando evidenciar mais o modo de

Teilhard de Chardin conceber o homem e, arrematando, pois, no terceiro

capítulo, procuro inferir uma resposta – e basta que seja plausível – acerca da

questão qual a concepção de homem em Teilhard de Chardin.

Sabendo da ousadia desse projeto, reservo espaço à possibilidade de

não concluí-lo como gostaria e antecipo-me em apresentar minhas desculpas:

se a concepção teilhardiana de homem não abrir novas perspectivas à

pesquisa antropológica, a falha é toda minha, mas se as abrir, então,

evidenciei a grandeza e a atualidade do pensamento deste companheiro

jesuíta.

PRIMEIRO CAPÍTULO - A mensagem teilhardiana e a lei da evolução

2.1 – A mensagem teilhardiana

Para bem compreender a situação de Teilhard de Chardin, o sentido

de sua visão, é preciso levar em conta as coordenadas fundamentais que

definem o espaço cultural e espiritual da construção teilhardiana. Em

particular, interessa-me ver a situação em que se encontra o ser humano e o

que propõe Teilhard de Chardin. E nesse sentido, sua concepção de homem é

nova, não por ser uma visão que partiu do nada, mas por ter feito crescer, em

um terreno que parecia estéril, uma floração nova de problemas e de

perspectivas de respostas.

6

A difusão prodigiosa da mensagem teilhardiana mostra com

irrefutável evidência que o jesuíta caminhou no sentido de uma das mais

profundas aspirações do homem cristão contemporâneo no campo da cultura,

da integração, numa visão coerente do mundo, a saber, o que é o homem e

qual a posição que lhe é reservada no universo.

Teilhard de Chardin procurou fazer convergir a práxis científica e a

representação da realidade que dela resulta com a visão cristã. Assim, ele

proporcionou uma nova concepção de homem que decorre do encontro da

mais vigorosa tradição espiritual do Ocidente e os instrumentos decisivos de

interpretação e transformação do mundo; i.é, as ciências modernas, cuja

utilização determinará, em medida crescente, o destino do homem ocidental e,

já agora, de toda a humanidade.

Mas é preciso explicar: Teilhard de Chardin não pode transmitir sua

mensagem, sua experiência, dentro da terminologia tradicional da filosofia que

tinha aprendido, a filosofia escolástica já sistematizada e formalizada. Ele se

viu, pois, forçado a criar uma terminologia que exprimisse seu pensamento e

traduzisse sua experiência em uma nova linguagem. Daqui resulta muita das

incompreensões que ele sofreu. Claro está, também, que não posso fazer nos

limites destas páginas uma ampla comparação do pensamento de Teilhard de

Chardin com qualquer forma consagrada de filosofia ou teologia, sem deturpar

a ambas. Limito-me a dizer que ele percorreu a academia tradicional de

filosofia, teologia, os meios científicos, os departamentos de geologia e

paleontologia mais destacados de seu tempo e desse currículo fez emergir –

fez ver – um novo conhecimento: a Hiperfísica4. Um conhecimento que se

constitui numa grande física totalizante do saber humano, como pretendiam os

gregos, unificando toda a visão do real. Esse saber preocupa-se mais com

evidenciar o encaixe dos fenômenos, o seu mútuo entrançamento pelo qual

constituem a trama, o tecido, o estofo do real.

Ele mesmo fala de seu objetivo que constitui também seu método no

prólogo de O Fenômeno Humano:

Ver e Fazer Ver. Estas páginas representam um esforço de ver e fazer ver o que passa a ser e o que exige o Homem, quando o inserimos,

4 ARCHANJO, José Luiz. A Hiperfísica de Teilhard de Chardin. Tese de Doutorado. São Paulo: Faculdade São Bento, 1974.

7

todo inteiro e até o fim, no quadro das aparências... Ver: poder-se-ia dizer que toda vida consiste nisso – se não finalmente, ao menos essencialmente. Ver ou perecer eis a situação imposta pelo misterioso dom da existência a tudo quanto é elemento do Universo. Eis, por conseguinte, num grau superior, a condição humana5.

Trata-se, pois, de chegar à construção de um discurso holístico da

realidade por meio do diálogo entre ciências modernas, filosofia e teologia –

posso falar mesmo, em termos mais atuais, de uma transdisciplinaridade.

Teilhard de Chardin procurou fazer ver o Fenômeno que os fenômenos vão

compondo na sua sucessiva aparição.

O ponto de partida do itinerário teilhardiano pode ser situado num

terreno no qual se encontram a tradição do cosmologismo antigo6 e a noção

moderna de fenômeno. Com efeito, “a noção contemporânea de fenômeno não

se opõe mais à de coisa em si: o fenômeno é o em si da coisa em sua

manifestação, não constituindo apenas uma aparência da coisa, mas

identificando-se com seu ser”7. O universo é fenômeno ou o que aparece, mas

esse aparecer tem como correlato uma forma de visão cuja estrutura e alcance

são definidos pelo saber científico. A hermenêutica desse modo peculiar de ver

o universo constitui uma fenomenologia, não como a de Husserl, mas no

sentido científico, propriamente teilhardiana. Teilhard de Chardin volta-se para

um determinado fenômeno que lhe parece fundamental e a partir dele vai

descrevendo círculos cada vez mais amplos até abranger toda a realidade que

aparece, assim, estruturada em função do problema inicial.

O núcleo da mensagem teilhardiana é a busca de um sentido, uma

direção, um fim, não só para a grande aventura cósmica de tudo o que existe,

mas fundamentalmente para a aventura humana; isto é, um sentido absoluto e

necessário. Todos os pesquisadores de Teilhard de Chardin são unânimes em

dizer que o problema de Deus ocupa o coração e o cerne do seu pensamento.

Contudo, não se trata do problema de Deus pura e simplesmente; antes,

Teilhard de Chardin concebe a questão dentro de uma malha de outras

questões cuja origem se encontra na “revolução dos tempos modernos”8. Foi

5 TEILHARD DE CHARDIN, 2006, p. 25.6 Não sem razão declarou, certa vez, Teilhard de Chardin, considerar-se um físico ou contemplador da physis no sentido em que eram os pré-socráticos.7 Cf. ABBAGNANO. Nicola, Dicionário de Filosofia. Tradução [Alfredo Bosi]. São Paulo: Martins Fontes: 2003, p.436.8 Expressão do Pe. Vaz. Cf. VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Universo Científico e Visão Cristã em Teilhard de Chardin. Petrópolis: Vozes, 1967, p.58.

8

ela que motivou a interrogação central das suas cogitações: desde que

tomamos consciência da profunda revolução espiritual sofrida pela

humanidade moderna, revolução espiritual intrinsecamente ligada a uma

revolução material, surge a irresistível interrogação: tem sentido para o

homem buscar uma direção que aponte Deus dentro do contexto desta grande

“revolução dos tempos modernos”?

