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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO FABIANA CRISTINA DE LIMA A PERCEPÇÃO DO CORPO PARA A CRIANÇA NOS MOMENTOS ESCOLARES: UM ESTUDO SOBRE O BRINCAR E O ESTUDAR INFANTIL CUIABÁ MT 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

FABIANA CRISTINA DE LIMA

A PERCEPÇÃO DO CORPO PARA A CRIANÇA NOS MOMENTOS ESCOLARES:

UM ESTUDO SOBRE O BRINCAR E O ESTUDAR INFANTIL

CUIABÁ ― MT

2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

FABIANA CRISTINA DE LIMA

A PERCEPÇÃO DO CORPO PARA A CRIANÇA NOS MOMENTOS ESCOLARES:

UM ESTUDO SOBRE O BRINCAR E O ESTUDAR INFANTIL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Instituto de Educação, Universidade Federal de Mato Grosso, na Linha de Pesquisa Culturas Escolares e Linguagens, como requisito final à obtenção do título de Mestre em Educação. Orientador: Prof. Dr. Cleomar Ferreira Gomes

CUIABÁ ― MT

2011

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L273p Lima, Fabiana Cristina de. A percepção do corpo para a criança nos momentos escolares: um

Estudo sobre o brincar e o estudar infantil / Fabiana Cristina de Lima – Cuiabá (MT): A Autora, 2011. 172 f.: il; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de Educação. Programa de Pós - Graduação Educação.

Orientador: Prof. Dr. Cleomar Ferreira Gomes. Inclui bibliografia.

1. Escola. 2. Criança. 3. Corpo. 4. Lúdico. I. Título.

CDU: 373.2

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Fabiana Cristina de Lima

Profa. Dra. Iduína Edite Mont'alverne Braun Chaves

Examinadora Externa (UFF)

Prof. Dr. Ademar de Lima Carvalho Examinador Interno (UFMT)

Prof. Dr. Cleomar Ferreira Gomes Orientador (UFMT)

Aprovado em 23 de fevereiro de 2011

DISSERTAÇÃO APRESENTADA À COORDENAÇÃO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DA UFMT

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Tentando dizer o quanto foram/são fundamentais...

Dedico este estudo...

Pelo empenho em me oferecer o melhor possível Pelo amor, apoio, confiança, paciência, dedicação, prontidão Pelos acréscimos que me proporcionaste Por me fazer acreditar que vale a pena A ti, Mãe

Pela cumplicidade Pelo auxílio incondicional

Por toda sua ternura

A ti, Irmã

Por ter feito o possível Pelos primeiros créditos Por ter tentado A ti, Pai (in memoriam)

Pela satisfação em tê-lo presente Pelo incentivo

A ti, Irmão

Por terem vindo, tão bem, somar conosco À Cunhada e Sobrinhos

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Há muito e muitos a agradecer...

Por ser meu companheiro de todas as horas Por me dar alento, paz, serenidade, luz

Por manter-me em contato com o meu lado mais humano E sempre fazer por onde me lembrar que sou humana

E por tantas outras coisas

A ti, Senhor.

Pela confiança e acolhimento de minhas intenções de estudo Pelo respeito às ideias e estilo revelados em minha personalidade de pesquisadora Pelas conversas regadas de informações prazerosas Pela amizade A ti, Orientador Dr. Cléo

Pelo olhar atencioso dirigido ao estudo

Pelas contribuições dadas a ele

Ao professor Dr. Ademar de Lima Carvalho À professora Dra. Terezinha Petrucia da Nóbrega

À professora Dra. Maria das Graças Martins da Silva

E pelo esforço e atenção em contribuir com o encaminhamento do estudo

À professora Dra. Iduína Edite Mont' Alverne Braun Chaves

Pelo empenho no aprimoramento de nossos conhecimentos Aos professores do Mestrado

Pelos momentos de convivência em meio ao conhecimento

Aos colegas de mestrado Em especial a Cínara

Pela insistência em acreditar e incentivar o meu ingresso no mestrado Por ter inaugurado meus primeiros passos no mundo da pesquisa Pelo partilhar de conhecimento Pela amizade A ti, Nilza

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Pelo apoio nos momentos de conflitos Pelas horas de risadas

Pela grande amizade que demonstraste

A ti, Silvia

Pela parceria e apoio Pelos momentos partilhados Pela amizade, mesmo distante A ti, Andresa

Pelos contatos afetuosos Pela convivência revigorante

A ti, Eunice

Pelo ademão carinhoso À Raquel

Pelos incentivos ao longo de minha existência

A todos os meus familiares, Em especial, à Sí

Pelo auxílio e presteza nos encaminhamentos burocráticos do Programa À Luiza, Jeison Em especial à querida Mariana

Pela torcida, paciência e momentos de distração nesta fase, um tanto quanto, exaustiva

Aos amigos Em especial à Mari

Por ter recebido, prontamente, esta pesquisa À direção da escola Ministro Marcos Freire

Por ter contribuído, significativamente, com a realização deste estudo

Pela participação, que tornou possível a realização da investigação

Às crianças investigadas

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Pergunto se há o que festejar, comemorar.

Pergunto por que tanta apatia e desinteresse pelo que nos cerca.

Pergunto se não incomoda ser invisibilizado, desrespeitado, desconsiderado nas necessidades mais

elementares. Pergunto até quando “cidadania de papel”.

Pergunto se o processo de desumanização a que nos submetem já nos contaminou a alma ao ponto de não nos importarmos mais, naturalizarmos a falta do que

é básico para a dignidade humana. Pergunto se reconhecemos nossos nomes na

construção da história desse país, mesmo que não estejam em placas de ruas ou praças e nem nos

livros didáticos. Pergunto-lhe, pergunto-me:

Qual é mesmo a nossa fome? Perguntando-me, lembro da imagem do menino que

aguardou o exército invasor, às portas do seu vilarejo, armado com um pedaço de pau. O general

viu aquela cena e riu. - Espera deter meu exército?

- Não. Espero apenas dizer ao senhor de que lado eu estou.

E tal qual esse menino, eu escolhi o lado da luta.

– Edna Lopes

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RESUMO

O estudo ora apresentado trata-se de uma pesquisa de mestrado em educação do PPGE/UFMT, que teve o propósito de investigar como alunos de quinto ano do ensino fundamental de uma escola da rede municipal de ensino público, localizada na cidade de Cuiabá/MT, percebem seu corpo no momento de sala de aula, quadra e pátio e as oportunidades de interações lúdicas na escola. Para tanto, a pesquisa desenvolveu-se sob uma perspectiva qualitativa, valendo-se da observação participante e entrevista semi-estruturada como instrumentos de coleta de dados, junto a quatorze alunos com média de idade de dez anos, ocorrendo no período de 18 de agosto a 21 de dezembro de 2009. Para a análise dos dados, adotei procedimentos sugeridos para a compreensão da essência do que fora investigado, o que possibilitou o encontro dos temas: “O corpo camuflado na imobilidade: efeito das regras instituídas em sala de aula”; “Transitando entre o livre e o moderado: o itinerário do corpo na Educação Física escolar” e “Momento livre... O retorno à natureza”. Nos quais verificou-se que a percepção corporal que a criança tem nos momentos escolares investigados, é delineada de acordo com as condições de seu estado de permanência em sala de aula, na aula de Educação Física, e nos momentos livres, em que busca agir e permite-se manifestar corporalmente de acordo com estas condições, mesmo quando a contra gosto. Neste sentido, a percepção do corpo referida pela criança, revelou que a maioria das propostas de atividades articuladas na escola campo deste estudo, configurou-se pelo controle excessivo sobre a corporeidade e a atividade jocosa dos alunos investigados, em que os atos que geravam satisfação para eles – os alunos, eram quase sempre confiscados pela escola. Dessa maneira, as possibilidades de interações corporais espontâneas restringiam-se aos momentos livres de atividades dirigidas por um preceptor, em situações em que não se esperava algum proveito educativo da atividade participada pelos alunos. Momento em que as crianças investigadas referiram-se ao seu corpo como corpo liberto, autônomo no âmbito escolar. Haja vista que as interações no ambiente escolar investigado apresentaram-se, em predominância, por ocasiões de contenções de movimentação corporal, vez que os alunos encontravam-se, na maior parte do tempo, em sala de aula, sob a requisição de permanecerem assentados em suas carteiras e em organização de fila, contribuindo para a percepção de um corpo refreado nas interações em sala de aula. Quanto aos momentos reservados à aula de Educação Física ocorrida no campo deste estudo, estes foram verificados como uma continuidade dos momentos livres sucedidos na escola, já que as aulas de Educação Física foram vivenciadas através da prática rotineira da mesma atividade – o jogo de futebol. Sendo esta atividade eleita e mantida, como também organizada pelos próprios alunos, assim como fazem nos intervalos de aulas: antes de seu início, no recreio e no final delas. O que proporcionou aos alunos a percepção de um corpo livre neste momento escolar. Mediante estas verificações, tornou-se possível vislumbrar que a preocupação da escola investigada centra-se na condução pedagógica em sala de aula, em que o desenvolvimento da inteligência racional e do pensar lógico é privilegiado por ela e que as possibilidades de acessos às vias corporais nas experiências escolares, não são valorizadas pelo espaço campo desta investigação. Com isso, o intento de efetivar a participação corporal em maior escala na escola, considerando seus significados, valores e funções, permanecerá quimérico enquanto o solo da pedagogia educacional só tiver espaço para as construções designadas às funções mentais. Palavras-Chave: Escola. Criança. Corpo. Lúdico.

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ABSTRACT The study presented here it is a master research in education of PPGE/UFMT, which intended to investigate how students in the fifth year of elementary education at a school in the municipal public school, located in the city of Cuiabá/MT, perceive your body within the classroom, sports court and courtyard and opportunities for play interaction at school. For this, the research was developed under a qualitative perspective, with participant observation and semi-structured interview as data collection instruments, along with fourteen students with a mean age of ten years old, occurring during the period August 18th to December 21st, 2009. For data analysis, I adopted the suggested procedures for understanding the essence of what was investigated, which allowed the meeting of the themes: "The body cloaked in immobility: the effect of the rules imposed in the classroom"; "Shifting between the free and the moderate: the itinerary of the body in School Physical Education and “Free Time... The return to nature". In which it was found that body perception that the child has at school moments investigated, is delineated according with the conditions of their state of residence in the classroom, in physical education class, and free time, it seeks to act and allowed to express bodily under these conditions, even if reluctantly. Therefore, the perception of body mentioned by the child, revealed that most of the proposed activities articulated in the school field of this study, set up by excessive control of the corporeality and playful activity students investigated, in which the acts that generated satisfaction for them - the students were often confiscated by the school. Thus, the possibility of natural body interactions were restricted to free time in activities directed by a tutor, in situations where we did not expect no avail educational activity participated by students. At the moment the investigated children referred to the body as their body free, independent into the school. Considering that the interactions within the school environment were investigated, it showed, in prevalence, for occasions of contention by body movement, because the students were in the majority of time into the classroom, under the requirement to remain seated in their chairs and organization of line, contributing to the perception of a body contained in interactions in the classroom. As the time set aside for Physical Education class held in the field of this study, these were seen as a continuation of the free moments occurred at school, since the physical education classes were experienced through the routine practice of the same activity - the soccer game. And this activity was chosen and maintained, also organized by the own students, as they do in between classes, before its start, break and at the end of them. What has given the children' perceptions of body free into this currently school. Through these investigations, it became possible to recognize that the concern school investigated focuses on the pedagogical management in the classroom, where the development of rational intelligence and logical thinking is privileged by it and the possibilities of access to routes body experiences in school, are not valued by the space field of research. So, the purpose of effecting the body participations in larger scale into the school, considering its meanings, values and functions, remains elusive while the soil of the educational pedagogy only have space for buildings designated to the mental functions. Keywords: School. Child. Body. Ludic.

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LISTA DE FIGURAS Figura 1 ― Percepção do corpo mais quieto no momento de sala de aula ........................... 101

Figura 2 ― Percepção do corpo sem se movimentar no momento de sala de aula .............. 101

Figura 3 ― Percepção do corpo mais calmo no momento de sala de aula .......................... 104

Figura 4 ― Percepção do corpo quieto no momento de sala de aula ................................... 105

Figura 5 ― Percepção do corpo quieto e confuso no momento de sala de aula .................. 105

Figura 6 ― Painel de desenhos que retrata a percepção do corpo em sala de aula............... 111

Figura 7 ― Painel de desenhos que traz o professor representado graficamente ................. 112

Figura 8 ― Ilustração do corpo na posião em pé ................................................................. 113

Figura 9 ― Ilustração do corpo na posião em pé .................................................................. 113

Figura 10 ― Percepção do corpo em contenção e em evasão no momento de sala de

aula ......................................................................................................................................... 116

Figura 11 ― Jogo de futebol. Percepção do corpo agitado na aula de Educação Física ...... 123

Figura 12 ― Jogo de futebol. Percepção do corpo mais solto na aula de Educação Física .. 124

Figura 13 ― Pulando corda. Percepção do corpo movimentando na aula de Educação

Física ....................................................................................................................................... 124

Figura 14 ― Jogo de futebol. Percepção do corpo mais divertido na aula de Educação

Física ....................................................................................................................................... 129

Figura 15 ― Jogo de futebol. Percepção do corpo livre na aula de Educação Física .......... 129

Figura 16 ― Jogando dama em sala enquanto os colegas de turma jogam futebol na aula de

Educação Física ...................................................................................................................... 132

Figura 17 ― Jogo de futebol. Pouca oportunidade na aula de Educação Física ................... 134

Figura 18 ― Jogo de futebol. Percepção do corpo mais ou menos livre na aula de

Educação ................................................................................................................................. 134

Figura 19 ― Painel com desenhos que retratam a percepção do corpo na aula de Educação

Física ....................................................................................................................................... 135

Figura 20 ― Percepção do corpo no jogo que gostaria que tivesse na aula de Educação Física

― jogo de voleibol ................................................................................................................ 137

Figura 21 ― Jogo de futebol. Percepção do corpo extrovertido na aula de Educação

Física ....................................................................................................................................... 138

Figura 22 ― Percepção do corpo durante a brincadeira de pega-pega no recreio ............... 143

Figura 23 ― Percepção do corpo enquanto joga bola no campo de terra, no recreio ........... 144

Figura 24 ― Percepção do corpo enquanto joga bolita no recreio ....................................... 144

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Figura 25 ― Percepção do corpo enquanto joga bola no pátio, no recreio........................... 145

Figura 26 ― Percepção do corpo enquanto joga amarelinha no recreio ............................... 148

Figura 27 ― Percepção do corpo enquanto joga pega-pega ................................................. 148

Figura 28 ― Percepção do corpo enquanto brinca de contar estórias no recreio ................. 149

Figura 29 ― Painel que retrata a percepção do corpo nos momentos livres ....................... 150

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 ― Apresentação dos participantes através de seu nome-código............................. 80

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SUMÁRIO

ANTES DE TUDO, CONVÉM COMEÇAR ....................................................................... 15 1. O CORPO RITUALIZADO PELA ESCOLA: QUE SEJA FEITA A VOSSA VONTADE .............................................................................................................................. 20 1.1 Era uma vez... A educação escolar na ciranda do tempo .................................................... 20 1.1.1 A Educação Física no cenário escolar: conta de novo, conta outra vez .......................... 28 1.2 À educação deu-lhe o trabalho, mas à infância a natureza confiou o lúdico ...................... 37 1.2.1 Criança: expressão natural do lúdico .............................................................................. 44 1.3 Cadê o corpo lúdico que estava aqui? A escola comeu ...................................................... 51 1.3.1 Corpo que te quero corpo ................................................................................................ 54 1.3.2 Do corpo profanado ao corpo sacralizado: a metamorfose corporal na vigência escolar que petrifica a borboleta ........................................................................................................... 62 2. CAMINHO TRILHADO PARA CHEGAR AO OBJETO DESVELADO : O LEVANTAR DAS CORTINAS ............................................................................................. 71 2.1 O ato ................................................................................................................................... 72 2.2 O cenário............................................................................................................................. 75 2.3 Os protagonistas ................................................................................................................. 79 2.4 Os coadjuvantes .................................................................................................................. 80 2.4.1 Quando o olhar se pôs em cena: observou-se .................................................................. 81 2.4.2 Para que os pensamentos chegassem ao alcance dos ouvidos: entrevistou-se ......... 83 2.5 A apreciação e o tratamento do que se viu e ouviu ............................................................ 88 3. AS PERCEPÇÕES CORPORAIS DAS CRIANÇAS NOS TRÊS MOMENTOS ESCOLARES INVESTIGADOS .......................................................................................... 91 3.1 O corpo camuflado na imobilidade: efeito das regras instituídas em sala de aula ............. 92 3.2 Transitando entre o livre e o moderado: o itinerário do corpo na Educação Física escolar ..................................................................................................................................... 122 3.3 Momento livre... O retorno à natureza.............................................................................. 142 DESENLACE DA CONTEXTURA DO CORPO PERCEBIDO NA ESCOL A: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES........................................................................................154 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 163 ANEXOS ............................................................................................................................... 170

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ANTES DE TUDO, CONVÉM COMEÇAR

O desejo por estudar interações lúdicas envolvendo crianças acompanha-me desde a

graduação, tempo aquele que considerei a temática: “O brincar da criança com câncer ― a

transcendência da dor para o prazer”, em um estudo voltado ao trabalho de conclusão do

curso de licenciatura plena em Educação Física. Desde então, venho considerando meus

estudos sobre aspectos que envolvem o brincar de crianças, estando ela enferma ou não,

estando em escolas ou nas ruas e praças ou onde sua localização puder me servir de objeto de

estudo acerca desse tema. Assim, em um segundo tema investigado, ao realizar um trabalho

monográfico para a conclusão de curso de pós-graduação ― Lato sensu, desenvolvi um

estudo intitulado: “Brincando e aprendendo ou aprendendo brincando? Uma análise do

brincar na pré-escola”, momento em que deixei o campo do estudo, propensa a retornar ao

ambiente escolar, para arregimentar algumas ideias que ficaram confusas com as disposições

internas da escola, que regem as manifestações corporais das crianças.

Situar o olhar sobre as manifestações corporais nos espaços escolares, logo de início,

exigiu-me o reconhecimento de que em todos os momentos, somos um corpo. Quando

interagimos através de nossos sentidos, seja por meio da visão ou da audição ― os sentidos

mais solicitados no maior tempo das conduções de vivências escolares, ou quando

interagimos através das funções mentais, fazemos pela condição de nossa existência que nos

caracteriza como seres corpóreos. E, mesmo que a escola exerça sobre o corpo a disciplina, o

controle de suas manifestações espontâneas, através de estratégias metodológicas

concentradas nos aspectos cognitivos que, por fim, sobrecarrega a imobilidade corporal, o

corpo está sempre presente em qualquer meio de atuação do ser humano.

Observando essa construção de corpo em unidade com o ser, para tentar compreender

as análises das relações corpo e educação, na função de esclarecer as preposições da atuação

do corpo nas propostas pedagógicas e, assim, identificar as formas de envolvimento corporal

das crianças nos momentos escolares, bem como o significado que eles representam para elas,

o estudo ora apresentado situa-se no campo das representações escolares sobre as

manifestações corporais e sobre a atividade lúdica, na perspectiva da percepção que a criança

tem de seu corpo em três diferentes momentos escolares e teve como questões de

investigação: Como a criança percebe seu corpo no momento em que está em atividade

direcionada na sala de aula, quando está em atividade direcionada na aula em quadra e quando

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está nos momentos livres de atividades direcionadas? Quais são as oportunidades de

interações lúdicas na escola?

Entendo que tais indagações apresentam-se diretamente ligadas ao universo infantil,

vez que as manifestações corporais nesta fase da vida humana, que tem sua principal

característica retratada no brincar, fazem parte da cultura da criança, que envolve-se nelas e

através delas, motivadas por aspirações naturais.

O interesse pela investigação sobre a percepção que a criança tem do seu corpo, nos

três momentos escolares traçados pela pesquisa e sobre as oportunidades lúdicas na escola,

decorreu da inquietação de compreender a atuação e a forma de envolvimento do corpo no

processo de ensino e, com isso, verificar o significado atribuído ao corpo no ambiente escolar,

de acordo com as possibilidades de atuação corporal dos alunos nas intervenções pedagógicas.

De hábito, a escola enfatiza ações que priorizam o desenvolvimento de aspectos intelectivos,

em que o processo de ensino-aprendizagem é promovido com vistas às áreas de conhecimento

instituídos da escrita e do número que, na maioria das vezes, revogam a participação das

expressões corporais neste processo.

Nesta direção, focando mais particularmente o olhar em busca de informações que

pudessem elucidar as inquietações que motivaram esta pesquisa, foram traçados os seguintes

objetivos: compreender como a criança percebe seu corpo no momento em que recebe

informações voltadas à escrita e ao número, quando está em aula de Educação Física e quando

está nos momentos livres de atividades direcionadas e verificar as oportunidades de interações

lúdicas na escola.

Com a efetivação desta investigação, pretendi perceber, de maneira mais próxima, a

rotina escolar, a fim de encontrar respostas à inquietação que motivou este estudo, partindo da

compreensão de que as propostas educacionais, que deixam as manifestações corporais e as

expressões lúdicas do lado de fora da escola ou as restringem a curto período de tempo, dos

quais os proponentes de atividades pedagógicas não esperam algum aprendizado, concebe o

aluno como sujeito passivo e receptor de conteúdos inerentes à educação escolarizada e,

sobretudo, desconsidera as situações de sua realidade e suas características de sujeito do

presente, projetando-o ao que pode vir a ser.

É neste ponto que justifica-se o intento da investigação, apresentando-se como

elemento para se repensar o processo pedagógico de maneira a incorrer transformações na

forma de se tratar o corpo nas intervenções educativas, a fim de que, dessa maneira, o corpo

possa ser materializado na cotidianidade da atuação pedagógica do professor, em maior escala

e nas diferentes disciplinas da escola, através de uma participação expansiva e ativa, como

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agente responsável pelos processos de cognição, e não como instrumento de alcance às

capacidades mentais.

Posto isso, reconhecendo que segundo Nóbrega (2005), ao refletir sobre o lugar do

corpo na educação escolar é preciso, antes de tudo, desvinculá-lo do aspecto de

instrumentalidade, para que, assim, seja possível “compreender que o corpo não é um

instrumento das práticas educativas, portanto as produções humanas são possíveis pelo fato de

sermos corpo. Ler, escrever, contar, narrar, dançar, jogar são produções do sujeito humano

que é corpo” (Ibid., p. 610).

A partir desse reconhecimento de corpo, considero importante compreender a

percepção que a criança, sujeito a quem se destinam as ações educacionais, tem de seu corpo

em momentos que os envolvimentos na escola ocorrem sob características distintas, que pode

contribuir, também, para o entendimento de como a criança assimila esses envolvimentos.

Com isso, entendo que saberes sobre as apreensões que a criança faz de sua realidade

serão favorecidos, já que, como indica Quinteiro (2002, p. 140) o motivo do pouco

conhecimento que se tem dos aspectos da infância, se deve ao fato de que “pouco se ouve e

pouco se pergunta às crianças e, ainda assim, quando isto acontece, a ‘fala’ apresenta-se solta

no texto, intacta, à margem das interpretações e análises dos pesquisadores”. E é na busca por

valorizar a “fala” da criança neste estudo, que a ela fora dado um lugar de destaque no

mesmo.

Diante disso, considero como relevante a realização de estudos que discorram sobre o

entendimento dos alunos sobre suas práticas escolares, a fim de que se possa apreender

informações sobre o que pensa e o que sente a pessoa que é inserira na aprendizagem ofertada

pela escola.

Com a realização desta investigação, não tive a intenção de superestimar o papel do

corpo em movimento e nem o seu significado para a concepção do homem em sua

integralidade, embora entenda que a integralidade do ser possa ser reforçada a partir da

movimentação corporal, nem tão pouco intencionei capacitar o professor a interagir com o

corpo e através dele em suas práticas educativas. Mas sim, com a efetivação do estudo,

pretendi fomentar discussões sobre uma participação mais ampla do corpo nas propostas

educacionais, em reconhecimento de sua importância no processo de aquisição de

conhecimento.

Por esta razão, este estudo, intitulado: “A percepção do corpo para a criança nos

momentos escolares: um estudo sobre o brincar e o estudar infantil”, atentou-se a retratar a

percepção do próprio corpo referida pela criança, no momento de sala de aula, quadra e pátio

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e para as oportunidades de interações lúdicas na escola, tomando como lócus de investigação

a realidade de uma escola da rede municipal de ensino público, localizada em Cuiabá, cidade

do estado de Mato Grosso.

A escola atendeu em suas instalações essa pesquisa, desenvolvida sob a perspectiva da

investigação qualitativa do tipo etnográfica, valendo-se dos instrumentos de observação

participante e entrevista semi-estruturada para a coleta de dados e dos direcionamentos para

análise propostos por Minayo (2006), que sugere desde uma leitura exaustiva dos dados,

perpassando por um enxugamento das categorias classificadas e indo até as categorias

temáticas, encontradas ao final do seguimento dos passos propostos para a fase de análise de

dados.

Desse modo, o estudo, que tem como enfoque principal a percepção que a criança tem

de seu corpo em três diferentes espaços da escola ― quando está em sala de aula, quando está

na quadra em aula de Educação Física e quando está nos momentos livres de atividades

direcionadas, como forma de compreender seus envolvimentos nestes momentos e o

significado que eles representam a ela e, com isso, desvendar o significado da corporeidade

em ambiente escolar, estrutura-se da seguinte maneira:

O Primeiro Capítulo aborda os pressupostos teóricos do estudo que, em seu

desdobramento e em um primeiro momento, fora feito a incursão, ainda que genericamente,

na história da estruturação da educação escolar e da Educação Física no Brasil, pertinentes a

uma reflexão aclarada sobre a herança cultural transplantada ao longo de seus percursos, após

implantação. Em seguida, é apresentada uma consideração geral sobre apontamentos teóricos

que abarcam o tema infância, na perspectiva de sua construção enquanto categoria, no

contexto histórico e são prestados apontamentos sobre as características do lúdico e seu

significado à criança. Por fim, na busca por elucidar o corpo da criança presente na escola, a

terceira seção do Primeiro Capítulo apresenta uma abordagem mais centrada sobre aspectos

teóricos que retratam o corpo como condição de existência do ser no mundo e o cercear de

suas manifestações lúdicas. E pretende descrever o corpo que é e o corpo que se torna no

momento dos acessos escolares.

Mesmo colocando-me na perspectiva do corpo em movimento, reconheço que o corpo,

em todos os seus aspectos, sofre influências do meio em que se insere e, no caso deste estudo,

reconheço que suas relações simbólicas são construídas a partir das interações escolares, que

se processam no imaginário da criança e retornam como aspecto comportamental de se pôr no

convívio social escolar, em vias de mão dupla, em que desse meio se absorve os estímulos

que, por sua vez, são devolvidos em certo modelo de comportamento.

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Dessa maneira, para a compreensão e interpretação das questões suscitadas no estudo,

a pesquisa fora desenvolvida sob um determinado referencial teórico, que ofereceu noções

sobre os elementos que interessam ao tema desta investigação. E foram os ideários teóricos

tomados neste estudo, ainda que explorados em pouca profundidade, que constituíram a fase

teórica da pesquisa.

O Segundo Capítulo é destinado à condução metodológica da pesquisa, seção em que

as informações sobre a característica da investigação, a discrição do cenário que recebeu este

estudo em seu solo, a apresentação dos informantes, a especificação dos instrumentos

utilizados para a coleta de dados e a maneira como foram tratados e analisados, encontram-se

divulgados.

No Terceiro Capítulo, as informações apreendidas na pesquisa apresentam-se

analisadas sob a forma de três categorias: “O corpo camuflado na imobilidade: efeito das

regras instituídas em sala de aula”; “Transitando entre o livre e o moderado: o itinerário do

corpo na Educação Física escolar” e “Momento livre... o retorno à natureza”, que trouxeram

contribuições valiosas à compreensão do objeto investigado e ao tecer das Considerações

Finais.

A interlocução, proporcionada com a investigação, ofereceu-me subsídios para um

olhar mais ampliado sobre o corpo da criança e as vivências lúdicas na escola, que foram

fundamentais para a compreensão das formas de envolvimentos dos alunos nas propostas

pedagógicas e de seu comportamento ao frequentar a escola ― as aulas. Compreensão esta

que considero de grande auxílio para se repensar o papel do corpo nas práticas educacionais.

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1. O CORPO RITUALIZADO PELA ESCOLA: QUE SEJA FEITA A VOSSA

VONTADE

1.1 Era uma vez... A educação escolar na ciranda do tempo

Durante muito tempo a educação fora postulada às crianças pelas interações cotidianas

com sua família e através de contatos com grupos sociais mais amplos, sendo apresentados a

elas os saberes indispensáveis à relação com a sociedade e para serem usados quando adultas.

No entanto, essa educação dava conta somente das vivencias em seu grupo social,

habilitando-as sobre as técnicas do fazer diário ― ações mecânicas para o desempenho de

alguma função laboral; valores morais e religiosos, em conformidade com a camada social

pertencente.

Porém, com a necessidade de adquirir capacidades que suprissem as exigências mais

complexas, surgidas na sociedade, ainda na Idade Média, fora necessário a estruturação de

uma educação que abarcasse as aptidões de ordem intelectual como, por exemplo, a leitura e a

escrita. Assim, surge a educação formal, com processos educativos voltados ao conhecimento

intelectual e com o propósito de educar para a assimilação de saberes especializados. A partir

de então a educação formal teve seu desenvolvimento sistêmico. Contudo, inicialmente, a

educação fora privilégio das classes sociais mais abastadas, quando ler e escrever eram

prerrogativas de poucos (MARTINEZ, 2009; PILETTI; PILETTI, 1997).

Dessa maneira, a educação escolarizada infantil difundiu-se na sociedade. Segundo

Ariès (1981), a escola na Idade Média, era reservada a um número reduzido de clérigos,

assumiu a função de preparar a criança para a vida adulta e de discipliná-la, tornando-se “um

meio de isolar cada vez mais as crianças durante um período de formação tanto moral como

intelectual, de adestrá-las, graças a uma disciplina mais autoritária, e, desse modo, separá-las

da sociedade dos adultos” (Ibid., p. 165).

Somente no final do século XIX que o ensino formal se estendeu para as mais

diferentes classes sociais, partindo da França para os demais países desenvolvidos. Entretanto,

a abrangência da educação só fora possível em decorrência da invenção da prensa tipográfica

por Johannes Gutenberg, em meados do século XV, que permitiu a propagação de

informações, conhecimentos e ideias, a tal alcance que jamais seria possível pelo fazer de

copistas. E este progresso intelectual teve investidas intensas, séculos depois, quando a

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Revolução Francesa criou a escola pública, aproveitando desse processo para divulgar

amplamente seu referencial ideológico (MARTINEZ, 2009). Desde então, a educação passou

por diversas transformações, vertentes e paradigmas.

Já no Brasil, tendo chegado por vias de Jesuítas enviados por Portugal, que

desempenharam labutas religiosas e pedagógicas, a educação sistematizada dedicou-se à

catequização com votos ao catolicismo. Sendo esta a nova política imposta por D. João III,

que enviara quatro padres, no ano de 1549, junto a Tomé de Souza, chefiados por Manoel da

Nóbrega, para o cumprimento do Regimento colonizador com fins de aculturação indígena,

incutindo-os valores espirituais e morais oriundos da nação portuguesa.

No entanto, mesmo com intuitos de catequização, os Jesuítas tiveram que promover o

ensino da leitura e escrita entre os índios, para que tivessem ênfase no seu intento ― a

conversão dos índios à fé católica, fundando, assim, várias escolas voltadas ao ensino de ler e

escrever. Momento em que também se aprendia o idioma e os costumes de Portugal, previstos

em um plano de estudo diversificado, elaborado pelo padre Manoel da Nóbrega, de forma que

atendesse diferentes interesses e capacidades. Este plano presumia o ensino de português,

seguido da doutrina cristã (PILETTI; PILETTI, 1997).

Isso fortaleceu, juntamente com a religião, a colonização no novo território

conquistado, unificando a fé e a consciência, garantindo unidade política e dominação

metropolitana. “Nessas circunstâncias, a educação na colônia assume papel de agente

colonizador” (ARANHA, 1989, p. 118). E a organização escolar brasileira fica atrelada à

política colonizadora portuguesa.

Em períodos que precedem estes intentos colonizadores, por conta do “estágio

primitivo em que se encontravam as populações indígenas, a educação não chegara a se

escolarizar. A participação direta da criança nas diferentes atividades tribais era quase que

suficiente para a formação necessária quando atingisse a idade adulta”. Ocasião em que o

lucro era o objetivo eminente dos colonizadores e o seu êxito ficava a cargo da população

colonial (RIBEIRO, 2003, p. 18).

Todavia, devido às condições dos habitantes locais, por não conseguirem produzir

algo de interesse do mercado europeu; com as possibilidades de exploração já escassa em

relação às matas costeiras de pau-brasil; as especulações sobre a possibilidade de existência

de ouro e a preocupação com a invasão do território por outra potência, levou o governo

português a substituir a colonização através da ocupação pela colonização em termos de

povoamento e cultivo da terra (Ibid.).

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Com essa nova incumbência, vieram para habitar na terra colonizada “os elementos

de pequena nobreza”, que se dispuseram a tomada dessa tarefa de organizar “a empresa

colonial”, escravizando índios e negros para o trabalho com a terra, satisfazendo “aos

interesses da burguesia mercantil portuguesa, porque possibilitaram a produção de baixo custo

e porque o escravo, enquanto mercadoria, era fonte de lucro, já que era ela (burguesia) que

transportava” (RIBEIRO, 2003, p. 20).

Neste contexto social, ainda que o primeiro plano educacional elaborado por Manoel

da Nóbrega atendesse as exigências dos Regimentos, que era de catequizar e instruir os

indígenas, houve “a necessidade de incluir os filhos dos colonos, uma vez que, naquele

instante, eram os jesuítas os únicos educadores de profissão que contavam com significativo

apoio real na colônia” (Ibid., p. 21).

Neste sentido, a instrução promovida pela educação escolarizada, antes voltada à

articulação entre interesses metropolitanos e atividades coloniais, torna-se conveniente e de

interesse da pequena nobreza e seus descendentes, vez que a organização e plano de estudo

jesuíticos abordam especificamente elementos da cultura européia. Isso demonstra, se não um

desinteresse, “a constatação da impossibilidade de ‘instruir’ também o índio”. O que vai se

evidenciando é que o plano educacional voltado ao atendimento do Regimento ditado por D.

João III estava cada vez mais distante da prática (RIBEIRO, 2003, p. 21).

A instrução aplicava-se às camadas dirigentes ― colonizadores e seus descendentes,

restando ao índio somente a catequização. “Era necessário centrar pessoal e recursos em

‘pontos estratégicos’, já que aqueles eram reduzidos. E tais ‘pontos’ eram os filhos dos

colonos em detrimento do índio, os futuros sacerdotes em detrimento do leigo, justificam os

religiosos” (Ibid., p. 22).

Com a educação colonial jesuítica, que objetivava a pregação da fé católica, pode-se

atender aos interesses da Companhia de Jesus e dos colonizadores, mediante ao ensino de

valores religiosos, em que fora conquistado mais adeptos ao catolicismo, e pode-se obter

maior fonte de renda através do aproveitamento de mão-de-obra, facilitada pela submissão

dos índios, que iam tornando-se mais dóceis. Visto que a maneira como fomos colonizados,

através de práticas fortemente exploratórias e escravistas, com o sentido de nossa colonização

amplamente comercial, não tinha o propósito de se estabelecer aqui uma civilização, restando

ao povo colonizado a autoridade externa, extremamente dominadora, regida pela opressão e

aculturação. Assim, não seriam possíveis vivências comunitárias, tão pouco consciência livre

e criadora. Apregoando certo comodismo e quietude, como consequência de uma política de

colonização autoritária, nutrindo-nos de vivências acríticas (FREIRE, 1999; RIBEIRO, 2003).

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Dessa maneira, a educação manual-profissional restringia-se aos negros e índios e o

trabalho intelectual era destinado à elite, seguindo uma ordem católica, mesmo que os

educandos não tivessem nenhuma vocação religiosa. E com essa dominação do campo

educacional e religioso, “os colégios jesuíticos foram o instrumento de formação da elite

colonial” (RIBEIRO, 2003, p. 23).