Para melhor entender o problema é importante situar a questão da

seguinte forma: para o homem antigo Deus coroava a ordem do universo,

como uma espécie de soberano, presidindo um mundo organizado nos seus

mínimos pormenores. Esse mundo, porém, era representado por uma imagem

topográfica dentro de uma concepção marcadamente espacial: coroando-a,

Deus se mostrava situado numa região superior. A “revolução dos tempos

modernos”, porém, aboliu esse esquema espacial e proclamou, pelas ciências,

que o princípio fundamental de explicação da realidade não é a ordem estática

das coisas, mas a sua gênese, o seu nascimento. Destarte, veio substituir a

visão espacial do mundo uma outra visão, essa em que o tempo se mostra

como dimensão privilegiada. Surge então o problema: se a ordem espacial das

coisas não apresenta mais a estabilidade de que se revestia na concepção

antiga, restará ainda algum lugar para Deus? Ou Deus teria alguma função de

inteligibilidade num mundo evolutivo, no qual as coisas se explicam não pela

sua posição, mas pelo seu aparecimento, vida e morte? Teilhard de Chardin

não ignora o fato de que essa mudança na forma de conceber o cosmos

resultou numa mudança da forma de conceber o homem. Interessa-me fazer

ver como Teilhard de Chardin pensou o homem, entender como ele conjugou

transcendência e imanência, espírito e matéria, origem e finalismo. E, aqui, ele

se vê na contramão da história: pensadores antigos e medievais, no mais das

vezes, viram o homem como um ser pronto, acabado, determinado por forças

extranaturais, tal qual viam o cosmos. Na atualidade o homem é visto como

pura natureza, mera biologia. Sugeriu-se que houvesse a interpretação do

código genético humano, o homem seria completamente conhecido. Essa

sugestão não se constata porque a informação acerca da finalização do Projeto

Genoma (Abril de 2003) que foi noticiada por vários meios de comunicação

como sendo a decifração do código genético humano está apenas

parcialmente correta. Está correta enquanto agora se conhece toda a

9

seqüência de nucleotídeos dos cromossomos humanos e genes de

cromossomos; incorreta enquanto ignora a existência de altas taxas de

mutação nas bases protéicas, os dados anteriores dizem respeito a códons do

DNA e a aminoácidos nas proteínas; decifrou-se genes dos cromossomos, mas

não as proteínas que eles codificam9. A respeito da problemática do homem na

atualidade, Martin Heidegger, expoente máximo da análise existencial do

homem, exprimiu-se da seguinte forma:

Nenhuma época teve noções tão variadas e numerosas sobre o Homem como a atual. Nenhuma época conseguiu, como a nossa, apresentar o seu conhecimento acerca do Homem de modo tão eficaz e fascinante, nem comunicá-lo de modo tão fácil e rápido. Mas também é verdade que nenhuma época soube menos que a nossa, o que é o Homem. Nunca o Homem assumiu um aspecto tão problemático como atualmente10.

Heidegger diz, portanto, que as informações que as ciências nos

oferecem acerca do homem são válidas e preciosas, contudo, não favorecem a

compreensão holística do homem, a compreensão acerca do que é o homem.

Daí, poder-se concluir que, não convém e nem mesmo resultaria verdadeiro

formular uma concepção do homem puramente baseada nas constatações

científicas. Mas, tampouco resultaria verdadeiro pensar o homem

filosoficamente sem considerar a contribuição das ciências.

Creio que Teilhard de Chardin foi quem melhor entendeu essa

necessidade de conjugação e melhor desenvolveu um pensamento pautado

pela reflexão filosófica e investigação científica.

Já mencionei que a intenção primeira de Teilhard de Chardin é fazer

reconciliar o cristianismo com as ciências modernas. Reconciliar porque a

“revolução dos tempos modernos” colocou as respostas da Religião em um

plano – o mítico – e as da ciência em outro – o do mundo real. Teilhard de

Chardin tentará chegar às verdades da Religião por meios das ciências, mas

não às ciências como eram mecanicamente concebidas no melhor sentido

positivista. Ele também tem críticas às ciências e, nesse sentido, afirma:

9 Cf. <http://www2.portaluno.com.br/onze/> Acesso a 14 de maio de 2008.10 HEIDEGGER. Martin. Kant und das Problems der Metaphysik, §37. Apud MONDIN, Battista. O Homem, Quem é Ele? 12ª ed. São Paulo: Paulus, 2005, p. 08.

10

De fato, temos que confessar, a Ciência não lhe (o homem) encontrou ainda um lugar nas suas representações do Universo. A Física chegou a circunscrever provisoriamente o mundo do átomo. A Biologia logrou estabelecer uma certa ordem nas construções da Vida. Apoiada na Física e na Biologia a Antropologia explica, por sua vez, mas ou menos a estrutura do corpo humano e certos mecanismos da sua fisiologia. Mas uma vez reunidos todos os traços, o retrato, manifestamente, não corresponde à realidade. O Homem, tal como a Ciência o consegue restituir é um animal como os outros (...) Ora, a julgar pelos resultados biológicos do seu aparecimento, não constitui ele precisamente algo totalmente diferente?11.

Aqui estão as pilastras que sustentam a reflexão teilhardiana: a

transdisciplinaridade, teologia, filosofia e as ciências positivas, em especial a

física, todas sintetizadas na hiperfísica. Se a física circunscreveu o universo

sem o homem e o homem sem o universo, Teilhard de Chardin quer agora

fazer ver o homem circunscrito no universo; ou seja, fazer ver o homem no

universo enquanto lar do homem, enquanto lugar do homem na existência – o

universo como existenciário, i.é, o lugar da existência do homem. Com o

surgimento do homem o universo muda de pele, ganha uma alma. Estamos

prestes a ver emergir uma nova concepção de homem, concepção segundo a

qual: “O homem não é mais o centro estático do mundo, como por muito

tempo se acreditou, mas eixo e flecha da Evolução –, o que é muito mais

belo”12.

Passo então ao próximo tema: a lei da evolução. Entretanto antecipo-

me em dizer que não se tratará de ver exaustivamente todo o pensamento

teilhardiano acerca da evolução, mas tão-somente as linhas gerais que regem

o processo, bem como enumerar os pontos que servem de base para aquilo

que ouso chamar concepção teilhardiana de ser humano.

2.2 – A lei da evolução

A partir da categoria da evolução, Teilhard de Chardin construiu um

pensamento filosófico e antropológico que merece atenção em nossos dias. Ele

edificou um pensamento sólido sobre o homem que se pautou na noção de que

o processo evolutivo possui um sentido.

Antes, porém, de apresentar a antropologia teilhardiana faz-se mister

elucidar essa noção da evolução. Por evolução entende-se aqui a teoria

11 TEILHARD DE CHARDIN, 2006, p.185.12TEILHARD DE CHARDIN, 2006, p.28.

11

segundo a qual todos os seres derivam de outros seres mais simples – do

átomo, a molécula e o conjunto de molécula; deste a célula, então, o

organismo vivo que é completamente diferente dos anteriores – que os

precederam no tempo. Os mecanismos da evolução foram objeto de teorias

diversas entre as quais avultam as de J. B. C. de Lamarck (1744-1829), C.

Darwin (1809-1882) e Hugo de Vries (1848-1935).

Diferente do que pensaram os cientistas supracitados, para Teilhard

de Chardin faz-se evolução sobre um duplo plano biológico e psíquico, com um

paralelismo de acordo com uma lei por ele chamada: Lei de Complexidade-

Consciência13. Nesse sentido, é preciso distinguir três fatores em relação à

evolução14: a) o fato mesmo; b) o mecanismo; c) o sentido.

No que se refere ao fato da evolução, não tem havido problemas

quanto à interpretação. Também o mecanismo, embora existam mais de uma

teoria – dentre as quais a Teoria Sintética, ganha a maioria dos cientistas – não

causa demasiadas controvérsias. As divergências surgem quanto ao sentido.

Segundo Teilhard de Chardin, uma expansão original deu início a um

processo que passa pela formação da matéria, o surgimento da vida, a

condensação do pensamento e a emersão da reflexão – respectivamente:

cosmogênese, biogênese, psicogênese, noogênese. Fundamentalmente, ele

está nos dizendo que a evolução sugere um processo crescente ascensional

que hoje abarca todas as dimensões da realidade e o marco de referência

desse processo, pelo qual decifrará o sentido da evolução: é a Lei de

complexidade-consciência. Em termos bastante simples esta lei significa que o

tecido do universo, a trama ou estofo evolui criando formas cada vez mais

complexas. A evolução parte da matéria simples – poeira espacial proveniente

da grande expansão – que se complexificando forma estruturas cada vez

maiores. Maiores não apenas em tamanho, mas (sob pena de não se entender

nada de Teilhard de Chardin) também em organização. Pela complexificação

uma molécula é mais organizada que um átomo; uma célula mais organizada

que uma molécula; um organismo pluricelular muito mais organizado que um

13 Ibid., pp.46, 61, 277, 326.14 Cf: DALLE NOGARE, Pedro. Humanismo e Anti-humanismo. 11ª edição. Petrópolis: Vozes, 1988, p.170.

12

unicelular. Assim, complexidade não é heterogeneidade, mas heterogeneidade

organizada15.

Mas a complexificação é apenas uma vertente, uma dimensão da lei

que rege a evolução. A outra dimensão é a conscientização, interiorização

psíquica. Quer dizer, à medida que o estofo do universo se complexifica – dado

material, objetivo – simultaneamente emerge de dentro dele o fenômeno do

pensamento – dado espiritual, subjetivo.

Teilhard de Chardin parte da seguinte dedução: é inegável o fato da

complexificação da matéria, uma vez que com um pouco de complexificação

emergiu a vida na matéria, parece razoável que, com um pouco mais de

complexificação emerja o pensamento.

O padre Dalle Nogare explica a tese teilhardiana assim:

Teilhard prova sua posição assim: em virtude da unidade fundamental do Universo, qualquer propriedade que apareça na matéria, a qualquer nível de desenvolvimento, é propriedade que acompanha a matéria onde quer que seja, apesar de não se poder constatar experimentalmente em todos os níveis16.

Uma vez que não se pode negar a presença de psiquismo no reino

animal e extraordinariamente nos seres humanos, é plausível concluir que toda

matéria esteja permeada de psiquismo, ainda que não se possa medir. Daqui a

revolucionária conclusão teilhardiana, “o estofo do Universo tem uma face

interna e outra externa; isto é, ele é bifacial por estrutura, coextensivo ao Fora

das coisas, existe um Dentro das coisas”17.

Mas vamos ao texto conferir o que diz o padre Teilhard de Chardin:

A concentração de uma consciência, pode-se dizer, varia em razão inversa da simplicidade do composto material que ela forra. Ou ainda: uma consciência é tanto mais perfeita quanto mais rico mais bem organizado é o edifício material que ela forra. Perfeição espiritual (ou

15 Proponho como exemplo de complexidade a diferença entre o tecido epitelial, formado pela justa e complexa relação de células e a areia, amontoado infinito de grãos cristalinos. Enquanto que a primeira relação – células com células – está organizada a quanto de formar algo novo e diferente do elemento primitivo, a segunda relação – a dos grãos de areia – não passa de um amontoado do mesmo elemento primitivo. Daí ser o tecido epitelial algo muito mais complexo que a infinidade da areia.16 DALLE NOGARE, 1988, p.176.17 TEILHARD DE CHARDIN, 2006, p.59.

13

centreidade consciente) e síntese material (ou complexidade) não são senão as duas faces ou partes ligadas de um mesmo fenômeno18.

Concluído está que todas as coisas possuem um dentro e um fora,

uma consciência, uma espontaneidade, em grau diverso e proporcional a

complexificação do ser, proporcional à sua organização material.

Cabe aqui mencionar que Teilhard de Chardin dá ao termo

consciência um sentido que ultrapassa a acepção corrente. A consciência

refletida ou reflexiva está presente, exclusivamente, no homem; no animal há

uma espécie de consciência de percepção – consciência orgânica. O psiquismo

existe até mesmo no nível da matéria inerte em que se exprime em força

radical e é fator de integração e de centração. Psiquismo na matéria,

consciência orgânica no animal e reflexão (reflexibilidade) no homem são, para

Teilhard de Chardin, um único e mesmo fenômeno que se desenvolve no curso

da evolução, mas cujos estágios são separados por mutações sucessivas – diz

de uma gradação decorrente de metamorfoses.

Até aqui falei da mensagem teilhardiana, de como Teilhard de

Chardin elaborou uma terminologia e um saber próprio, baseado numa

transdisciplinaridade de caráter fenomenológico científico para transmitir sua

mensagem. Falei também da composição inicial do universo e de como a lei de

complexidade-consciência rege esse fenômeno – a gênese. Não falei ainda,

diretamente, da concepção teilhardiana de homem porque tentei explicar

primeiro como, para Teilhard de Chardin, a “revolução dos tempos modernos”

mudou a concepção de cosmos da sociedade científica; o que desencadeou

uma cisão entre o pensamento científico e a visão religiosa. Por isso, procurei

mostrar a intenção conciliadora de Teilhard de Chardin. Cabe, pois, agora

apresentar as linhas gerais do movimento da gênese, mostrando como o

homem está ligado a esse processo e ao mesmo tempo identificar qual é o

lugar ocupado pelo homem nesse universo que está nascendo.