Contribuindo a esta formação, em um momento em que Portugal vê-se em decadência

econômica, perdendo em dominações asiáticas, volta-se para a colônia brasileira com intuito

de tirar o maior proveito possível. Sabendo que era preciso aumentar recursos materiais e

humanos e discriminar “o nascido na colônia e o nascido na metrópole”. Com isso, dão-se as

distribuições de cargos, nas quais as melhores posições foram atribuídas somente aos

metropolitanos (RIBEIRO, 2003, p. 31).

Concomitante a ampliação do aparelho administrativo, houve um “aumento de funções

de categoria inferior”, que “passou a exigir um pessoal com um preparo elementar. As

técnicas de leitura e escrita se fazem necessárias, surgindo, com isso, a instrução primária

dada na escola, que antes cabia à família” (Ibid. loc. cit.). Porquanto, pode-se considerar que

“a escola teria nascido por necessidade de divisão do trabalho, no formar e dirigir certos

indivíduos para fins específicos” (LOURENÇO FILHO, 2002, p. 36).

Este foi um período em que o Brasil viveu um descaso com a educação pública, pois a

educação era voltada à elite, à população indígena fora restrito a educação elementar.

Somente a partir de 1759, com a expulsão dos Jesuítas, Marquês de Pombal inicia a

disposição da educação pública, porém, sem muito sucesso por conta dos vestígios

educacionais jesuítico e o emprego de pessoas comuns, sem preparo.

Com a chegada da família real ao Brasil, a educação é fortalecida com uma série de

criações como a Imprensa Régia; Biblioteca Pública; Museu Nacional; jornal; revista, entre

outros. “Quanto ao campo educacional propriamente dito, são criados cursos por ser preciso o

preparo de pessoal mais diversificado”. No entanto, como a base social no Brasil era

escravocrata, o acesso à educação continuou restrito aos filhos dos “homens livres”. Somente

o nível elementar de educação fora monarquicamente exigido quanto à ampliação e

popularização (RIBEIRO, 2003, p. 41).

Com a crise econômica vivida no Brasil durante a primeira metade do século XIX,

enfrentou-se, nesse período, a falta de recursos até mesmo para a necessária reorganização

escolar que, pela gravidade da situação financeira nacional, a educação escolarizada não era

interesse prioritário. Incorrendo graves deficiências quantitativas e qualitativas. Em

consequência de todo esse descaso sofrido pela educação das massas, no período colonial, a

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educação brasileira sofreu um desenvolvimento precário e tardio. Apenas com o aumento da

demanda de escolarização, a partir do século XX, que a escola passa a se expandir no país,

contudo, sem uma distribuição racional (LARROYO, 1974).

Outrora, na primeira década republicana, surge o ensino graduado no estado de São

Paulo, atendendo a escolarização de massa e a necessidade de difusão da educação popular,

com organização “do ensino mais racionalizado e padronizado com vistas a atender um

grande número de crianças”. Ao implantar esse modelo de educação de escola primária,

“políticos, intelectuais e educadores paulistas almejavam modernizar a educação e elevar o

país ao patamar dos países mais desenvolvidos”. Para tanto, basearam-se no método intuitivo

para o ensino dos conteúdos escolares tomando como exemplo a escola primária

estadunidense (SOUZA, 1998, p. 15).

Outra influência oriunda do transplantar das experiências que os Estados Unidos

haviam desenvolvido e que refletiu nas escolas públicas brasileiras, especialmente em São

Paulo, quando na organização escolar da primeira república, foi o reconhecimento da criança

como “um ser ativo”, em consideração a “necessidade de respeitar a ordem natural do seu

crescimento, de desenvolver os sentidos, capacitando-a a descobrir as coisas por si mesma e,

em consequência, o preparo do professor” como situação indispensável (REIS FILHO, 1974

apud RIBEIRO, 2003, p. 68).

Neste contexto educacional, a “escola primária ficava organizada em duas categorias,

isto é, de 1º grau para crianças de 7 a 13 anos e de 2º grau para crianças de 13 a 15 anos.

Contudo, essa visão de soluções para os problemas educacionais baseadas em determinados

modelos, não foi eficaz, vez que os problemas do dia-a-dia iam se agravando, com tentativas

improvisadas e ineficientes de saná-los pela escola, professores e alunos. Desta maneira,

ocorre o descrédito da teoria estrangeira, sendo esta retirada da prática. Ocorrendo um

aumento no problema de analfabetismo e exclusão de mais da metade da população com 15

anos de idade, da escola (Ibid., p. 74).

Assim, as características da estrutura escolar brasileira apresentam pontos que indicam

as dificuldades no “encaminhamento minimamente satisfatório dos problemas centrais

apresentados pela organização escolar”, e o Brasil enfrenta crise por altos índices de

analfabetismo e evasão (RIBEIRO, 2003, p. 197).

Por conta das novas organizações sociais, que provocaram mudanças políticas, com a

alteração do regime monárquico para o republicano, que ocorre no final do século XIX, em

que o trabalhador deixa de ser escravo e os membros da sociedade deixam de ser súditos e

passam a ser cidadãos, a alfabetização e escolarização regular, como um ideal de cidadania,

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passa a ser dever do Estado republicano. E para atender esse ideal republicano, ocorre pressão

política no sentido de ampliação da rede escolar. Com isso, ocorrem alterações significativas,

muito mais no sentido quantitativo do que qualitativo, na organização escolar brasileira.

(Ibid.).

Vale mencionar que as considerações da autora em referência, refletem a necessidade

de se analisar a raiz econômica, compreendendo os elementos econômico-sociais que

apontam para a adaptação da sociedade brasileira às exigências dos interesses do capitalismo

internacional, que representam um obstáculo para a construção da organização escolar, por

beneficiar somente uma parcela mínima da população brasileira. O que indica o tipo de

estrutura econômica, política e social em que a educação se desenvolve (RIBEIRO, 2003).

Até porque, ainda nos dias de hoje, muito se questiona sobre a democratização e a

qualidade do ensino no Brasil, vez que, mesmo com as modificações que deram acesso das

massas à educação, a qualidade não manteve-se a mesma da qual era oferecida no ensino de

acesso restrito. Assim, “o princípio da universalização foi atendido, mas a massificação do

ingresso não encontrou a mesma equivalência da qualidade antes elitizada. [...] a democracia

exige dos governantes um ensino de qualidade para as camadas populares” (MARTINEZ,

2009, p. 69).

Isso porque a educação de um povo configura-se em função necessária e em um

processo social abrangente. “Não é um fato isolado, uma prática que se possa pôr à margem

da vida ou acima dela”. E esse processo tem em sua organização uma parcela de

intencionalidade do homem, sendo influenciado pelos desígnios que ele acredita ser melhor

“dentro dos quadros da vida coletiva do momento”. No entanto, esses desígnios não devem se

afastar da realidade, pois se assim for, eles colocam em risco o desenvolvimento de grupos

sociais. Mas o que ocorre, em suas manifestações, é que “entre os fins da educação escolar

brasileira e as necessidades reais da vida da Nação tem havido, é inegável, um desajustamento

provindo da permanência de velhos ideais, a que se pretendeu submeter à mudança social, mal

pressentida” (LOURENÇO FILHO, 2002, p. 30).

Com isso, fica difícil abarcar ideias de educação de massa como a indicada por Freire

(1999, p. 44-47), sendo “algo absolutamente fundamental entre nós”. Na perspectiva do autor,

é preciso considerar ideais que promovam uma sociedade formada “por homem-sujeito”.

Entendendo na educação de massa, uma “educação que, desvestida da roupagem alienada e

alienante, seja uma força de mudança e de libertação”. Libertação das imposições de um

grupo dominante, a Elite, dona “de terra e de gente”. E, assim, entender no homem um “ser de

relações e não só de contatos” e, ainda, que ele “não apenas está no mundo, mas com o

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mundo”. Com isso, pensar em uma educação das massas que promova a auto-reflexão,

levando a tomada de consciência, “que resultará sua inserção na História, não mais como

espectadoras, mas como figurantes e autoras”, assim como intencionou Freire.

Essa análise da história da educação escolar, necessariamente sinóptica, possibilita

entender a herança cultural transplantada ao longo de sua trajetória. Tendo visto que, através

de suas relações com a Igreja, a escola pública traz como legado do Império a ideia de

sacralidade, legitimada pela cultura que devia difundir.

Dessa forma, a escola se insere na sociedade como “local à parte”, diferente de outras

instituições, com “tempo próprio, características, rituais e símbolos peculiares” (SOUZA,

1999, p. 79). Instituindo-se como órgão de instrução, principalmente de ordem religiosa,

político e profissional, em que até mesmo sua estrutura física teve que atender a um projeto

arquitetônico que a distinguisse de outras instituições (SOUZA, 1998).

Por conseguinte, no final do século XIX, e em coincidência com “os projetos

republicanos de difusão da educação popular”, políticos e educadores tomam como

“indispensável à existência de casas escolares para a educação de crianças, isto é, passaram a

advogar a necessidade de espaços edificados expressamente para o serviço escolar”.

Destinando, assim, atenção para um lugar específico onde pudesse vir a ocorrer ações

educativas. Contudo, “a arquitetura escolar haveria, pois, de simbolizar as finalidades sociais,

morais e cívicas da escola pública. O lugar de formação do cidadão republicano teria que ser

percebido e compreendido como tal” (Ibid., p. 122-124). Desde então, a escola, pensada pela

imagem de uma estrutura arquitetônica distinta de outros espaços, foi designada a realizar sua

função educativa dentro de quatro paredes.

Todavia, o que aqui interessa inferir é que a história da educação escolar brasileira, em

seus sentidos primeiros, é também a história da aculturação, da subordinação, da

inferioridade, cominados aos nativos desta terra, que se submeteram ao início do processo de

escolarização no Brasil-colônia. E que nos fizeram oriundos de um sistema educacional

socialmente discriminante, que teve sua organização cotidiana escolar vinculada a ações

educativas implicadas à prática religiosa e a difusão das tradições culturais portuguesas.

Assim, a educação fora aqui implantada tendo sua formação ideológica impressa pela

classe dominante, com acesso dos bem-sucedidos, método de ensino disciplinador e a indução

a submissão total de escravos e trabalhadores braçais, que ficavam à margem do sistema

controlado por nossos colonizadores. Como também, nossa história educacional, em grande

parte, é a documentação de críticas, de ocorrências que incitaram modificações, seja para

correção ou substituição de alguma práxis educativa.

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Mas o meu vasculhar sobre a história da educação não para por aqui. Retomando do

ponto das investidas de mudanças nos modelos educacionais, com vistas a adesão das

camadas populares, o que pôde-se perceber foi uma renovação dos problemas suscitados na

escola, como, por exemplo, o racionamento do tempo escolar, levando a diminuição do

período diário em que o aluno permanecia na escola.

Pois, se não havia recursos para conferir a todos uma educação primária essencial, esta

deveria ser simplificada a tal ponto que atendesse a um número maior de pessoas. A

simplificação atingiu os mais abrangentes aspectos, desde a alfabetização até os turnos

escolares. Porquanto, pensou-se a democratização da educação, adequando-a as condições

possíveis de oferta, de maneira que tornou simples o propósito de quantidade e,

consequentemente, simplificou a qualidade. O efeito de toda essa simplificação quase pôs fim

na instituição e reduziu os efeitos da escola sobre a alfabetização (TEIXEIRA, 1959).

Porém, a persistência do fracasso escolar continuou, e continua, a motivar reformas e

análises da estrutura da instituição, não só quanto ao tempo de escola, como igualmente ao

tempo da escola, incitando questionamentos, inclusive, sobre a organização e gerência do

tempo e do espaço escolar, que foram muito pouco considerados em boa parte do século.

Sendo, estas reformas, amparadas por estudos neurocientíficos desenvolvidos nas últimas

décadas, que redimensionaram os processos de aprendizagem do ser humano, indicando que o

fator tempo, organização espacial e interações do professor, adequadas ao tempo na escola,

interferem significativamente nos processos de aprendizagem (LIMA, 2002).

No entanto, não houve e nem tem havido relevantes resultados na empreitada por

melhorias na aprendizagem dos alunos. O que ocorre é a adaptação passiva frente à

inadequação do tempo instituído na escola, que sempre apresenta-se como escasso no

atendimento das necessidades inerentes ao ofertar e ao apreender dos saberes educacionais.

“A temporalidade da cultura escolar vigente está de tal forma internalizada, que o tempo, tal

como ele está organizado, não é sequer lembrado nas discussões pedagógicas e nunca é

seriamente questionado”. Apresentando-se como elemento oficial documentado e previsto

como uma das tarefas mais importante a ser cumprida pela administração escolar (Ibid., p. 4).

Dessa maneira, em sua versão mais recente, a escola é orientada por anos letivos, com

o tempo dividido e referenciado em anos, estruturando, assim, seu calendário escolar. Em que

o tempo de escolarização é parcelado em anos, recebendo, cada ano, uma quantidade de dias

letivos ― com a introdução atual de no mínimo 200 dias letivos cada ano escolar, que pode

ter ocasionalmente sua quantidade modificada. “A escola orienta seus ritos de passagem,

também, pelo término de um ano cronológico”, e como o estágio de desenvolvimento

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psicológico é classificado cronologicamente, os anos escolares também os são. Já o tempo

cotidiano escolar, este é dividido rigidamente em aulas com duração entre 40 a 50 minutos

cada. Exigindo adaptações de conteúdos e matérias, de forma que caibam neste tempo

estabelecido para cada aula (LIMA, 2002, p. 7).

O que implicou na adequação de todas as interações didáticas e simplificação das

informações, de maneira que cumprissem o tempo previsto para ministrar cada matéria. E

mais uma vez esbarrou-se na desqualificação da aprendizagem do aluno em mais uma cópia

de modelo de educação internacional, só que agora europeu, mas precisamente o francês da

escola do século XIX, em que, de acordo com Teixeira (1957, p. 32), “o nosso sistema escolar

é uma transplantação infeliz do da França, com a diferença de que não consegue ser eficaz

nem no cultivo da inteligência especulativa, para não se falar dos outros demais aspectos da

inteligência, igualmente essenciais”.

E foi também na França que nasceu a educação por ciclos de formação humana, a

partir de uma proposta iniciada por Wallon no Plano Langevin, designando-se à “reconstrução

democrática da França, após a II Grande Guerra Mundial. Através de uma ruptura com a

escolaridade clássica de transmissão enciclopédica de conhecimentos”. A proposta de Wallon

foi a de “abertura à formação do homem integrado na humanidade, através de uma educação

nacional”, visionando servir aos interesses da comunidade e de seus membros, justificando-se,

de acordo com os propósitos de Wallon, “pelo fato de que a educação deve ser adaptada ao

Homem e não aos interesses particulares ou transitórios da economia, política, nacional ou

internacional, das ideologias arraigadas em preconceitos, nacionalidades ou culturas”

(MERANI, 1969 apud LIMA, 2002, p. 11).

Compreendendo a uma das formas de organização escolar no país, em substituição ao

sistema seriado de algumas escolas nacionais, o regime de ciclos chega ao Brasil por vias de

discussões acerca da promoção automática, promovidas pelos elevados índices de reprovações

na escola primária brasileira, tendo a introdução dos ciclos no ensino fundamental efetivado

em vários estados na década de 1960 e 1970, na tentativa de reverter o quadro de repetência e

evasão, voltada à concepção de aprendizagem e desenvolvimento humano, entendendo que o

ato de aprender engloba várias funções psicológicas (Ibid.).

Assim, conforme o art. 23ª da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de

1996, a organização da educação básica pode ser efetuada em “séries anuais, períodos

semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, com base

na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre

que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar”.

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Inserida nesse movimento de adequações, a última grande orientação para

reorganização do tempo escolar foi a ampliação do ensino fundamental para nove anos. Um

ano a mais referente ao tempo obrigatório do ensino básico estabelecido em 1971. A

ampliação do ensino obrigatório para nove anos foi acenada em 1996, assumiu a condição de

meta da educação nacional em 2001 e vigorou-se na Lei n°11.274/2006 que implica na

inclusão da criança no ensino obrigatório aos seis anos de idade. Nesta nova proposta de

ampliação, o ensino fundamental fica organizado em duas etapas: constituída por cinco anos a

primeira ― que tem como público inscrito crianças de 6 a 10 anos de idade; e a segunda etapa

fica composta por quatro anos finais ― voltados às crianças de 11 a 14 anos de idade.

Em suas duas intenções, o ensino fundamental de nove anos é proposto com o intuito

de “oferecer maiores oportunidades de aprendizagem no período da escolarização obrigatória

e assegurar que, ingressando mais cedo no sistema de ensino, as crianças prossigam nos

estudos, alcançando maior nível de escolaridade”. Com o ingresso da criança com seis anos

de idade no ensino fundamental, espera-se alcançar mudanças na estrutura e na cultura

escolar, de maneira que sejam repensadas as formas de envolvimento pedagógico, ambiente,

espaço, tempo, material, conteúdo e avaliação para melhor acolhida dessa nova faixa etária

(MEC; SEB; DPE; COEF, 2004, p. 14).

Até aqui, o que pretendi com essa incursão na história da educação escolar, foi buscar

o entendimento dos processos pelo qual a educação fora submetida até chegar ao estado atual,

na tentativa de iluminar os propósitos que motivaram todas as mudanças acerca da oferta

educacional escolar e, com isso, lançar luz sobre o retrato de uma organização educacional

com o predomínio da racionalidade, que continua a reforçar as atividades escolares em uma

série de operações intelectuais, em que as necessidades integrais humanas foram mal

pressentidas.

Desta maneira, ainda que sucintamente, pôde-se analisar parte da história do

funcionamento da educação e o fracionamento do tempo escolar em seus traços iniciais e,

ainda, refletir sobre os percalços enfrentados em seu rumo à busca por qualidade (ou por

massificação escolar?), cujos investimentos foram divulgados sob o slogan de inovadores,

democratizantes, mas que, em seu desempenho, a educação escolar ainda apresenta muita

dificuldade em garantir o mínimo que seja de produção de conhecimento aos alunos, que

encontram-se inseridos em um plano educacional que pensou na quantidade e perdeu de vista

a qualidade da promoção de uma educação que esteja comprometida com questões inerentes à

transformação social, que seja capaz de primar, assim como alude Mariani (2010, p. 29), “pela

formação do sujeito livre e autônomo, [...] capacitando-o para assumir-se como sujeito

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histórico engajado no exercício pleno da cidadania”, pautando-se pelo compromisso político,

ético e estético de modificações da realidade social do aluno.

Assim, essa visita ao passado fez-se necessária para que pudessem ser conhecidas as

perspectivas educacionais clássicas que orientam a educação contemporânea, vencendo a

barreira do tempo e se fazendo presente no cenário educativo atual, vez que a realidade não se

deve ao acaso. Sabendo que não foram muitas as mudanças que ocorrerem de lá pra cá, nem

tão pouco expressivas, no sentido da função instrutiva da escola e em promoção da cidadania.

Vez que o aluno ainda é colocado como objeto do conhecimento.

1.1.1 A Educação Física no cenário escolar: conta de novo, conta outra vez...

Como esta investigação buscou compreender a percepção do corpo para crianças nos

espaços escolares, percebo como fundamental tentar desvelar algumas, dentre as diversas,

questões tangentes a esta temática. Dado que as influências de todos os processos inerentes

aos espaços escolares, como o campo das ideias, dos valores e das práticas educacionais,

podem refletir no comportamento da criança e, contudo, em como ela percebe seu corpo,

quando inserida nesse meio institucional. Posto isso, é possível afirmar que essa percepção

não ocorre de forma isolada, mas sim, de acordo com as interações participadas na escola.

E sendo a Educação Física a área do conhecimento escolar que tem como prática

institucionalizada atividades que, por excelência, envolvem o corpo em movimento, e que se

integra na proposta pedagógica escolar e é componente curricular da educação básica, ela não

poderia ficar de fora dessa investigação. Porquanto, busquei apreender os traços históricos

também da Educação Física, desde a sua implantação na escola, no intento de verificar os

propósitos de sua implantação/implementação e como o seu plano educacional foi concebido

quanto ao trato da atividade que, mais de perto, coloca o corpo em evidência.

Expressão surgida em obras de filósofos no século XVIII, a Educação Física é incluída

nos planos educacionais, somando-se à educação intelectual e moral, como proposta de

promover a educação integral da criança e do jovem, auxiliando em um processo educacional

que concebesse o corpo, a mente e o espírito como forma de desenvolvimento integral da

personalidade (BETTI; ZULIANI, 2002).

Em seu traço inicial, a Educação Física é proposta em contexto educacional mais

amplo a partir do final século XIX e início do século XX. De acordo com Castellani Filho

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(1988), ao longo de sua história, a Educação Física representou diversos papéis que tinham

significados concernentes à época em que eram encenados.

Em consonância ao período do Império até o início do período da República, a

Educação Física foi implantada e sistematizada sob influências das instituições militares e da

categoria profissional dos médicos que, juntas, incumbiram-se de organizar a Educação Física

adjacente a uma proposta de educação do físico, visionando a saúde e a força corporal. Dessa

maneira, desde o século XIX a Educação Física brasileira é tida como considerável prática

“para o forjar daquele indivíduo ‘forte’, ‘saudável’, indispensável à implementação do

processo de desenvolvimento do país que, saindo de sua condição de colônia portuguesa, no

início da segunda década daquele século, buscava construir seu próprio modo de vida” (Ibid.,

p. 39).

Sob esse reflexo, a Educação Física fora introduzida nas escolas com o apoio dos

educadores que coligaram-se às ações higienistas, pautados pela eugenia da raça, saúde

corporal e força física. Mas a introdução da Educação Física, enquanto meio educacional,

enfrentou resistências por parte do grupo dominante do período colonial, sustentadores da

ordem social escravocrata, que desprezavam a Educação Física por associá-la ao trabalho

manual, físico, sem nenhum mérito frente ao desempenho intelectual ― afeto à classe

dominante que atribuía à atividade física aos escravos. E se a introdução de ginástica nos

colégios ― local em que se ofertava instrução aos filhos da elite, causava contrariedade

quando ministrada a alunos do sexo masculino, era repugnada quando intencionada ao sexo

feminino, de maneira que as meninas eram proibidas por seus pais de praticarem Educação

Física, mesmo que, com isso, viessem a perder o ano escolar e a carreira (CASTELLANI

FILHO, 1988).

Mesmo com tanta resistência, os esforços para introduzir a Educação Física na grade

curricular nas escolas persistiram e contaram com o apoio do Parecer de Rui Barbosa,

pronunciado em 12 de setembro de 1882, na Câmara dos Deputados, referente ao “Projeto de

número 224, denominado ‘Reforma do Ensino Primário e várias Instituições Pública’”, em

que a Educação Física recebeu especial atenção neste pronunciamento, momento em fora

sugerido a

instituição de uma sessão especial de Ginástica em escolas normal (inciso primeiro) até a equiparação, em categorias e autoridade, dos professores de Ginástica aos de todas as outras disciplinas (inciso quarto), passando pela proposta de inclusão da Ginástica como matéria de estudo, em horas distintas do recreio e depois das aulas (Ibid., p. 47-48).

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No entanto, ao mesmo tempo em que o posicionamento de Rui Barbosa defendia a

admissão escolar da Educação Física no Brasil, ele também reforçava a visão dualista de

homem, quando destinou as ações particulares ao mundo corpóreo ao ofício das ações do

campo intelectual. Referindo-se sobre a relação corpo-mente em proposta ao componente

corpóreo fortalecido e saudável à melhoria das produções mentais.

E em seu Parecer, Rui também considerava que um homem forte refletia em um povo

e uma nação forte, dessa maneira, apregoou a prática de ginástica com o propósito de incutir

hábitos de higiene a fim de que a criança pudesse resistir à lassidão da jornada escolar e,

ainda, proferiu que as medidas propostas visavam “desenvolver na criança o quantum de

vigor físico essencial ao equilíbrio da vida humana, à felicidade da alma, à prevenção da

Pátria e a dignidade da espécie” (QUEIRÓZ, 1942, p. 65 apud CASTELLANI FILHO, 1988,

p. 53).

Só mais tarde, com as reformas educacionais de 1920 e 1928, a Educação Física veio a

ser contemplada como componente curricular do ensino primário e secundário, fazendo parte

dos programas de ensino não mais como matéria facultativa, mas sim obrigatória. Entendendo

como incabível aprimorar apenas o cérebro em prejuízo ao restante do organismo (Ibid.).

Nesta nova orientação da Educação Física, cabia ao professor “dirigir, orientar os

exercícios de modo que influam enérgica e eficazmente sobre cada organismo, ordená-lo em

série gradual, harmonizá-los com o período de evolução orgânica, incutindo o prazer ou, ao

menos, evitando o tédio” e, ainda, para efeito de registro sobre os benefícios dos exercícios

físicos, cabia ao professor utilizar de todos os métodos de mensurações corporais possíveis

para constatar os resultados de seu ensino (CASTELLANI FILHO, 1988, p. 76).

Todavia, sem nenhuma reflexão crítica sobre o conjunto de ideias abarcadas pela

Educação Física, nem mesmo sobre o seu propósito educacional, esta prática pedagógica foi

se desenvolvendo nas escolas, desde o tempo do Império, sob a instância das elites

econômicas e sociais, que influenciaram na organização da política educacional e no ministrar

dessa disciplina (BOLINO, 2004).

Desde então, as atividades corporais desenvolvidas na escola, pertinentes ao final do

século XIX e início do século XX, manifestas através de jogos, ginásticas e dança, foram

desenvolvidas de acordo com as perspectivas sociais, econômicas e polícias estabelecidas

neste período. “Exigiam-se homens fortes, saudáveis, dinâmicos e paradoxalmente homens

adestrados, obedientes, alienados, adequados para suprirem as necessidades e os desafios que

o contexto impunha” (Ibid., p. 3).

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Na incumbência de adequar o corpo do trabalhador brasileiro ao modo de produção

capitalista na década de trinta e para atender a demanda de prestação de um trabalho eficiente

à nova ordem de produção, fora necessário criar um corpo disciplinado e que atendesse ao

modelo econômico que estava se instalando no país. Para tanto, sacralizou-se o corpo,

tornando-o objeto distinto do sujeito, produto do discurso ideológico da classe dominante.

Nesta perspectiva, a Educação Física fora entendida como elemento apropriado para a criação

desse corpo cujo significado mudou de acordo como os interesses e o valor que determinado

momento social exerceu sobre ele. Influenciando nos padrões de comportamento do indivíduo

(GRANDO, 1996).

Dessa maneira, a Educação Física recebeu estímulos que lhe incumbiu de adestrar

fisicamente o homem para, em um primeiro sentido, assegurar a defesa da Pátria e, em um

segundo instante, garantir as ações de industrialização implantadas no Brasil (CASTELLANI

FILHO, 1988).

Com o imperativo de preparar o homem para atender a demanda da nova ordem

industrial instalada no país, a educação e a Educação Física, serviram de instrumento de

controle e adequação na medida em que reportavam a ideologia da ordem dominante. E isso

não dependeu unicamente do desejo do professor ou do aluno, mas teve como indicativo

principal o reflexo sócio-político-econômico do país. Dessa maneira,

No caso da escola, trata-se de uma instituição produto da própria sociedade onde ela funciona. Algumas vezes ela pode até desejar formar novos valores e padrões que ajudem na transformação da sociedade, mas sempre que der passos nesse sentido estará de certo modo, pregando ou promovendo a conspiração, a subversão, a revolução. E toda vez que isso ocorrer, estará sofrendo pressões de forças sociais para não ser o que deseja. A escola é, em grande escala, aquilo que as forças dominantes da sociedade desejam que ela seja. No sentido oficial, digamos assim, uma de suas funções fundamentais é manter o controle social através da estabilidade e do ajustamento. Qualquer pressão na direção contrária será apropriadamente combatida no processo da dinâmica social (MEDINA, 1990a, p. 18-19).

Neste particular sistema de reprodução social, em que a escola ancora-se em

pressupostos úteis ao artifício para uma conduta primada socialmente, Castellani Filho

apresenta a ideia de educação com o propósito de manipulação, no pronunciamento de

Francisco Campos, autor da Carta Magna de 37, onde é declarado que

A Educação não tem seu fim em si mesma; é um processo destinado a servir a certos valores e pressupõe, portanto, a existência de valores sobre alguns dos quais a discussão não pode ser admitida. A liberdade de pensamento e de ensino não pode ser confundida com a ausência de fins sociais postulados à Educação a não ser que a sociedade humana fosse confundida com uma academia de anarquistas reduzidos a

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uma vida puramente intelectual e discursiva (SILVA, 1980, p. 25 apud CASTELLANI FILHO, 1988, p. 83).

Considerando o exposto acima, a maior e fundamental função atribuída à escola é a de

preparar o aluno para atuar de acordo com a pretensão social, onde não há espaço para

análises reflexivas, não há motivação para criticidade. Qualquer outra atuação escolar, que

fuja ao desígnio utilitarista com vista ao sistema econômico, seria como uma ocupação de

tempo sem valor. Tais pontos de atenção, em que mira-se a escola, refletem como aparelhos

de dominação onde se lapida o corpo da criança.

No tocante à Educação Física, a sua relação com o corpo pautava-se em prepará-lo

para ser disciplinado, capacitado e submisso, com a pretensão de torná-lo útil e reforçar a

mão-de-obra, moldando-o de acordo com a ideologia da classe que detinha o capital. Dessa

maneira, a Educação Física serviu de dispositivo para se alcançar o comportamento social que

se buscava, para o aprimoramento físico e manutenção da raça, para proteção da pátria e a

capacitação para o trabalho industrial (GRANDO, 1996).

Sob esta ótica, o corpo na Educação Física perpassou da área biológica, sem nenhuma

referência a qualquer conhecimento sociocultural ou indício de prática com atenção às

relações humanas, restringindo-se a um aglomerado de sistemas, inserido em uma dinâmica

utilitarista em que o corpo deve ser sustentáculo de uma estrutura capitalista, oprimido por um

sistema disciplinar que serviu de controle e anulação de comportamentos indesejáveis, em

cumprimento de uma padronização de conduta adequada ao novo processo de trabalho. Dessa

maneira, a Educação Física manteve-se presa a uma compreensão de corpo limitada à aptidão

física, amarrada aos padrões sociais de uma época, cuja presença escolar foi almejada para a

empreitada de tornar o corpo vigoroso, exigência da nova civilização.

Durante muitos anos a Educação Física permaneceu sob a faceta de despertar,

desenvolver e aprimorar a força física do educando, salutar à educação nacional. Tendo sido

incorporada e compreendida no currículo escolar como matéria destituída da necessidade de

reflexão teórica, caracterizada pelo “fazer-por-fazer”, donde não se reconheceu em sua prática

“um saber que lhe é próprio” e nenhum mérito lhe foi atribuído quanto ao auxílio à formação

integral do aluno. A ela, aplicou-se a condição de “mera experiência limitada em si mesma”,

isenta de meios que sistematizassem e levassem a compreensão de algum conhecimento.

“Como tal, faz reforçar a percepção da Educação Física acoplada, mecanicamente, à

‘educação do físico’, pautada numa compreensão de Saúde de índole bio-fisiológica [...]”.

Que encontrou apoio em outra vertente, na qual também externou-se a Educação Física no

Brasil, caracterizada por “questões afetas à ‘performance esportiva’, simulacro da Educação

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Física, da ordem da produtividade, eficiência e eficácia inerentes ao modelo de sociedade no

qual, a brasileira, encontra identificação” (CASTELLANI FILHO, 1988, p. 108-109).

Por conseguinte, o esporte ocupou o lugar da ginástica nas escolas, mas manteve-se na

mesma direção que ela, ou seja, na busca pelo melhor rendimento corporal na tangência de

máximo desempenho produtivo por vias da aptidão física do homem, insistindo em uma

educação do físico. Contudo, mesmo inserida em um processo de esportivização, Santin

(2003, p. 129) refere que “de qualquer maneira, pela enorme plasticidade das atividades

esportivas, abria-se um campo de autonomia e de criatividade”.

Mas foi a partir do convocar para compreensão do homem como uma realidade

corporal, ecoado pela expressão de “ser um corpo” em substituição de “ter um corpo”, que a

Educação Física começa a ter espaço para transformações e conquista de uma nova

identidade. Dessa maneira, “a voz literal da expressão ‘educação física’ parecia, num primeiro

momento, convocar, inevitavelmente, para o desenvolvimento de uma pedagogia específica”

(Ibid., p. 129).

Assim, o aspecto educacional da Educação Física, a partir de seu ganho de maior

visibilidade, anda em passos decisivos. E no curso por considerar o aluno em sua

integralidade, a Educação Física, através de estudos que agregaram as dimensões social,

psicológicas e cognitivas, para além da área biológica, decorrentes da década de 90, teve que

“repensar as suas relações com a pessoa humana, especialmente naquilo que se refere à

exploração das potencialidades físicas em proveito de resultados, que não beneficiam em nada

a integridade e o desenvolvimento dos indivíduos” (SANTIN, 2003, p. 139).

Porquanto, é necessário estabelecer uma interlocução plural sobre a Educação Física

como prática educacional na escola, criada a custa de reflexões acerca da corporeidade

humana, representada por todo o conjunto de relações em que se insere. Assim como

recomenda Medina (1990a, p. 25)

A Educação Física, por exemplo, enquanto área do conhecimento e aspecto da Educação envolvida com o movimento humano, não pode se alienar em suas especificidades motoras, perdendo de vista a sua ação pedagógica (e política) de apoio e colaboração às transformações sociais. Todos os profissionais comprometidos com uma Educação Física autêntica precisam descobrir e revelar o enorme potencial educativo que se esconde em suas práticas. Qualquer técnica corporal que se apresente apenas como modelo, tende à alienação, pois deixa de lado o manancial criativo da práxis, fator fundamental do desenvolvimento humano e igualmente importante à criticidade necessária à formação de uma sociedade livre e desreprimida.

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Contudo, não me parece fácil pensar um encaminhamento da educação e da Educação

Física escolar que prime o ser humano em sua potencialidade criativa, que lance um olhar

sobre o fenômeno humano na busca de melhor esclarecimento sobre ele, que prepare o

homem para atuar como agente transformador social, enquanto a escola apresentar-se como

aparelho ideológico de Estado, mantendo seu processo educacional a espreita do mercado de

trabalho, capacitando a criança para ingressar adequadamente na atividade econômica. Mas

nada disso é caso encerrado, cabe reconhecer que, segundo Medina (1990a, p. 19-20),

Há, entretanto, uma relação dialética entre o indivíduo e a sociedade, entre a consciência e a estrutura social, entre o corpo e a infra-estrutura sócio-econômica, que precisa ser resgatada. É justamente esta relação que faz com que não se esvazie o papel da escola e da própria educação como um todo, na sua função fundamental (geralmente não oficial) de auxílio na transformação das estruturas sociais, vale dizer, do sistema. Ela, porém, não é determinante no processo; ou seja, não é a partir da “boa escola”, da boa “educação” que nossos problemas mais básicos serão resolvidos. A nossa prática social é que se constitui no grande motor das transformações pretendidas. Não é, portanto, a “boa ideia”, por si só, isolada da história, que vai provocar mudanças. Se assim fosse, a solução para a maioria de nossos problemas existenciais estaria arquivada, sempre à nossa disposição, em qualquer biblioteca.

Nessa busca por investigar o conjunto de ideias que conduziram a educação e a

Educação Física, ainda que a falta de tempo e delimitação devido ao interesse específico desta

investigação, não amparasse esse intento, de modo que a varredura por elementos históricos

fosse mais abrangente, ainda assim, busquei apreender qual o tratamento dado ao corpo

escolarizado, através das perspectivas escolares de implantar hábitos e condutas nele. Vez que

a atenção dada ao corpo no campo historiográfico escolar, fora por mim percebida como a

adoção de um instrumento de sustentação dos atributos esperados no trabalhador, em que a

Educação Física veio a contribuir para o cultivo de um corpo saudável, robusto, dócil.

Assim, deixei esse momento de busca teórica, consciente que exige análise muito mais

minuciosa, e que esta discussão é apenas uma tentativa de olhar para dentro da escola, e

encontrar pontos de prioridades em suas intenções, de forma que sejam compreensíveis os

efeitos da homogeneização escolar pela padronização dos aspectos de desenvolvimento

através de adoção de métodos disciplinares e de civilidade, nos quais se ensina gosto e se

adestra corpos.

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1.2. À educação deu-lhe o trabalho, mas à infância a natureza confiou o lúdico

Trazer à discussão as considerações corporais lúdicas na educação da criança,

ocasionou a necessidade de compreender os aspectos históricos voltados à infância e ao jogo,

para melhor abarcar suas interações sociais e, então, tentar compreender essas interações na

relação da criança com a cultura corporal de movimento no contexto escolar. Dessa maneira,

inicio esse capítulo teórico explanando o curso da construção da categoria de infância e o

olhar voltado ao jogo em certo momento da história.

A ideia de criança, sendo essa reconhecida em seus aspectos infantis, teve como marco

histórico o período entre 1850 e 1950, quando os Estados Unidos tiveram sua investida bem

sucedida de tirar as crianças das fábricas e colocá-las nas escolas, induzindo a utilização de

vestimentas, literaturas e jogos pertinentes a elas, bem como uma série de leis que classificam

as crianças qualitativamente diferentes dos adultos. E, ainda, a virada do século trouxe a

consideração de que a infância é direito de cada pessoa. Mudando a concepção do século

XVI, quando a infância era tida como produto da cultura, passando a ser definida como uma

categoria biológica (POSTMAN, 1999).

Essa condição contribuiu para a identidade infantil, pois, segundo Postman (1999),

a falta de alfabetização, a falta de conceito de educação, a falta de conceito de vergonha,

acarretou para a inexistência do conceito de infância na idade média. Não havia também

nenhuma condição de aprendizagem sequencial, assim como não havia entendimento de

escolarização que preparasse para o mundo adulto. Todos compartilhavam as mesmas

vivências: jogos, brinquedos, histórias, não havendo segredos entre adultos e crianças. Este

era considerado como mundo oral, momento em que a criança com sete anos de idade já era

percebida como adulto, pois dominava a palavra, sendo considerado pela Igreja Católica

como “idade da razão”.

Ariès (1981), analisando o novo espaço da criança e da família na sociedade industrial,

indica que a criança, na sociedade tradicional, quase não era vista, o período em que podia ser

considerada ainda na infância ficava restrito ao período em que ela era mais frágil, ou seja,

enquanto não conseguia agir por si só. E, assim que conquistasse alguma desenvoltura física,

logo era envolvida junto aos adultos, compartilhando de seus trabalhos e jogos. Dessa

maneira,

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A transmissão dos valores e dos conhecimentos, e de modo mais geral, a socialização a criança, não eram, portanto nem asseguradas nem controladas pela família. A criança se afastava logo de seus pais, e pode-se dizer que durante séculos a educação foi garantida pela aprendizagem, graças à convivência da criança ou do jovem com os adultos. A criança aprendia as coisas que deveria saber ajudando os adultos a fazê-las (Ibid., p. 10).

Nesta perspectiva, a criança não era distinguida do adulto. Somente a partir de uma

organização social ocorrida no início da Idade média, assim com mencionou Ariès (1981), a

criança passa a ser reconhecida em suas particularidades junto à família e a sociedade. Em

que é dada à criança um sentido de infância que antes não existia.

Na sociedade medieval, [...] o sentimento de infância não existia – o que não quer dizer que as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas. O sentimento da infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças: corresponde à consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem. Essa consciência não existia (Ibid., p. 156).

Entretanto, a partir do século XV, com a invenção da prensa tipográfica, por Johannes

Gutenberg, modificaram-se as relações entre adultos e crianças. Difundindo-se entre os

adultos a capacidade de ler e escrever, pois a tipografia proporcionou um acesso mais amplo

aos textos escritos. Facultando ao adulto ler livros que estavam a sua disposição, legando às

crianças a busca por aprender a ler, condição que permitiria a elas descobrir segredos contidos

nos livros, podendo, assim, ingressar no mundo dos maiores, tornando-se adulto. Condição

estabelecida por saber ler (adulto) e não saber ler (criança), não considerando a diferença

biológica. Assim, as questões que suscitaram a invenção da infância emergem em um

momento em que a condição de ser criança era ignorada, situando-se como uma construção

social impulsionada pela criação do “Homem Letrado” (POSTMAN, 1999).

A partir da necessidade de aprender a ler, tornando fundamental uma educação letrada,

que a cultura européia inventou no século XVI a infância e a escola. Relacionando o

aprendizado na escola com a natureza infantil. No entanto, não cabia somente a escola o

compromisso com a educação das crianças, competia à família oferecer educação

complementar em casa, de maneira que, pouco a pouco, os pais tiveram que adotar padrões

mais humanitários, assumindo em parceria com o governo a responsabilidade da educação da

criança (Ibid.).

Foi assim que a infância ganhou identidade, momento em que a criança começa a ser

respeitada em seu ritmo de crescimento, comportamentos e individualidade, sendo separada e

protegida do mundo do adulto, tendo a vergonha como divisora desses dois grupos.

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No entanto, o envolvimento social da criança, em que seu aprendizado decorria pelo

convívio com os adultos, só passa por mudanças significativas a partir do final do século

XVII, em que a família e o espaço social da criança são consideravelmente organizados.

Neste período, a educação da criança passa a ser conferida à escola e não mais pela sua

coexistência entre os adultos. A partir de então, a criança não é mais misturada entre os mais

velhos, passando a ser reconhecida em suas características. É neste momento que também é

inaugurado “um longo processo de enclausuramento das crianças (como dos loucos, dos

pobres e das prostitutas) que se estenderia até nossos dias, e ao qual se dá o nome da

escolarização” (ARIÈS, 1981, p. 11).

A separação entre adultos e crianças foi propícia, também, para a elevação das

atividades intelectuais e diminuição do tempo de brincar na infância, com ambição em

preparar a criança para a vida adulta. Dessa forma, a condição de ser criança é reconhecida

como categoria de infância, no entanto, sua mais significativa forma de expressão passa a ser

cerceada.

Segundo Ariès, essa ocorrência se deu pelas investidas intensas dos mantenedores da

Igreja, das leis ou do Estado em moralizar os homens, preocupados com a disciplina e com a

racionalidade dos costumes. É a partir dos eclesiásticos e dos homens de lei do século XVI e

dos moralistas do século XVII, que à criança é propagado um tratamento fundamentado na

racionalidade, promovido pelo alto teor de disciplina, com o propósito de corrigi-las e adequá-

las ao contexto da moral e dos costumes da infância (Ibid.).

Diante desta nova condição de se perceber a infância, que suscitou a preocupação em

conduzir a criança à racionalidade de acordo com a mentalidade do adulto e, compreendendo

que o brincar, envolto pela capacidade de simbolizar pelo poder da imaginação e da fantasia,

“se faz numa atmosfera de liberdade e criatividade”, assim como indicou Santin (2001, p. 29),

fica fácil de ser percebida como consequência a restrição lúdica no período da infância,

quando se trata de uma condução educativa pela moral, racionalidade e obediência da lei,

pois, de acordo com os referidos de Santin, “desde que a racionalidade tornou-se a única

maneira respeitada das manifestações do homem, o brinquedo foi banido para os espaços

periféricos da existência humana” (Ibid., p. 37).

E nos novos arranjos do viver cotidiano, em que a brincadeira foi desprezada ou

negada, a vida humana perdeu a vinculação permanente com sua natureza espontânea,

herdada da sua essência ancestral, que representa “uma perda de consciência da nossa

pertença à natureza que nos possibilita e sustém” (MATURANA; VERDEN-ZÖLLER, 2004,

p. 250). Como consequência disso, os autores indica a nossa imersão “num vazio espiritual,

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porque distorcemos ou perdemos as visões mítica e poética que a mantinham, ou substituímos

tais visões por filosofias religiosas, políticas ou econômicas”, que usam a noção de verdade

como se fosse uma interpretação primitiva do mundo, dessa maneira, veem-se sustentado e

justificado “o controle patriarcal do comportamento humano” (Ibid., loc. cit.).

Muito embora a igreja cristã, já na Idade Média, entendia na diversão e no júbilo

comportamentos contraditórios ao sentimento de luto, que fora imposto por uma condução

ideológica da igreja, que não atribuía nenhum valor positivo ao jogo, é Tomás de Aquino que

começa a promover uma inquietude por compreender se haveria algum bem em jogar,

apoiando-se nas considerações de Aristóteles e Santo Agostinho, em que constatou no jogo a

possibilidade de repouso indispensável ao espírito que se cansa pela extenuante tarefa

intelectual. Posto que, da mesma forma que se alivia a fadiga carnal pelo descanso, assim

também deve ser com o espírito, por meio de um descanso espiritual (DUFLO, 1999). Nesta

perspectiva,

São Tomas de Aquino defende o jogo comparando-o ao arco tenso do arqueiro que necessita ter a sua tensão controlada para não se partir (analogamente pensa o trabalho intelectual e o jogo), ou seja, o jogo vem para liberar as tensões impostas pelo trabalho intelectual ou não, sendo assim o jogo é menor (visto como menos importante), porém vital e indispensável para o homem – o JOGO é necessário a vida humana. São Tomás de Aquino chegou a dizer que quem não jogava pecava da mesma forma que aquele a qual se entrega em demasia (Ibid., p. 20).

Essa ideia de jogo atribuído ao descanso, de acordo com os dizeres de Duflo em

referência a certo número de pensadores, foi mudando ao longo dos séculos através de estudos

sobre o jogo, que contribuíram para pensá-lo além de uma atividade de descanso frente às

atividades intelectuais, mas que através dele, o homem demonstra mais criatividade, liberdade

de espírito, condições de organização tática e de concentração e que, ainda, “O jogo

representa não só uma distração totalmente positiva, desde que permaneça em seus limites,

mas também uma vitrine de engenhosidade humana, não devendo, pois, ser somente situado

ao lado do pueril” (Id., 1999, p. 37).

Apesar disso, Santin (2001, p. 37) indica que em resultado da restrição da atividade

lúdica “na vida racional do homem” ― local onde não conseguiu firmar-se, atribuiu-se à

ludicidade uma condição que “jamais mereceu ser formulada como um tema digno de sisudez

dos filósofos e muito menos dos atarefados e compenetrados cientistas. Brincar continuou

sendo permitido em certos momentos e lugares, mas jamais conseguiu merecer a atenção do

pensamento lógico racional”.

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Ainda que não se possa falar do jogo como objeto de estudo amplamente explorado

em nossa história, em decorrência de que o jogo, desde tempos remotos, não era visto como

algo virtuoso, por isso não despertava interesse em ser investigado, pode-se dizer que,

segundo Duflo (1999), foi a partir de Tomás de Aquino que vislumbrou-se no jogo elementos

necessários à existência humana, mesmo que, inicialmente, ele fora atrelado somente ao

domínio do descanso do espírito.

No encaminhar de estudos sobre o jogo, o século XVII apresenta-se como período em

que efetivamente se iniciou reflexões acerca de seu significado, principalmente sobre o seu

aspecto educativo. O pensamento desta época proporcionou ao jogo um olhar que não mais o

enxergava como uma atividade rudimentar empregada à criança e sem mérito algum ao

interesse “do homem de bom senso”. Pois, avesso à ideia de frivolidade, o jogo conquista seu

valor em campos de estudo por constituir-se como atividade privilegiada para a manifestação

da inteligência humana, por conta de dois motivos distintos, porém complementares. Vez que,

“por um lado, há o prazer, que é um incentivo formidável [...] Por outro lado e, sobretudo, no

jogo, o espírito se exerce livremente, sem o constrangimento da necessidade e do real, oferece

condições puras de exercício de engenhosidade” (DUFLO, 1999, p. 25).

Já no século XVIII, pôde-se melhor compreender o comportamento infantil imerso no

jogo, graças às menções de Rousseau (2004), em que o autor refere que a criança tanto se

ocupa como se distrai em sua arte, que é o jogo. E que tanto uma quanto a outra ― ocupação

ou distração, são semelhantes para ela. E é por intermédio deste filósofo, mas precisamente de

sua obra “Emílio ou Da Educação” que é despertado um novo interesse que abarcou a

condição particular de ser criança.

Duflo (1999), ao mencionar as exposições teóricas de Rousseau, percebe nelas

elementos positivos para a valorização do jogo no que tange sua capacidade de aproximar o

homem à sua natureza, como ser completo. Dessa maneira, o autor menciona ainda que

É verdade, no entanto, que, afirmando que não devemos ignorar a infância e suas manifestações, Rousseau tirava indiretamente o jogo de sua falta de dignidade filosófica. Afirma, além disso, seu valor educativo, na medida em que alia o prazer à restrição e a liberdade à lei, pois, no jogo, a feliz espontaneidade só se expressa sob a condição de uma livre aprovação e de uma submissão autônoma às regras. Rousseau mostrava que o valor do jogo ia bem além da simples distração, mas tinha implicações políticas e morais [...] [e] o jogo passa então a ser associado à formação do ser humano em sua plenitude. Não é porque lhe falta algo que o homem deve jogar, mas porque deve tornar-se humano e aprender, de alguma maneira, sua liberdade (Ibid., p. 55).

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A importância “de situar o lugar que a criança ocupa num contexto social específico, a

educação a que está submetida e o conjunto de relações sociais que mantém com personagens

de seu mundo”, assim como proposto por Kishimoto (2007, p. 7), bem como averiguar a

atividade lúdica no contexto da infância, atuações adequadas a esta investigação, é para que se

possa, eficientemente, compreender o processo histórico e o cotidiano contemporâneo infantil,

pois são esses aspectos que figuram a criança e o seu brincar. Mais ainda, é preciso considerar

a criança em todos os aspectos que determinam a sua natureza, levando a ponto que, de

acordo com Château (1987, p.14), “a infância é, portanto, a aprendizagem necessária à idade

adulta. Estudar na infância somente o crescimento, o desenvolvimento das funções, sem

considerar o brinquedo, seria negligenciar esse impulso irresistível pelo qual a criança modela

sua própria estatua”.

Porquanto, as conduções históricas e propriedade cultural de cada localidade, que

refletem no processo social do homem, são determinantes para explicar suas relações, de

acordo com o período de existência em que se encontra. Assim, de acordo com os dizeres de

Le Breton (2007), a criança desenvolve-se em um contexto familiar com características

sociais que podem ser variadas e que se adéquam as variações particulares que diferenciam as

relações na vida da comunidade social em que se insere. De tal modo, os padrões

comportamentais da criança, como, por exemplo, seus gestos, bem como sua relação com o

mundo, são determinados pelo arquétipo cultural de seu grupo social de pertencimento. A

educação não é proposital, a forma como a criança está localizada na estrutura familiar e o

tipo de propriedade afetiva desta estrutura, ordenam a sua socialização.

Dessa maneira, permeando pelas tramas entre a ideia de infância e o lugar ocupado por

ela, em um cenário histórico geograficamente familiar, ou seja, brasileiro, claras se mostram

suas configurações particulares pela condição em que a nossa sociedade foi organizada e a

forma com que incluiu a criança em suas esferas social, econômica e cultural.

Kishimoto (2007), ao retratar sobre a infância nas casas-grandes e senzalas, aponta

indícios de uma construção da infância no Brasil distinta pela condição social em que cada

criança participava. Vez que a infância, assim como toda a sociedade brasileira, recebeu

tratamento diferenciado de acordo com a posição que ocupava no sistema de posses e,

consequentemente, de poder. Assim, a autora sugere que o caminho mais eficaz para

compreender a infância nesse momento histórico nacional, é através da verificação da

organização familiar, do sistema educacional e das relações estabelecidas entre à criança

branca, à criança negra, às mucamas escravas e os familiares.

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Com relação ao convívio entre as crianças na casa-grande, Kishimoto (2007, p. 32)

relata que

Um hábito bastante comum nas casas-grandes era o de colocar à disposição do sinhozinho, um ou mais moleques (filhos de negros escravos, do mesmo sexo e idade aproximada) como companheiro de brincadeiras. Segundo Gilberto Freyre e José Veríssimo, esses moleques, nas brincadeiras dos meninos brancos, desempenhavam a função de leva-pancada; uma reprodução, em escala menor, das relações de dominação no sistema de escravidão. O menino branco usava o moleque como escravo em suas brincadeiras.

Ainda nessa relação entre a submissão do moleque negro aos caprichos do menino

branco, disposta em todas as famílias patriarcais, Veríssimo (1906 apud KISHIMOTO, 2007),

menciona o papel ocupado pela criança negra ou índio, escravos que representavam a função

de cavalo, no sentido de ser o brinquedo em que o menino branco cavalgava na ausência do

animal, em que as crianças escravas viram bois, cavalos, burros, que simbolizava o meio de

transporte da época.

E é sob essa sujeição, do menino negro ou índio servindo de brinquedo de montaria,

de leva-pancadas e de criado ao menino branco, que se figuravam as relações sociais entre os

filhos dos senhores de engenho e os filhos dos escravos. Entre as meninas, a relação social

não diferiu muito quanto ao tratamento entre as classes. Mesmo sem a presença de

brincadeiras quase sempre violentas dos meninos, entre as meninas havia igualmente a ideia

de dominação exercida no jogo de representação, em que a menina branca exercia o papel de

mando em desprestígio a menina escrava, que, desde cedo, aprendia o lugar que ocupava na

sociedade escravocrata (Ibid.).

Já com relação ao tratamento social dado à criança, “com a aproximação dos sete anos,

o menino do engenho sofria a pressão para transformar-se rapidamente em um homem”.

Momento em que também era inserido no “regime educativo que eliminava a infância das

famílias patriarcais”. E tão logo eram levados a abandonar o brinquedo e as brincadeiras, pois

já não eram mais considerados como crianças. Dessa maneira, o Brasil do século XIX

demonstrou-se atrasado com relação à descoberta da infância no século XVI pela França,

tardando a adotar as inovações européias quanto ao vestuário e até a concepção de infância

(Ibid., p. 34).

Todas essas menções servem para pensar sobre as condições em que a criança e o jogo

foram inseridos no contexto de infância e como se envolveram e se submeteram na dimensão

social e, em particular, como transcursou suas conduções sociais a partir de uma idealização

do adulto. Visto que o processo primário de socialização da criança foi atribuído por seus

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pais, responsáveis por suas primeiras relações de afeto e por sua educação elementar e,

também, pela mediação da criança com o mundo social. E a prática do jogo sofreu

interferência direta da ideologia de produtividade dos homens mais velhos.

Estas análises me foram fundamentais para a compreensão da organização da categoria

de infância e da difusão do jogo na sociedade, pois entendo que estudar a raiz ajuda a

compreender a árvore.

1.2.1 Criança: expressão natural do lúdico

Sendo a criança um ser, que em qualquer situação ou época, capaz de encontrar

formas de diversão, seja com brinquedos sofisticados ou com um pedaço de tijolo, traçando

riscos na calçada, dando forma, por exemplo, a uma “Amarelinha”, ela não necessita de um

momento em especial ou de objetos determinados para estes fins, a criança brinca

naturalmente. Se observarmos o cotidiano da vida da criança, verificaremos o lúdico muito

presente, quase que em totalidade, em seu dia-a-dia.

Talvez seja em razão desse aspecto lúdico inerente à criança, tão particular ao universo

infantil, que Marinho (1955 apud GAELZER 1979, p. 25), afirma que o brincar surgiu

primeiramente associado à sua atividade e, “só mais tarde, se estendeu à vida do adulto”. No

entanto, “são os adultos que batizam de ‘jogo’ certas atividades infantis, antes mesmo que a

criança disponha do termo e ainda menos da noção” (BROUGÈRE, 1998, p. 17).

Não é raro perceber o lúdico associado à criança, tão pouco é incomum vislumbrar a

infância como cenário principal para a ocorrência do brincar, já que, como indica Santin (2001,

p. 115), “o lugar mais adequado para se apreender o lúdico, sem dúvida, é o mundo da criança.

O grande laboratório onde ocorre a química lúdica, o grande palco onde se constroem as

grandes cenas de ludicidade tem como cientistas e como atores as crianças”. O que vem

justificar a naturalidade com que a criança dispõe do lúdico em suas atividades.

No compasso da existência do jogo na vivacidade das ações infantis, em que a criança

brinca porque gosta de brincar, sem nenhum determinismo físico ou pelo dever moral, sem

sequer constituir uma tarefa, é onde reside o princípio fundamental do jogo que é a condição

voluntária de sua essência, a condição de ser livre e significar liberdade.

Ligada intimamente a esta condição, está à característica do jogo em negar a vida

corrente e a vida real. E é nessa capacidade de se retirar da vida real, que a criança manifesta

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sua aptidão em fazer de conta, sabendo distinguir quando é “vida real” ou quando está “só

brincando”. O jogo também tem como particularidade sua diferenciação da vida genérica,

determinado tanto pelo local como pelo tempo de que se ocupa. Assim, o isolamento e a

limitação, particulares ao jogo, contribuem para a sua fixação como fenômeno cultural, de

forma que ele “é ‘jogado até o fim’ dentro de certos limites de tempo e de espaço. Possui um

caminho e um sentido próprios” (HUIZINGA, 1990, p. 12).

E no desdobramento das peculiaridades do jogo, a definição do espaço evidencia-se

mais do que a definição de tempo. Seja impensado ou determinado, o espaço em que o jogo se

revela é previamente demarcado por materiais ou através do imaginário. Essa necessidade de

demarcação do espaço para o processo e existência do jogo, é que faz com que ele se

assemelhe ao erudito, “do mesmo modo o ‘lugar sagrado’ não pode ser formalmente

distinguido do terreno do jogo. A arena, a mesa de jogo, o círculo mágico, o templo, o palco,

a tela, o campo de tênis, o tribunal etc., têm todos a forma e a função de terrenos de jogo”, por

serem distintos em sua organização que os definem como ambiente independente, sagrado,

em que, uma vez imerso nele, há que se respeitar suas regras. “Todos eles são mundos

temporários dentro do mundo habitual, dedicados à prática de uma atividade especial” (Ibid.,

p. 13).

Mesmo com todas as considerações mencionadas até aqui, para efeito de um melhor

entendimento ao que venha ser e empregar-se a atividade lúdica, recorro às exposições sobre

jogo e brincadeira, em seus sentidos mais íntimos, de maneira que possam ser analisados e

preencham as lacunas de meu conhecimento. Dessa maneira, lanço mão do sentido da palavra

“lúdico” na consideração de Brougère (1998), que diante da variedade de termos que tentam

definir o que venha ser jogo e reconhecendo na própria ausência de definições rigorosas a

possibilidade de compreendê-lo, limita-se a considerar que “jogo é o que o vocabulário

científico denomina ‘atividade lúdica’” (Ibid., p. 14). E é pelos apontamentos sobre o jogo,

que venho considerar o lúdico neste componente do estudo.

E, por assim dizer, as atividades lúdicas analisadas neste momento teórico não se

encerraram em seu sentido biológico, elas são verificadas em sua vertente cultural e social,

indo ao encontro do corpo posto em cena nesta investigação. Até porque, assim como afirma

Huizinga (1990, p. 5), “a intensidade do jogo, e seu poder de fascinação não podem ser

explicados por análises biológicas. E, contudo, é nessa intensidade, nessa fascinação, nesta

capacidade de exercitar que reside a própria essência e a característica primordial do jogo”.

Nos referidos de Brougère (1998, p. 16), “a utilização do termo jogo deve, pois, ser

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considerada como um fato social: tal designação remete à imagem do jogo encontrada no seio

da sociedade em que ele é utilizado”.

Em conexão às ideias sobre jogo no contexto sociocultural, e no sentido de apreendê-

lo em totalidade, que sigo retratando-o sob as perspectivas de Huizinga (1990), que buscou

em sua obra Homo ludens, analisar a função social do jogo, referindo, logo de início, que “o

jogo é fato mais antigo que a cultura” e ao mesmo tempo compõe-se junto a ela. Dessa

maneira, o jogo, excedente do domínio da vida humana, inegável em sua existência e

componente da cultura, “possui uma realidade autônoma”, de modo que, “reconhecer o jogo

é, forçosamente, reconhecer o espírito, pois o jogo, seja qual for a sua essência, não é

material” (Ibid., p. 3-6).

Seguindo no intuito de descrever a propriedade da atividade lúdica, ao tratar sobre o

brincar e o jogar infantil, deparo-me com seu princípio fundamental que é a liberdade,

acompanhado da gratuidade, da alegria, da possibilidade de manifestação da criatividade e do

simbolizar. E é pela capacidade humana de agregar todos esses elementos, indispensáveis à

ludicidade, que se concretiza o jogo. Assim, o lúdico, tendo como meta o jogar, deve tornar-se

um lugar de encontro e de troca, um local ou um ato onde a criança expressa-se, liberta-se,

envolve-se e desenvolve-se.

Se procurarmos alguma atividade que possa descrever o que seja ludicidade, logo

percebemos que não há uma que a determine ou represente e outras que não. A atitude com

que é praticada, livre de obrigatoriedade ou compulsão externa, é que pode caracterizar a ação

lúdica (GAELZER 1979; DINELLO, 1984; SANTIN, 2001). Dessa maneira, “não se pode

dizer que há uma atividade lúdica, pois não são as atividades, mas os valores vividos e

realizados por aqueles que brincam que torna lúdica uma ação” (SANTIN, 2001, p. 24).

A ação livre que caracteriza a natureza de diversão do jogo, restrito a limites de tempo

e espaço, a incerteza decorrente do jogo ― sem que se possa definir um resultado, o fator

improdutivo em sua realização ― pois não gera bens nem riqueza, sendo o prazer pela sua

realização o que pode ser esperado do jogo, com suas próprias regularizações ― visto que

“todo o jogo é um sistema de regras que definem o que é e o que não é do jogo, ou seja, o

permitido e o proibido”, e de caráter fictício ― pois o jogador cria uma situação em que se

esquiva da realidade, são atributos essenciais do jogo, igualmente apontados por Caillois

(1999, p. 11), e que Huizinga reitera referindo que, além da livre escolha para a sua efetivação

e de ser uma atividade desempenhada em limites de tempo e espaço, o jogo ocorre “segundo

regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si

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mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser

diferente da ‘vida quotidiana’” (Id., 1990, p. 33).

Contudo, é preciso considerar que, mesmo a ludicidade tendo como característica a

livre escolha, manifestando-se como atividade com fim em si mesma, em que o único objetivo

é o prazer em sua realização, o brincar não pode ser visto apenas pela ótica da diversão e

entretenimento. Nem mesmo “como uma coisa à-toa, algo feito de qualquer jeito, sem

nenhuma regra”, assim como advertiu Santin (2001, p. 116). Visto que, o lúdico apresenta-se

como condição inestimável para a preservação e o desenvolvimento da criatividade da

criança, indo além do caráter intelectual (Ibid.).

De qualquer forma, dou-me por satisfeita se o jogo for considerado como importante

somente pela tensão, alegria e divertimento que provoca. No entanto, válido se faz ratificar

que, de acordo com os dizeres de Kishimoto (2007, p. 102), “quando desenvolvido livremente

pela criança, o jogo tem efeitos positivos na esfera cognitiva, social e moral”.

E dentre outras qualidades descritas no jogo, Duflo (1999), ao mencionar as ideias de

Kant, indica que o jogo pode ir além do divertimento e, ainda, o jogo da criança pode

representar igualmente um espaço para o aprendizado sobre elas mesmas, de maneira que,

“em seus jogos, as crianças se submetem livremente às regras que escolhem [...] Por meio do

jogo, a criança aprende a coagir a si mesma, a se investir em uma atividade duradoura, a

conhecer e desenvolver as forças de seu corpo” (Ibid., p. 57).

E são pelas manifestações espontâneas e livres, proeminentes no brincar, que a

criança entra em contato como o seu meio, através de referências adjacentes de ações e

percepções próprias de sua natureza ancestral. Porquanto, “as brincadeiras espontâneas de

nossas crianças não são arbitrárias: são dinâmicas corporais ligadas a territórios ancestrais de

comportamento” (MATURANA; VERDEN-ZÖLLER, 2004, p. 187).

De fato é patente ao jogo a faculdade vital do homem, pois é nele e por ele que a

humanidade surge e se desenvolve. Conforme nos sugere Huizinga (1990, p. 6), o jogo é

fenômeno presente em tudo que ocorre no mundo, é imperativo ao acréscimo do humano. E

por conta de sua particularidade, definida pela intensidade e divertimento, não é possível

reconhecê-lo como elemento racional, “pois o jogo é irracional”.

Nesta forma específica de atividade que só pode ser entendida fora do determinismo

da razão, em que dela decorre fascinação, diversão e alegria, o jogo pode ser identificado

como uma manifestação supérflua, destituído de seriedade. No entanto, Huizinga refuta essa

maneira de pensar, referindo que certos atos de jogo, como, por exemplo, os dos jogos

infantis, podem ser extraordinariamente sérios e, ainda, se ao jogo for dada uma devida

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atenção, será possível verificar “que o contraste entre jogo e seriedade não é decisivo nem

imutável”. Para o autor, nem mesmo a capacidade de fazer de conta, cancela no jogo a

possibilidade de sua realização com seriedade. Visto que “todo jogo é capaz, a qualquer

momento, de absorver inteiramente o jogador” (HUIZINGA, 1990, p. 8-11).

Outro fator que implicou ― e ainda implica, ao jogo a visão de supérfluo, falando

agora de uma realidade mais próxima ― no sentido cronológico e geográfico, para ser mais

clara, localizada no Brasil colonial, é o fato de que, segundo Kishimoto (2007, p. 86), “a ideia

de jogo associado ao prazer não era vista como importante para a formação da criança, mas

tida como causa da corrupção”. Em um momento em que o trabalho remediava a

vagabundagem e não possibilitava a espontaneidade e nem as tendências infantis.

Essa visão de jogo assemelha-se ao brincar conexo ao papel social da infância em que

Brougère (1998) indica que a dialética referente ao brincar tem toda uma significação social,

vez que a autorização para a criança brincar não apresenta-se de forma neutra, ela está

sempre associada a uma ideologia social do que venha ser produtivo e improdutivo. Nesta

perspectiva, o autor indica que o jogo apresenta-se mais como um imperativo social do que

uma ação natural. Muito embora a esfera do jogo infantil não seja tão ampliada em todas as

sociedades, pois, em muitas delas as crianças participam nas atividades laborais dos adultos.

Porém, a possibilidade de brincar exatamente pela falta do que fazer é considerada em nossa

sociedade, em que a criança brinca em seu tempo livre, fora do trabalho escolar.

Com toda adversidade para a prática mais difusa do jogo ao longo da história da busca

por uma maior racionalidade do homem e da massificação de sua força de trabalho, fez com

que fossem criados padrões de comportamento de resistência ao lúdico, ignorando o jogo

como qualidade característica da vida humana, pois, como indica Huizinga (1990, p. 7), “as

grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde início, inteiramente marcadas

pelo jogo”. Sendo assim, ignorar ou tentar banir o jogo da vivência do homem, é renegar uma

das atividades que marcam sua história desde a sua origem, é renunciar a sua natureza

humana.

É preciso devolver ao brincar o seu papel de destaque na vida humana. Além disso, é

preciso reaprender a viver nessa atmosfera, assim como recomendado por Maturana e Verden-

Zöller (2004). Pois, o que fez nossa sociedade é desdenhar “o brincar como uma característica

fundamental generativa na vida humana integral. Talvez ela faça mais, talvez negue o brincar

como aspecto central da vida humana, mediante sua ênfase na competição, no sucesso e na

instrumentalização de todos os atos e reações” (Ibid., p. 245).

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Prestando a devida atenção à atividade lúdica, será possível levar a ponto reflexões

que fundamentem o empenho do brincar em significados que transcendem “palavras

favoráveis ou mitos”, mas que levem ao real atributo do brincar. “É necessário, portanto,

partir de uma análise dos aspectos específicos da brincadeira, tal como é vivenciada pela

criança (mas, também, pelo adulto quando brinca porque quer e não para impor uma

brincadeira à criança)” (BROUGÈRE, 2000, p. 97).

Por esta razão, ainda que a atividade lúdica seja uma atividade com fim em si mesma,

como em consonância com alguns estudiosos do lúdico: Château (1987), Huizinga (1990) e

Caillois (1999), entre outros citados anteriormente, que também demonstram a gratuidade no

ato de jogar e brincar e consideraram-nos como atividades livres, que mantém-se por si só, em

que o único interesse para os seus participantes é o prazer, a alegria e a diversão conferidos

por elas, prazer este que, uma vez retirado, perde-se o sentido lúdico pertinentes a estas

atividades, e que não necessita de considerações que lhes atribuam algum sentido útil para

justificar a sua ocorrência, considero ser preciso incitar, ainda mais, análises que versam

sobre a importância de manter a atividade lúdica, assumida em todas as suas características e

manifestada em jogos e brincadeiras, ao longo das experiências vividas pela criança, para que,

dessa maneira, o lúdico possa ser proporcionado significativamente na escola e o jogar e o

brincar aconteçam de forma garantida no tempo e no espaço escolar.

Neste sentido, é preciso ressaltar que temáticas abordando atividades lúdicas têm sido

apresentada em diferentes contextos, espaços e áreas de estudos, que têm proporcionado

maior acesso ao conhecimento sobre o assunto. Segundo Marcelino (1996, p. 38), estudiosos

sobre o jogo, cada vez mais, vêm conferindo importância para a socialização da criança e

contribuição significativa para sua formação humana através de sua participação em

atividades lúdicas. Pois o prazer conferido por estas atividades proporcionam à criança viver

plenamente o seu período etário e, ainda, integram-na participativamente na sociedade em que

vive “e não apenas como mero indivíduo requerido pelos padrões de ‘produtividade social’”.

Pelas constatações sobre o brincar possibilitadas por Marcelino, é possível afirmar que

os momentos de ludicidade podem constituir excelente oportunidade para a criança explorar o

seu ambiente. Então, concordo com o autor quando entende como oportuno o predomínio do

lúdico no período da infância, de maneira que a construção cultural da criança pudesse ser

enriquecida pelo brincar. No entanto, o autor demonstra a preocupação de que, mesmo para a

criança, as interações lúdicas vêm sendo prematuramente retirada de seu cotidiano.

Preocupação esta que me põe atenta a possibilidade de que a criança possa estar sendo

negligenciada em suas características de criança, quando, ainda segundo o autor citado, “a

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produção cultural da criança é substituída, cada vez mais, por uma produção cultural para a

criança, que a considera apenas como consumidor potencial” (Id., 1996, p. 37).

Enquanto ação favorável ao desenvolvimento de diversos aspectos da natureza

humana, acrescida de satisfação e alegria, alcançadas com atividades de caráter lúdico, o

brincar ainda pode tornar-se um veículo de comunicação muito importante para a criança,

pois, enquanto brincam, expressam sentimentos, comunicam-se e acompanham a atividade em

voz alta. Segundo Dinello (1984, p. 5) “assim como as manifestações de afeição são uma

fonte indispensável para segurança da criança, igualmente os espaços para o brinquedo e

jogos são espaços vitais para que ela possa desenvolver-se, acrescentar vocabulário e aprender

a se expressar”.

Até porque, pelo jogo é possível trazer a vivência externa para o espírito humano e, ao

lidar com as experiências do mundo exterior, é possível que a cultura seja “criada, revista,

corrigida, ampliada, garantido o ambiente de nossa existência”. Pois, quando as experiências

atingem nosso espírito, elas transcorrem em imaginação. “Portanto, se a cultura humana é

uma construção que depende de nossa atividade interior, e o jogo tem a propriedade de

‘sugar’ para esse interior as vivências da realidade, obviamente o jogo passa a ser

indispensável à formação de nossa cultura”. Sobre este prisma, considerando no jogo o cerne

do mais precioso atributo humano, que dá origem a toda representação mental, de onde

transcorre a cultura humana, seu papel educativo é decisivo (FREIRE, 2002, p. 88-89).

Tomando como base as afirmações dos autores em análise, ouso dizer que é nos

momentos de ludicidade que a criança mais conquista sua autonomia, criatividade e

cidadania. Vez que, à medida que a criança se envolve no processo de ludicidade, ela pode,

mais facilmente, compreender a dimensão de limites e possibilidades diante de si, do outro e

do mundo que está inserida. Sendo, o jogo, um instrumento que possibilita à criança criar seu

mundo imaginativo, no qual ela pode aprender sobre si mesma e sobre o mundo em que vive.

Por todos esses benefícios de desenvolvimento pessoal, vislumbro nas atividades

lúdicas a possibilidade de auxiliar o ser no encontro do verdadeiro “eu”, tendo verificado que

tais atividades, expressas através de jogos e brincadeiras, têm por capacidade, preparar a

criança para viver em liberdade, para compreende melhor seu ambiente, para dar sentido ao

mundo em que vive, e é neste momento que ela realmente se sente gente.