18 TEILHARD DE CHARDIN, 2006, p.61.

14

SEGUNDO CAPÍTULO – O sentido da evolução e o terceiro infinito

3.1 – O sentido da evolução

Na altura em que interrompi o texto no primeiro capítulo ficou claro

que a noção teilhardiana de evolução equivale a uma lei dos fenômenos, uma

convergência temporal típica da realidade em estado de gênese contínua. Falei

de uma convergência que vai da poeira cósmica à matéria, começando com a

formação dos átomos; desses às moléculas e dessas aos vírus, seguindo

células, plantas, animais e, por último, o homem. Crescimento não apenas

material, mas também psíquico. Teilhard de Chardin vê nesse processo um

sentido ascensional crescente.

A evolução é, assim, um processo contínuo que atinge, em certo

momento, o espírito humano. A não-vida gerou a vida. Da matéria inorgânica

surgiu uma nova ordem, a biosfera. No entanto, o processo não terminou por

aí. O aparecimento da espécie humana que ocorreu graças ao lampejo da

consciência auto-reflexiva, é uma prova de que a lei da paralelidade

complexidade-consciência, que fundamenta o processo evolutivo, desemboca

no infinito; ou seja: a evolução continua. Considerando que a espécie humana

representa a própria evolução em marcha, posso concluir que o homem é o

que há de mais complexo no processo evolutivo e, simultaneamente, o que há

de mais consciente. Segundo a proposta teilhardiana é possível definir três

momentos na história de nosso planeta. Num primeiro momento, ocorre a

cosmogênese; no segundo, da não-vida surge a vida, que a partir da lei da

complexidade-consciência e do desenvolvimento de variadas formas de vida,

15

dá origem aos reinos vegetal e animal: é a biogênese; o momento em que a

citada lei, que constitui a base do processo evolutivo, se manifestou no

despertar da auto-reflexão do homem, unindo corpo e espírito: noogênese. A

partir de tal proposta, a orientação para o sentido de que falei acima, é algo

próprio do espírito humano. As três etapas demonstram que a evolução, até

agora, tem se orientado e tem seu sentido no homem. Tais considerações

serão tratadas no terceiro capítulo dedicado à antropogênese, etapa não

concluída – ressalto – e situada entre a biogênese e a noogênese, dentro da

perspectiva evolucionista de Teilhard de Chardin. Por enquanto continuarei

tratando do sentido da evolução dentro do pensamento teilhardiano.

O grau de conscientização, de interiorização psíquica das coisas está

na proporção direta de seu grau de complexificação material. Quanto mais

complexo, tanto mais conscientizado. Daqui emerge uma outra grande

intuição de Teilhard de Chardin. A física comprova que cada infinito do

universo é caracterizado por fenômenos peculiares. Por exemplo, o

aparecimento e o desaparecimento do quantum no mundo subatômico ou a

relatividade do espaço na imensidão do universo19. Admitidos os fenômenos

peculiares ao infinitamente pequeno ou ínfimo e ao infinitamente grande ou

imenso; convém perguntar: qual será o efeito específico do infinitamente

complexo? Teilhard de Chardin afirma que vida, psiquismo, reflexão são efeitos

peculiares a complexificação da matéria. Com efeito, essa matéria na qual

emerge a vida é uma entidade composta; isto é, integrante de dois termos,

simultaneamente irredutíveis um ao outro, ontologicamente inseparáveis e

sujeitos a variações correlatas. Cumpre, desde já, observar que, no

pensamento teilhardiano, é altamente significativa a presença de entidades

pares, tais como, matéria-espirito, ser-união, universal-pessoal, entre outras.

Não se trata de composições verbais a camuflar dualidades irresolúveis de

tempos antigos, nem meros neologismos: são noções inéditas, termos

originais, idéias ou conceitos inaugurais de um universo visto de modo novo.

Esta tese possibilita, não só uma compreensão coerente dessa

camada do mundo na qual nos movemos, a saber, a biosfera, como também

permite eliminar qualquer forma de dualismo: matéria e vida; corpo e mente;

19 TEILHARD DE CHARDIN, 2006, p. 60.

16

vida e espírito. Por que coloca tudo em um único e mesmo rumo e sentido.

Tudo depende de tudo, como numa teia.

Com efeito, se estudo o universo, a terra, essa camada denominada

geosfera sem levar em conta a vida e a reflexão nela presentes é inevitável ver

a terra como um planeta insignificante para a compreensão do universo. Isso

porque a terra é algo de ínfimo e perdido na imensidão espacial. Não tem

grande significação do ponto de vista astrofísico, sendo um pequeno planeta

ornado de um único satélite, girando em torno de um sol em um universo onde

pode haver milhões.

Entretanto, se considero o fenômeno vida, então, a situação se

converte, completamente, porque a vida apresenta propriedades

absolutamente novas e diferentes das propriedades físico-químicas da matéria

inorgânica. Se ousar dar um outro passo e considerar o fenômeno da reflexão,

então, vejo emergir uma verdadeira revolução no universo porque noto um

avanço contínuo em complexidade e consciência o que coloca o homem na

ponta da lança do processo evolutivo: “O Homem constituindo, por si só, a

mais nova, a mais fresca, a mais complicada, a mais matizada das camadas

sucessivas da Vida”20.

Sempre segundo Teilhard de Chardin, colocando a hipótese do

sentido ascensional crescente da evolução, tudo no universo se torna mais

claro, mais harmonioso, mais coerente. Uma ponte, antes de tudo, é projetada;

uma conexão natural é estabelecida entre mundos até agora considerados

opostos, separados: o da física e o da psicologia, o da matéria e o do espírito.

Não que essa conexão torne idênticos espírito e matéria, mas no sentido de

que se radica organicamente, fisicamente, no mesmo processo cósmico que

envolve tudo.

Num universo evolutivo que se vai fazendo, na direção da flecha do

tempo – em cuja ponta está o homem – por complexidade sempre maior, todo

ser é, de certo modo, síntese dos que lhe antecederam e lhe são inferiores.

Nesse sentido, posso dizer que cada ser tomado hiperfisicamente é

composição superadora e inovadora de seus antecessores físicos, nele

transformados. Teilhard de Chardin define com essa hipótese21 a continuidade

20 TEILHARD DE CHARDIN, 2006, p. 246.21 Trata-se de uma hipótese visto que não foi cientificamente comprovada tal interpretação do processo evolutivo.

17

e descontinuidade com que ocorre o processo evolutivo: “... acaba de se

revelar à natureza do passo da reflexão. Mudança de estado, em primeiro

lugar. Mas, em seguida, e por isso mesmo, começo de uma outra espécie de

vida – precisamente essa vida interior...”22, ou retomando o que já fora citado:

“... precisamente em virtude dessa permanência na operação, é fatal, do ponto

de vista da física, que certos saltos transformem bruscamente o sujeito

submetido à operação”.

Teilhard de Chardin apresenta o sentido ascensional crescente da

evolução e o enriquecimento que esse processo garante aos seres posteriores;

ou seja, quanto mais tardio o surgimento de uma espécie, mas complexa e

consciente essa espécie se revela. Dado que a espécie humana aparece por

último na ordem dos seres, ela constitui o que há de mais elaborado no planeta

– é forçoso pensar. Dessa posição peculiar e especial emerge a antropologia

evolutiva teilhardiana: o homem como o mais complexo e consciente dos

seres. Passo agora a ver exatamente a questão: ‘o mais complexo-consciente

dos seres’.

– O terceiro infinito

A Física descobriu – falara Pascal – dois infinitos no universo, o

infinitamente grande ou imenso e o infinitamente pequeno ou ínfimo. Com

base no processo de complexificação-conscientização, Teilhard de Chardin irá

apresentar um novo infinito: o infinitamente complexo-consciente.

Trata-se do primado do homem. Considerando o universo um sistema

orgânico dinâmico em vias de complexificação material e interiorização

psíquica é dado ver o homem, na linguagem teilhardiana, como ‘eixo e flecha

da evolução’. O homem não é um acidente fortuito do acaso, mas, ao

contrário, o ponto para o qual a evolução caminhou até agora.

Não só dois, mas três infinitos no universo: imenso, ínfimo e

complexo-consciente: isto é, o espaço sideral: das galáxias, estrelas, sistemas

solares; o espaço subatômico: dos quantum, dos elétrons; e o mundo humano:

do pensamento, da reflexão (a noosfera; ou seja, esfera da qual só nós

participamos, a nenhum outro ser é dado nela viver).

22 Ibid., p.189.

18

O homem entendido como ponto atual da evolução constitui o

terceiro infinito do universo. A fundamentação dessa afirmação é a curvatura

do processo complexificação-conscientização: o universo estende sua

expansão ao infinito, não só em dois sentidos, mas em três. Esse terceiro

sentido estabelece a ponte projetada entre os mundos e evidencia a unidade

do real.

O homem representa mesmo uma novidade para o mundo, não só

para o mundo material, mas, sobretudo, para o mundo da vida. Com efeito, até

aqui a física e a biologia têm trabalhado de forma a pensar o homem a partir

de um único pressuposto, a saber, o homem como mais um animal dentro do

reino animal – ainda que seja dotado de características particulares, só mais

um entre outros –, estudando-o sem considerar o processo evolutivo em sua

continuidade e em sua descontinuidade. Nesse sentido, Teilhard de Chardin

observa que o processo evolutivo, embora seja contínuo, ascensional crescente

é também marcado por verdadeiros saltos, nítidas descontinuidades. O

aparecimento da espécie humana representa um desses saltos – crescimento

quantitativo e ascensão qualitativa.

Caracterizado por uma singularidade exclusiva, o homem na

concepção teilhardiana representa uma novidade para o mundo e é Teilhard de

Chardin quem o afirma:

Explode a desproporção que falseia toda classificação do mundo vivo em que o Homem não figura logicamente senão como gênero novo ou uma nova família. Erro de perspectiva que desfigura e descoroa o Fenômeno universal! Para dar ao Homem o seu verdadeiro lugar na Natureza, não basta abrir nos quadros da Sistemática uma seção suplementar, - mesmo uma Ordem, mesmo um Ramo a mais... Pela hominização23 a despeito das insignificâncias do salto anatômico, é uma Idade nova que começa. A Terra muda de pele. Melhor ainda, encontra a sua alma24.

Até aqui, poder-se-ia dizer que pouco ou nada separa o pensamento

de Teilhard de Chardin de um cientificismo antropológico materialista,

entretanto, o pensamento teilhardiano está longe de reduzir ou segmentar a

natureza humana ao materialismo. Retomando o conceito de evolução, eu dizia

23 TEILHARD DE CHARDIN, 2006, pp.197-201; 223-225. O termo hominização é usado por Teilhard de Chardin para designar a passagem progressiva da vida animal não reflexiva para a vida humana reflexiva. Diz, pois, da passagem da consciência orgânica à consciência reflexiva [grifo meu].24 Ibid., p.197.

19

que esta caminha para formas cada vez mais complexas e conscientes, porém,

ao contrário do que se poderia pensar, esse processo não é uma marcha

gradual, contínua e lenta. A evolução na concepção teilhardiana passa por

momentos revolucionários, dá verdadeiros saltos qualitativos.

O surgimento da vida sobre a terra pode ser considerado um salto,

uma elevação sobre tudo o que existia antes da vida. Equivale dizer que a vida

representa uma descontinuidade dentro da continuidade do processo

evolutivo, um momento de crise de primeira grandeza qualitativa – subiu-se

um novo degrau na escala da evolução.

Um salto semelhante foi dado quando da emersão do pensamento

reflexivo, da consciência. Algo de inteiramente novo, de extraordinário e

inesperado aconteceu sobre a terra quando a primeira luz de inteligência

brilhou no cérebro humano. Um hiato de imensa distância se abriu entre o

passado e o presente: o pensamento vem por evolução da matéria, mas não se

explica pela matéria. Segundo Teilhard de Chardin:

A mudança de estado biológico que leva ao despertar do pensamento não corresponde simplesmente a um ponto crítico atravessado pelo indivíduo, ou mesmo a Espécie. Mais vasta do que isso, ela afeta a própria Vida na sua totalidade orgânica, e, por conseqüência, assinala uma transformação que afeta o estado do planeta inteiro25.

Teilhard de Chardin quer fazer ver que o aparecimento da espécie

humana com seu cérebro super desenvolvido, sua capacidade de reflexão ou

consciência de si mesma, de saber que se sabe, evidencia a emersão do

espírito sobre a superfície da terra. O fenômeno humano é fenômeno espiritual,

não nasce senão de uma profunda transformação de tudo aquilo que o

precedeu e preparou, mas ao aparecer apresenta características inteiramente

novas. O núcleo a partir do qual se expande essa novidade é o espírito, é a

dimensão espiritual da espécie humana, dimensão impregnada de

profundidade. Núcleo que já estava presente em tudo o que antecedeu o

surgimento do ser humano, mas de forma muito opaca, imperceptível mesmo.

Posso deduzir do pensamento teilhardiano que: o fenômeno humano

não é apenas constituído pela seqüência de complexificação material e

25 Ibid., p. 189.

20

interiorização psíquica, mas também por manifestação do espírito. O ser

humano é composto por três dimensões fundamentais, existem outras

dimensões, mas essas três compreendem as outras porque se encontram

ligadas desde o momento da hominização. Trata-se da: exterioridade, a relação

material que o homem estabelece com o mundo que o cerca; a interioridade,

diz da relação psíquica que o homem desenvolve consigo mesmo e com seu

semelhante; e a profundidade, refere-se àquelas relações do homem que

respondem ou apontam para âmbitos de grande significado para si mesmo.