De qualquer modo, é importante considerar o jogo ainda que seja assim como faz os

jogadores ― em sua significação mais genérica, que por si só já é suficientemente apropriada

ao desenvolvimento integral da criança. Assim como considerou Marcelino (1996, p. 37),

referindo que a primeira e essencial acepção do brincar é seu aspecto prazeroso que incita

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felicidade, sendo que “nenhum outro motivo precisa ser acrescentado para afirmar a sua

necessidade”.

Nesse contexto, atribuo ao brincar da criança, a condição de parte integrante de sua

cultura. Exercendo papel de fundamental importância em seu desenvolvimento integral, de

acordo com suas características. Proporcionando o encontro com o lúdico num espaço mágico

e especial, o do brincar.

1.3 Cadê o corpo lúdico que estava aqui? A escola comeu

O corpo lúdico, espontâneo e repleto de movimentos, vem sendo cada vez mais

substituído nas interações escolares por um corpo regulado por estratégias metodológicas que

fazem uso do jogo e da brincadeira como instrumentos facilitadores de aprendizagem, em que

a ludicidade é posta a serviço da construção do conhecimento cognitivo e é atribuído pouco

valor às manifestações corporais expressas pelos alunos. Isso quando o movimento corporal

não é subtraído do cotidiano escolar e marcado pelo cercear da liberdade, como ainda

acontece em muitas instituições de ensino, onde o corpo é controlado e os espaços para as

suas manifestações jocosas são reduzidos. Pois a atuação na educação, quando envolta a

atividades inerentes ao conteúdo letrado ― ao cumprimento do “ofício sagrado da lição”,

como bem cunhou Lima e Gomes (2000, p. 68) em seu estudo sobre a sociabilidade no

cotidiano escolar, nem sempre considera as vias corporais como possibilidade de interação

frente aos envolvimentos pedagógicos, no qual se efetiva a aprendizagem.

E tendo a escola, dentre seu público inscrito, crianças de diversas faixas etárias e

entendendo nela seu caráter brincalhão, sendo que suas mais naturais expressões se dão na

atmosfera lúdica, representadas em jogos e brincadeiras, me ocorre o seguinte

questionamento: qual seria o lugar do corpo nos espaços escolares? Visto que, quando jogam,

correm, pulam, dançam, rolam, sobem, descem, dentre tantas outras atividades exercidas pelas

crianças, fazem pelas possibilidades das mediações corporais, que manifestam-se de acordo

com um conjunto de sistema simbólico construído e moldado pelas experiências do ser com o

mundo. Assim como indica Le Breton (2007), é na sua manifestação simbólica, essência

humana representada pelo corpo como acontecimento social e cultural, de onde partem

representações e imaginário, emergem as atividades, das mais simples às mais complexas, que

constituem o cotidiano do homem, no qual, a cada instante, suas sensações e sentidos

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significam o mundo que o cerca. E é de acordo com o tipo de contexto sociocultural em que o

corpo se insere, é construída a sua relação como o mundo.

Pois é a partir do corpo que surgem e tomam forma a existência individual e coletiva,

e é através dele que se dá a relação com o mundo. No corpo e através dele o homem toma

posse do conteúdo de sua história e a expõe aos outros membros de seu grupo de

compartilhamento de vivências culturais. Dessa maneira ele significa a sua existência,

transitando no espaço e tempo social e cultural em que se insere, selecionando e denotando os

estímulos recebidos do meio onde as relações socioculturais são organizadas e vividas. E é

nessa dinâmica corporal de receber ou emitir significados que o homem socialmente molda e

se molda no universo de seu pertencimento. Mas essas representações acerca do corpo só tem

sentido se forem adequadas à simbologia inerente ao grupo social em que habita (LE

BRETON, 2007).

Há mais a ser dito, se as relações sociais e culturais significam e são significadas pela

corporeidade, válido se faz reconhecer que é pelo impulso lúdico que o homem eleva-se à sua

condição humana, momento em que seu estado racional é harmonizado ao estado sensível,

bem como proferiu Friedrich Schiller (1995), ao explanar que é pelo impulso lúdico que os

dois estados atuam junto, pois

[...] este impulso lúdico seria direcionado, portanto, a suprimir o tempo no tempo, a ligar o devir ao ser absoluto, a modificação à identidade. O impulso sensível quer ser determinado, quer receber o seu objeto; o impulso formal quer determinar, quer engendrar o seu objeto; o impulso lúdico, então, empenha-se em receber assim como teria engendrado e engendrar assim como o sentido almeja por receber (Ibid., p. 78).

Neste sentido, pode-se entender que no homem ocorrem dois impulsos díspares, e que

o impulso lúdico ― apresentando-se como um terceiro impulso, é capaz de reunir e

harmonizar. E é através deste impulso que o homem atinge sua plenitude, pois, como exprime

Schiller (1995, p. 84), referindo-se à suas ideias de impulso lúdico, de jogo, “[...] o homem

joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra, e somente é homem pleno

quando joga”.

Porquanto, sendo a criança ser lúdico por natureza, latente em movimentos e, já “ao

nascer, “constituída pela soma infinita de disposições antropológicas que só a imersão no

campo simbólico, isto é, a relação com os outros, poderá permitir o desenvolvimento” (LE

BRETON, 2007, p. 8), tendo sua primeira relação social mais ampla dada na escola, que a põe

em contato com uma pluralidade de contextos socioculturais ― ainda que as interações

humanas sejam recortadas em momentos de contato e isolamento, em zonas limítrofes de

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aproximação do corpo, quando os alunos encontram-se em sala de aula, separados por

corredores e suas carteiras, onde devem permanecer assentados, em organização de fila, com

força simbólica suficiente para dominar o seu espaço de interação corporal, ainda assim, as

intervenções educativas promovem uma interlocução plural estabelecendo-se como figura

autêntica na significação das relações da criança com o seu mundo. Embora que, segundo o

autor mencionado acima, sejam “necessários à criança alguns anos antes que seu corpo esteja

inscrito realmente, em diferentes dimensões, na teia de significações que cerca e estrutura seu

grupo de pertencimento” (LE BRETON, 2007, p. 8.).

Assim, após afirmar-se na terra e em suas imediações,

O corpo existe na totalidade dos elementos que o compõem graças ao efeito conjugado da educação recebida e das identificações que levaram o ator a assimilar os comportamentos de seu círculo social. Mas, a aprendizagem das modalidades corporais, da relação do indivíduo com o mundo, não está limitada à infância e continua durante toda a vida conforme as modificações sociais e culturais que se impõem ao estilo de vida, aos diferentes papéis que convém assumir no curso da existência. Se a ordem social se infiltra pela extensão viva das ações do homem para assumir força de lei, esse processo nunca está completamente acabado. (LE BRETON, 2007, p. 9)

E essa variedade de aspectos essenciais para a constituição da dimensão da

corporeidade, ajudou a entender o homem como ser global e a ultrapassar a sua esfera

biológica, sendo reconhecido em sua capacidade criativa de produzir pela imaginação e pelo

símbolo. Neste momento, o homem abandonou a faceta de um genérico ser vivo para assumir

a sua condição de ser humano e suas ações passaram de singelas funções físicas e orgânicas

para ações expressivas em gestos e linguagens (SANTIN, 2001).

Pensando sobre essas informações, na interconexão de fatores que levam a existência

corporal, e em como poderiam ajudar-me na compreensão de corpo, que metaforiza o social e,

ao mesmo tempo, é metaforizado por ele, corpo que em seu interior manifestam-se as

possibilidades culturais e sociais, caracterizado por Le Breton na vertente sociológica, e que

exprime-se nesse estudo, depreendendo-se daí que “antes de qualquer coisa, a existência é

corporal” (Id., 2007, p. 7), apreendo como necessário situar o corpo aqui representado para

que emirja a consciência corporal à valorização da integralidade humana, ponto de referência

desta investigação.

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1.3.1 Corpo que te quero corpo

O que era no princípio, agora e talvez não para sempre, é a disposição que o homem

tem do corpo e de suas capacidades físicas. “[...] Em grande parte do mundo, os homens

caminharam par ir de um lugar a outro, nadaram, consumiram-se na produção cotidiana dos

bens necessários a seu prazer e à subsistência. A relação com o mundo era uma relação pelo

corpo” (LE BRETON, 2003, p. 20). E por esses modos de agir com o corpo, Mauss (2003, p.

407), em suas percepções de como tudo isso podia ser descrito, mas não organizado,

inquietou-se em dar um nome, entendendo que todo esse agir eram técnicas: técnicas do

corpo, e declarou que foi um erro ter considerado que só haveria técnica na existência de

instrumento. Assim, como declarou o autor, “chamo de técnica um ato tradicional eficaz (e

vejam que nisso não difere o ato mágico, religioso, simbólico)”. Mas que há a necessidade de

haver a tradição eficaz, pois “não há técnica e não há transmissão se não houver tradição”.

E, ao declarar a abordagem com que lida em seu estudo, “a técnica do corpo”, Mauss

refere, contudo, que “o corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem. Ou, mais

exatamente, sem falar de instrumento: o primeiro e o mais natural objeto técnico e ao mesmo

tempo meio técnico do homem, é seu corpo” (Id., 2003, p. 407. No entanto, ao que esclarece

Le Breton (2007), mesmo entendendo o corpo como uma ferramenta, ele ainda é onde o

homem acontece, em sua inserção simbólica. O corpo não pode ser simplificado em um

objeto técnico, nem tão pouco a uma simples máquina, e suas utilizações não tornam o

homem um instrumento. Nele encontram-se embutidos valores e significações, reveladores de

uma personalidade, uma cultura.

Mas o que ocorre é que cada vez mais a atividade exercita pela mobilidade e

resistência corporal, em seus

recursos musculares caem em desuso, a não ser nas academias de ginástica, e toma seu lugar a energia inesgotável fornecida pelas máquinas. Até as técnicas corporais mais elementares – como caminhar, correr etc. – recuam consideravelmente e só são solicitadas raramente na vida cotidiana como atividade de compensação ou de manutenção da saúde. [...] A ancoragem corporal perdeu seu poder. (LE BRETON, 2003, p. 20)

Esse corpo, que se re-significa na trama evolutiva de nossa vida, faz parte de uma

leitura de corporeidade física, integrante de parte da elaboração, dentre outras perspectivas,

que definem e caracterizam o corpo. Corpo que teve a sua história, até recentemente,

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negligenciada. Vitimado por legados culturais ― “por um lado, os componentes clássicos, e

por outro, os judaico-cristão”, em que ambos seguiram “para uma visão fundamentalmente

dualista do homem, entendida como uma aliança muitas vezes ansiosa da mente e do corpo”

e essas tradições, em seus caminhos e “razões diferentes, elevaram a mente ou a alma e

denegriram o corpo” (PORTER, 1992, p. 292). Que por vezes fora entendido por estudiosos

como uma visão genérica tomar o corpo humano em sua existência natural, “com

necessidades e desejos universais, afetado de maneiras variadas pela cultura e pala

sociedade”, que, juntas, constituem importante ponto de relação e referência corporal, de

maneira que

Tal divisão grosseria entre natureza e cultura seria obviamente inútil; e seria equivocado ― e irônico! ― proporcionar ao velho dualismo mente/corpo uma nova vida, tentando-se estudar a história (“biológica”) do corpo independente das considerações (“culturais”) da experiência e da expressão na linguagem e na ideologia. O ponto essencial está bem estabelecido. Evidentemente devemos enxergar o corpo como ele tem sido vivenciado e expresso no interior de sistemas culturais particulares, tanto privados quanto públicos, por eles mesmos alterados através dos tempos. Se [...] os corpos estão presentes para nós, apenas por meio da percepção que temos deles, então a história dos corpos deve incorporar a história de suas percepções (PORTER, 1992, p. 295).

O retratar da história interessa-me por auxiliar na determinação local da enunciação

dualística de representação do homem e que repercuti, ainda hoje, nas considerações sobre o

corpo. Em que calha igualmente com a emergência de examinar a dualidade costumeira

sujeito-objeto que incide na desconexão corpo-mente. Nesta circunstância, levando a ponto

as considerações de Platão, referidas por Le Breton (2003, p. 13), visualiza-se a distinção de

corpo e alma, em reforço a coexistência de dois princípios humanos, em que Platão preconiza

“o corpo humano como túmulo da alma, imperfeição radical da humanidade cujas raízes não

estão mais no Céu, mas na Terra. A alma caiu dentro de um corpo que a aprisiona”.

Essa concepção de corpo depositário permanece atual na orientação científica,

“coisificando-o” a ponto de mantê-lo sob a insígnia de constante transformação, com

propósito de sempre melhorá-lo. Em constante aprimoramento, o corpo perde-se do sujeito e

esvaíra de sua identidade pessoal. Dessa maneira, “subtraído do homem que encarna à

maneira de um objeto, esvaziado de seu caráter simbólico, o corpo também é esvaziado de

qualquer valor” (LE BRETON, 1990 apud LE BRETON, 2003, p. 15).

Para Najmanovich (2001, p. 18), “o corpo que surge deste modo de experimentar e

conceber o mundo é um corpo sem vísceras, uma casca mensurável, um arquétipo de ‘valores

normais’, um conjunto de ‘aparatos’. Um corpo separado da psique, da emocionalidade, do

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conhecimento”. Para a autora, esse corpo é um corpo preso ao estado contemplativo, sem

vida, coincidindo com algo que possa ser medido, sobrevindo o mesmo com o corpo

moderno.

Pois, as consequências da elevação dos aspectos cognitivos ao nível da perspectiva

linear ― técnica que contribuiu para a geometrização e a confiança em um espaço

independente e que produz experiências controladas e limitadas a medições de variáveis,

cooperaram para o desencadeamento de uma compreensão mecânica do corpo. Enquadrando-

o a leis matemáticas “dentro de um pensamento de causa-efeito regido pelo princípio da

simplicidade”. Com isso, o corpo do homem foi destituído de suas experiências humanas e

“novamente os ‘corpos’ desaparecem do horizonte cognitivo da modernidade, para deixar

apenas uma carapaça de propriedades mensuráveis. Os objetos passam a ser ‘massas

pontuais’, os impactos ficam elásticos, o espaço e o tempo se tornam absolutos”

(NAJMANOVICH, 2001, p. 18).

Diante desse campo científico, o corpo, isolado do homem, rende-se ao domínio

anatomofisiológico, mesmo que, segundo Le Breton (2003), ele não se reserve a este domínio

e nem a qualquer ordem que venham pô-lo em rascunho, no intento de encaminhá-lo à

perfeição ditada e concebida pelo “bom gosto” da ciência.

Diante desse despeito de ser constituído de carne, o corpo é dissociado do homem que ele encarna e considerado como um em si. Consagrado aos inúmeros cortes para escapar de sua precariedade, de seus limites, para controlar essa parcela inapreensível, atingir uma pureza técnica. Tentação demiúrgica de corrigi-lo, de modificá-lo por nãos se conseguir torná-lo uma máquina realmente impecável (Ibid., p. 17).

Nessa ciência da modernidade, que relega o corpo humano à condição mecanicista,

sendo esta a única dignidade a lhe ser conferida, em que é aniquilada a dimensão do homem,

conferindo-lhe constantes reestruturações, em resultado ao decréscimo de seu desempenho

acometido pela precariedade de suas funções, por sua ampla fragilidade e insuficiência de

durabilidade, como se fosse possível mudar o homem pela mudança de sua aparência,

compila-se esforços para promovê-lo à máquina. Nesta instância, “se não é subordinado ou

acoplado à máquina, o corpo nada é” (LE BRETON, 2003, p. 19). Com isso, o corpo é

destacado do homem, sendo visto como um objeto como outros e rebaixado ao modelo de

máquina, que tem sua superioridade confirmada (Id., 2007).

Se a linearidade, enredada na ciência da modernidade com propriedade no sistema

contábil, associando-se a filosofia positivista do conhecimento, contribuiu como técnica para

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uma visão mensurável e depois moldável do corpo, o filósofo René Descartes participou com

a concepção detidamente do mesmo. Tendo sido o fundador do entendimento mecânico do

corpo, em sua anatomofisiologia, pela distinção corpo e mente como sendo substâncias

diferentes. Por suas atribuições, tornou quase inevitável a dicotomia dessas polaridades,

entendendo-os em uma premissa da filosofia mecanicista. Em sua sentença máxima: “penso,

logo existo”, Descartes faz surgir uma impessoalidade que separou o homem que pensa do

homem em sua forma corporal. Sua teoria de conceber o corpo como engenharia mecânica e a

mente como estrutura racional, opõe a alma ao corpo, trazendo ao longo de sua trajetória, até

os dias de hoje, efeitos sobre a compreensão da corporeidade (NAJMANOVICH, 2001, p.

19).

Mas esta visão de corpo está longe de ser a única a desconsiderar os dados ecológicos,

culturais e sociais do meio humano e a caracterizar e validar o sujeito tão somente pelos

constituintes da carne. Nesta dimensão, a pessoa é misturada ao coletivo, tendo sua

individualidade negada. Dessa maneira, vão se rendendo aos padrões e ao domínio coletivo

que sobre o corpo exerce controle rigoroso.

Além disso, as próprias sociedades ocidentais são confrontadas a incontáveis modelos de corpo: os utilizados pelas medicinas “paralelas”, ou os utilizados pelas medicinas populares que ressurgem num contexto social e cultural modificado, introdução confusa de modelos energéticos na medicina, a extraordinária divisão do campo das psicoterapias que repousam sobre modelos do homem e do corpo extremamente contraditórias de um extremo ou outro. Em nossa sociedade, nenhuma das representações do corpo faz a unanimidade, nem mesmo o modelo anatomofisiológico (LE BRETON, 2007, p. 29).

O que também pode ser verificando no caminho histórico da corporeidade, é que a

incidência social sobre ela, em uma primeira verificação, vislumbrou o corpo como refém de

sua condição física, sendo ele produto de seu meio social e cultura. Já em uma segunda

orientação, contrapondo a recém citada, o padrão social do homem é condicionado

diretamente e inevitavelmente pelo corpo, sedo o biótipo determinante nessa concepção, na

qual a corporeidade deixa de ser efeito da condição social do homem e torna-se responsável

por ela.

Em uma terceira orientação, o apreço pelo modelo biológico que resulta o fator social

é contestado por sociólogos ― Durkheim e colaboradores, indo de encontro ao

enquadramento do corpo ao domínio da organicidade. Até que então, em uma versão da

psicanálise, por Freud, o corpo passa a ser compreendido pelas relações sociais e as

referências históricas pessoal do sujeito. Em suma, em uma determinada época, o corpo

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perpassou as mudanças econômicas e sociais, foi controlado por uma orientação biológica,

distinguido em suas partes anatomofisiolóficas (LE BRETON, 2007).

Contudo, a preocupação social com o corpo surge somente no final dos anos 60,

desencadeada pela crise físico-corporal entre homem-homem-mundo, incitada pela busca

extravagante de um corpo esplendoroso que tomou conta da sociedade, propagando críticas

sobre as condições da corporeidade, que, uma vez encarnada, torna-se marca do sujeito e o

distingue dos outros por ser seu traço mais visível. Com isso, toma conta do homem a

incerteza de suas relações com o mundo, e este parte em busca de um conjunto de

características próprias mais favoráveis. Neste intento, o homem reluta a essa condição de ser

só físico e volta-se ao corpo, que o diferencia individualmente, depositando nele o elo que o

unirá aos outros. Nestes arranjos e desarranjos da modalidade física de ralação do homem

com os outros e como o meio social, pelo uso físico, pela representação e a simbologia da

corporeidade, criou-se um domínio sobre o corpo na modernidade (LE BRETON, 2007).

A partir daí adota-se, em alguns estudos, o cuidado na análise das características

sociais e culturais que formam a corporeidade humana, sendo que nas últimas décadas o

caminho de reflexão percorrido por estudos que discutem essa temática, principalmente os da

sociologia, vem contribuindo significativamente para muitas considerações envoltas ao corpo.

O que um olhar mais cuidadoso e atento pode favorecer nas observações das relações em que

o homem se integra, é no desvencilhar de uma maneira singular de se perceber a corporeidade

e no enxertar de novas outras.

Nesse sentido, ao que refere Najmanovich (2001, p. 12), com esse rompimento, “nos

damos conta de que a pergunta ― como todas as perguntas ― sobre o ‘corpo’ é histórica e

socialmente condicionada”. Mas é preciso investigar todas as noções sobre o corpo que

historicamente fizeram parte do discurso de pesquisadores, “o que produz tanto mal-estar

quanto impulsiona nova busca de sentido”. Para que, assim, possa-se abrir às novas

possibilidades de compreensão do corpo, que abandonam a dicotomia corpo-mente e

permitem a abordagem de “uma mente corporalizada e um corpo cognitivo emocional” (Ibid.,

p. 10). De tal modo, seja por pesquisa histórica ou comparativa, vão surgindo estudos que

apontam para as considerações das interações acerca do corpo.

No entanto, para que ocorra a compreensão de corpo-mente como unidade, é preciso

também reconhecer que, assim como indica Nóbrega (2005, p. 607), “a mente não está em

alguma parte do corpo, ela é o próprio corpo”. E, enquanto unidade, a autora afirma ser um

engano “colocar a mente como uma entidade interior, haja vista que a estrutura mental é

inseparável da estrutura do corpo”. Nesta concepção, os sentidos mentais que proporcionam

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informações, podem ser compreendidos como uma decodificação dos estímulos adquiridos de

acordo com os múltiplos contextos vivenciados corporalmente.

E nessa trajetória, do encanto ao desencanto; da visibilidade à invisibilidade; da

permanência ao abandono; do destino à escolha, o repertório de ideias sobre o corpo há

tempos apresenta-se impregnada de contingência, experimentando a contextura que por

ventura possa advir à instituição de uma identidade, através da consolidação do conjunto de

característica que o represente.

E para situar o campo de estudo e análise sobre o corpo, interessantes a essa

investigação, faz-se necessário indicar nesse momento teórico, o corpo em que se manteve o

foco orientador do olhar lançado para as situações que se fizeram presente no decorrer do

estudo em cena. Olhar este que acenou compreensões sobre o corpo que contrapõe a

apreciação dicotômica sobre ele.

Porquanto, este estudo se coloca na perspectiva corporal de Le Breton, que dentre suas

considerações, encontra-se a ideia de corpo expresso no domínio simbólico, vez que considera

a dimensão pessoal, social e cultural nas percepções do corpo e, ainda, enquanto a sociologia

estuda o corpo em suas relações sociais e culturais, a medicina e a biologia o estudam em sua

esfera estrutural, morfológica, biológica, anatômica. Estudar o corpo inserido no espaço

escolar, em suas interações com a escola, levou-me a estudar suas relações mediadas pela

sociologia do corpo, considerando suas relações sociais e culturais, entendendo que, ampliar o

olhar a outras áreas do conhecimento igualmente aplicadas ao corpo, poderia levar esta

investigação ao risco de dispersão do objeto aqui considerado.

As considerações de Le Breton (2007) mostram-se sobremaneira interessantes para

pensarmos o corpo humano em sua construção social e cultural, no montante de suas relações

com o mundo, bem como na determinação de sua natureza, ou seja, em toda a sua dimensão.

E como menciona o autor, o corpo inexiste em estado natural, sempre está envolvido

nas ligações sociais de sentidos. Em suas acepções, até mesmo a dor é social e culturalmente

construída, assim como suas percepções são tanto individuais como coletivas, de maneira que

os sentidos atribuídos ao corpo são parte de uma irrealidade culturalmente eficiente e viva,

desde que associada ao homem abarcado de sua corporeidade, significando e que valorizando

o local, os constituintes, os desempenhos, os imaginários particulares ao sujeito, e que estes

sejam respeitados quanto ao lugar e o tempo de cada sociedade humana ― pois são essas

condições que determinam a diferença cultural da maneira de se usar o corpo, em suas

dimensões espaço-temporal; interativa e linguística (Ibid.).

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Para que, dessa maneira, ocorra a transferência de verificação do homem em

consideração as suas características físicas, de onde supostamente advêm suas qualidades

humanas, para a decorrência de concepções de que o homem constrói socialmente seu corpo

e, assim, o homem deixa de ser visto como uma construção do corpo em suas propriedades

orgânicas e assume sua condição de criador das qualidades dele, através de sua interação com

os outros e com o mundo, imergindo-se no campo simbólico (LE BRETON, 2007).

Assim, as representações do corpo, em suas mais diferentes manifestações e de visões

de diversas comunidades humanas, são representações de pessoas. Peculiarmente, o corpo vai

se construindo nas tramas sociais do coletivo, nas teorias que o explicam em seu

funcionamento e em suas relações com o homem que encarna. E nessa estrutura, em que Le

Breton apresenta sua compreensão de corpo, considerado sob os efeitos de uma elaboração

social e cultural, em que a dimensão simbólica da corporeidade juntamente as representações

pelos sujeitos, são fundamentais para a sua compreensão, o corpo por si só ― em seus feitos e

limites, em sua gestualidade, são meras representações da carne, em uma disposição da ótica

biológica e que, neste sentido, o corpo torna-se marca limítrofe das pessoas, onde é iniciada e

encerrada a presença humana (Ibid.).

A corporeidade anunciada pelo autor encena as interações e rituais entre pessoas, indo

além da dimensão biológica ― que subordina a corporeidade a uma natureza, inscrevendo-se

na perspectiva de que o homem não se separa de seu corpo e faz uso dele através da

complexidade das trocas de significações entre o homem com os outros e com o mundo,

através de representações e imaginários perpassados da extraordinária variação das condutas

humanas (LE BRETON, 2007).

E, em contribuição a esta orientação teórica, Najmanovich (2001, p. 24) profere que “o

‘corpo vivencial’, ao contrário do ‘corpo da modernidade’ ou ‘corpo máquina’, não é um

objeto abstrato, nem independente de minha experiência como sujeito encarnado”. Tampouco

o local das vivências, uma mente ou um eu sinóptico existem independentemente, ou

representem paragem permanente e estável da experiência.

Nessa ótica, nossa corporalidade nos define como sistemas autônomos, com limites semi-permeáveis, uma sensibilidade diferencial e em constante troca com o entorno com que estamos “enredados” em uma rede fluente de relações que implicam que estamos comprometidos em uma dinâmica de transformação em co-evolução com o ambiente. Nossa corporalidade determina o campo de afetação e a classe de interações e transformação possíveis (NAJMANOVICH, 2001, p. 26).

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Contudo, é preciso que se entenda e se reconheça de vez, assim como sugeriu Medina

(1990b, p. 12), “que nós não temos, um corpo; antes, nós somos o nosso corpo, é dentro de

todas as suas dimensões energéticas, portanto, de forma global, que devemos buscar razões

para justificar uma expressão legítima do homem”. No entanto, o autor indica que este intento

somente será possível quanto o homem for concebido em suas manifestações de pensamento,

sentimento e de seu movimento. Mas o que ocorre, é que, desses “três aspectos, ainda tem

prevalecido em nossa cultura a ênfase sobre o pensamento”.

O sentido de ser pessoa, estando atrelada a todas as conjunturas de sua corporeidade,

assim como pode ser observado no referenciado pelos atores mencionados, indica que sua

importância não se fundamenta em sua constituição biológica, mas, assim como menciona

Csikszentmihalyi (1992, p. 141) “o que lhe dá um valor inestimável é o fato de que” sem o

corpo “não haveria experiência, nem, portanto, qualquer registro da vida como a

conhecemos”.

Diante de tudo isso que está sendo dito, encontra-se um corpo humano com potencial

para realizar inúmeras funções sensoriais e motoras, em que cada uma delas apresenta

possibilidades ilimitadas em gerar satisfação, quase sempre inexploradas. Em geral, “o

simples ato de movimentar o corpo no espaço torna-se uma fonte de retorno complexa que

proporciona a experiência máxima, e reforça o self. Cada órgão sensorial, cada função motora

pode ser canalizada para produzir o fluir”. Mas os movimentos corporais não são os únicos

responsáveis pelo fluir, a mente também está sempre presente nesse processo. Pois sem os

pensamentos e as sensações adequadas nãos seria possível obter a satisfação com a atividade

realizada (CSIKSZENTMIHALYI, 1992, p. 142).

E nessa possibilidade de fruição, o corpo é assimilado e o indivíduo descobre, através

dele, a possibilidade de transcendência pessoal e de contato. Dessa maneira, é reiterada a ideia

de que o corpo não é uma entidade isolada da mente, mas que ambos fazem parte de uma

unidade, uma integração indissociável.

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1.3.2 Do corpo profanado ao corpo sacralizado: a metamorfose corporal na vigência

escolar que petrifica a borboleta1

Uma vez entendido o corpo em sua construção envolta as ligações sociais de sentido,

representado pelas mais diferentes manifestações e visões de diversas comunidades humanas,

assim como outrora fora indicado em referência de Le Breton (2007), cabe agora indicar,

dentre as diferentes visões de corpo, em consonância com os dizeres de Silvino Santin, o que

pode-se entender por uma visão de corpo lúdico e como este se adapta ao ambiente escolar.

Porém, antes de iniciar as considerações sobre o corpo que desejo ver manifestadas aqui,

apresento dois questionamentos, dentre tantos outros, apresentados no discorrer da ideia de

corpo lúdico por Santin (2001, p. 109), sendo, o primeiro: “Seria o corpo um objeto do qual

podemos ter múltiplas visões?” E o segundo: “A dimensão lúdica seria uma característica

própria do corpo, ou seria apenas a maneira de ver o corpo que o torna um objeto lúdico?”.

O intuito de apresentar ambos os questionamentos ocorre pelo desejo, enquanto

pesquisadora desta visão, de compreender adequadamente a manifestação lúdica do corpo.

Questionamentos que, de certa forma, já começam a ser respondidos nas menções do autor

acima citado, em um trato particular das expressões lúdicas, quando acenou sobre esse

aspecto do corpo, indicando que “[...] não é o objeto de nossa visão que lhe atribuiu uma

qualidade lúdica, uma visão vinda de fora, de um sujeito cognoscente, mas o corpo é o sujeito

da ação de ver, ou seja, ele é capaz de ter uma visão lúdica da realidade. Em palavras mais

claras, o corpo vê ludicamente” (SANTIN, 2001, p. 109-110).

E em sua dedicada intenção de considerar a ludicidade do corpo, Santin (2001, p. 117)

acrescenta que “o lúdico do corpo corresponde a valores vividos, a situações, a emoções

explicitadas das mais diferentes formas. O corpo lúdico nunca será reduzido a objeto lúdico.

Isso acontece na sociedade do trabalho produtivo. Corpo lúdico é o da criança que faz coisas

não produtivas”.

Sempre que se fala em ludicidade ou em corpo lúdico, é comum observar de imediato

a associação desses aspectos à criança, que tem por característica a jocosidade, a

despreocupação com ocupações laborais e um descomprometimento com a seriedade

particular aos interesses do adulto. No entanto, o corpo lúdico não pode ser circunscrito

1 Expressão metafórica utilizada para referir à mudança comportamental do corpo no decorrer do processo de escolarização, em que as manifestações corporais lúdicas são suprimidas no aprendizado de conteúdos escolares, incorrendo em um corpo contido, refreado em sua espontaneidade.

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somente à natureza infantil, mesmo que Santin (2001, p. 27) venha considerar a criança como

“o grande mestre dos brinquedos”, é importante que este corpo seja levado à concretude da

ação humana em todas as fases da vida.

Mas, para que isso ocorra, é preciso que a compreensão de uma atitude corporal lúdica

emirja do conhecimento de seus significados, de seus valores e sua função, que dão suporte a

fundamentação para o seu manifestar pleno e que, de uma vez por todas, venha a desvincular

o corpo lúdico de uma denotação frívola. Caso contrário, o corpo lúdico será sempre um

corpo improdutivo à vista do homem adulto, alocado à infância, visto pelas instituições

disciplinares como provedor de desordem e, com isso, apregoado por noções que não lhe

dizem respeito.

Entretanto, como estimar um corpo lúdico se o próprio corpo, de uma forma global, é

amortizado no contexto de nossa sociedade e a escola tem se ocupado em discipliná-lo e

habilitá-lo para o atendimento das exigências sociais?

Sabendo que a sociedade não é naturalmente entregue ao homem, mas é ele quem a

constrói e que “cada cultura cria seu próprio sistema de significado para garantir a sustentação

de sua ordem social”, como proferiu Santin (2001, p. 98), bem como a visão de corpo é

alterada socialmente de acordo com seus interesses sobre ele, em que “novos valores são

introduzidos no meio social na tentativa de determinar padrões de comportamento dos

indivíduos e do próprio corpo” (GRANDO, 1996, p. 17), e, ainda, que nossa sociedade é

regida em primazia pela racionalidade em detrimento ao contingente emocional, centrada na

produção, na qual, segundo Maturana e Verden-Zöller, (2004, p. 143), “aprendemos a nos

orientar para a produção em tudo o que fazemos, como se isso fosse algo natural”, porquanto,

nada do que fazemos pode ter um fim em si mesmo, sempre produzimos com um fim

específico.

E nessa cultura em que “não descansamos simplesmente; nós o fazemos com o

propósito de recuperar energias; não comemos simplesmente, ingerimos alimentos nutritivos;

não brincamos simplesmente com nossas crianças, nós a preparamos para o futuro”

(MATURANA; VERDEN-ZÖLLER, 2004, p. 143), parece-me um grande desafio incutir o

corpo lúdico na ação humana e em uma sociedade cuja maneira mais frequente de tratar o

corpo consiste em considerá-lo em uma visão instrumental, ou seja, ele têm que servir à

alguma coisa para que dele se obtenha algum proveito pois, de outra maneira, ele é negativado

e rechaçado socialmente.

Contudo, é necessária a participação do corpo para que a ludicidade se manifeste,

porque sem ele, a inspiração lúdica não consegue acontecer. No corpo e pelo corpo a

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ludicidade é processada, é através dele que o lúdico une-se a unidade humana. Por isso, “o

brinquedo precisa ser uma manifestação corporal porque os valores lúdicos que acontecem na

ação lúdica só podem ser vividos, sentidos, amados pelo corpo” (SANTIN, 2001, p. 57).

No entanto, para que o brincar aconteça, o corpo tem que estar relaxado, seguro,

confiante. Do contrário, estando ele em estado de incerteza subjetiva ou medo, a brincadeira

certamente não decorrerá. “Os estímulos novos que são subitamente introduzidos precisam ser

‘explorados’, antes de se brincar com eles. O corpo que brinca provavelmente ri, sorri,

mostra-se relaxado [...] mostrando emoção: há um ‘forte elemento de prazer’ na atividade que

é lúdica” (ROSAMILHA, 1979, p. 5 apud GOMES, 2001, p. 32).

Por este imperativo de participação do corpo, para se efetivar a ação lúdica, há a

necessidade de que se consolide definitivamente o fato de que o corpo é uma realidade vivida,

uma totalidade que identifica o homem integralmente em sua sensibilidade, emoção e

inteligência. E nessa empreitada, a escola pode vir apresentar-se como local propício pra a

emancipação do corpo sob a visão de máquina, em que ele é reduzido à função de abrigo da

mente, em um constante habilitar para servir a algo.

E com esta concepção de educação, em que a escola desempenha a função de preparar

o indivíduo para ser inserido na ordenação laboral, assim como proferiu Maffesoli (1999,

apud GOMES, 2001, p. 49), em entrevista cedida à Universidade da Sorbonne, o espaço para

a interação lúdica fica cerceado na escola, visto que “o jogo se opõe ao trabalho, como aquilo

que é frívolo contra algo que é sério. A escola é uma instituição que vai dar a formação e o

lugar onde o indivíduo faz coisas produtivas”.

Envolvida nesta condução escolar, a criança é adulterada para adequar-se a formação

do quando adulto. Rousseau (2004, p. 90) adverte sobre a antecipação a que é levada a

criança, considerando importante tratá-la a partir dela mesma, em reconhecimento das

diferenças das fases da vida humana. Mas, de acordo com o autor, ao contrário disso, “a obra-

prima de uma boa educação é formar um homem razoável, e pretende-se educar uma criança

pela razão! Isto é começar pelo fim, é da obra querer fazer o instrumento. Se as crianças

ouvissem a razão, não precisariam ser educadas [...]”. Assim, em oposição à educação em

que a criança é vista como um adulto, Rousseau segue contestando essas práticas pedagógicas

referindo que

A natureza quer que as crianças sejam crianças antes de serem homens. Se quisermos perverter essa ordem, produziremos frutos temporões, que não estarão maduros e nem terão sabor, e não tardarão em se corromper; teremos jovens doutores e crianças velhas. A infância tem maneiras de ver, de pensar e de sentir que

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lhe são próprias; nada é menos sensato do que querer substituir essas maneiras pelas nossas, [...]. Com efeito, de que lhe serviria a razão nesta idade? Ela é o freio da força, e a criança não precisa desse freio (ROUSSEAU, 2004 p. 91-92).