Por mais íntima que seja a ligação entre o homem e as formas

inferiores de vida, por mais clara e importante que seja a continuidade entre a

vida animal e a vida humana, a consideração objetiva do fenômeno humano

deve reconhecer uma descontinuidade maior, uma ruptura, uma outra forma

de vida. Tem início com o homem o fenômeno da vida no espírito; i.é, não

apenas viver, mas saber que se vive.

Todavia, cumpre esclarecer que para Teilhard de Chardin, o

fenômeno espiritual não é uma espécie de epifenômeno26, é antes de tudo um

fenômeno da mudança cósmica de estado. A matéria se interioriza enquanto

matéria, orientada pela lei de complexidade-consciência e movida pela

natureza que lhe é constitutiva por força de sua unidade profunda. O

movimento cósmico por excelência é, simultaneamente, a complexificação-

conscientização: um pouco de complexificação, a vida; um pouco mais, o

psiquismo; ainda um pouco mais, o espírito.

Assim, Teilhard de Chardin muda a compreensão da relação espírito

e matéria. Em um cosmo estático, espírito e matéria tendem a ser

considerados apenas duas categorias justapostas, entre as quais ponte alguma

pode ser lançada. Chegamos a um dualismo de fundo, uma matéria separada

de um espírito que também está separado da matéria. Em um universo em

vias de expansão, cosmogênese, de tipo convergente, sentido crescente

ascensional, a gênese do espírito necessita da organização da matéria. Entre

os dois elementos reina uma relação comparável à que une os termos de um

todo – por exemplo, o que o esquerdo significa para o direito e vice-versa. Para 26 Epifenômeno equivale a um tipo de fenômeno acessório cuja presença ou ausência não importa para a produção do fenômeno essencial em questão. Teilhard de Chardin nega que o fenômeno espiritual seja um epifenômeno, ou seja, afirma que o fenômeno espiritual é de suma importância para a compreensão do homem e do universo mesmo. Cf. TEILHARD DE CHARDIN, 2006, pp.186-188 e 244.

21

que apareça espírito é preciso que haja matéria organizada, porque existe um

laço entre a quantidade de matéria organizada e o grau de consciência. Eis o

que satisfaz o pensamento humano e sua necessidade de unidade: espírito e

matéria são duas faces ou fases de uma mesma realidade, e se quero mais

espírito careço de mais organização material. No plano dos fenômenos – e é

esse o plano sobre o qual estou trabalhando –, da observação concreta, o

espírito aparece em função da matéria. E isto não é materialismo. Em estado

de cosmos; ou seja, numa visão imobilista, o espírito é uma forma sem

conteúdo, um brilho da matéria, porém, sob o ponto de vista da cosmogênese,

nada me impede de dizer que a superestrutura consciente – espírito –

desabrocha a partir de dentro da infra-estrutura material. O materialista

poderia afirmar que o sistema teilhardiano se sustenta, em sua conclusão,

sobre a matéria. No entanto, para o espiritualismo teilhardiano, o que subsiste

como essencial é à parte espiritualizada, o cume é o espiritual: numa via

progressiva interessa o ponto final, o ponto ômega, que no caso do

pensamento teilhardiano é a espiritualização crescente e ascendente da

matéria à medida que se organiza enquanto matéria.

Em suma, de um modo não pouco metafísico, mas, sobretudo,

fenomenológico e científico, Teilhard de Chardin recusa qualquer dualismo e

todo maniqueísmo em sua compreensão da realidade. A realidade, repito, é um

todo orgânico e neste todo tudo se sustenta sobre tudo. Tudo depende de tudo

– como numa teia.

Os espiritualistas têm razão quando defendem tão energicamente uma certa transcendência do Homem, em relação ao resto da Natureza. Os materialistas também não estão errados quando sustentam que o Homem é apenas mais um termo na série das formas animais. Neste caso, como em tantos outros, as duas evidências antitéticas se resolvem num movimento, desde que, nesse movimento se reserve à parte essencial ao fenômeno, tão altamente natural, de ‘mudança de estado’... Sim, da célula ao animal pensante, assim como do átomo à célula, um mesmo processo (aquecimento ou concentração psíquica) prossegue sem interrupção, sempre no mesmo sentido. Mas, precisamente em virtude dessa permanência na operação, é fatal, do ponto de vista da Física, que certos saltos transformem bruscamente o sujeito submetido à operação27.

Garantido o espaço do fenômeno e o espaço do processo, é possível

ver a unidade do real na linha contínua dessa caminhada cujos saltos

27 TEILHARD DE CHARDIN, 2006, p. 189.

22

representam uma superação que compreende as partes superadas.

Paulatinamente, cosmogênese, seguindo, biogênese e noogênese. Um só

processo, continuidade, marcado por saltos qualitativos, descontinuidade, que

hoje culminam no ser humano.

Sintetizando este segundo capítulo, indiquei que o sentido da

evolução é a espiritualização da matéria e que até aqui a evolução caminhou

no sentido do surgimento do ser humano. Este constitui, pois, o terceiro infinito

do universo; i.é, o infinitamente complexo-consciente. Claro está que não me

posso demorar mais nesses temas (embora haja ainda muito o que se explicar)

do pensamento teilhardiano, dado os limites de minha pesquisa. Passo agora à

terceira parte deste trabalho destinada à antropogênese, aqui entendida como

a concepção de homem em Teilhard de Chardin.

23

TERCEIRO CAPÍTULO – Consciência reflexiva, transcendência e

imanência

Muito do que já foi dito nos capítulos anteriores desenhou, por assim

dizer, uma imagem teilhardiana de homem. Trato agora de sintetizar essas

informações e fazer algumas inferências que me parecem plausíveis.

Tendo chegado ao homem a evolução não parou nele, ela se

transmuda profundamente: não caminha mais no sentido do surgimento do

homem, mas agora se apresenta encarnada nele. O próprio ser humano é

evolução; é itinerário rumo à união, à socialização – que pode ser resumido no

termo: espiritualização. Sempre segundo Teilhard de Chardin:

A Humanidade trabalhando, sob o impulso de um instinto obscuro, para transbordar ao redor de seu ponto de emersão até submergir a Terra. O Pensamento fazendo-se Número para conquistar todo o espaço habitável, acima de qualquer outra forma da Vida. Em outras palavras, o Espírito tecendo e desdobrando as camadas da Noosfera. Nesse esforço de multiplicação e de expansão organizada, resumem-se e exprimem-se finalmente, para quem sabe ver, toda a Pré-História e toda a História, desde as origens até os nossos dias28.

A hominização evidencia o estágio em que se identificam, mas não se

confundem indiferentemente, a evolução e o ser humano.

Neste modo de ver, o homem é ápice da evolução que não terminou

nele, ela dá continuidade ao seu itinerário até o ponto máximo de

espiritualização da matéria, convencionalmente, chamado por Teilhard de

Chardin de ponto ômega29. Trata-se de uma espécie de centro definido pela

última convergência do espírito sobre si mesmo, o ponto natural de

convergência da humanidade e, por meio da humanidade, de todo o universo;

em linguagem religiosa, o encontro definitivo da humanidade com o Deus de

Jesus Cristo; a letra grega ômega sugere conclusão, arremate.