Rousseau, em sua preocupação com o tratamento destinado à criança, indica que o

período da infância, assinalado entre o nascimento e a idade de doze anos, é o período da vida

humana que demanda mais cautela no processo educativo, pois é nessa ocasião em que se

impregnam os erros e os vícios dos quais a criança não pode ainda se defender. E no momento

em que ela adquire condições de discernimento, esses erros e vícios estão tão incorporados

que dificilmente consegue invalidá-los. “Se as crianças saltassem de uma vez das tetas para a

idade da razão, a educação que lhes damos poderia ser-lhes conveniente” (Id., 2004, p. 96).

A pedagogia proposta pelo autor referido, evidencia a criança, colocando-a no centro

de seu aprendizado, em reconhecimento a sua condição infantil e respeitada em suas

características. Pois, segundo Rousseau (2004, p. 4)

Não se conhece a infância; no caminho das falsas ideias que se tem, quanto mais se anda, mais se fica perdido. Os mais sábios prendem-se ao que aos homens importa saber; sem considerar o que as crianças estão em condição de aprender. Procuram sempre o homem na criança, sem pensar no que esta é, antes de ser homem.

Válido se faz mencionar que as ideias de Rousseau apresentaram-se com relevância

para elucidar a necessidade de uma atenção à criança como tal, em que a particularidade da

infância ganhou espaço na atenção ao seu processo educativo.

Outra abordagem feita pelo autor foi a preocupação com o corpo no processo

educacional, porém, em particular a este estudo, ela não mostrou-se interessantes por não

abarcar as análises das vivências corporais em seus aspectos lúdicos, relacionadas à escola,

tão pouco propõe o corpo em seus aspectos socioculturais, o que aqui venho considerando.

Apesar de Rousseau defender uma educação relacionada à liberdade, inclusive por

intermédio de movimentos corporais, ele faz menção a atividade física como contribuição

para a formação de um corpo virtuoso e para o uso dos sentidos, sendo que os exercícios

contínuos direcionados pela natureza do homem, fortaleceriam o corpo sem tornar o espírito

bruto, formador da razão compreensível à infância ou a qualquer idade e, para que não fossem

simplesmente automáticos, os exercícios deveriam estar aliados a outros sentidos corporais,

de maneira que fosse promovido o envolvimento integral e livre do mesmo (ROUSSEAU,

2004).

A relevância dada ao corpo por Rousseau, em toda essa proposta de educação junto ao

exercício físico, conduziu um olhar sobre o corpo que desfavoreceu uma prática educacional

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que promovesse uma real liberdade, vez que, em suas considerações, a educação do corpo

estava restrita ao seu fortalecimento como forma de obediência à alma, assim declarando que

“é preciso que o corpo tenha vigor para obedecer à alma, um bom servidor deve ser robusto

[...] Quanto mais fraco é o corpo, mais ele comanda, quanto mais forte ele é, mais obedece.

[...] Um corpo fraco debilita a alma” (Id., 2004, p. 34).

Rousseau apregoava que ter um corpo forte levaria o homem a ser livre, independente,

capaz de movimentar-se rumo às suas aspirações, mas estas aspirações deveriam estar

condicionadas à moral de tal maneira que levaria a resistência das perdições e fraquezas como

também aos exageros, inclusive os cometidos pelo corpo. Dessa maneira o corpo é submetido

muito mais à força do que à liberdade, cerceado de sensações prazerosas, vez que o autor

atribui responsabilidade pela fraqueza humana, aos desejos e paixões manifestados pelo

homem, entendendo que a busca por saciá-los demanda mais força do que a fornecida pela

natureza. Assim, quanto mais se diminuísse o desejo, mais se aumentaria a força (Ibid.).

Nesta acepção de educação proposta por Rousseau, em que o homem deveria

transcender as suas necessidades particulares, a educação apresenta-se em uma projeção

utilitária, promovida com fins de conter os desejos, as paixões e a necessidade do corpo

através de exercícios físicos. E mesmo que a educação, na proposta do autor, deva ser

conduzida de acordo com uma liberdade bem orientada e valorize o corpo e o movimento,

esses últimos ainda são entendidos como subsídios na formação do homem.

Neste sentido, o corpo permanece sobre a insígnia de servir a algo, tendo que ser

treinado para ser forte, robusto, inserido no bojo de uma doutrina utilitarista e um processo de

adestramento do físico, assim como mencionou Grando (1996). E a escola, uma vez validando

este modelo de educação do corpo, restringe ainda mais o espaço para o lúdico, mais ainda,

cria maior resistência a ele. Pois, segundo Santin (2001, p. 117) “o lúdico não constitui uma

categoria igual ao valor estético, de saúde ou de performance de um corpo. O lúdico é uma

maneira de viver, de ser e de fazer”.

Imaginar uma instituição voltada à infância que não considere como fundamental

interações também através do lúdico, conduz-me a pensar nas palavras de Château, que,

considerando a possibilidade de tais ocorrências, faz a seguinte reflexão:

Não se pode imaginar a infância sem seus risos e brincadeiras. Suponhamos que, de repente, nossas crianças parem de brincar, que os pátios de nossas escolas fiquem silenciosos, que não sejamos mais distraídos pelos gritos ou choros que vêm do jardim ou pátio, que não tivéssemos mais perto de nós este mundo infantil que faz a nossa alegria e o nosso tormento, mas um mundo triste de pigmeu desajeitados e silenciosos, sem inteligência e sem alma [...] Pois é pelo jogo, pelo brinquedo, que

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crescem a alma e a inteligência. [...] Uma criança que não sabe brincar, uma miniatura de velho, será um adulto que não saberá pensar (Id.,1987, p.14).

Sendo assim, por que não considerar o corpo lúdico na escola? Auxiliando os saberes

escolares também através de manifestações corporais. Pois o que é o cotidiano da criança se

não a somatória de suas atividades diárias, caracterizadas de forma lúdica, uma vez composta

por brincadeiras e jogos.

Porquanto, para que o corpo possa ser reconhecido em sua totalidade, como ação

propícia na condução do processo pedagógico, em relevância ao seu contexto sociocultural, é

imprescindível que a práxis escolar rompa com a visão cartesiana de separação entre o corpo e

a mente. E para que o lúdico venha a ser companheiro do corpo na escola, é necessário que

este não seja utilizado/ministrado de forma solta e/ou sem objetivo. Tomando igualmente o

cuidado para conservar as condições que caracterizam o jogo, evitando “[...] o uso utilitário e

pedagógico destas atividades, tendência de muitos educadores, que podem ver o jogo somente

como um meio para se alcançar outros objetivos fora e além dele” (EMERIQUE, 2004, p. 5).

Como medida preventiva contra a instrumentalização do jogo, o professor deverá

permitir o seu desenvolvimento espontâneo, respeitando suas características próprias, levando

em consideração os pontos positivos de se ter a ludicidade na interação educativa. Pois, como

alerta Emerique, “[...] a ação livre da criança precede qualquer intenção que o adulto possa ter

ao oferecer essa oportunidade educativa de brincar” (Ibid., p. 5).

Pensar sobre valorizar as possibilidades de manifestações corporais e a oferta de

interações lúdicas em ambiente escolar, ocorre junto com a possibilidade de perceber o corpo

lúdico como subsídio ao desenvolvimento pleno da criança neste espaço, não como

instrumento pedagógico que possa vir suprimir as interações convencionais. Visto que, há

considerações que demonstram uma preocupação com a sobrevalorização do brincar, quando

este se apresenta em detrimento a cultura de esforço, como menciona Hannah Arendt (1997),

em seu texto “A crise na educação”, que aponta a sobrevalorização do aprendizado pelo fazer

no processo de ensino como uma das explicações para a crise da educação, sendo uma das

medidas catastróficas, assentada por meios de uma desesperada tentativa de reformar todo o

sistema educacional. Em que, segundo a autora, a ação do professor sofre alterações, induzida

pelo “desejo de levá-lo ao exercício contínuo da atividade de aprendizagem, de tal modo que

ele não transmitisse, como se dizia, ‘conhecimento petrificado’, mas, ao invés disso,

demonstrasse como o saber é produzido”, motivo pelo qual não se considerou importante o

domínio que o professor tem de sua disciplina (Ibid., p. 232).

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E, ainda:

[…] se atribuiu importância toda especial à diluição levada tão longe quanto possível, da distinção entre brinquedo e trabalho – em favor do primeiro. O brincar era visto como o modo mais vívido e apropriado de comportamento da criança no mundo, por ser a única forma de atividade que brota espontaneamente de sua existência enquanto criança. Somente o que pode ser aprendido mediante o brinquedo faz justiça a essa vivacidade (ARENDT, 1997, p. 232).

Neste sentido, a criança deveria aprender fazendo, envolvida em uma atividade

particular a sua natureza ― o brincar. Sendo mantida, ininterruptamente, em sua condição de

criança. O que, segundo a autora, tal processo intenta manter a criança mais velha, ao maior

nível possível da mais tênue idade. “Aquilo que, por excelência, deveria preparar a criança

para o mundo dos adultos, o hábito gradualmente adquirido de trabalhar e de não brincar, é

extinto em favor da autonomia da infância” (ARENDT, 1997, p. 233).

A autonomia da infância, mencionada por Arendt, neste caso, reforçaria a

absolutização do mundo da infância, que fora mencionado pela autora como sendo o primeiro

pressuposto básico refletindo a crise na educação. Pois abarcaria um mundo próprio e

comandado pela criança. Sendo emancipada da autoridade e abolida do mundo do adulto. O

que, por fim, atribuiria aos adultos somente o encargo de auxiliar a criança no governar de si

própria. Tendo como uma das consequências o abandono da criança a si mesma, ou sendo

entregue a tirania de seu próprio grupo.

Contrapondo a ideia de infantilização prevista no brincar mediante ao processo de

educação, percebo um reforço valioso na aprendizagem que atividade como o brincar

proporciona, na citação de Bomtempo (2000, p. 132) mencionando Vygotsky, ao referir que

[...] no brincar a criança está sempre acima de sua idade média, acima de seu comportamento diário. Assim, na brincadeira de faz-de-conta as crianças manifestam certas habilidades que não seriam esperadas para a sua idade. Nesse sentido, a aprendizagem cria a zona de desenvolvimento proximal, ou seja, a aprendizagem desperta vários processos internos de desenvolvimento.

Para além de mencionar os pressupostos que indicam a crise na educação, vislumbrada

na pedagogia moderna, que põe fim na tradição e na autoridade, Arendt (1997, p. 223) indica

que “[...] uma crise só se torna um desastre quando respondemos a ela com juízos pré-

formados, isto é, com preconceitos. Uma atitude dessas não apenas aguça a crise como nos

priva da experiência da realidade e da oportunidade por ela proporcionada à reflexão”.

Entendendo que uma crise incita reflexão, Arendt nos demonstrou a sua, em sua obra, quando

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infere que os reais problemas na educação moderna encontram-se na dificuldade em alcançar

o mínimo de conservação e atitude conservadora. Por esta inexistência, a educação não é

possível. Sendo assim, as possibilidades bem sucedidas para educar ficam a cargo da

restauração do respeito pela tradição e pela autoridade do adulto ― professor. No entanto,

entendo que tantas outras reflexões são pertinentes e se fazem necessárias.

Buscar o retorno das tradições e autoridade como uma possível solução para o

processo educacional, me faz pensar sobre os referimentos de Stuart Hall (2003), no qual o

autor traça considerações sobre a identidade cultural, entendendo-a em estado de constantes

transformações. Ainda que Hall esteja a analisar a diáspora por mudanças geográficas, em

que, mesmo que inconscientemente, os disseminados alimentam-se da esperança pelo retorno

à terra de origem, penso que, ao voltar-me às menções de Arendt (1997), onde o mito

fundador poderia ser retratado pelas tradições e a autoridade, saudosos para a autora, a

restauração destes pontos poderiam ser a ação redentora da educação. No entanto, penso que

revigorar a tradição e a autoridade acerca da educação, tal qual a sua origem, assemelha-se

com que Hall (2003) referiu a respeito da concepção fechada de “tribo”, diáspora e pátria.

Neste sentido

[...] é estar primordialmente em contato com um núcleo imutável e atemporal, ligando ao passado o futuro e o presente numa linha ininterrupta. Esse cordão umbilical é o que chamamos de “tradição”, cujo teste é de fidelidade às origens, [...]. É, claro, um mito – com todo o potencial real dos nossos mitos dominantes de moldar nosso imaginário, influenciar nossas ações, conferir significado às nossas vidas e dar sentido à nossa história (HALL, 2003, p. 29).

Entendo como possibilidade para uma proposta significativa voltada a educação,

pensar em uma forma de interação que valorize a hibridização entre o brincar e o trabalho, no

processo educativo. Certa de que, “conduzir a criança à busca, ao domínio de um

conhecimento mais abstrato misturando habilmente uma parcela de trabalho (esforço) com

uma boa dose de brincadeira”, assim como Almeida (2000, p. 60) tratou da proposta lúdica

em meio à educação, “transformaria o trabalho, o aprendizado, num jogo bem-sucedido,

momento este em que a criança pode mergulhar sem se dar conta disso”.

Assim, as relações inerentes ao processo educativo não ficarão a mercê do rigor que

evidencie um único modelo para a sua prática. Contudo, outras possibilidades, como no caso

de atividades lúdicas, incidirão em plausível condição de tornar menos árdua a tarefa de

ensinar e o processo de aprender, rompendo com as tensões geradas pela formalidade do

ensino. E o corpo ganhará liberdade em reconhecimento ao saber corporal que cada criança

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possui. Vez que todas as informações recolhidas pela criança durante sua experimentação,

através de vivências corporais, como tocar, olhar gostar, entre outros, são utilizadas para

adquirir conceitos. Com isso ocorre um acumulo de informações havendo possibilidade de

desenvolvimento intelectual.

Por todas estas questões que envolvem a educação e a corporeidade infantil, considero

proeminente criar possibilidades de interações que considerem a criança enquanto ser que,

mesmo em fase de aprendizado, não perde sua condição de ser lúdico, ainda que a educação a

prepare para viver no mundo do adulto. Sigo movida pela preocupação de que não somos

educados para criar, somos educados para obedecer. Educamos nossas crianças para

obedecerem regras, não para serem genuínas. Pois em nossos modelos educacionais, ser

genuíno pode representar mal comportamento, uma transgressão.

Pelas razões expressas aqui, é possível considerar como relevante que a felicidade da

criança depende, principalmente, do ambiente em que ela se desenvolve.

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2. CAMINHO TRILHADO PARA CHEGAR AO OBJETO DESVELADO : O

LEVANTAR DAS CORTINAS

Abrir os olhos à pesquisa científica requer do investigador o “uso de lentes” que

possam refranger devidamente o tema que o instiga sem perder de foco o objeto que se

pretende constatar, através dos objetivos da investigação. Para tanto, a escolha dessas “lentes”

advêm do planejamento e da organização da base teórica ― adequada à temática considerada,

do conhecimento seguido ― de acordo com o problema de investigação e do método de

condução, referentes aos procedimentos adotados para a efetivação da pesquisa.

Passam, também, por este esquema de procedimentos, a escolha do cenário da

pesquisa ― campo onde será desenvolvida a investigação; do elenco protagonista ― sujeitos

participantes na pesquisa; das técnicas empregadas como estratégia na coleta de informações

pertinentes ao tema investigado ― instrumentos de produção de dados e da apreciação

destinada às informações adquiridas ― técnica de análise dos dados.

Para além desses elementos de composição de uma pesquisa, é preciso definir a

metodologia que conduzirá o “movimento ocular” do investigador à chegada de um

determinado conhecimento. É a metodologia que dará base à pesquisa e fará com que ela

possa ser reconhecida como científica.

No entanto a metodologia adotada precisa ser adequada, para que não ocorra o

equivoco de identificar fatores que tenham pouca ou nenhuma importância com a

complexidade do comportamento verificado na pesquisa, mas que, na medida do possível,

possibilitem o encontro de informações que tenham relevância científica (VIANNA, 2003).

Adequar o planejamento, a organização e o método da pesquisa a princípios

científicos, demanda se equipar de pressupostos teóricos, determinadas orientações que

ajudarão a compreender, com mais propriedade, os fenômenos decorrentes da realidade

investigada. Assim, de acordo com Minayo (1994, p. 19), “[...] a teoria é um conjunto de

conhecimento de que nos servimos no processo de investigação como um sistema organizado

de proposições, que orientam a obtenção de dados e a análise dos mesmos, e de conceitos, que

veiculam seu sentido”.

Sem dúvida, é preciso reconhecer na teoria seu importante aspecto de orientar o

investigador no decorrer da pesquisa, mas é fundamental reconhecer que é o investigador

quem elege os elementos expressivos da realidade para apreciá-los, procurando a relação entre

eles.

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Sendo assim, busquei informações apropriadas para a condução desta investigação,

que pudessem compreender as análises da trama de relações entre a criança e a percepção de

seu corpo em diferentes ambientes escolar. Para, enfim, partir de um olhar que alcançasse o

ponto de enunciação e descrevesse-o o mais precisamente possível, afastando o risco de

adulteração da identidade do objeto investigado ou que pudesse descaracterizar sua real

relação com o universo em que se insere.

2.1 O ato

Tendo em vista que o interesse deste estudo foi compreender como a criança escolar

percebe seu corpo enquanto está em sala de aula ― envolvida em atividades pertinentes ao

conteúdo letrado; quando está em quadra ― na aula de Educação Física e quando está no

pátio ― livre de qualquer atividade direcionada, com intuito de abranger sua percepção

nesses três momentos, que são tidos como distintos na escola, e de verificar a oferta do

brincar pela instituição de ensino investigada, penso ter sido quase inevitável, para isso, valer-

me da investigação qualitativa, que trata o ser humano em sua individualidade/singularidade,

reconhecendo, a cada um, uma reação advinda de uma experiência.

Dessa maneira, a opção pela pesquisa qualitativa enquanto método de investigação se

fez certeza por ser este um método que opera “com o universo de significados, motivos,

aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das

relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de

variáveis”. Respondendo a questões muito particulares sobre a dinâmica das relações sociais,

direcionadas a vivências, experiências e cotidianidade, nas quais exprime-se os fenômenos

humanos (MINAYO, 1994, p. 22).

Considerando que a pesquisa não visou à compreensão, o controle, a previsibilidade de

um objeto isolado de uma análise que considere o objeto de pesquisa e o ambiente que o

cerca, mas sim, visou à compreensão particular do homem enquanto sujeito, considerando que

há uma relação entre ele e as interações postas em estudo, busquei na investigação qualitativa

nos moldes de uma etnografia os elementos que pudessem contemplar o anseio por abranger o

sentido que determinadas vivências tem para os protagonistas desta investigação, de maneira

que me fizesse conhecer e tornasse conhecido o que, para mim, encontrava-se obscuro e que

provocou-me inquietações.

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Em uma investigação qualitativa, a realidade é construída e desempenhada pelo

sujeito, visando sempre à interpretação, ao invés da mensuração, do que é vivido pelo homem

e o sentido que ele atribui aos fatos de sua realidade. Valorizando o comportamento humano a

partir de sua compreensão de mundo (ANDRÉ, 1995).

E, ainda, uma das posturas adotadas pelo investigador qualitativo baseia-se no

pressuposto de que pouco se sabe das pessoas e ambientes que irão constituir o objeto de

estudo. Seria ambicioso, por parte do pesquisador, preestabelecer rigorosamente o método

para executar o trabalho. Os planos evoluem conforme se familiarizam com o ambiente,

pessoas e outras fontes de dados. Quando iniciam um trabalho, ainda que os investigadores

tenham uma ideia do que irão fazer, nada é detalhado antes da recolha dos dados. É o próprio

estudo que estrutura a investigação, não as ideias preconcebidas ou um plano prévio

detalhado. Não se trata de não se ter um plano, os planos na pesquisa qualitativa são flexíveis

(BOGDAN; BIKLEN, 1994).

O que contrapõe o modelo científico de paradigma dominante ― uma das ordens

científicas classificada por Santos (2003), para além do paradigma emergente, que, por sua

vez, tem como marca a obediência a um modelo rigoroso de investigação, valendo-se da

matemática como instrumento privilegiado de análise. E, deste lugar central da matemática,

na ordem científica dominante, derivam duas consequências principais: a quantificação como

sinônimo de conhecimento, na qual o que não é quantificável é cientificamente irrelevante e,

por segundo, a redução da complexidade do mundo, em que conhecer significa dividir e

classificar. Tendo como divisão primordial aquela entre “condições iniciais” ― reino da

complicação e do acidente, no qual é preciso selecionar os fatos a serem observados, e “leis

da natureza” ― reino da simplicidade e da regularidade, em que é possível observar e medir

com rigor.

Diferente desse modelo de pesquisa que segue rigorosos esquemas de análise

quantificável, a investigação qualitativa é descritiva. Os dados recolhidos, neste processo, são

em forma de palavras e imagens e não de números. Os dados, após coletados, são transcritos e

analisados pelo investigador em toda a sua riqueza (BOGDAN; BIKLEN, 1994).

E, ainda que na investigação qualitativa sejam selecionadas questões específicas, à

medida que os dados são colhidos, a abordagem para a investigação não é feita com o objetivo

de responder a questões prévias ou de testar hipóteses. O investigador privilegia a

compreensão dos comportamentos a partir da perspectiva dos sujeitos da investigação. As

causas exteriores são consideradas em segundo plano, o investigador recolhe os dados em

função de um contato aprofundado com os indivíduos, nos seus contextos naturais (Ibid.).

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Para além da característica da pesquisa, que, entre seus pressupostos, indica o

comportamento do investigador quando na coleta de dados, é necessário pensar, também, na

postura do mesmo enquanto investigador/indivíduo. O quanto este está impregnado de

conceitos quanto ao sujeito e/ou local investigado.

Posto isso, vez que na investigação qualitativa, a fonte direta de dados é o ambiente

natural do investigado e o investigador é o instrumento principal para essa coleta, ainda que se

utilize de equipamentos de áudio e vídeo, ou até mesmo de um bloco de notas, os dados são

coletados e completados por informações recolhidas através do contato direto do investigador

com o campo e sujeitos integrantes da pesquisa. Por essa razão, é necessário que o

investigador destine uma grande quantidade de tempo no local de investigação, para que se

torne parte do contexto (BOGDAN; BIKLEN, 1994). Desta maneira, “a coleta de dados

depende muito da perspectiva assumida pelo pesquisador, dos seus conceitos sobre as coisas”

(VIANNA, 2003, p. 63).

Porquanto, para conduzir eficientemente este estudo, considerei as características

apontadas por Bogdan e Biklen (1994, p. 47) para a investigação qualitativa, nas quais

sugerem que, neste tipo de investigação, o investigador busque os dados no ambiente natural

do investigado, assumindo “que o comportamento humano é significativamente influenciado

pelo contexto em que ocorre, deslocando-se, sempre que possível, ao local de estudo”; os

dados, nesta investigação, são obtidos através de palavras ou imagens.

Para tanto, é preciso estar atento aos fatos. “A abordagem da investigação qualitativa

exige que o mundo seja examinado com a ideia de que nada é trivial, que tudo tem potencial

para constituir uma pista que nos permita estabelecer uma compreensão mais esclarecedora do

nosso objeto de estudo”; os investigadores qualitativos se interessam muito mais pelo

processo do que pelo produto; os investigadores qualitativos não partem para campo de

investigação com hipóteses construídas previamente para ser constatadas. As teorias são

construídas a partir do agrupamento dos dados recolhidos; “o significado é de importância

vital na abordagem qualitativa. Os investigadores que fazem uso deste tipo de abordagem

estão interessados no modo como diferentes pessoas dão sentido às suas vidas” (BOGDAN;

BIKLEN, 1994, p. 47).

Por tudo que fora exposto até aqui, esta investigação adotou como método de

condução do estudo a pesquisa qualitativa e teve seu delineamento na pesquisa do tipo

etnográfico, pois lançou o olhar ao cotidiano escolar, com o interesse de apreendê-lo tal como

é vivido e de buscar informações sobre como a criança percebe seu corpo em três diferentes

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momentos vividos na escola, conduzido, simbolizado, significado e interpretado por elas em

suas ações.

Segundo as menções de André (1995), a etnografia, método qualitativo oriundo da

Antropologia, quando voltada à educação, inquieta-se com seus processos, em toda a

dimensão da natureza sociocultural em que ocorrem. Contudo, em virtude da necessidade de

permanência do pesquisador em campo por um tempo demasiadamente prolongado,

envolvendo longo período de estudo, atualmente tem-se tomado como alternativa uma

adequação da etnografia na educação, atribuindo a ela a classificação de pesquisa do tipo

etnográfica, permitindo ao pesquisador manter-se em um tempo menor no local em que ocorre

a coleta de dados.

No entanto, o pesquisador deve considerar os instrumentos da etnografia ―

observação, entrevista e análise documental, que tem como base a verificação e interpretação

das ações humanas de acordo com a relação que cada indivíduo estabelece com suas ações.

Na perspectiva de apanhar dados que traduzam o sentido que cada investigado atribui aos

fatos de sua vida (ANDRÉ, 1995).

Seguindo as orientações teóricas da pesquisa qualitativa do tipo etnográfica, adotei a

postura de observadora que se manteve em campo por quatro meses, buscando fazer parte do

cotidiano escolar e, com isso, integrar-me ao grupo das crianças investigadas. Já que o

investigador qualitativo deve firmar relação de confiança com os participantes e se

familiarizar com o ambiente de estudo, estar sempre disposto a observar e ouvir e ter

sensibilidade para identificar o fenômeno revelado.

2.2 O cenário

Passado a fase de planejamento e organização dos procedimentos e da escolha do

método adotado para a condução do estudo, tendo já levantado algumas teorias pertinentes ao

tema investigado, foi preciso pôr-me em campo, onde, segundo Minayo (1994, p. 26), ocorre

a fase exploratória da pesquisa em face à combinação da observação, entrevista, material

bibliográfico, dentre outros. E que, ainda, apresenta-se como “momento prático de

fundamental importância exploratória, de confirmação ou refutação de hipótese e construção

de teorias”. Assim, diante da necessidade de colocar o pé no solo reservado às relações dos

autores com o seu mundo, adentrei em campo, levando comigo as especificidades do estudo e

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a desconfiança de que o cenário real pode ser sempre mais complexo do que a ideia que eu

poderia ter dele.

Na perspectiva de desvelar o objeto investigado, optei por realizar a pesquisa em uma

escola municipal, onde oferece a Educação Física como disciplina ministrada referentes ao

quinto ano do ensino fundamental. Assim, o campo de pesquisa foi definido por uma escola

pública da rede municipal de ensino, localizada no bairro Jardim dos Ipês, em Cuiabá/MT.

Considerei como lócus de pesquisa, dentre seus micro-espaços, uma sala de aula designada ao

quinto ano “B”, a quadra poli-esportiva da escola e toda a extensão de seu espaço externo, que

neste estudo foi denominado de pátio.

A instituição-campo desta investigação possuía três salas voltadas ao quinto ano do

ensino fundamental. A realização desta investigação na sala que serviu de lócus prioritário

deste estudo se deu por condução da diretora da instituição, que direcionou-me diretamente a

ela no primeiro momento destinado à coleta de dados, apresentando-me imediatamente à

turma referida, assim que adentrei em sala.

Já que a série escolar contemplava uma das exigências de escolha do espaço de

pesquisa, por oferecer o grupo com faixa etária de interesse deste estudo, independente da

turma em que apresentava-se subdividida, não afetando a pergunta-chave da investigação e

nenhum outro critério específico a condução do estudo, não houve, por parte da pesquisadora,

qualquer objeção pela turma espontaneamente destinada pela diretora.

A sala de aula com sua arquitetura ou configuração, onde são ministrados todos os

conteúdos voltados à leitura e a escrita, que fez parte desta investigação, mede

aproximadamente oito metros de comprimento e seis metros de largura, tendo a parede lateral

que fica à frente da porta de entrada, possui três janelas dispostas do meio da parede até bem

próximo ao teto e ocupa toda a largura da parede em que está anexada.

Seu mobiliário é composto por um armário de ferro ― localizado no fundo da sala;

trinta e três mesas com cadeiras destinadas aos alunos, sendo uma para cada aluno e na

quantidade certa de aluno por turma, distribuídas em cinco fileiras, sendo que duas delas

continham seis mesas com cadeiras e três fileiras continham sete mesas com cadeiras e uma

mesa e cadeira, de tamanho maior que a dos alunos, destinadas ao professor ― localizadas à

frente das mesas dos alunos, em sentido contrário à deles e em uma das extremidades laterais

da sala.

Decorrente da quantidade de mesas com cadeiras, referente ao número de alunos e em

comparação com o tamanho da sala de aula, os corredores entre as fileiras eram muito

estreitos e o espaço entre as mesas e as cadeiras quase nem existia. De maneira que a

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movimentação dos alunos ficava comprometida e até mesmo para assentarem em seus

lugares, todos tinham muita dificuldade, faziam isso se espremendo entre a mesa e a cadeira.

A quadra poli-esportiva da escola, local utilizado para ministrar as aulas de Educação

Física, (também serve de espaço para reunir os alunos em formação de fila, sendo uma fila

para cada turma de cada série, no momento da chegada e para a apresentação artística nos

eventos da escola), possui cobertura metálica, é rodeada por mureta de concreto com

aproximadamente cinquenta e cinco centímetros de altura e vinte e cinto centímetros de

largura e localiza-se nos fundos da escola, de frente com a sala de aula espaço de investigação

deste estudo. A quadra possui as balizas utilizadas para o jogo de futebol e handebol e a tabela

de basquete, só não possui os buracos para o encaixe dos mastros da rede de voleibol. Caso

haja o desenvolvimento da modalidade esportiva voleibol, que de acordo com a informação

cedida pelo professor de Educação Física, este é realizado em um espaço anexo à quadra.

Considerei como pátio, neste estudo, todo o espaço externo à sala de aula e à quadra,

acessíveis às crianças nos momentos livres de atividades direcionadas, muito embora algumas

crianças, por opção, permaneciam em sala ou brincavam na quadra nestes momentos, ainda

assim foram observadas em suas atividades, livres de obrigatoriedade, mesmo estando nestes

locais.

Dessa maneira, o pátio desta investigação foi constituído por “espaços telhados”:

espaço central ― com piso de cerâmica, localizado entre as extremidades iniciais dos dois

principais corredores de salas de aula, ficando em frente à diretoria, secretaria e sala dos

professores e espaços referentes aos corredores das salas de aula, com piso de concreto.

Espaços abertos: espaços próximos à quadra ― um com piso de terra batida e uma árvore

grande e outro com piso de concreto; espaço próximo à cantina, com piso de concreto e

espaço próximo ao portão de acesso à escola, também com piso em concreto.

É oportuno mencionar, que um dos motivos que impulsionou o retratar do campo deste

estudo, foi a semelhança que o desenho arquitetônico do ambiente escolar investigado, em

suas formas e efeitos, tem com o domínio disciplinar vigente, até mesmo, na estrutura

arquitetônica da escola, referido por Foucault (1987), em que, segundo este autor, o processo

de controle do corpo, procedido do método de disciplina da escola, tem como objetivo a

distribuição adequada dos indivíduos quanto ao espaço, em que são utilizadas técnicas tais

como: a “cerca”, que caracteriza um lugar com natureza diferente da de outros e que é

fechado em si próprio; o “quadriculamento”, onde cada indivíduo deve estar em seu lugar e

este lugar deve ter somente um indivíduo, de modo que seja impedido a comunicação e o

contato de um indivíduo com o outro; as “localizações funcionais”, cuja especificação está na

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estrutura arquitetônica do local disciplinar, que facilita o controle, a restrição e a vigilância de

comunicações e contatos perigosos e, por fim, a “fila”, que tem como marca a disposição de

acordo com o lugar que cada um ocupa, de acordo com a classificação de sua série. “Ela

individualiza os corpos por uma localização que não os implanta, mas os distribui e os faz

circular numa rede de ralações” (Ibid., p. 125).

Neste mesmo retratamento escolar, em que até mesmo a arquitetura contribuiu para o

controle da disciplina do aluno, Lima (1989) refere-se que a construção dos prédios escolares

obedeceu a padrões de dominação, apoderou-se de todo o espaço da criança e impôs

limitações de movimentos, de maneira que pudesse produzir adultos obedientes,

disciplinados.

E, para proporcionar uma melhor visão do comportamento da criança na escola, as

salas de aulas tinham como orientação apresentar suas janelas abertas à esquerda das carteiras,

a porta de acesso deveria ter visor que possibilitasse a fiscalização pelos administradores. A

organização das salas de aula se dava ao longo de um corredor, dispostas lado a lado, com

padrão uniforme que “dava às escolas um ar de casernas ou de presídios, onde as crianças

andam em filas, sob as vistas dos professores ou dos bedéis. Mas o esquema ainda hoje não

mudou inteiramente. O condicionamento à disciplina dá o tom geral dos espaços escolares”,

preparados para um constante inspecionar sob o corpo da criança (LIMA, 1989, p. 58).

A escolha da escola, como espaços de pesquisa, decorreu da orientação de Minayo

(2006, p. 196), na qual preconiza que o espaço campo da pesquisa “deve corresponder ao

delineamento do objeto teórico” e apresentar o conjunto de experiências e procedimentos que

se pretende objetivar na investigação.

Assim, a partir da autorização por parte da direção da instituição escolar investigada,

para a efetivação da investigação em suas dependências, viabilizada por contato prévio e

apresentação de uma carta que explicava as linhas gerais do estudo e, partindo do balizamento

tanto da teoria como da prática, que serviram de bússola na condução do trabalho em campo e

de preparo para que os primeiros contatos incidissem em uma rede de relações, o estudo

entrou em movimento na fase de incursão em campo com fins de coletar dados que

abrangesse o objeto investigado.

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2.3 Os protagonistas

Foi com intuito de significar esta investigação, considerando as especificidades

adotadas para a sua condução, de maneira que viesse à tona toda a essência do objeto

investigado, que contei com a participação de quatorze crianças (sete meninas e sete meninos)

matriculadas no quinto ano do ensino fundamental, turma “B”, com faixa etária média de dez

anos de idade.

As crianças protagonistas desta investigação, dentre as demais crianças da turma do

quinto ano “B”, foram escolhidas sem um critério de seleção específico, vez que todas as

crianças pertencentes à turma, apresentavam os atributos que a investigação pretendia

conhecer. Bastavam estar em dia com as atividades da aula, para que pudessem ser liberadas

pela professora para se ausentarem da sala no decorrer da entrevista semi-estruturada.

Dessa maneira, pode-se dizer que a seleção do grupo de crianças participantes da

entrevista, se deu em uma conversa com algumas professoras da turma, que apresentaram uma

lista de nomes das crianças que poderiam se ausentar da sala, no momento da aula, sem

acarretar prejuízos em seu desempenho escolar.

A lista de nomes apresentou uma quantidade inferior ao número de crianças

pretendidas para participar da entrevista. No entanto, foram convidadas outras três crianças,

conforme o cumprimento das atividades da sala, antes do término da aula, no dia da

entrevista, estando disponível a colaborar com a investigação.

Ao apresentar os enunciados em entrevista cedida pelos participantes, adotei como

convenção, para identificar cada um deles, um nome-código que proporcionasse o resguardar

de sua identidade.

Em sua apresentação, as crianças envolvidas diretamente neste estudo são tratadas

pelas duas primeiras letras que compõe seu nome ― com exceção de duas das meninas que,

por apresentarem as duas primeiras letras do nome igual ao de colegas participantes, tiveram

suas identificações assinaladas pelas três primeiras letras de seu nome, em seguida às letras, o

gênero se masculino M e se feminino F, seguido das respectivas idades das crianças.