Com o aparecimento do terceiro infinito a evolução adquire

conhecimento de si mesma, nas palavras do jesuíta francês, ganha uma alma,

o que coloca o homem na posição de responsável pelo futuro da marcha

cósmica em direção ao ômega.

28 TEILHARD DE CHARDIN, 2006, p.214.29 Ibid., pp. 293-302.

24

Mas cabe então perguntar, e tenho o colocado diversas vezes, qual a

concepção de homem que encontramos nos meandros do pensamento de

Pierre Teilhard de Chardin?

A concepção de homem de Teilhard de Chardin, segundo Emile

Rideau30, se expande a partir de dois caracteres primordiais, distintos e

complementares. O primeiro, a transcendência do homem em relação ao

universo e, simultaneamente, a sua ligação ao mundo; a estrutura psíquica

dotada de consciência reflexiva constitui o segundo aspecto.

A fenomenologia que evidenciou o sentido crescente ascensional da

evolução evidenciou também a emersão da consciência reflexiva, atributo

exclusivo do ser humano. E, falar da consciência do homem é falar

simultaneamente de sua transcendência e imanência.

O homem sabe que sabe; sabe de si mesmo e sabe do meio no qual

se move. Pode, pois, o homem agir acerca de si mesmo e sobre o seu

ambiente; pode construir, derrubar, reconstruir; pode pensar novos rumos,

novos caminhos, alternativas. Pode dominar o real:

Mas observemos um pouco melhor à nossa volta: esse dilúvio súbito de cerebralidade: essa invasão biológica de um novo tipo animal que elimina ou subjuga gradualmente toda forma de vida que não seja humana; essa maré irresistível de campos e de fabricas; esse imenso edifício crescente de matéria e de idéias31.

O animal sabe – em certo sentido, pode-se dizer –, mas não sabe que

sabe, conseqüentemente, está fechado para ele todo um domínio do real – no

qual o homem se move. O real não lhe pertence, não lhe é dado.

Assim, enquanto que para o ser dotado de consciência reflexiva, o

real se apresenta como um horizonte de possibilidades, para aquele sem

reflexibilidade aparece como um fosso intransponível.

A consciência reflexiva possui, portanto, uma ligação bastante

estreita com a transcendência humana para Teilhard de Chardin.

Primordialmente, a transcendência se manifesta na ação humana e a

reflexibilidade é um ato peculiar, exclusivo mesmo, do homem que é capaz de

ultrapassar a animalidade – é um fenômeno espiritual, como já mencionei.

30 RIDEAU, Emile. O Pensamento de Teilhard de Chardin. Tradução [Teresa Raposo.] Lisboa: Livraria Duas Cidades, 1965, p. 159. 31 TEILHARD DE CHARDIN, 2006, p. 198.

25

O ser reflexivo, precisamente em virtude de sua inflexão sobre si mesmo, torna-se de repente susceptível de se desenvolver numa esfera nova. Na realidade, é um outro mundo que nasce. Abstração, lógica, opções e invenções ponderadas, matemáticas, arte, percepção calculada do espaço e da duração, ansiedades e sonhos de amor... Todas essas atividades da vida interior nada mais são que a efervescência do centro recém-formado explodindo sobre si mesmo32.

Além de considerar que a reflexibilidade representa um salto

qualitativo do processo evolutivo, Teilhard de Chardin aponta para a idéia de

que esta possui um dinamismo próprio, a saber: “1) de tudo centrar

parcialmente a sua volta; 2) de poder centrar-se cada vez mais sobre si

mesma; 3) de ser levada, por essa própria Centração, a se reunir a todos os

outros centros que a rodeiam”33. Essa tríplice propriedade da consciência

permitiu a Teilhard de Chardin formular o conceito de noosfera; i.é, o centro

recém-formado referido na citação acima. Segundo o jesuíta:

Exatamente tão extensiva, mas muito mais coerente ainda, como veremos, do que todas as camadas precedentes, é verdadeiramente uma camada nova, a ‘camada pensante’, que, após ter germinado nos fins do Terciário, se expande desde então por cima do mundo das Plantas e dos animais: fora e acima da Biosfera, uma Noosfera34.

Noosfera é a camada da vida reflexiva sobre a terra, uma nova

esfera, um todo específico e orgânico que, embora distinto, engloba a biosfera

– a esfera da vida não-reflexiva – e a geosfera – a esfera do corpo sólido da

terra, pré-vivo em linguagem teilhardiana.

Esta, a noosfera, esfera na qual o homem se move, é a parte do real

que lhe cabe, o seu lugar no universo, o seu existenciário – mas, é importante

destacar que também esta camada está em expansão junto com o universo.

Como se trata de uma esfera e, considerando-se que o movimento

sobre uma esfera é circular, pode-se falar de um encontro da humanidade,

uma socialização dos seres humanos pela noosfera; i.é, a terceira propriedade

da consciência, a capacidade de se reunir a todos os outros centros que a

rodeiam. Por isso, Teilhard de Chardin pode afirma que agora o processo

32 TEILHARD DE CHARDIN, 2006, p. 186.33 Ibid., p. 294.34 Ibid., p. 197.

26

evolutivo tende na direção de sintetizar e constituir um todo espiritual –

reunião de todos as raças e civilizações humanas35.

A esse ambiente no qual se move – a noosfera, e lembro que ela

compreende também a biosfera e a geosfera – o ser humano se liga e

transcende simultaneamente. O homem que age, que ultrapassa os limites da

animalidade e as determinações da matéria não seria possível sem mundo. O

homem é um ser histórico, temporal, obedece à lei de complexidade-

consciência e, por isso, intimamente ligado ao mundo. Mas essa ligação longe

de constituir uma limitação, mostra, faz ver que o homem se encontra em

conjunção com a totalidade do universo, comunga da existência de todas as

coisas. A observação do processo evolutivo revela esse dado: há no homem a

convergência do todo.

No sistema teilhardiano, se é que posso usar este termo,

transcendência e imanência são dimensões de uma única e mesma realidade.

São dimensões que se perpassam, se entrecruzam e que em alguns momentos

se apresentam antepostas, assim como o esquerdo se antepõe ao direito, o

dentro ao fora, o acima ao abaixo. Todavia, como o esquerdo que se antepõe

e, simultaneamente, completa o direto e, assim também, o dentro completa o

fora e o acima se antepõe e completa o abaixo, do mesmo modo

transcendência e imanência. Num primeiro momento essas dimensões

humanas se antepõem, mas quando observadas sob o prisma do processo

evolutivo elas se complementam porque são dimensões da única e mesma

realidade para a qual tudo converge; i.é, o homem.