O quadro que segue apresenta cada um dos participantes na especificidade de seu

nome-código:

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PROTAGONISTAS SEXO IDADE NOME CÓDIGO

Ann Feminino 10 anos (Ann/F – 10 anos)

An . Feminino 10 anos (An/F – 10 anos)

Cl Masculino 11 anos (Cl/M – 11 anos)

Da Masculino 10 anos (Da/M – 10 anos)

Er Masculino 11 anos (Er/M – 11 anos)

Fe Masculino 11 anos (Fe/M – 11 anos)

He Masculino 10 anos (He/M – 10 anos)

Ias Feminino 10 anos (Ias/F – 10 anos)

Ia Masculino 10 anos (Ia/M – 10 anos)

Je Feminino 10 anos (Je/F – 10 anos)

Ke Feminino 10 anos (Ke/F – 10 anos)

Le Feminino 9 anos (Le/F – 9 anos)

Lo Feminino 10 anos (Lo/F – 10 anos)

Lu Masculino 10 anos (Lu/M – 10 anos)

Quadro 1 – Apresentação dos participantes através de seu nome-código

Válido se faz esclarecer que toda a turma do quinto ano “B”, fez parte da observação

participante. As quatorze crianças referidas, integraram o grupo que contribuiu, também, com

a entrevista semi-estruturada. A definição por esse número de crianças participantes na

entrevista seguiu o critério de representatividade por aprofundamento, abrangência e

diversidade, proposto por Minayo (2006), para o procedimento de compreensão, que requer

um número delimitado de pessoas entrevistadas, em razão da busca pela reflexão das

múltiplas dimensões do objeto estudado. No entanto, esta autora indica que esse número de

interlocutores, deve permitir reincidência e complementaridade das informações.

2.4 Os Coadjuvantes

Entrar em campo de pesquisa valendo-se somente da pretensão por desvelar o objeto

de pesquisa não basta. É preciso definir quais ferramentas auxiliarão na coleta de

informações, que permitam falar alguma coisa sobre o objetivo traçado. E, fundamentalmente,

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permita esclarecer o que os protagonistas envolvidos no estudo, individualmente, sentem,

reproduzem e apreendem da realidade vivenciada.

Diante da necessidade de coletar informações, há que se estabelecer, previamente,

quais as técnicas que abarcarão a coleta. Sem isso, o estudo corre o risco de perder o poder de

entendimento do fenômeno em sua integralidade e sua eficiência científica. Para tanto, ao que

indica Minayo (2006, p. 197), é preciso “investir em instrumentos que permitam compreensão

de diferenciação internas e de homogeneidade”.

Tentando afastar o risco de incidir nas perdas de integralidade e eficácia, por meio da

precisão das ferramentas adotadas e em consonância com o método desta pesquisa, para a

coleta de dados, utilizei como técnica a observação participante ― em que as crianças foram

observadas durante a aula em sala e em quadra e durante sua permanência nos momentos

livres de atividades direcionadas e a entrevista semi-estruturada ― que teve o desenho da

imagem corporal como suporte para incitar a verbalização das crianças.

As técnicas adotadas consistiram em ver e ouvir adequadamente o que as crianças

manifestaram sobre a percepção do corpo nos espaços escolares, pertinentes a esta

investigação, essenciais por situar-me no mundo da experiência constituído pelo sujeito que o

vivencia. Dessa maneira, os instrumentos utilizados possibilitaram interrogar a realidade

corporal vivida pelas crianças no âmbito escolar, para que, assim, pudesse surgir à

consciência o fenômeno investigado em sua origem e razão de ser e, posteriormente, ser

analisado de acordo com os significados apresentados.

2.4.1 Quando o olhar se pôs em cena: observou-se

O cotidiano, a forma como cada indivíduo interage em seu meio, são aspectos da

realidade do informante, que permitem ser observados e significados pelas possibilidades de

interpretação que geram. De tal modo, lançar mão da técnica de observação, considerando a

importância da participação do investigador no local investigado, a fim de que ele possa ver

as coisas de dentro e compreender o real através do olhar dos sujeitos pesquisados, segundo

Haguette (1995, p. 67), parte da premissa de que toda forma de uma sociedade se organizar

“está assentada nos ‘sentidos’, nas ‘definições’ e nas ‘ações’ que indivíduos e grupos

elaboram ao longo do processo de ‘interação simbólica’ do dia-a-dia”.

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Contudo, a utilização da técnica de observação como instrumento de coleta de dados,

demanda uma postura idônea, atenta, disciplinada, condizente com a temática investigada.

Quando elegi a técnica de observação participante, como um dos instrumentos de

coleta de dados, desta investigação, busquei amparo nas considerações teóricas que versam

sobre este instrumento da pesquisa qualitativa com a finalidade de obter êxito ao apanhar

dados por vias deste instrumento.

E neste encaminhamento, considerei a necessidade de pensar em uma organização

para o uso da observação, para que esta se aproximasse, ao máximo, do que realmente estava

sendo apresentado. Assegurando-me em estar vendo e/ou ouvindo exatamente o que estava

sendo demonstrado e/ou dito, vez que o investigador é parte de uma realidade social e, como

refere Vianna (2003, p. 65) “suas percepções são, em grande parte, afetadas, condicionadas

pelo contexto em que se encontra, não havendo ipso facto, observação inteiramente isentas,

com uma validade irrestrita, uma validade que se possa dizer total” e, por mais que uma

observação seja bem feita, ela nunca se constitui por total neutralidade, em virtude da

intermediação do próprio observador.

E é devido à tomada do investigador como instrumento de colha de dados, que a

observação, considerada como uma das mais importantes fontes de dados em pesquisa

qualitativa em educação, para ser reconhecida como científica, deve ser acurada, procedida

pela técnica de captar dados através de anotações cuidadosas e detalhadas, com o mínimo de

interferência do pesquisador, que deve fazer o possível para evitar um envolvimento maior

com os investigados a ponto de comprometer a interpretação dos dados (HAGUETTE, 1995;

VIANNA, 2003).

A partir daí, iniciei a coleta de dados pela observação das trinta e três crianças

constitutivas da turma do quinto ano “B”, nos momentos em que estavam em aula ― tanto na

sala quanto na quadra, e quando estavam nos momentos livres.

A observação participante foi iniciada em 18 de agosto de 2009, ocorrendo sempre no

período matutino e em três dias da semana, sendo que, nas duas primeiras semanas, nenhum

elemento fora registrado para efeito de coleta de dados, no intuito de que os envolvidos no

estudo, direta ou indiretamente, se acostumasse com minha presença no local e que, com isso,

suas atitudes fossem as mais próximas possíveis de seu estado natural.

Essa medida fora adotada em consideração à referência de Vianna (2003), ao alertar

que a observação ocorrida em sala de aula pode ficar comprometida em decorrência da

mudança no comportamento do professor ou dos alunos, consequência da presença do

investigador. Contudo, o autor sugere como artifício para amenizar o impacto da presença do

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observador, o seu comparecer, com certa frequência, em sala, mas sem coletar dados, a fim de

possibilitar aos observados a familiarização com o comparecimento do mesmo e, com isso,

possam agir com o máximo de naturalidade no decorrer do processo de observação.

Assim, as observações efetuadas para fins de coletas de dados iniciaram-se,

efetivamente, após a segunda semana de minha estada em campo, caracterizadas por registros

das manifestações das crianças nos espaços lócus de investigação. Todo aspecto por mim

observado, fora detalhadamente descrito em um diário de campo onde pude tomar nota de

todas as exposições dos protagonistas e das impressões pessoais advindas de conversas

informais e observação de atitudes que divergiam das falas, seguindo a descrição de Minayo

(2006), referentes às especificidades de um caderno de notas/diário de campo.

Os registros dos dados coletados ocorreram durante e depois de cada momento de

observação para, em seguida e no mesmo dia, serem digitados em documento Word, a fim de

que nenhum aspecto fosse esquecido e/ou despercebido em nota.

Seguindo o mesmo cuidado com o registro dos comportamentos observados, toda

verbalização proferida durante os momentos de observação, foram transcritas na íntegra, em

atendimento ao linguajar utilizado pelos participantes desta investigação.

E para que as observações seguissem sem que perdesse o foco do objeto em estudo, a

tudo em que o olhar era lançado, segui um roteiro que orientava o olhar, tanto quanto

possível, para alguns indicadores que respondiam um padrão de aspectos a serem observados.

2.4.2 Para que os pensamentos chegassem ao alcance dos ouvidos: entrevistou-se

Escavando em maior profundidade o objeto investigado, partindo em busca de mais

informações, somei à técnica de observar a técnica de entrevistar, em consideração ao

conhecimento que os atores tem de seu próprio mundo, o que, segundo Szymanski (2004),

pode esclarecer o significado subjetivo da percepção que uma determinada pessoa tem de si

mesma e do outro, suas expectativas, interpretações, sentimentos e preconceitos.

Sendo assim, procedi com a entrevista, iniciando-a em 30 de novembro de 2009,

também somente no período matutino, estando já há quase quatro meses em campo,

atendendo a um calendário organizado para auxiliar-me no conduzir dos dias que ainda

estavam disponíveis, antes que a instituição entrasse em férias de final de ano, de maneira que

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pudesse entrevistar o número de crianças previsto para a participação na entrevista semi-

estruturada.

Na pretensão de formar o grupo participante na entrevista, entrei em contato com as

professoras que estariam em aula junto à turma participante da investigação nos dias

elencados para a entrevista, com o propósito de averiguar, junto a elas, quais alunos eu

poderia convidar para se ausentarem da sala e acompanhar-me até outro ambiente e, assim,

serem entrevistados. Já que, durante a observação, não encontrei elementos que os

distinguissem quanto à capacidade de se expressarem por meio da linguagem oral, de forma

que pudesse interferir nesta técnica utilizada como instrumento de coleta de dados. Assim,

não houve a necessidade de criar critérios de seleção específicos pela investigadora, bastava

não acarretar prejuízos na produção escolar do aluno, vez que eles ficariam ausentes por um

tempo considerável na aula do dia da entrevista.

No encaminhar de uma organização para o processo de interação com os investigados,

de forma a garantir que o conteúdo de suas falas, no momento da entrevista, fosse pertinente

ao tema do estudo, evitando que os mesmos viessem a divagar e no intuito de garantir que os

interlocutores respondessem as mesmas perguntas, como estratégias para melhor

compreensão sobre a percepção que a criança tem de seu corpo nos espaços campo do estudo,

elaborei um roteiro de perguntas semi-estruturadas, com o propósito de dirigir, de forma

oportuna, a discussão para o assunto interessante no elucidar das questões provocativas da

investigação.

Enquanto elaborava as perguntas norteadoras da entrevista, estive atenta ao linguajar

utilizado, para que este fosse acessível aos entrevistados, estruturando as questões de forma

clara e que não fosse tendenciosa a uma resposta.

É certa a vantagem da utilização de perguntas semi-estruturadas na entrevista, como,

por exemplo, a inclusão de perguntas adicionais para esclarecer pontos que não ficaram claros

ou ajudar a reconduzi-lo ao escopo da entrevista, caso o entrevistado saísse do tema ou

apresentasse alguma dificuldade de entendê-lo. Essas questões, segundo Minayo (2006), são

significativas na condução dessa técnica de coleta de dados, por contribui para maior

direcionamento do tema, favorecendo o alcance dos objetivos traçados para a entrevista.

Por conta da flexibilidade permitida na entrevista semi-estruturada, o roteiro de

perguntas não foi exclusivamente empregado no decorrer das entrevistas, já que tantas outras

questões foram suscitadas de acordo com as falas dos entrevistados. Visto que, cada entrevista

apresentou sua própria diligência, particularizada de acordo com a desenvoltura com que cada

participante discorria sobre determinas perguntas.

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Como suporte para a entrevista, além do roteiro de perguntas pré-estabelecidas,

estruturado com a finalidade de direcionar a busca por dados essenciais para a pesquisa,

restrito ao tema do estudo, utilizei também três desenhos da figura de si mesmas, nos quais as

crianças, no momento da entrevista, fizeram um desenho de como percebiam sua imagem

corporal enquanto participavam de atividades em sala de aula, um segundo desenho de como

percebia sua imagem corporal no momento de participação nas atividades inerentes a aula de

Educação Física e um terceiro desenho de como percebia sua imagem corporal no momento

em que estava livre de atividade direcionada.

A ordem em que desenhavam os momentos obedeceu à vontade da criança, quanto a

isso, nenhuma sugestão fora dada por parte da investigadora. Fora solicitado somente que

comentassem sobre os desenhos feitos por elas, com o intuito de que algumas outras

perguntas, com base nos desenhos, pudessem ser efetivadas durante a entrevista.

A opção pelo uso do desenho como forma de incitar a verbalização dos interlocutores

da investigação, incidiu da compreensão adquirida ao longo de minha prática docente junto a

crianças, sobre o quanto de expressão natural e comunicativa pode ser manifestada pelo

desenhar e, também, o quanto as crianças gostam de fazê-lo. Desenhar pode significar para a

criança um veículo de comunicação pelo qual ela pode externar, nele e com ele, seus

sentimentos com relação ao mundo, de forma espontânea, criativa, livre de condições.

Referindo sobre a possibilidade de manifestação natural que, respeitada em sua

plasticidade e simplicidade comunicativa, pode constituir em espontaneísmo, Soares (2001, p.

22-23), profere que o desenho representa linguagem, “expressão de ideias e imaginário que

compõe a mente humana, conta história, deixa marcas de co-autores, identifica a sensibilidade

[...]. O desenho mostra, comunica, denuncia, anuncia”.

Para a autora, a importância de desenhar revela-se no prazer de sua efetivação, nele e

através dele é possível expressar naturalmente o que se sente, conhece e imagina, ele “revela

objetivos secretos [...] e cria em torno de si uma comunicação às vezes silenciosa, mas ruidosa

nas formas, traços, comentários e canções, desvelados, quando na relação democrática com o

outro e o meio”. E, neste momento, a criança tem a oportunidade de afirmar sua capacidade

de criar, “indicar um sentimento em relação a um objeto, fato ou pessoa, numa expressão do

real ou imaginário” (SOARES, 2001, p. 23).

Klepsch e Logie (1984) vislumbram no desenho uma função significativa no atingir da

dimensão da fantasia e da imaginação, que não poderia ser aferida pelo auto-relato ou pela

observação. Através dele, há a possibilidade de averiguar, mais profundamente, os desígnios

interiores de uma pessoa e de obter informações reservadas que, de outra maneira, são

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inacessíveis. Ao retratar sobre o uso do desenho, os autores indicam que “muito pode ser

aprendido a respeito da personalidade, percepção, valores e atitudes das crianças a partir de

todos os seus desenhos” (Ibid., p. 22).

Conforme indica Vygotsky (1987), o desenho demonstra o conceito da realidade, de

acordo como o significado depositado nela pela criança. Desenhando, a criança revela o que

apreendeu das experiências vivenciadas em grupo e demonstra como percebe o mundo.

Mesmo que o desenho, segundo o autor, não tenha o compromisso de representar uma forma

certa de comunicação visual, ele traz consigo algumas marcas padronizadas de representação,

particular a cada sujeito.

No caso do uso do desenho como técnica ou teste para um determinado fim, como no

caso do desenho da figura humana, Klepsch e Logie (1984) destacam que, geralmente, ele

representa uma expressão da auto-imagem ou da imagem corporal.

Quanto às possibilidades de seus usos, estas podem ser projetivas e não-projetivas.

Nos usos projetivos, os autores apontam quatro funções existentes para sua aplicação, assim,

o desenho da figura humana pode ser utilizado como: medida de personalidade ― “através do

desenho de uma pessoa, pode-se obter informações a respeito da unicidade do desenhista e

descobrir como este vê a si mesmo”; medida do self em relação aos outros ― apresenta-se

como útil para a descoberta de “como uma criança percebe a si mesma dentro do grupo

específico desenhado (KLEPSCH; LOGIE, 1984, p. 22).

Quando as crianças desenham a si mesmas junto com sua família, amigos, professor

ou colegas, elas projetam nos desenhos a sua visão de si mesmas em relação aos outros, no

grupo; medida de valores grupais ― auxilia na descoberta do valor que a criança atribui ao

seu grupo, vez que ela tende a desenhar o tipo de pessoa que ela mais admira ou respeita e

medida de atitudes ― revela o sentimento que cada criança reserva para diferentes indivíduos.

Nos usos não projetivos, os desenhos da figura humana “podem ser usados para medir a

maturidade evolutiva ou intelectual da criança” (KLEPSCH; LOGIE, 1984, p. 23).

Pelas possibilidades de perscrutar informações mais íntimas, que permitem inferir os

sentimentos e conflitos da criança para com seu meio, além da possibilidade de apreender o

conceito que ela tem de si mesma, contribuindo com a motivação dos interlocutores para

responder as perguntas pertinentes à entrevista, que o desenho mostrou-se de grande valia

como instrumento de auxílio para o delineamento da percepção que a criança tem de seu

corpo nos diferentes espaços escolares, cenários desta investigação.

De tal modo, os desenhos foram utilizados como suporte para se iniciar a técnica de

entrevista. Para esse procedimento, utilizei perguntas norteadoras envolvendo questões

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explicitas durante a verbalização da própria criança, como estratégia para criar condições

necessárias para proceder às entrevistas, considerando que, segundo Marconi e Lakatos

(1986), as perguntas abertas são as que permitem aos participantes envolvidos no estudo,

responderem livremente, usando linguagem própria, emitindo opiniões.

Inicialmente, os desenhos não foram pensados com o fim de análise da percepção que

a criança tem de seu corpo e nem mesmo como recurso para interpretação ou ampliação dos

significados dos conteúdos de suas falas. No entanto, no decorrer do Exame de Qualificação,

entendi a necessidade de apresentar e discutir os desenhos feitos pelas crianças, no momento

da exposição dos dados encontrados pela investigação, em atendimento a uma das sugestões

da Banca examinadora, entendendo que tal apresentação compete como forma de destacar a

percepção do corpo, a partir do ponto de vista da criança.

Tendo já elegido os procedimentos para promover a narrativa dos entrevistados, iniciei

a entrevista convidando, individualmente, cada criança para acompanhar-me até a sala cedida

pela direção da escola, onde efetivei a entrevista semi-estruturada que, somando todas elas,

tiveram a duração total de 5 horas 44 minutos e 11 segundos, ocorrendo em onze dias. Como

o grupo entrevistado fora composto por quatorze crianças, dos onze dias destinados à

entrevista, em três deles, duas crianças foram entrevistadas no mesmo dia.

Antes de iniciar a entrevista, expliquei novamente, a cada criança, o motivo de minha

presença na escola e sobre o desenvolvimento da entrevista junto à feitura do desenho. Em

que, durante a entrevista, os participantes fariam três representações de sua figura humana,

isto é, três desenhos de si mesmo, de acordo com a percepção de seu corpo, referente aos

momentos informados pela pesquisadora. E, ainda, informei que no decorrer da entrevista, as

crianças poderiam, caso desejassem, não responder às perguntas, manifestar suas dúvidas

sobre elas e, também, interromper, a qualquer momento, a entrevista e/ou solicitar o

desligamento do aparelho que gravava as falas e a imagem dos entrevistados, assim como

recomendado por Szymanski (2004).

Toda verbalização e reação, expressas pelas crianças, foram gravadas em uma

filmadora e gravadora de áudio portátil, que auxiliou na coleta de dados durante a entrevista.

A opção por, também, filmar o comportamento da criança durante a entrevista, decorreu da

atenção que quis destinar à linguagem não verbal, manifestada pelos entrevistados. O que

possibilitou uma melhor reflexão sobre suas falas.

Após a sua coleta, os dados foram transcritos na íntegra em documento Word,

obedecendo ao linguajar da criança entrevistada, em que, mesmo fazendo algumas pronúncias

de palavras da língua portuguesa de forma incorreta, nenhuma alteração fora feita no

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momento da transcrição do oral para o escrito, em respeito a sua condição de se pronunciar

naturalmente, de acordo com que lhe é familiar a respeito da língua falada. Pois, mesmo que

algumas palavras tenham sido proferidas de maneira incorreta, não houve nenhuma

dificuldade em compreender o que as crianças estavam dizendo. Sendo assim, busquei

apreender todas as verbalizações e reações apresentadas pelas crianças participantes para, na

sequência, serem analisadas em função dos significados apresentados e agrupadas em

categorias.

As falas das crianças, expostas no decorrer da apresentação dos dados encontrados,

divulgadas no texto deste estudo, como forma de corroborar o que fora possível compreender

através das entrevistas, nos momentos de observações e dos desenhos de cada criança,

passaram por uma revisão de português, justamente por se tratar de uma transcrição do

contexto oral para o escrito, feita pela própria pesquisadora. O que não indica,

necessariamente, a falta de conhecimento por parte das crianças sobre a construção correta da

ortografia da língua portuguesa.

Desse modo, no intuito de facilitar a leitura da narrativa das crianças, as correções

ortográficas nas entrevistas transcritas, foram adotadas de maneira que as pronúncias feitas

como, por exemplo: As prossoras não dexa nem nois levantá, não dexa nem nois conversá,

são apresentadas no texto com a seguinte correção: As professoras não deixam nem nós

levantar, não deixa nem nós conversar.

O finalizar do processo de entrevista marcou, também, minha retirada do campo de

investigação, que ocorreu no dia 21 de dezembro de 2009, após ter apreendido uma

quantidade significativa de informações sobre os procedimentos internos do ambiente e sobre

o grupo investigado. Conforme ouvi de meu orientador, “é de uso no trato com uma tarefa

etnográfica, a saída do campo quando os dados começam a se repetir. É anunciada à hora para

a retirada do pesquisador”.

2.5 A apreciação e o tratamento: do que se viu e ouviu

Terminada a fase de reunir dados que pudessem suscitar respostas as minhas

indagações, foi preciso delinear o processo pelo qual eles seriam analisados, para que deles

fecundassem informações sem reservas e, sobretudo, que não acarretasse a perda de fidelidade

com o que de fato foi manifestado pelos investigados, seja quando estavam sendo observados

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ou entrevistados. Ou, ainda, que este delineamento acurasse os dados coletados, evitando que

no processo de apreciação, por falta de uma verificação precisa, houvesse o risco de incutir

uma ordenação de dados sem significado. Neste sentido, Le Breton (2007, p. 37) refere que

“sem controle rigoroso, a análise pode parecer uma colcha de retalhos, uma colagem teórica

que perde a pertinência epistemológica”.

Como forma de assegurar que o caminho para a realização de análise dos dados incida

em descoberta científica, o investigador deve destinar tempo, atenção, reflexão, dedicação,

como, também, ter uma boa orientação teórica, disciplina, sensibilidade e olhar criterioso para

reduzir e sistematizar os dados coletados e, assim, conseguir perceber os fenômenos

revelados.

Por tanto, na construção da análise dos dados, adotei recomendações que auxiliaram

na operacionalização da fase de análise, sugeridas por Minayo (2006), que recomenda, neste

momento da pesquisa, a ordenações de dados, num processo em que o material coletado possa

ser tecnicamente trabalhado e a classificação de dados, encaminhada pelas etapas de leitura

horizontal e exaustivas dos textos; leitura transversal e análise final.

Procedendo de acordo com o que fora proposto por Minayo, na etapa de ordenação

dos dados, já tendo transcrito para documento Word a observação e a entrevista, realizei a

leitura e releitura do material para, posteriormente, providenciar uma organização dos relatos

e dos dados da observação em uma determinada ordem, obedecendo à proposta analítica do

estudo. Esses passos foram atendidos para que se pudesse obter “um mapa horizontal” das

“descobertas no campo” (MINAYO, 2006, p. 356).

Na fase de classificação dos dados, seguindo a orientação de uma leitura horizontal e

exaustiva dos textos, atendi a exigência de várias leituras de todo material transcrito, lançando

um olhar interrogativo sobre ele, na busca por apreender as estruturas de coesão e relevância

interna das informações centrais sobre o tema focado. Para que as primeiras percepções das

ideias essências não ficassem registradas somente em minha memória, providenciei o registro

de todas as percepções surgidas, em um papel anexado a cada folha de transcrição.

Com a leitura transversal, momento em que a leitura foi realizada sob cada

subconjunto e conjunto, em sua totalidade, procurei sintetizar as descrições das observações e

entrevistas em trechos curtos que representassem, adequadamente, aquelas ocorrências e

classificá-los em categorias alcançadas a partir do processo de recorte de cada transcrição,

para, em seguida, agrupá-las de acordo com suas semelhanças, conforme conexão entre elas,

formando, assim, grupos de unidade de sentidos.

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Logo após, ainda na fase de leitura transversal, fora preciso voltar aos grupos de

sentidos para fazer “um enxugamento de suas classificações; agrupando tudo em número

menor de unidades de sentido e buscando compreender e interpretar o que foi exposto como

mais relevante e representativo pelo grupo estudado” (MINAYO, 2006, p. 358). Neste

momento, houve um reagrupamento das categorias centrais, ainda de acordo com suas

semelhanças, obedecendo a uma lógica unificadora.

Já na análise final, foi possível encontrar as categorias que responderam os sentidos

particulares que o grupo investigado atribuiu ao tema do estudo, possibilitando chegar ao

fenômeno e compreender a sua essência. Esses temas, frutos do esforço detido, destinado à

compreensão e interpretação das informações que transmitiram a percepção que a criança tem

de seu corpo nos espaços escolares (campo do estudo), apresentam-se, aqui, separadamente,

de maneira a favorecer a comunicação dos dados e sua discussão, pretendendo expressar o

que foi extraído do visto, do ouvido e do desenhado. Desse encontro de técnica de coleta, os

dados puderam abrir as portas para possíveis ponderações sobre a vida cotidiana na escola e,

ipso facto, trazer à luz as possibilidades de manifestações corporais da criança no seu dia-a-

dia escolar.

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3. AS PERCEPÇÕES CORPORAIS DAS CRIANÇAS NOS TRÊS MOMENTOS

ESCOLARES INVESTIGADOS

Em todo o tempo de envolvimento com as questões particulares a este estudo, estive

em busca de informações que pudessem responder as inquietações que encaminharam a

investigação sobre a percepção que a criança tem de seu corpo no momento em que está em

sala de aula; quando está em aula de Educação Física, na quadra e nos momentos livres de

atividades direcionadas pelo professor ou alguém da equipe escolar.

Dessa maneira, o estudo fora desenvolvido no arcabouço de informações pertinentes a

algumas características da condução escolar; da infância; do lúdico; sobre o corpo relacionado

a este estudo e sobre a condução e recursos metodológicos utilizado para a sua efetivação.

A partir do tratamento e da análise dos dados apreendidos no decorrer da investigação

em campo, foi possível chegar a elementos suscetíveis ao desvelamento do tema investigado,

que apresento e discuto a seguir, mas não antes de explicar como os dados encontram-se

amoldados durante a discussão.

Apresento o que vi e ouvi no cenário e junto aos protagonistas apreciados, sob o

formato de fragmentos que mais traduzem as percepções corporais das crianças e o contexto

escolar relacionado ao tema investigado. Para situar os trechos de observações e das falas da

entrevista, emprego o formato de texto reunido ao centro da página, com espaçamento simples

entre linhas e o uso de fontes tamanho 10, do tipo Lucida Sans, para os Relatos e para as falas

ou depoimentos advindos da entrevista com as crianças ou nas falas registradas durante a

observação.

Para melhor elucidar as questões verificadas nos dados analisados, exponho os

desenhos feitos pelas crianças no momento em que participavam da entrevista, como forma de

enfatizar a percepção que a criança tem de seu corpo nos momentos investigados.

No apanhado de dados via observação participante e entrevista semi-estruturada, pode-

se alcançar unidades de significados nas quais, após serem coligadas por semelhança, fora

possível atingir categorias gerais que, em uma nova coligação, também por semelhança,

originaram três categorias referentes, cada uma delas, a um corpo percebido na escola, sendo

elas: “O corpo camuflado na imobilidade: efeito das regras instituídas em sala de aula”;

“Transitando entre o livre e o moderado: o itinerário do corpo na Educação Física escolar” e

“Momento livre... o retorno à natureza”.

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Categorias estas que não só foram significativas para conduzir-me ao desvelamento de

meu objeto de estudo como, também, contribuíram para perceber a impressão que a criança

tem dos espaços escolares investigados. Vez que, ao mesmo tempo em que as crianças

anunciavam a percepção de seu corpo, elas assinalavam a situação em que estavam

envolvidas, retratando a rotina escolar e como se relacionam com a escola, com os

professores, com o conhecimento e com as recompensas e punições, ao explicar porque

percebiam o corpo da forma como estava sendo dita.

3.1 O corpo camuflado na imobilidade: efeito das regras instituídas em sala de aula

O aprendizado, para muitos, parece ser possível somente através da ação passiva dos

estudantes em sala de aula, que pode ser entendida como um comportamento disciplinado,

onde as expressões: “sentados e quietos” ecoam-se em solicitação para o bom andamento da

aula, utilizadas para o chamado da atenção ao aprendizado de determinados conteúdos que, de

acordo com o entender de alguns educadores, necessitam de um comportamento dócil, por

parte dos aprendizes, para a sua ocorrência.

Para melhor entendermos esses eventos, apresento aqui alguns trechos das entrevistas

das crianças participantes desta investigação, uma vez verificado que as informações

exprimidas em entrevista traduziram mais que suas percepções corporais como, também, as

vivências de sala de aula que incidiram para essa percepção, demonstrando-se evidentes nas

falas das crianças, visto que elas expressaram-se de forma clara e expansiva sobre o que

estava sendo perguntado. Acompanhados por alguns desenhos feitos pelas crianças durante a

entrevista e por fragmentos do que pode ser observado em relação aos modos e moldes das

interações com a criança no ambiente investigado. O que possibilitou a compreensão do

significado da regência das normas em sala de aula, que perpassam e enviesam a postura da

criança em relação ao seu corpo, à brincadeira e ao jogo.

Dessa maneira, em um primeiro aspecto analisado nas falas das crianças, pôde-se

identificar o corpo que é priorizado nas intervenções pedagógicas em sala de aula, sendo ele,

um corpo inerte, refreado na forma pela qual as relações interpessoais, que determinam as

experiências em sala de aula são conduzidas, dando o tom da regência que produz as marcas

do relacionamento da criança com o seu próprio corpo, em obediência às regras.

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Porque ali [sala de aula] não pode né? Ficar em pé. Tem que copiar o que ela escreveu né? Quando ela fala assim: “fica sentado, fica quieto, presta atenção”, é pra ficar prestando atenção no que ela escreve, pra ficar quieto, ali sentado, [...] aí quem não fez, ela escreve: “não fez, porque não estava prestando atenção, porque estava conversando” [...] (Ann/F – 10 anos) Só porque eu estava correndo, a conselheira da sala fala assim: “você está de castigo, não vai jogar futebol”... É assim, daí eu fico lá com outra pessoa, escrevendo no quadro. E meus colegas, que estavam brincando dessa brincadeira dentro da sala. Fico escrevendo um texto da bíblia, alguma coisa... Achei, é chato né. (Le/F – 9 anos) Ah! Não gosto quando a professora fala: “não pode brincar”... Aí tem que ficar quieto, se não a professora passa mais lá no quadro, só dá pra conversar baixinho. (Da/M – 10 anos)

Em primeira instância, as falas das crianças apresentam duas situações. A primeira

marcada pelo entendimento de como devem se comportar na sala de aula, através da

percepção da solicitação da professora e do que não é permitido por ela. Em segundo, o

sentimento de punição, sabendo que o descumprimento da regra instituída gera consequências

para o aluno transgressor.

A ocorrência das punições em sala, expressas pelos alunos, sugerem indícios de uma

condução disciplinar autocrática. Alguns educadores podem acreditar que conduzindo as

interações em sala de aula, exercendo autoridade (ou seria autocracia?) junto aos alunos,

auxilia no processo de formação dos mesmos, ou que essa medida pode facilitar na condução

de suas aulas. Assim como revela o relato a seguir:

Relato I – “Se não obedecem, perde o recreio” – (Observação 18/11/2009)

Como a professora que ministraria a primeira aula do dia atrasou-se para entrar em sala, alguns alunos, esperando por sua chegada e, com isso, o início da aula, aproveitaram para brincar com figurinhas [...] Assim que a professora entrou na sala e percebeu a brincadeira, parou em frente da mesa de um dos alunos que também brincava, dizendo que tomaria a figurinha se não guardassem logo, dizendo, ainda, que: “lugar de brincar de figurinha é em casa, escola não é lugar de brincar, muito menos de figurinha”. Disse, ainda, a alguns alunos que estavam conversando: “fechem a boca e guardem o assunto para o recreio” [...]. Enquanto os alunos realizavam a atividade solicitada pela professora, ela se aproximou de mim e disse: “eu sei controlar uma turma, na minha aula eles não bancam o engraçadinho e eu consigo dar aula sem problema. Aluno não tem nada que ficar conversando, saindo do seu lugar, fazendo

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bagunça, tem que saber respeitar o professor e ficar quieto. E se eles não me obedecem, nada de recreio”.

O controle da turma, exercido e comentado pela professora, assemelha-se com a

característica de um ambiente autocrático, tal como fora observado em uma pesquisa realizada

por Vinha e Tognetta (2006), em que as regras impostas pela professora, sem a necessidade de

compreensão, mas sim de obediência dos alunos, tendiam a um bom comportamento. Mesmo

que isso significasse reforço a um comportamento de submissão e obediência acrítica, em

favor da disciplina, da aprendizagem ou de um tranquilo desenvolvimento da aula, eram

empregadas regras autocráticas como, por exemplo, a criança ter que permanecer assentada

em seu lugar e em silêncio, durante toda sua estada em aula, sem poder conversar com um

colega ou movimentar-se pela sala.

Para conseguir êxito neste intento, a professora utilizava mecanismos de controle

enredado por ameaças e sanções relacionadas a “deixar as crianças sem o recreio ou retirar a

Educação Física, realizar cópias, encaminhá-las para a diretoria ou contar aos pais” (VINHA;

TOGNETTA, 2006, p. 47).

Esse envolvimento em sala, regido por uma condução disciplinar determinada por

regras abusivas, que desconsidera o envolvimento ativo do aluno, com pouca participação do

corpo no processo de aquisição e construção de conhecimento, a não ser pelas discretas

manifestações possíveis ― aquelas necessárias para o cumprimento da tarefa, dizem respeito,

como mencionou Lima e Gomes (2000, p. 105) “a reverência maior feita a um professor”. E,

para este acatamento, os alunos devem manter-se silenciosos em seus lugares, pois “alunos

em pé incomodam”. Envolvidos neste contexto de sujeição e deferência, o aluno só pode se

manifestar, ainda que oralmente, quando o professor permitir ou ordenar.

A propósito do disciplinamento corporal conferido nas instituições de ensino formal,

Foucault (1987) menciona que a tendência de se conduzir o aluno por caminhos que tendem a

docilizar2 seus corpos, seria um dos intentos da escola ― que apresenta-se como uma das

instituições reguladoras do disciplinamento corporal, sendo este um dos métodos utilizados

para docilizar e atribuir utilidade ao corpo, direcionado às crianças, devido ao entendimento

de que a ordem não vigiada leva ao caos.

Para o êxito do controle do corpo, a disciplina tem sido utilizada como método de

docilidade na escola, que foi uma das instituições do final do século XVIII e início do século

XIX a utilizar, em demasia, a disciplina, por ter percebido que os corpos poderiam ser

2 Termo utilizado por Michel Foucault em sua obra Vigiar e Punir: nascimento da prisão, 1987.

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manipulados a ponto de facilitar o enquadramento nos moldes desejados. Neste sentido, a

escola agiu sobre o aspecto emblemático de que “é dócil o corpo que pode ser submetido, que

pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 1987, p. 118).

Nesta condução disciplinadora, o corpo da criança, em ambiente escolar, é habilitado

para um fim específico, vez que a escola promove o acesso aos conhecimentos cognitivos e

transforma o corpo lúdico ― repleto de expressões naturais, em corpo escolarizado ―

contido em suas manifestações, silenciado em suas mais diferentes linguagens. Assim como

pode ser verificado nos dizeres de Gomes (2006, p. 197), momento em que o autor menciona

um de seus estudos realizado em ambiente escolar, que possibilitou o constatar de que, neste

local de ensino, “o corpo é sempre um incômodo para o conhecimento que requer silêncio e

pouco movimento”. À vista disso, os corpos são “silenciados”.