Que é, então, o homem e o que quer dizer Teilhard de Chardin ao

chamá-lo, em citações anteriores, de alma da terra e eixo e flecha da

evolução? Creio que ele está dizendo que: o homem é um ser que, consciente

de si mesmo e do meio no qual se move e dotado de uma energia profunda,

pode caminhar em direção a um fim, o ômega; é também um ser de

dimensões: transcendente no que se relaciona à sua profundidade; consciente

no que se refere à interioridade; imanente no que diz da exterioridade. Numa

palavra, eu digo que, na concepção teilhardiana, o homem é o existente; isto é,

aquele que por excelência existe, isto porque sabe que existe e, embora

35 TEILHARD DE CHARDIN, 2006, pp. 214 a 228. Capítulo com o título: O Desdobramento da Noosfera.

27

Teilhard de Chardin não tenha usado especificamente esse termo, creio que é

isso exatamente que ele quer dizer ao afirmar:

Se, como decorre do que foi dito, é o fato de se encontrar ‘refletido’ que constitui o ser verdadeiramente ‘inteligente’, podemos nós duvidar de que a inteligência seja o apanágio evolutivo do Homem e só do Homem? E podemos nós, por conseguinte, hesitar em reconhecer, por não sei que falsa modéstia, que sua posse representa para o Homem um avanço radical em relação a Vida antes dele?36.

Em relação a tudo mais que existe, por ser reflexivo, o homem não é

apenas diferente, mas é outro. A vida biológica que manifestou a ascensão de

consciência não pode continuar sua trajetória indefinidamente sem se

transformar profundamente, sem dar um salto. Ela assumiu consciência de si,

tornou-se existência no existente. A grandeza tornou-se diferente de si para

continuar ela mesma, fez-se homem.

Teilhard de Chardin fez ver o ser humano, então, como terceiro

infinito, ligado ao mundo e, simultaneamente, transcendente, como portador

da evolução nos tempos atuais; fez ver o homem em sua totalidade, um ser de

dimensões para o qual, de certa forma tudo converge. E eu agora fiz a

inferência do termo o existente – um vocábulo a mais para fazer ver o

fenômeno humano. Que conclusão é possível tirar de tudo isso? Creio que,

fundamentalmente, é possível concluir que o ser humano é um ser em

processo de vir-a-ser aquilo que ele é realmente ou àquilo que poderá ser. É

um ser inacabado, não pronto. E nenhum termo ou terminologia, tomada

isoladamente o esgota, o classifica completamente. Nenhuma ciência sozinha é

capaz de conhecê-lo definitivamente e dizer o que ele é, porque o que ele é

não se completou. Uma hiperfísica, uma ciência que o veja em sua totalidade e

imerso na totalidade do seu universo é capaz de traçar as linhas gerais do

fenômeno humano – por isso falou o jesuíta: “o fenômeno, mas o fenômeno

inteiro”37. Portanto, não há antropologia, o que há é antropogênese; quero

dizer, a gênese do ser humano. Falar do homem, estudá-lo, ver o homem não é

enquadrá-lo no sistema dessa ou daquela disciplina é contribuir com a sua

gênese, é dar continuidade ao processo evolutivo que começou com a

formação do universo e da terra, seguiu com o aparecimento da vida neste

36 TEILHARD DE CHARDIN, 2006, p. 187.37 Ibid., 2006, p. 25.

28

planeta, chegou ao estágio em que se encontra – o ser existente – e segue,

seja com a socialização ou com a espiritualização, enfim, segue seu sentido

ascensional crescente.

Esta é a natureza humana e sua grandeza – e também seu desafio –,

ser alguém cujo universo e o futuro representam um horizonte de

possibilidades, ser alguém que não pode ser enquadrado porque está em

movimento, porque transcende a tudo que se lhe apresenta como obstáculo,

pensa alternativas, quebra esquemas, re-interpreta interditos e ao mesmo

tempo se liga a tudo, se identifica no mundo, se encontra no mundo, mas se

liga e se identifica por aquela dimensão de profundidade, por aquela

capacidade de descobrir significado e, concomitantemente, significar o real. O

homem não mais

centro estático do Universo, como ingenuamente o havíamos acreditado – mas, o que é muito mais belo, o Homem flecha ascendente da grande síntese biológica. O Homem constituindo, por si só, a mais nova, a mais fresca, a mais complicada, a mais matizada das Camadas sucessivas da Vida38.

CONCLUSÃO

Há uma limitação de primeira grandeza no meu texto, limitei-me e

esforcei-me a fazer ver o filósofo Teilhard de Chardin. Concentrei minha

atenção na fenomenologia do homem e não atentei ao caráter teológico do

autor. Essa opção foi necessária para manter-me fiel ao tema específico a que

38 TEILHARD DE CHARDIN, 2006, p. 246.

29

me propus e dado os limites de minha pesquisa. Faltou, portanto, apresentar

melhor a fundamentação teológica do pensamento teilhardiano e explicar a

prospectiva inferida por Teilhard de Chardin; ou seja, explicar o rumo que ele

aponta para o processo evolutivo; i.é, fiquei a dever a explicação dos conceitos

de socialização, espiritualização e, finalmente, do ponto ômega. Estes

conceitos, contudo, versam acerca de um pensamento mais teológico do que

filosófico – portanto, não era objetivo meu e não me vejo apto para esclarecer

tais conceitos hoje.

Não obstante, porém, a esse recorte, creio ter conseguido fazer ver

os traços gerais da concepção de homem de Teilhard de Chardin. Creio ter

mostrado o que concluiu a fenomenologia que observou o homem em sua

totalidade e imerso na totalidade do universo no qual ele se move. Cumpre

dizer que o valor primeiro deste trabalho consiste em resgatar o cerne do

pensamento de um autor que depois de ter se tornado uma “febre” caiu em

esquecimento e ficou relegado à história do pensamento contemporâneo. Em

cada momento que parei para ler ou escrever acerca deste jesuíta francês que

muito admiro, tive presente a consciência de pertencer a uma geração que não

conhece Teilhard de Chardin e que vive a angústia de não ter dado atenção

para aquilo a que ele tanto chamou a atenção, a saber, o que é o homem e

qual o seu lugar no universo. A grandeza deste trabalho, portanto, – se é que

ele tem alguma – está na possibilidade de ser melhorado, enriquecido,

aprofundado e, o digo com franqueza e serenidade, em ser superado.

BIBLIOGRAFIA

Primária:

TEILHARD DE CHARDIN, Pierre. O Fenômeno Humano. Tradução José Luiz Archanjo. 1ª Edição, 6ª Re-impressão. São Paulo: Cultrix, 2006.

• Secundária:

ABBAGNANO. Nicola, Dicionário de Filosofia. Tradução Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes: 2003.

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• Sites Consultados:

<http://www.teilhard.org>

<http://www2.portaluno.com.br/onze/>

31