Contudo, essa condução exige das crianças um comportamento de submissão,

obediência e conformismo. O que implica em restrições das manifestações corporais das

crianças em sala, no desenvolvimento de sua autonomia, do pensamento reflexivo, como

também oferece risco à liberdade de tomada de decisão, que é suprimida em nome da

obediência à autoridade do professor, que, utilizando de recursos punitivos, conferem ao

corpo da criança, a condição de subordinado. Com as duas falas a seguir, as crianças

indicaram que elas limitam ou anulam os movimentos corporais em atendimento ao

comportamento exigido em sala de aula pela professora:

Eu percebo que meu corpo, que ele está quieto, assim, fica num canto parado, assim, não quer conversar qual, ninguém, assim, fica só escrevendo. Muito chateado, né? É... tipo, xôo, ah! Fica assim quieto né? Assim, na mesa... é... eu também, é... na hora que a professora, só por causa de um aluno, prende dentro da sala de aula, não pode ir pro recreio, só por causa de tal aluno que fez bagunça, então eu fico assim... (Le/F – 9 anos) Porque na sala de aula é pra gente aprender as coisas que a gente não sabe ainda... Deve estar em silêncio, ficar escutando a professora falar, respeitar a professora... Quando, assim, a gente está, quando a professora deixa a gente na sala, por causa que têm alguns alunos que não obedecem ela, aí ela deixa todo mundo de castigo. (Lo/F – 10 anos)

Nesse universo de obediência, em que o corpo é restrito no aprendizado escolar, a

retirada do recreio e/ou da Educação Física revela uma medida repressiva aos

comportamentos que comprometem o sucesso integral da autoridade do professor. E isso, de

acordo com as verificações de Gomes (2001, p. 121), “seria compreendido talvez

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universalmente como um castigo: algo parecido em vidas de classe média como ficar sem

sobremesa ou ficar sem televisão”.

De todo modo, não se pode negar a necessidade de ter que se conter a movimentação

corporal para o aprendizado de alguns conteúdos escolares, em que há momentos nos quais o

aluno deve estar mais atento à atividade e, para isso, tem que estar mais quieto. Contudo, o

que se questiona, neste estudo, são as excessivas exigências de contenção das diferentes

formas de expressões corporais, das atitudes naturais, que são empreendidas na maioria das

disciplinas, durante todo o período de sua ocorrência. Condicionando o envolvimento dos

alunos a uma proposta de formação unilateral.

O que pode comprometer o desenvolvimento da educação, em toda sua dimensão,

compreensiva à formação mais abrangente do ser humano e acarretar na sensação de

desprazer em permanecer na sala de aula, em que os momentos que são vivenciados fora dela,

podem ganhar destaque como locais de redenção do corpo.

Talvez seja pelo entendimento desse aspecto, de sensação de prazer e desprazer,

desencadeado de acordo com a circunstância possível de ser vivenciada em cada ambiente

escolar, percebido tanto pelos alunos quanto pelos professores, que medidas punitivas, como

o confinamento do aluno em sala de aula, são adotadas como forma de persuadir os alunos a

atenderem as imposições de um determinado comportamento em sala.

Neste ponto, o domínio que a escola tenta imprimir sobre a corporeidade, em que os

atos corporais que geram satisfação, são quase sempre confiscados por ela, foi uma das

características mais marcante encontrada no ambiente escolar investigado, e que causou

preocupação a esta investigação, devido à forma pela qual era exercido o controle sobre o

corpo, no momento em que as crianças estavam em sala de aula.

Dentro do campo de interação proposto pelo adulto, sujeito à sua aceitação e controle,

os alunos participantes desta investigação, submetidos às atitudes discorridas como

pedagógicas, peculiares ao processo de cristalização de valores e formação de condutas,

próprias do mundo dos mais velhos, assemelham-se aos nativos da nação brasileira que, de

acordo com as discussões feitas em capítulo anterior, com a chegada dos portugueses, mas

propriamente dos Jesuítas, os índios sofreram o processo de aculturação, tendo que aprender,

junto com a leitura e a escrita, os costumes do povo português (PILETTI; PILETTI, 1997).

Assim parece ocorrer, também, com as crianças ao frequentar a escola, tendo que abandonar

seus costumes e preferências, particulares à cultura infantil, e adotar os hábitos dos adultos, da

cultura dos mais velhos.

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Contudo, considero necessário repensar as concepções e ações pedagógicas que ainda

apresentam-se regidas por padrões teórico-metodológicos de uma cultura hierárquica de

sublimação das funções intelectivas, em que o movimento corporal, dentre outras formas de

expressão do corpo, é submetido a processos disciplinadores, que induzem ao controle de suas

manifestações espontâneas. Se a educação deve destinar-se à totalidade do ser, por isso não se

pode pensar só nas partes. É urgente (re)significar o ensino e a educação escolar,

possibilitando ações reflexivas a partir de uma real educação de ser humano, em virtude de

consolidar a escola como um ambiente democrático e colaborativo e de acatar, quem sabe, a

ideia de um homem produzido no espectro de sua complexidade, como nos sugere Morin.

Ao meu entender, isso pode ser possível mediante a diversificação das propostas

teórico-metodológicas, engajadas no contexto cultural dos alunos e que considerem as

especificidades do tempo em que vivem, desse tempo presente. Afinal, quem e para que

educamos?

Desta maneira, para que a instituição escolar integre-se ao processo de reconhecimento

do indivíduo como ser global, ela deve municiar-se no curso de libertação, em que corpo e

mente se livrem da dissociação até então levada em conta pela escola, e integralizar-se,

evidenciando o ser humano absoluto, afirmando sua corporeidade como fator da condição

humana. Possibilitando os acessos das vias de expressão natural do corpo nas experiências de

aprendizagem, através da manifestação de suas diferentes linguagens, o que, por vezes, venha

a garantir um desenvolvimento pleno ao aluno, no engajar de uma educação mais significativa

para a sua vida. Propiciando descobertas sobre a corporeidade humana, em sua relação social

e cultural.

Ao contrário disso, anulando a cultura infantil, plena de espontaneidade, em favor da

aprendizagem sociocultural de hábitos e desempenhos particulares à vida dos mais velhos, a

educação escolarizada continuará a disciplinar a criança, de forma autoritária, com vistas a

adestrá-las para atender os comportamentos próprios à vida de adulto, assim como era feito na

escola da Idade Média, como mencionou Ariès (1981).

Posto isso, considerando que as sanções conferidas às crianças, no ato de impedir e/ou

penitenciar a ocorrência de manifestações que transgridem as regras vigentes em sala de aula,

incidem em aprendizagem de comportamentos e atitudes estanques, em formação de hábitos,

que contribuem para a constituição do repertório sociocultural da escola.

Foi o que pude perceber nos aspectos apresentados pelas falas das crianças

participantes, nos quais é refletido que elas conhecem bem o que devem fazer e que, algumas

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delas, estão convencidas sobre o comportamento corporal que devem assumir em sala, o que

indica a relação de um corpo cultivado conscientemente em sala de aula:

Deve ficar parado, quieto, sem levantar... Parado, sem movimento nenhum e olhando pra professora... Porque movimentando o corpo a gente não vai aprender 100%... Sala de aula é lugar de aprender. E brincar, só na hora do recreio ou na hora da física [aula de Educação Física] porque lá [sala de aula] a professora está explicando e na hora do recreio ninguém está explicando e na física é livre. (He/M – 10 anos)

Ah! Ele está sem movimentar, porque na sala é lugar de ficar... de estudar, ficar escrevendo... Corpo da sala é sem movimentar, aí, nos outros lugares a gente pode se movimentar mais, por exemplo: na quadra, no recreio... Porque na sala a gente não pode brincar. Aí na hora do recreio, na quadra, a gente já pode correr, jogar bola... Porque a gente vem pra escola pra estudar e na sala é lugar de estudar... Estudar! E brincar né? Na hora da Educação Física, no recreio. (Je/F – 10 anos)

Porque é lugar que a gente vai aprender, em casa a gente pode lê livro. Agora se a gente ficar brincando na sala de aula, a gente nunca vai aprender nada... Porque a sala de aula é o único lugar que a gente pode aprender as coisas [...]. (Lo/F – 10 anos)

Pela diferenciação de comportamentos corporais que se deve adotar em cada ambiente

da escola, feita pelas crianças no intuito de manifestar a percepção que cada uma tem de seu

corpo no momento que estão em sala de aula, pude compreender que elas associam o estado

comportamental que pode ser adotado a cada situação vivenciada na escola, que reconhecem

o corpo que devem assumir no momento que estão envolvidas em atividades propostas para o

aprendizado de conteúdos voltados à leitura e à escrita, seja pela ordenação alfabética ou

alfanumérica e que reconhecem as possibilidades comportamentais que podem ser exprimidas

nos momentos que classificaram como locais de brincar.

Dessa maneira, mesmo não podendo afirmar que a intencionalidade dos adultos ―

pais ou professores, de incutir atitudes e costumes na formação escolar das crianças, seja o

único fator responsável pela classificação que elas deram à sala de aula, como lugar de

estudar e não de brincar, separando das aulas de Educação Física e dos momentos livres ―

locais onde o brincar acontece, a possibilidade de aprendizado, quando referiram que

“brincar, só na hora do recreio ou na hora da física, porque lá a professora está explicando e

na hora do recreio ninguém está explicando e na física é livre” (He/M – 10 anos) e que, “a

sala de aula é o único lugar que a gente pode aprender as coisas” (Lo/F – 10 anos),

antecipando uma das elocuções sobre a percepção de seu corpo no momento de Educação

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Física, comparando o corpo deste momento com o corpo da sala de aula (Vide página 137),

esta fala pode melhor elucidar o que pôde ser inferido a respeito da influência do adulto na

diferenciação de comportamento adotado nos diferentes momentos da escola:

[...] aí minha mãe, minha mãe fala pra mim que na escola não é lugar de ficar brincando, é pra prestar atenção, fazer que a professora fala. (Lo/F – 10 anos)

Ao conferir os relatos em entrevista com o que fora observado no espaço campo desta

investigação, pode-se dizer que as crianças sofrem influência direta das representações dos

adultos a respeito de quando e como estão em condição de aprendizado. O brincar, no

contexto em que fora verificado neste estudo, é colocado como situação de entretenimento,

em que não cabe aprendizado.

Entretanto, há estudos que demonstram que o brincar pode auxiliar no aprendizado de

conteúdos escolares, se não como responsável direto por ele, pelo menos pode torná-lo mais

atrativo e prazeroso que, ao meu entender, pode potencializar a apreensão das informações

transmitidas em sala de aula.

Foi o que pôde ser percebido no estudo de Lima e Chaparro (2008), que investigou

algumas ações pedagógicas que propunham o aprendizado de determinados conteúdos através

de atividades lúdicas, nas quais as crianças participavam das interações ativamente. Neste

contexto metodológico, as autoras verificaram que as aulas vivenciadas através de

envolvimento corporal ativo, mostram-se propícias à satisfação durante os envolvimentos

pedagógicos das crianças, exercitando o desenvolvimento cognitivo de forma mais atrativa e

prazerosa. Segundo as autoras, a forma com que se entregam à atividade, a autonomia e a

espontaneidade apresentadas durante as suas participações, demonstrou o quanto é natural às

crianças este tipo de vivência. O que pode substantivar em um aprendizado em que a criança

contribua com a sua construção, inseridas em um aprender voltado a estimular sua

curiosidade, sua imaginação e criatividade.

E nessa colaboração escolar, pode-se impender à integralidade corpórea. O que se faz

necessário, uma vez entendido que, como indica Freire (1994), ao matricular o aluno na

escola, a mente não é a única a ser matriculada, mas sim o corpo em toda a sua dimensão e,

uma vez considerado a rede de relações sociais e culturais que convalida a extensão corporal

humana, legitima-se a visão de totalidade acerca de tudo que impele nossas vivências neste

mundo-vida.

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Considerando as alusões do autor mencionado, essa deveria ser uma das funções da

escola, já que “corpo e mente devem ser entendidos como componentes que integram um

único organismo. Ambos devem ter assento na escola, não um (a mente) para aprender e outro

(o corpo) para transportar, mas ambos para se emancipar” (Ibid., p. 13-14).

Santin demonstra-se também relutante a dicotomia corpo e mente, assim como

demonstrada na educação escolar, que enaltece a mente em desprezo ao corpo, que ignora a

condição indissociável do homem. E, ao considerar a unidade do homem, o autor esclarece

que “o corpo vive, pensa, sonha, trabalha, brinca. Ele não é o simples objeto, circunscrito aos

limites inteligíveis, impostos pelo modelo epistemológico do enfrentamento entre o sujeito e o

objeto. A inteligência se constrói como corporeidade” (Id., 2001, p. 113).

Neste ponto, em favor do reconhecimento da integralidade corporal do aluno, na

perspectiva de conceber mente-corpo como unidade, Nóbrega (2005, p. 610) indica que é

preciso ir além da percepção de corpo como instrumento a serviço das práticas educacionais,

pois, “[...] o corpo não é instrumento para as aulas de educação física ou de artes, ou ainda um

conjunto de órgãos, sistemas ou o objeto de programas de promoção de saúde ou lazer”.

Muito embora essas áreas do conhecimento tematizem “práticas humanas cuja expressão, em

termos de linguagem, tem no corpo sua referência específica”. Porém, as demais disciplinas

escolares não só podem como devem, tematizar diferentes práticas educativas em que a

gestualidade esteja presente. E isso ocorrerá, quando a ideia de corpo encenada sob o aspecto

instrumental for superada (NÓBREGA, 2005).

Contudo, devido à presença da criança em um contexto em que o sistema e as relações

de poder que regulam o espaço escolar, relativos à organização física, ao regimento interno

que conduzem as atividades pedagógicas e proponentes das interações decorridas neste local,

engendram, segundo Foucault (1987) um comportamento corporal disciplinado, exercitado e,

portanto, dócil e, ainda, pela representação que é mantida na escola, em que as manifestações

corporais são segregadas do processo de ensino-aprendizagem, pode-se dizer que a

representação que a criança tem de seu corpo, mantido em sala de aula, assim como fora dito

em entrevista, trazem as marcas que são inscritas no ambiente que participam na escola.

Dessa maneira, da mesma forma como se manifestaram em entrevista, a percepção que

as crianças têm de seu corpo, em sala de aula, também pôde ser conferida nas representações

gráficas feitas por elas. Como demonstra as seguintes figuras feitas por elas próprias:

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Figura 1– Percepção do corpo mais quieto no momento de sala de aula (He/M – 10 anos)

Figura 2 – Percepção do corpo sem se movimentar no momento de sala de aula (Je/F – 10 anos)

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A percepção do corpo, representada pelos alunos, no espaço destinado a sua

permanência em sala de aula, como ilustram os desenhos de He e Je, confrontada com as

vinhetas das entrevistas dessas crianças, permite supor que no decorrer do aprendizado de

conteúdos escolares, em sala de aula, as crianças tentam atender à demanda de isolamento do

corpo no espaço de suas carteiras, onde, pelo menos, procuram mantê-lo imobilizado.

A esse respeito, é preciso considerar que as crianças apreendem as regras instituídas

no ambiente escolar e comportam-se de acordo com as leis que apresentam-se distintas em

cada um dos momentos participados por elas, assinalados em espaços e interações

diferenciados na escola.

E esse aspecto escolar, constituído por espaços diferenciados que demandam

comportamentos distintos, e que em determinado momento o silêncio e a imobilidade

corporal são cultuados entre os alunos, em desvalia às suas manifestações espontâneas,

expressas na movimentação corporal, contribui para a construção de relação e significado

entre a criança e suas manifestações corporais lúdicas. O que torna relevante apreciar como se

dão as relações que determinam certos comportamentos das crianças. É o que se verifica ao

observar um dos momentos destinados à aula em sala.

Relato II – “Sala de aula... é pra aprender, pra estudar” – (Observação 08/09/2009)

A aula aconteceu com o professor passando conteúdo na lousa e os alunos copiando. O professor passava o conteúdo tão rápido, que um dos alunos reclamou dizendo que a mão estava doendo e que ele não estava conseguindo acompanhar o professor. O professor disse que seria melhor assim, pois, dessa maneira, eles, os alunos, não teriam “tempo de conversar e nem ficar se mexendo na cadeira” e, com isso, estando eles em “silêncio e parados”, eles aprenderiam “mais”. Percebi que os alunos quase não conversavam mesmo. Só ouvi um falando com o outro quando era pra perguntar sobre algo que estava escrito na lousa e que eles não tinham entendido ou não estavam enxergando. [...] Assim que o professor passou o conteúdo em todo o espaço da lousa, sentou-se em sua cadeira e disse para os alunos: “copia logo que eu vou dar somente mais alguns minutos para vocês terminarem de copiar, depois vou apagar o quadro e passar mais”. Nesse momento, uma das alunas pediu ao professor que não passasse mais, que os deixassem descansar um pouco. O professor respondeu que ao invés de eles descansarem eles aproveitariam para “ficar de brincadeira, pra conversar e fazer bagunça” e disse ainda que: “Sala de aula não é pra fazer isso, é pra aprender, pra estudar”.

Por esta atitude escolar de deter o corpo, em que é determinada a ele uma condição

bem definida, a de imobilidade, é que repercute uma implicação restritiva sobre a

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manifestação lúdica na escola, de maneira que, como indica Snyders (1988, p. 11), “as

manifestações do brincar e do jogar no ambiente escolar são relevadas a um segundo plano, já

que não se trata de um conhecimento socialmente eleito como útil”. E uma proposição para a

decorrência disso é que “o brincar e o jogar encontram-se na contramão dos processos de

produção do mercado”.

O tratamento dado à brincadeira na escola, evidenciado, principalmente, pela visão dos

professores foi uma das situações que também chamou a atenção nos momentos em que estive

observando. O que oferece oportunidade para compreender o significado atribuído ao brincar

e como esse significado é perpetuado entre os alunos na escola. Uma vez considerado que

todas as referências apreendidas no meio social auxiliam na constituição de representações e,

como afirma Certeau (1994, p. 34), são as “representações aceitas que inauguram uma nova

credibilidade, ao mesmo tempo em que a exprimem”.

O aspecto apresentado na sala investigada, em que se adotam algumas ações para

coibir qualquer possibilidade de evasão do comportamento solicitado pelo professor, auxilia

na produção de relação com que é ou não permitido neste espaço, de acordo com a

importância determinada para cada atividade. Isso revela o que é mantido no imaginário dos

proponentes das vivências escolares e o que auxilia na formação do imaginário dos demais

envolvidos nestas vivências, a respeito do brincar, em conformidade com as representações

aceitas pela escola.

Lembrando o que diz Vygotsky (1987), a imaginação está diretamente ligada às

experiências reais, vez que ela não cria sem a referência de uma experiência já vivenciada,

estando, dessa maneira, vinculada às interações com o seu meio social. Na ótica de Martinez

(2009), por meio do que os sujeitos relatam ou conceituam verbalmente, pode-se compreender

o imaginário que continua sendo construído sobre o contexto de sala de aula.

Com isso, ponderando as verificações decorrentes das entrevistas e das observações,

pertinentes a esta investigação, com as menções dos autores referidos acima, é possível dizer

que a percepção do contexto em que se insere na escola é registrada e mantida na memória da

criança, contribuindo para a formação de seu imaginário e sistematização conceitual sobre o

brincar e outros processos da cultura corporal de movimento.

Neste sentido, pode-se compreender a relação da criança com o comportamento

corporal que se deve manter em sala de aula, apontada como fator necessário para o

aprendizado. As falas abaixo expressam bem o que essas crianças vivem entre o aprender e o

brincar:

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Esse corpo está sentado, prestando atenção na professora, parado [...] pra ele, pra ele prestar atenção e aprender mais... Ele está sentado, olhando pra professora, aprendendo, tipo, matemática, ele está aprendendo matemática, matemática a gente não aprende fazendo... é... brincando. (He/M – 10 anos)

Porque também na sala de aula não pode ficar muito agitado, assim né? Indo, levantando do lugar, indo pro outro, andando pela sala, também não pode ser assim né? Tem que ficar sentado no lugar [...] Porque é um corpo que tem mais aprendizado, aprendizagem, entendeu? Então, eu acho que ele é um corpo melhor pra ficar na escola, que aprende mais... Porque ele é um corpo mais calmo, não é muito alegre. Ele é um corpo mais calmo, assim, um pouquinho mais nervoso [...]. (Ke/F – 10 anos) Deve ficar quieto, escutando a professora, escrevendo... Porque... porque é uma... uma maneira mais fácil de a gente aprender, de a gente tentar, pra gente conseguir fazer, conseguir aprender mais as contas, as leituras. (Lo/F – 10 anos)

Na sala de aula não pode conversar muito alto... Não pode bagunçar, tem que fazer o dever de casa... Porque senão eu não vou aprender nada... Aprendendo a ler, escrever, estudar, passar nas provas. (Er/M – 11 anos)

A postura de permanência durante o momento de aula em sala, em que o corpo “deve

ficar quieto”, “tem que ficar sentado no lugar”, assim como expressam algumas crianças, se

assemelha com os elementos figurados em relação ao estado corporalmente postado na aula.

Ilustrando a correspondência entre fala e figuração, destaco os desenhos de autoria de três das

crianças mencionadas:

Figura 3 – Percepção do corpo mais calmo no momento de sala de aula (Ke/F – 10 anos)

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Figura 4 – Percepção do corpo quieto no momento de sala de aula (Lo/F ― 10 anos)

Figura 5 – Percepção do corpo quieto e confuso no momento de sala de aula (Er/M – 11 anos)

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Como havia uma proposta definida a ser registrada pela via da percepção corporal,

durante a rotina em sala de aula, as crianças, a partir de seus desenhos, buscaram referendar

essa iconografia com as situações vivenciadas em sala, de acordo com as indagações da

pesquisadora sobre a razão de desenharem o corpo que pudessem fazer emergir essas

representações com a figura desenhada. O que possibilitou verificar o que é mantido no

imaginário da criança, a respeito de suas vivências neste espaço escolar e como devem

comportar-se no envolvimento com as mesmas.

Nas referências feitas pelas crianças, em que o desenho apresentou-se aliado aos seus

discursos, o relevo mais retórico, assinalado por elas, sugere um controle e uma disciplina que

se deve empreender no corpo para que, assim, o aprendizado possa vir a termo.

No entanto, o controle e a disciplina, empregados ao corpo, no momento do

aprendizado de conteúdos escolares, indicam o quanto esse corpo é desconsiderado no

processo de ensino-aprendizagem em virtude de uma sempre superestima das operações

cognitivas.

A esse respeito, é bem-vindo aquilo que Gonçalves (1994), diz sobre as análises

realizadas por Rumpf (1981), quando constata no regulamento escolar, no conteúdo das

disciplinas e nos livros didáticos docentes, aspectos que atuam diretamente no controle do

corpo na escola, nos quais são previstos a racionalização das ações, em que a participação

espontânea e movimentos involuntários dos alunos são cerceados em favor de ações previstas,

sendo estes levados a envolvimentos em aulas regidas por discursos docentes marcados pela

impessoalidade, em que o corpo é ignorado na aprendizagem de conteúdos, “e não somente

pela exigência de o aluno ficar sem movimentar-se, mas, sobretudo, pelas características dos

conteúdos e os métodos de ensino, que o colocam em um mundo diferente daquele no qual ele

vive e pensa com o seu corpo”. Com isso, a escola não somente disciplina o corpo, seus

sentimentos ideias e lembranças, ela também o anula (GONÇALVES, 1994, p. 34).

Os apontamentos feitos por Gonçalves corroboraram o esforço de Foucault (1987), ao

referir-se ao sistema de relação de poder exercido na escola, que vai desde sua organização

espacial até ao regulamento que rege o seu funcionamento, conduzindo à sujeição do corpo,

tornando-o não só submisso como, também, mais útil. Segundo o autor, “esses métodos que

permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de

suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as

‘disciplinas’”. Assim, esse mecanismo de controle, que é implementado pelo aplicar de

disciplina sobre o corpo, produz “corpos submissos e exercitados, corpos dóceis”

(FOUCAULT, 1987, p. 126-127).

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Outro método de disciplina, mencionado por Foucault (1987), refere-se à necessidade

de reger as atividades realizadas no espaço escolar, que também precisam de um controle

rigoroso que assegure a submissão e o alto desempenho de todos. Por isso que o cumprimento

do “horário” deve ser controlado inexoravelmente, na garantia de se obter um tempo útil e

que, assim, possa-se extrair dele a máxima qualidade, no qual o corpo deve ficar envolvido

integralmente na atividade exercida.

Outro fator a ser considerado é a “elaboração temporal do ato”, em que o corpo tem

que se ajustar a uma temporalidade para a execução de seus próprios atos, nesse sentido, “o

tempo penetra o corpo, e com ele todos os controles minuciosos do poder”. Porém, o controle

disciplinar não se restringe em somente dispor um domínio temporal sobre o corpo, ele

também determina a correlação entre “o corpo e o gesto”, definindo o melhor emprego gestual

de acordo com a atitude integral do corpo, dessa maneira, a disciplina corporal é determinante

na eficácia do gesto que pode promover, por exemplo, até mesmo uma boa caligrafia. A

“articulação corpo-objeto”, é definida pelo obedecer das relações que o corpo deve ter com

cada objeto manipulado e, com isso, vai se construindo a operação instrumental do corpo

imposta pelo poder disciplinar. Já a “utilização exaustiva”, define que o tempo não pode ser

desperdiçando, há que se evitar a ociosidade em função do melhor aproveitamento do horário

para que, em cada instante, se possa obter mais força útil (FOUCAULT, 1987, p. 129).

Acerca disso, é preciso reconhecer que, segundo Snyders (1988), de certa maneira o

empreender do comportamento regido por técnicas disciplinares foram se modificando ao

longo do tempo, até chegar aos dias de hoje em que, a relação que o professor estabelece com

o aluno não corresponde às clássicas ordenações disciplinares. A autoridade exacerbada do

professor foi cedendo espaço a outras práticas de condução ao fazer obedecer. Por este novo

processo de introdução de normas, os méritos são dados à docilidade, à passividade e à

obediência. Dessa maneira, muda-se o recurso, mas o cerne do propósito continua o mesmo.

No entanto, se atentarmos à condução da rotina escolar, da forma como fora percebida

no ambiente investigado, concernente a todos os envolvimentos organizados, administrados e

proporcionados por ela, em uma oligarquia pedagógica, é possível observar os processos de se

fazer obedecer, proferidos por Foucault (1987), presentes quase que em totalidade,

empregados na escola, onde ainda se configura o domínio disciplinar realizado por

distribuição do espaço, controle do tempo e punições, em que a representação do corpo

disciplinado fundamenta um gesto eficiente.

E nesse retrato disciplinar no qual a escola ainda pôde ser vista, o que por vezes

ocorre, é a tentativa de “dobrar” o corpo, fazê-lo caber no quadro de uma cultura de ensino

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excessivamente rigorosa, lapidária de emoções. Suprimindo vícios para tornar o aluno,

mesmo na fase da infância, com seu comportamento irreverente, se não aceitável ao menos

tolerável. Isso pode acarretar em muitos alunos com criatividade, espontaneidade, criticidade,

participação, simplesmente brilhantes, uma censura, sendo estes apontados como

indisciplinados, errados, problemas, e serem punidos por simplesmente serem naturais, pelo

que são. Sendo que a espontaneidade não se encaixa em padrões.

Por esta razão, ouso em dizer que, algumas escolas podem não ter contemplado as

modificações nos métodos disciplinares, assim como mencionou Snyders (1988), elas podem

ter, de certa maneira, agregado outros novos, como, por exemplo, os méritos aos bons

comportamentos, assim como também mencionou o autor em destaque.

No rol desses apontamentos, a disciplina corporal, expressa pelas crianças

investigadas, em justificativa de que um determinado comportamento seja apropriado para um

aprendizado eficaz, e conferida nas menções de Gonçalves (1994) e de Foucault (1987), pode

ser compreendida como reflexo das manifestações de poder e controle, exercidos nos

processos educativos, sobre os alunos. No entendimento de que o corpo inerte, como uma das

garantias de melhor acesso ao conhecimento, inerente ao intelecto, vai ao encontro com que é

solicitado pelo professor em sala de aula, em que a passividade corporal é cultuada entre os

alunos, em nome de uma conduta necessária para a transmissão e apreensão de informações

escolares. Durante o período de observação em sala, ficou evidente, nas manifestações de

alguns professores, assim como pode ser interpretado nos próximos relatos:

Relato III – “Sentados, sentados, cada um no seu...” – (Observação 01/09/2009)

Ao tocar o sinal para a troca de aula e, neste caso, também de professor, a professora que chegou para ministrar a próxima aula, chegou à sala já solicitando que eles sentassem, dizendo: “sentados, sentados, cada um no seu lugar, sentados, sentados”. E, ainda: “se vocês não sentarem não tem como eu passar as informações. Para aprender tem que ficar quieto”.

Relato IV – “Escola não é lugar de conversa... como assim?” – (Observação 04/09/2009)

[...] Tiveram alguns alunos que tentaram conversar durante a aula, mas o professor repreendeu-os logo que iniciaram. O professor disse a eles que não queria saber de conversa na aula dele e que se eles não tivessem interessados em aprender era pra eles não irem para a escola, pra ficarem em casa, assim eles não atrapalhariam os colegas. Os alunos que tinham sido repreendidos voltaram a copiar o conteúdo passado na lousa. O silêncio perdurou por boa parte da aula. Às vezes um aluno olhava para outro e sorria, mas não conversavam. [...] Um aluno, sentado no fundo da sala, de vez em quando olhava para uma

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das alunas e, em certo momento, ele iniciou uma gesticulação para ela, imitando dirigir um carro, o professor viu, olhou para o aluno e mandou-o ficar quieto, dizendo: “cala a boca e senta direito” [...]. Viu outro aluno com o pé sobre a cadeira e mandou que o aluno sentasse “direito”, que tirasse o pé da cadeira, dizendo que, assim, “com essa postura”, eles não aprenderiam “nada”.

Com base nesses relatos, pode-se inferir que a atividade cognitiva constitui o eixo

central da educação escolar. Num espaço educativo que prioriza a memorização como

condição para o desenvolvimento da racionalidade, tem-se como deferência: a inércia do

corpo, a ausência da fala, a falta de qualquer que se pareça com manifestação corporal e uma

fartura de passividade. Nesta concepção de natureza do trabalho docente, que expressa uma

compreensão de conhecimento ancorado nas funções cognitivas, o conhecimento é pensado

como produto, o que revela um modo de perceber o ensino e a aprendizagem dissociados das

diferentes linguagens corporais, como no caso da Educação Física que se parece mais como

processo.

Mas, no final das contas, parece mesmo que a instituição escolar engendra uma ordem

e uma organização proeminente da sociedade que integra, e esta sociedade privilegia o

afastamento e a anulação nos usos que faz do corpo.

Rivière (1996), apoiando-se nos estudos de David Le Breton, referentes aos “ritos das

relações interpessoais da sociedade ocidental que adota por costume o distanciamento”,

interpreta como sendo “ritos de distanciamento” a atitude dos membros dessa sociedade que

“esforçam-se para não sentir ou para esquecer o corpo”. Dessa maneira, no cotidiano do

homem ocidental, os hábitos adotados tendem à invisibilidade proeminente do corpo e que

“tal ritualidade corporal, feita de evitamentos e apagamentos, para canalizar as emoções que

ameaçariam, em permanência, a ruptura de equilíbrio, aparece como uma instituição social de

negação do corpo” (Ibid., p. 184).

A escola, como uma das instituições que reproduzem as marcas sociais, envolta por

essa camuflagem corporal que a referida sociedade, da qual fazemos parte, adota e tenta

imprimir, a qualquer custo, no comportamento de seus integrantes, uma postura coerente com

essa demanda social. Ela nada mais faz do que habilitar o corpo à justa forma para lidar com

essa linguagem social. Quer isso dizer que a escola evoca o corpo e prepara-o para o

cumprimento das normas instituídas pela sociedade em que partilha e mantêm esses ritos em

comum.

No entanto, é razoável pensar que enquanto o solo da pedagogia educacional só tiver

espaço para as construções designadas às habilidades cognitivas, o intento de que a escola dê

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conta de uma integralidade corporal permanecerá quimérico. Vez que “a escola exige que a

criança leia, escreva, calcule, (fracione, memorize, decore...) em fim, que compartilhe

símbolos, linguagens comuns a uma sociedade. Paradoxalmente, essa atitude socializada deve

ser praticada em carteiras que isolam as crianças umas das outras e através de tarefas

individuais” (FREIRE, 1994, p. 183, grifo nosso).

E neste conduzir da interação pedagógica, em que o ensinar fica concentrado em sala

de aula, “onde se privilegia o desenvolvimento da inteligência racional, como disciplina

mental, através de modelos de pensar lógico e matematizados” (SANTIN, 2001, p. 17), o

prazer emanado na sala de aula, parece definir-se por uma atitude pedagógica firmada “em

teorias e práticas de ensinar e de aprender. O prazer vivido por um professor ou por um grupo

de aluno seria administrado num agir pedagógico ― a motivação ― para resultar em

produtividade, ou seria resultado de eficácia e eficiência desse agir.” (LIMA E GOMES,

2000, p. 21-22).

O prazer conferido pela escola, mencionado no texto de Lima e Gomes, é o prazer

elevado ao espírito, o prazer do corpo é desprezado. E quando alguma atenção é dada à

corporeidade, esta se encarrega ao cuidado do seu “bem-estar como garantia do bem-fazer do

espírito”. A garantia desse “bem-estar dos corpos” apresenta-se desde a arquitetura escolar até

as condições e arrumações de seu espaço físico. Até mesmo a administração desse espaço é

pensado, contudo, eles se propõem ao distanciamento entre professor e aluno e entre aluno e

aluno, neste espaço é organizado, também, o apartamento entre corpo e espírito e entre corpo

e outro corpo, em que a única comunicação possível é a comunicação verbal. “São

desconhecidas ou pouco conhecidas as linguagens não-verbais que podem acompanhar ou

prevalecer nas relações entre uns e outros, as experiências de prazer e de desprazer que se

podem dar por via das linguagens do corpo ― seu movimento, seus gestos, seus sentidos”

(LIMA E GOMES, 2000, p. 22).

Talvez seja pela exigência constante de uma determinada postura de permanência dos

alunos, exercida durante o ministrar de conteúdos escolares no ambiente investigado, que dos

quatorze desenhos registrados sobre a percepção corporal no momento de interações em sala

de aula, em doze deles as figurações sobre a percepção do corpo fora registrada pelos

desenhistas sob a forma de um estado comportamental, representado pelo aluno sentado em

sua carteira. A figura 6, apresentada logo a seguir, reúne os doze desenhos que indicam o

estado de permanecia em sala de aula, como é exigido pelos proponentes de atividades

realizadas neste ambiente escolar.

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Figura 6 – Painel de desenhos que retrata a percepção do corpo em sala de aula

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Alguns dos desenhos demonstram a organização do espaço de sala de aula esboçada

pela formação de filas de carteiras e, em cinco deles, aparece à figura do professor

representada graficamente. O que pode revelar o quanto é marcante para algumas crianças a

formatação e a presença do professor da/na sala de aula, em que os alunos declararam,

enquanto desenhavam, terem que permanecer assentados em seus lugares, previamente

demarcados pela professora conselheira da turma, em atendimento a solicitação dos

professores. Na figura 7, para melhor visualização, aparecem os desenhos que trazem o

professor representado graficamente.

Figura 7 – Painel de desenhos que traz o professor representado graficamente

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Os dois outros desenhos, feitos pelas crianças enquanto relatavam sobre a percepção

de seu corpo no momento de sala de aula, mostram os alunos na posição em pé, em que, em

um deles, mesmo que o desenho apresente a figura humana na posição em pé, o autor, Fe,

descreve o corpo como estando sentado em sua carteira, quieto, prestando atenção na

professora (vide figura 9).

Figura 8 (Ia/M – 10 anos) Figura 9 (Fe/M – 11 anos) – Ilustração do corpo na posião em pé

O sentido e o significado da exigência da contenção corporal, assim como pôde ser

verificado nas interlocuções e nos desenhos dos alunos entrevistados e através das

observações realizadas no local da investigação, revelam um mecanismo de controle das

ações dos alunos em sala de aula em que, pela interditação do corpo, pode-se obter melhor

rendimento do trabalho intelectual. Nesta lógica, Lima e Gomes (2000, p. 97) alegoriza-se à

ação do professor, durante a condução da aula, como uma atuação no papel de um “guardião

dos espaços corporais dos alunos”. Essa metáfora da autora expressa o significado das

solicitações eloquente do professor para a retomada do silêncio e/ou da permanência do aluno

no lugar destinado ao seu assentar.

E neste encaminhamento comportamental do aluno em aula, vinculado ao pensamento

de Lima e Gomes (2000, p. 99-100), situa “as percepções que possam ocorrer no espaço

sagrado da sala de aula, que sejam as originárias do corpo são marcadas de suspeita”, a

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audição e a visão, sentidos corporais que não necessitam romper a barreira do local destinado

a cada aluno, em sala, são os sentidos aceitos para a apreensão do saber escolar. E essa

condição cumpre a necessidade da escola em “celebrar a ascensão de um senhor”, que

configura como sendo “a elevação-separação da mente, com a separação-flagelação do

corpo”.

Neste contexto educacional em que a manifestação do pensamento é privilegiada e

prevalecente, dentre os três aspectos mencionados por Medina (1990b) ― as manifestações

do pensamento, do sentimento e o movimento, que constituem as dimensões energéticas do

corpo, a supervalorização do pensamento, concebida de maneira muito pobre e utilitarista,

“amordaça as nossas concretas manifestações corpóreas, impede, ao mesmo tempo, as

expressões mais livres e espontâneas do movimento, do sentimento e do próprio pensamento,

como fenômenos tipicamente humanos” (Ibid., p. 12).

Por essa razão, é preciso considerar, antes de qualquer coisa, assim como é

mencionado por Nóbrega (2005, p. 607) que “[...]. Somos seres corporais, corpos em

movimento. O movimento tem a capacidade não apenas de modificar as sensações, mas de

reorganizar o organismo como um todo, considerando, ainda, a unidade mente-corpo”. Se o

corpo assim for compreendido, como propositor de cognição, pelos proponentes de atividades

escolares, suas manifestações, expressas em diferentes formas de linguagens, serão

expandidas, também, para o ambiente de sala de aula.

No entanto, mesmo que seja exigida a quietude em sala de aula e que os alunos

tenham demonstrado atenção à solicitação do professor, à permanência em um estado

silencioso e de movimentação corporal inativa e, ainda que considerem o corpo quieto em um

estado melhor para o aprendizado, como pôde ser percebido pelas narrativas das crianças e

nas observações em sala, isso não quer dizer que os alunos prefiram essa situação de inércia,

sobremaneira, quando o tempo escolar é distribuído com predominância nas atividades de sala

de aula. As falas a seguir expressam melhor esse descontentamento.

Não gosto muito, porque às vezes eu fico na aula, a gente copia muito, a gente fica cansada, com a mão cansada [...] eu sinto o meu corpo cansado meu corpo pesado. (Lo/F – 10 anos) Na sala é mais ou menos boa... Porque lá nós não podemos conversar, não pode pular, não pode andar... Por um pouco é bom, por um pouco é ruim... Porque a gente vai precisar da educa... um dia nós vamos precisar da escola aí, porque a gente tem que prestar atenção... É um pouco bom... Pouco ruim que a gente não pode pular, não pode andar, não pode correr. (He/M – 10 anos)

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A gente fica o tempo todo sentado, né? Uma hora, quatro horas sentado... Muito ruim, né? A gente fica parado o tempo todo... Porque a gente fica sem movimentar... Ah! A gente sente falta de brincar, de correr... Ah! Porque a gente fica todo dentro da sala, aí, quando a gente está lá dentro, escrevendo, fica parado o tempo inteiro, aí a gente sente falta. (Je/F – 10 anos)

Todavia, no confronto entre entrevistas, observações e desenhos, suscitou

interpretações que indicam os esforços, mesmo em meio a tanta adversidade, em manter o

corpo próximo à possibilidade de manifestação. Embora saibam que a transgressão ao

comportamento prescrito em sala de aula pode incidir em punições, alguns alunos criam

“rotas de fugas” para manifestarem-se, ainda que escondido da professora, rebelando num

corpo, todo o desconforto de estar em sala de aula.

Os depoimentos (falas) e o desenho, apresentados a seguir, demonstram os momentos

de “evasão” das regras de comportamento, vigentes em sala de aula, em que os alunos

aproveitam das “brechas” encontradas no espaço controlado pelo professor, para se

expressarem, mesmo que de forma restrita, na tentativa de evitar que o professor flagre o ato

transgressor.

É, não pode mais eu já falo [...] Porque pode até o professor entrar na sala de aula, mas quando o professor chega, aí eu tenho que parar... Ah! Aí eu acho que é muito ruim, não consigo, não consigo, às vezes... às vezes quando o professor até vira, eu começo de novo... Se não ele briga, se não eles brigam comigo [...] é que, às vezes dá esse momento, que eu não consigo, que eu não consigo, que nem às vezes eu termino a tarefa, vou, olho pra minha colega, vejo se ela terminou, se ela terminou eu converso com ela... Ah! Se a professora vê, ela briga [...]. (Lu/M – 10 anos)

Ah! Eu escrevo, aí converso um pouquinho, escrevo, escrevo um pouquinho... Aí converso [...] dá vontade... Eu faço escondido da professora... Ah! As professoras não deixam nem nós levantar, não deixam nem nós conversar, aí nós temos que ficar quieto ué... Aí tem que ficar quieto, se não a professora passa mais lá no quadro, só dá pra conversar baixinho. (Da/M – 10 anos)

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Figura 10 – Percepção do corpo em contenção e em evasão no momento de sala de aula (Lu/M – 10 anos)

Os elementos apresentados na figuração de Lu, indicam duas situações vivenciadas

pelo aluno em sala de aula. A primeira situação desenhada, no sentido lexical, demonstra

quando ele está atento ao professor, em sinal de obediência as regras de permanência em sala.

A segunda situação, retrata o aluno resistindo ou fugindo às mesmas regras.

Neste processo, em que o corpo é restringido nas práticas educacionais, o lúdico não

poderia ficar a salvo, sendo, tanto um quanto o outro, desconsiderados na trama de relações

que acontecem na escola. E mesmo que o corpo seja requisito indispensável para estar no

mundo, para existir em tempo e espaço, o corpo é visto como “um acréscimo, um excedente,

um empréstimo, um elemento dispensável” (SANTIN, 2001, p. 110).

E o suprimir do corpo e, por fim, do lúdico, no convívio escolar, são efeitos do

“amarrar” e “amordaçar” com vistas ao “aprender”, assim como sugeriu Freire (1994, p. 12),

que entendeu nesse método escolar a linguagem da imobilidade e do silêncio e, ainda, refere

que “o interessante é que nós, professores, não suportamos a mobilidade da criança, mas

queremos que ela suporte nossa imobilidade”.

Seja como for, a escola precisa atentar-se para uma educação concreta que dê

significado ao conteúdo que ela versa, no entanto, ao dizeres de Freire (1994, p. 14), torna-se

difícil significar a educação escolar “quando o corpo é considerado um intruso”. Sendo assim,

há a necessidade de reconhecer o valor lúdico do corpo em movimento, pois a ludicidade

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desencadeia movimentos e sentimentos que integram o corpo em sua sensibilidade e

inteligência, evocando-o em sua totalidade. Neste momento, o indivíduo entra em contato

consigo mesmo e com o outro no mundo vivencial. Não há como excluir completamente o

aspecto lúdico do corpo, pois ele não existe apenas como um instrumento, muito pelo

contrário, o corpo é inteligível, manifesta vontades e, de uma maneira ou de outra, busca um

reencontro com a sua sensibilidade lúdica.

Contudo, todas essas esquivas, em meio a uma regência caracterizada por proibições,

com efeito nas expressões por vias corporais, foram verificadas durante as observações em

sala, junto às crianças participantes desta investigação. Ocasião em que se pôde perceber as

possibilidades criadas por elas, ainda que restritas, para driblarem o comportamento imposto

pelos professores, como o relato pode mostrar.

Relato V – “Os alunos só se comportavam bem quando o quadro estava cheio de tarefa para copiarem... Será?” – (Observação 09/10/2009)

Quando o professor virou-se para a lousa, no intuito de passar o conteúdo da aula do dia, duas alunas foram em sua direção para mostra-lhe uma atividade copiada no caderno. Nesse momento em que o professor foi rodeado pelas duas alunas, alguns dos alunos iniciaram uma brincadeira, em que um aluno equilibrou seu lápis em pé sobre sua mesa e o outro jogou uma caneta, tentando derrubar o lápis. O aluno, que encontrava-se na cadeira junto à mesa em que o lápis estava equilibrado, mandava a caneta de volta, para que ela pudesse ser jogada novamente. Eles tentaram fazer tudo muito discretamente, para que o professor não visse. Teve uma hora que a caneta foi lançada e atingiu uma maior distância. Então, o aluno que lançou a caneta com o intento de derrubar o lápis, levantou pra buscar a caneta e foi surpreendido pelo professor, que o repreendeu por estar andando pela sala e o mandou sentar em seu lugar e somente copiar o texto. Os alunos, atendendo a ordem dada pelo professor, ficaram em silêncio ao copiar o conteúdo passado na lousa. No entanto, assim que o professor terminou de passar a matéria na lousa, ele sentou-se em sua cadeira e recebeu os alunos que tinham terminado de fazer a tarefa. Como o professor estava rodeado de alunos, alguns outros aproveitaram para ficar em pé e brincar, arremessando, um para o outro, uma bola pequena de borracha. O professor, quando percebeu, ficou em pé e mandou que todos os alunos voltassem para os seus lugares e que ficassem em silêncio, voltou-se para o aluno que estava de posse da bolinha e solicitou que a entregasse para ele, avisou que deixaria a bolinha na coordenação e que o dono da bolinha deveria pedir para um de seus pais irem à escola buscar, caso contrário, a bolinha de borracha não seria devolvida ao seu dono. Depois, voltou-se para sua mesa, pegou o livro de atividades, e avisou a todos que continuaria passando matéria no quadro, justificando que os alunos só se comportavam bem quando o quadro estava cheio de tarefa para copiarem.

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A atitude, tomada como pedagógica pelo professor, assim como pode ser visualizada

no relato acima, revela-se como uma compreensão de pedagogia tradicional, na qual o

professor apresenta-se como figura principal, responsável por direcionar e executar a

aprendizagem.

Nesta verificação empírica, ouso a dizer que o modelo pedagógico encenado na escola

campo desta investigação, segue um padrão teórico que sugere a forma de se conceber o ser

humano em um tipo de aprendizagem, que considera um determinado comportamento regido

pela racionalidade técnica formal, entendendo que, se o aluno não estiver quieto, sentado,

estático, ele não terá aprendizado, não conseguirá memorizar. Esse é o modelo que, me

parece, está posto.

Contrariando a intencionalidade do professor em inibir as manifestações corporais, o

comportamento dos alunos, estratégica ou oportunamente assumido de acordo com as

circunstâncias ocasionais em sala de aula, que contravém as regras e as representações dos

procedimentos escolares expressam a necessidade de extravasar o comportamento corporal

lúdico que a criança tem. E nesse instante, ela ― a criança aluna, em atendimento a um

interesse próprio, aventura-se em retomar o contato com o brincar em um espaço em que essa

atividade é recriminada e julgada como inoportuna para aquele momento de aprendizado.

Esta forma de encontro com o brincar, que acontece quando o professor não está

inspecionando os alunos, corrobora com a ideia de tática apresentada por Certeau (1994), em

que são referidas atitudes de oposições às intervenções previstas ao controle e à organização

do espaço social, que subverte as operações de poder.

Assim, esperar pelo momento oportuno para manifestar-se de maneira contrária ao que

é permitido em sala de aula, aproxima-se da descrição de tática proferida por Certeau, na qual

indica que, “a tática depende do tempo, vigiando para ‘captar no vôo’ possibilidades de

ganho. O que ela ganha, não guarda. Tem constantemente que jogar com acontecimentos para

os transformar em ‘ocasiões’. Sem cessar, o fraco deve tirar partido de forças que lhe são

estranhas” (Id., 1994, p. 47).

Dessa maneira, pelos usos que os alunos fazem do tempo em que não estão

diretamente sob o controle do professor, pôde-se verificar alguns aspectos acerca da relação

entre o que se pode e o que se quer, presentes no comportamento de determinados alunos, em

sala de aula. A partir do qual, pôde-se examinar uma crise entre as representações de

interações corporais do professor e do aluno. O que, de certa forma, subverte a autoridade do

professor, assim, pode-se gerar uma crise, compreendida na escola como indisciplina.

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Contudo, mesmo que algumas crianças assumam posturas que vão contra as regras

internas, referentes ao contexto em que vivem na sala de aula, em alguns registros de suas

falas, para além de ter sido observado que os alunos entendem que o comportamento exigido

é melhor para aprender, eles apresentam, ainda, uma visão de educação como possibilidade de

qualificação para o mercado de trabalho e elevação da condição social, quando relacionam o

aprendizado escolar à conquista de uma carreira e, com isso, a possibilidade de “ser alguém

na vida”:

Vira nada assim, se você não estudar você não vai seguir uma carreira sem estudar... Ué! Porque se você não estudar não vai ser nada, então tem que estudar pra ser alguém... Porque eu estudo, eu posso ser alguém, posso ser um juiz, ser um advogado. (He/M – 10 anos) Porque a gente vem na escola pra aprender... Porque tem que estudar para ser alguém na vida, para ser um médico... Porque sem estudar você não é ninguém. Não pode ir pra faculdade. (Ias/F – 10 anos)

A esse respeito, pode-se dizer que as crianças investigadas demonstraram, em suas

falas, a influência de um contexto marcado por práticas que as colocam na lógica temporal do

adulto. Isso quer dizer que a criança está submetida a um projeto que a emprega em uma

perspectiva do que pode vir a ser quando adulta, em que é desconsiderado o seu tempo real,

estabelecendo um esquecimento, ainda que temporário, de si mesma, como se o significado e

a importância do ser fosse negado em supervalorização do vir a ser.

Imbricado em tal perspectiva de atendimento a uma doutrina utilitarista, que favorece

a manipulação do indivíduo como força de trabalho, assim como proferiu Grando (1996), em

que a escola tem empenhado-se na formação de crianças para o cumprimento de tarefas a

serem exercidas na sociedade, como mencionou Freire (1994), Snyders (1988) alude que a

escola apresenta-se em uma função bem distinta, sendo ela a de

[...] preparar os jovens para o futuro, para a vida de adultos, em particular, para uma profissão. Esse é o papel essencial, inicialmente por razões econômicas e técnicas evidentes; e também porque assim uma resposta é dada ao desejo de crescer, de ser iniciado no mundo dos adultos, de penetrar nos segredos que os adultos detêm; a criança sente que se prepara para inserir-se e agir entre os “grandes”; tem consciência de que o que se passa na escola é valorizado pela sociedade – e não é considerado como uma brincadeira (Ibid., p. 11).

Neste contexto em que é retratada a função escolar, na espreita do mundo do trabalho,

no qual são pleiteadas as exigências educacionais, com ensino conduzido detidamente, o

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sistema capitalista é levado para dentro da escola e dá o tom de seu compasso, donde resta à

criança formar-se na projeção de futuros operários (SNYDERS, 1988). Isso porque, “se

vivemos num sistema capitalista, dependente, altamente hierarquizado em níveis sociais, não

só a escola como também o homem, o corpo, e suas manifestações culturais, serão produtos

ou subprodutos das estruturas que caracterizam este sistema” (MEDINA, 1990a, p. 19).

Dessa maneira, a educação escolar descontextualiza-se da realidade temporal do aluno,

ignora as suas necessidades particulares ao “aqui e agora”, encarregando-se do preparo para

etapas futuras, para o mercado de trabalho. E as significações de educação escolar, como

foram apresentadas pelas crianças participantes deste estudo, sugerem o modelo de educação

mencionado por Snyders (1988), em que, o aluno, sendo encarado pela escola como sujeito

em formação para agir quando for adulto, sente-se contemplando o que de fato tem valor para

a sociedade.

Inserido nesta oficina de ressignificação do sentido da existência, o corpo e as formas

de expressão lúdica produzidas pela criança, ao se movimentar, são ignorados pela escola, que

renega a criança a partir de sua própria imagem, projetando-a a imagem e semelhança do

adulto, fruto do incessante preparo para o futuro. “Parece que a razão de ser criança está

necessariamente atrelada ao projeto de tornar-se, melhor, antecipar-se como adulto. Ela deve

jogar o jogo da vida de acordo com as regras dos homens grandes”, por esta razão, como

consequência imediata, “o mundo do brinquedo pode ser entendido como período mítico que

precisa ser superado pelo mundo do trabalho” (SANTIN, 2001, p. 49).

Em consequência disso, o corpo lúdico vai desaparecendo e a escola acena a porta de

entrada à faina da vida adulta. Até porque o jogo, assim como mencionado por Caillois (1990,

p. 9), “opõe-se ao trabalho, tal como o tempo perdido se opõe ao tempo bem entregue”.

Por este caráter projetivo, Rumpf (1981 apud GONÇALVES, 1994, p. 35) apresenta

críticas à escola por apresentar, entre suas características, um ensino que visa à preparação

para o futuro, “esquecendo o momento existencial presente que a criança vive. De maneira

geral, a criança é levada a crer que, durante o período escolar, ela deve procurar construir uma

base sólida de operações cognitivas, que a possibilitará produzir o seu futuro invisível”. Com

isso, envolvida em uma ação educativa e pedagógica em que devem ser incorporadas atitudes,

gestos e comportamentos plausíveis à sociedade e aos interesses escolares, “a criança aprende

a postergar inúmeros interesses momentâneos e ligados à suas experiências concretas”.

Encenada neste contexto educativo e pedagógico, a educação não só é desvinculada de

explanação crítica ― esvaziada de substância e sentido, como, também, segundo menções de

Medina (1990b), ela apresenta-se descomprometida com a genuína natureza humana. E,

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despreocupada com os elementos essenciais ao crescimento do ser humano, contribui de

forma muito restrita para a realização do aluno como pessoa, “embora, às vezes, auxiliando-os

em sua formação profissional, mas de que valem as profissões e o próprio trabalho, se não

contribuem para dar soluções aos nossos problemas mais essenciais e em melhorar a

qualidade de nossa existência?” (Ibid,. p. 40).

Ao fim dessa análise, pode-se dizer que a condução das interações em sala de aula,

delineada pela contenção gestual e projeção da criança ao atendimento das necessidades

sociais, necessita, contudo, ser avaliada e repensada, na medida em que possa contribuir para

a problematização da ação pedagógica e reorganização do processo de ensino. De maneira

que abranja, também, outra concepção de educação, mais atenta e interessada no

desenvolvimento abrangente do aluno, trazendo para o seu contexto educativo e pedagógico,

os diversos aspectos constitutivos do ser humano. Não só no que tange os elementos

cognitivos e físicos, mas também, seu aspecto emocional, afetivo, social e cultural, enquanto

ser considerado no presente.

Quem sabe, assim, a educação escolar seja menos “ensinante”, preocupada,

essencialmente, com a ascensão do aluno à série seguinte, mas, ao mesmo tempo, possa

contribuir para o desenvolvimento integral do educando. Depreende-se disso, uma

metodologia que encare o aluno como um ser irrestrito, dotado de diversos aspectos, poucos

considerados, até então, pela educação.

Afinal, se as propostas político-educacionais contemporâneas referem-se a uma

educação integral, até quando algumas escolas insistirão em ignorar que a criança é dotada de

corpo, em tratá-la como um adulto em miniatura?

Diante do que fora exposto, penso que seja necessário considerar as percepções que as

crianças têm de seu corpo em sala de aula, que apresentou-se igualmente significativa para a

compreensão de como elas interpretam as interações vivenciadas neste momento/espaço

escolar, e como essas interações repercutem em seus comportamentos diários na escola.

Entendendo que, avaliar os elementos inerentes ao cotidiano escolar, em especial como a

criança se percebe, através de suas possibilidades de manifestações corporais, sua prática

neste ambiente de ensino pode convir com a busca de uma educação que não passe mais essa

mensagem de aprender com fim utilitarista, mas que considere o desenvolvimento humano,

como um todo.

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3.2 Transitando entre o livre e o moderado: o itinerário do corpo na Educação Física escolar

Através das direções apontadas pelas observações e narrativas dos investigados, fora

possível perceber a visão que a criança tem de seu corpo no momento em que está em aula de

Educação Física, na quadra, e a forma como são determinadas as relações entre possibilidade

de manifestações corporais e oferta e condução das possibilidades de manifestações corporais.

Ao longo das reflexões sobre o que fora visto em campo e o que fora narrado pelas

crianças, pôde-se verificar que as aulas de Educação Física, ocorridas no espaço-campo deste

estudo, têm sido vivenciadas com similaridade aos momentos livres ocorridos na escola,

quando os alunos praticam, rotineiramente, a mesma atividade em aula, sendo esta eleita e

mantida, como, também, organizada pelos próprios alunos, assim como fazem nos intervalos

de aulas: antes de seu início, no recreio e no final delas. Essa condução e condição da aula de

Educação Física, aparecem nas falas das crianças com o retratar da percepção de um corpo

livre, de poder fazer o que quiserem em aula e do entendimento de que a movimentação

corporal, neste espaço, não só é permitida como é condicionante da aula.

Porque eu gosto da física [aula de Educação Física]... Ah! Por causa que é legal, é a melhor aula que tem... Porque nós brincamos à vontade... Você não precisa ficar sentado, você pode brincar, bagunçar, fazer o que quiser... Porque eu só, eu gosto de jogar bola, eu só faço isso na física... Só joga bola. Óh! Sem bagunçar não tem como ser né? Porque é aula de Educação Física [...]. (Cl/M – 11 anos) Porque o corpo é mais solto, mais livre pra brincar, essas coisas... Fica mais livre, solto pra brincar... Porque daí tem que prestar atenção na sala [sala de aula], de Educação Física não precisa prestar atenção, é só jogar bola... Na Educação Física o professor não... não... não... é... não presta muita atenção na gente, só fica andando, assim... Daí o corpo fica mais liberto, se movimenta mais. (Ia/M – 10 anos) Bom, por exemplo, eu vou, movimento, aí eu vou, movimento, aí depois eu vou pra sala, eu... eu sinto bem cansado, aí eu vou copiar, eu sinto... é... tipo um recreio a aula de Educação Física [...] porque recreio, no recreio antes eu jogava bola, e na física eu jogo. Antes, no recreio eu pulava corda, e agora eu pulo... Porque no recreio eu brinco, na Educação Física também, que eu não jogo bola, aí eu pulo corda, tem vez na física... é... no recreio eu também pulo corda [...] a diferença é que o recreio tem menos tempo, a Educação Física tem mais, que tem só uma turma na quadra, não tem muita gente igual tem na hora do recreio. (He/M – 10 anos)

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As falas das crianças revelam o que elas pensam e o que elas sabem sobre a aula de

Educação Física, vivenciada na escola que frequentam. Quando falam, divulgam a postura do

professor que influência o comportamento dos alunos, durante o período em que a aula é

desenvolvida, o que pode ter motivado algumas crianças a desenharem atividades diferentes

nesta aula, que não pode ser confundido com a possibilidade de ter ocorrido uma variedade de

oferta de conteúdos pelo professor. Vez que, como mencionou um dos alunos: “Porque nós

brincamos à vontade... Você não precisa ficar sentado, você pode brincar, bagunçar, fazer o

que quiser... Porque eu só, eu gosto de jogar bola, eu só faço isso na física... Só joga bola”

(Cl/M – 11 anos).

O desabafo de poder “fazer o que quiser”, denotado na fala da criança, permite aos

alunos a livre escolha pela atividade e comportamento assumido na aula. No contexto deste

momento escolar, ao mencionar que eles, os alunos, podem brincar à vontade, não havendo a

necessidade de ficar sentado, assim como é recomendado pelos professores em sala de aula e,

por isso, pode-se “brincar, bagunçar, fazer o que quiser”, a criança entrevistada denuncia a

ausência de uma orientação para a atividade e a falta de supervisão do professor no decorrer

da aula. O que pode ter figurado na ilustração de atividades nas quais, em nenhuma delas,

aparece o professor desenhado, conforme poderá ser visualizado nas figuras expostas no

decorrer da apresentação dessa categoria.

As figurações a seguir, ilustram a percepção que os alunos têm de seu corpo durante a

atividade no momento da aula de Educação Física, em que pode ser verificada, inclusive, a

atividade que escolhem praticar no momento em que acontece a aula.

Figura 11 – Jogo de futebol. Percepção do corpo agitado na aula de Educação Física (Cl/M – 11 anos)

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Figura 12 – Jogo de futebol. Percepção do corpo mais solto na aula de Educação Física (Ia/M – 10 anos)

Figura 13 – Pulando corda. Percepção do corpo movimentando na aula de Educação Física (He/M – 10 anos)

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Pelo aspecto em que o corpo é percebido, assim como fora relatado pelas crianças,

correspondente à maneira pela qual a aula acontece na escola investigada, pôde-se verificar

que este momento escolar apresenta-se descontextualizado do real propósito da Educação

Física.

Dito de outra maneira, a Educação Física é a área do conhecimento que desenvolve

práticas que contemplam múltiplos conhecimentos, produzidos que são e usufruídos

socialmente sobre o corpo em movimento, principalmente os que têm por finalidade o lazer,

expressão de sentimentos, afetos e emoção, como, também, aqueles que designam a

promoção, recuperação e manutenção da saúde. E, dentre as produções da cultura corporal,

constitui seus conteúdos o jogo, o esporte, a dança, a ginástica e a luta que, por sua vez,

buscam re-significar “a cultura corporal humana e o fazem utilizando uma atitude lúdica”

(PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS3, 1997, p. 23).

E, ainda, a Educação Física, busca ministrar seus conteúdos através de instrumentos de

comunicação, expressão, lazer e cultura, formulando, a partir daí, suas propostas pedagógicas.

No âmbito escolar, esta área do conhecimento sistematiza situações de ensino-aprendizagem

que proporcionam aos alunos, a apreensão de conhecimentos prático e conceituais sobre a

dimensão das práticas corporais (PCN, 1997).

Dessa maneira, por apresentar-se no contexto em que fora narrado pelos alunos, assim

como também pôde ser observado na escola investigada e, tendo claras as características e

finalidades de uma efetiva aula de Educação Física, pode-se afirmar que a aula vivenciada na

escola, pelos alunos investigados, não proporciona qualquer sentido educacional ou reflexão

crítica a respeito da cultura corporal de movimento. O que pode ter levado, a criança, a

atribuir ao momento da Educação Física, um corpo mais “ solto, mais livre pra brincar” em

que na “Educação Física não precisa prestar atenção, é só jogar bola” ― referindo-se ao jogo

de futebol.

Esse depoimento demonstra, mais uma vez, a aula desarticulada dos princípios de

desenvolvimento da Educação Física, visto que, no maior tempo de envolvimento na aula, os

alunos devem ser levados a realizar as atividades de forma mais atenta possível. O que deve

ser proporcionado pelas oportunidades criadas pelo professor durante o processo de ensino-

aprendizagem. Assim, ao vivenciarem as atividades, os alunos precisam ser orientados pelo

professor a perceberem a realização dos gestos e movimentações, pois

3 A partir de agora, os Parâmetros Curriculares Nacionais serão referidos por sua sigla ― PCN.

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[...] a repetição pura e simples, realizada de forma mecânica e desatenta, além de ser desagradável, pode resultar num automatismo estereotipado. Dessa forma, em cada situação, é necessário que o professor analise quais dos gestos envolvidos já podem ser realizados automaticamente sem prejuízo de qualidade, e quais solicitam a atenção do aluno no controle de sua execução. A intervenção do professor se dá a fim de criar situações em que os automatismos sejam insuficientes para a realização dos movimentos e a atenção seja necessária para o seu aperfeiçoamento (PCN, 1997, p. 28).

Confrontando esses pressupostos teóricos com o que fora narrado em entrevista e o

que se pôde ver em campo, é possível inferir que a compreensão de corpo livre decorrida da

permissividade nos momentos destinados à aula de Educação Física, retrata um corpo envolto

ao descaso com que a aula é desenvolvida. Neste sentido, ainda que as crianças entrevistadas

não intencionassem delatar a situação em que a aula é proposta no espaço-campo desta

investigação, percebendo um corpo livre emergindo de um envolvimento ancorado no

descaso, suas falas denotam que nem mesmo na aula que tem por característica considerar

envolvimentos corporais em suas interações pedagógicas, o corpo é reconhecido em sua

totalidade, deixando claro o modelo de eleição que a Educação Física trabalha na escola

investigada.

E, se nas aulas em sala é enfatizado o que pode ser explorado de potencialidade

intelectiva no aluno e rejeitado qualquer manifestação por vias de movimentos corporais,

fracionando-o em corpo e mente, a aula de Educação Física, desenvolvida na escola campo

deste estudo, pelo caráter eminentemente prático como propõe suas interações, caracterizada

como mera atividade física/recreativa, mostrou-se aliada neste procedimento dualista de

conceber o aluno. Visto que, na aula de Educação Física, a indiferença à variedade de

conteúdo que deveria ser proposto e, até mesmo, a apatia docente frente à própria aula, ficara

evidente, onde o professor fora percebido somente como um acompanhante dos alunos.

Dessa maneira, pode-se afirmar que, no contexto em que a aula de Educação Física é

ofertada na escola investigada, a dimensão corporal dos alunos não é atendida, empreendida e

valorizada. Assim, os momentos que foram observados nesta disciplina, revelam que a forma

de propor a Educação Física junto à turma investigada, pode incidir na desconsideração e/ou

menosprezo do corpo em todas as suas possibilidades de manifestação, implicando no

desentendimento de corpo integral, abrangente.

Posto isto, uma vez entendido que, como indica Betti e Zuliani (2002), a Educação

Física, enquanto disciplina que tem por tarefa integrar o aluno na cultura corporal de

movimento, preparando-o para atuar lúdico e ativamente, agregando atividades da cultura

corporal em sua vida, deve, também, ter por princípio a diversidade de conteúdos que incida o

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contexto da cultura corporal de movimento, valendo-se das variações e combinações dos

diversos conteúdos pertinentes a esta área do conhecimento. Para que, assim, possa envolver o

aluno em sua integralidade, englobando as suas dimensões cognitiva, afetiva, emocional,

social, física e motora.

Mas o envolvimento e desenvolvimento do aluno, de forma plena, dependem,

principalmente, do uso criativo e coerente que o professor faz da variedade de estratégias e

conteúdos da Educação Física (BETTI; ZULIANI, 2002).

E pelo desconsiderar de outros conteúdos na aula, ou até mesmo pelo desconsiderar da

aula em si, assim como observado na forma como a aula é conduzida no ambiente

investigado, é que a percepção dos alunos de corpo livre na aula de Educação Física, fora

compreendida como envolvimento marcado pelo descaso por parte do professor. Como indica

o seguinte relato.

Relato VI – “Na ‘Física’ é assim...” – Observação (01/09/2009)

A aula de Educação Física foi iniciada sem a presença do professor. Antes mesmo que ele chegasse à quadra, os alunos tomaram a iniciativa de escolher os colegas que comporiam suas equipes para jogarem futebol sendo que num lado da quadra estavam os meninos e de noutro, as meninas. Era como se estivessem certos da atividade do dia, e estavam mesmo. Pois, quando o professor chegou à quadra, sem nem mesmo perguntar qualquer coisa que fosse, entregou a bola de futebol para um dos alunos e foi sentar-se em uma cadeira do lado de fora da quadra, onde permaneceu durante todo o tempo da aula. Os alunos, tendo escolhido quem faria parte de seu time, sendo que muitos ficaram de fora ― sem que tivessem sido escolhidos pelos colegas, decidiram através de par-ou-impar qual das equipes ― das meninas ou dos meninos, jogaria primeiro. Como os meninos ganharam e, por isso, iniciaram o jogo, as meninas foram sentar na mureta que cerca a quadra, para esperar a sua vez. Algumas delas jogaram Dama enquanto aguardavam o momento em que jogariam futebol. O professor deixou três tabuleiros de Dama e uma corda à disposição dos alunos que não estavam jogando. Algumas meninas que pulavam corda, disseram que só estavam pulando porque não tinham sido escolhidas para jogar. Quanto aos meninos que não foram escolhidos para compor o time dos meninos, alguns jogaram Dama, outros brincavam de Pega-pega, correndo sobre a mureta da quadra. Perguntei a um deles se ele tinha falado com o professor sobre não ter sido escolhido para jogar, ele disse que não queria jogar, que não tinha importância não ter sido escolhido. Perguntei para uma aluna se ela gostaria de jogar futebol junto com as meninas, uma vez que não tinha sido escolhida, ela respondeu que sim, mas que não era muito boa, então, nunca era escolhida. Perguntei se ela já tinha falado sobre isso com o professor, ela respondeu que já tinha pedido pra jogar e ele a colocou no time, mas que as colegas brigaram o

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tempo todo com ela, porque ela errava muito, então ela não queria mais.

A ocorrência de repreensão entre os alunos, de uns para com os outros, sempre quando

acontecia um erro na jogada ou quando uma falta era cometida, fora frequente e, às vezes,

agressiva. E, enquanto não ocorria agressão física, o professor não fazia qualquer

interferência. O professor, nos momentos da aula que estavam sendo observados, só interferiu

na atividade quando surgia alguma briga entre os alunos ou quando tinha que fazer valer o

tempo de jogo destinado a cada equipe, na ocasião em que praticavam o jogo exclusivo ― o

futebol.

Ao contrário do que ocorre na escola investigada, na aula de Educação Física, os

alunos devem encontrar oportunidades para desenvolver “suas potencialidades, de forma

democrática e não seletiva, visando seu aprimoramento como seres humanos”. Dessa maneira,

seja qual for o conteúdo eleito para ser ministrado na aula, ele deve garantir aos alunos o

aprendizado dos gestos técnicos, a capacidade de discutir regras e estratégias e apreciar a

atividade criticamente, analisando-a esteticamente, avaliando-a eticamente, resignifcando-a e

recriando-a. Para isso, “os processos de ensino e aprendizagem devem considerar as

características dos alunos em todas as suas dimensões (cognitiva, corporal, afetiva, ética,

estética, de relação interpessoal e inserção social)”. Assim, a Educação Física escolar estará

cumprindo com sua tarefa de “garantir o acesso dos alunos às práticas da cultura corporal,

contribuir para a construção de um estilo pessoal de exercê-las e oferecer instrumentos para

que sejam capazes de apreciá-las criticamente” (PCN, 1997, p. 24).

Contudo, a forma como a aula era proposta, também possibilitava aos alunos que não

se encontravam envolvidos na atividade da aula, a livre escolha sobre em que ação se

envolver. Quando estavam fazendo algo diferente, não recebiam a supervisão ou qualquer

orientação do professor e nem sempre as realizavam no espaço destinado à aula. As falas e os

desenhos mostram como se expressa essa fatia de liberdade corporal.

É que na hora que a gente está jogando, nós contamos piada, nós... nós fazemos tudo, nós jogamos Stop, dama, Xadrez, um monte de coisa, eu amo esse corpo aqui, eu adoro... Acho que um tempo livre... Um tempo livre que se pode jogar bola, brincar, pode brincar com os amigos [...] é o grupo que escolhe cada dia, por exemplo... A chefa, no caso a [pronunciou o nome de duas colegas que serão resguardados aqui]... Ah! É porque, é porque elas sabem mais jogar bola, de todos nós, daí ela fala, vamos tirar impar par, vamos tirar impar para escolher o grupo, né? Daí, daí quando termina o jogo das meninas, ai eu falei: “vamos na sala brincar de Stop, vamos jogar dama ali Ô? Tem

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dama pra cada par certo, nós vamos jogar. Mais legal assim. (Le/F – 9 anos) Acho livre, assim oh! O professor não manda... O professor não manda, assim, em nós. Fica parado toda hora, só na hora que começa o jogo, aí ele nos chama, aí nós vamos pra lá... Ele fica lá, fazendo os negócios dele, tem vez que ele vai pra lá... Aí eu sinto meu corpo livre... Porque é divertido, dá pra fazer um monte de coisas... Sinto livre, solto. (Da/M – 10 anos)

Figura 14 – Jogo de futebol. Percepção do corpo mais divertido na aula de Educação Física (Le/F – 9 anos)

Figura 15 – Jogo de futebol. Percepção do corpo livre na aula de Educação Física (Da/M – 10 anos)

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O sentido de corpo livre, que aparece denotado nas falas das crianças, por mais que

seja “divertido”, “mais legal assim” para elas e que seja percebido pela possibilidade de

“ fazer um monte de coisa”, ele também revela aquilo que de fato ocorre no momento da

prática na aula, que é o desprezo ao conteúdo e ao valor que tem a aula de Educação Física

enquanto disciplina educativa que realiza o aprendizado de alguns aspectos vinculados às

atividades corporais ― à cultura corporal de movimento, como profere uma corrente da área.

O que demonstra a pouca ou nenhuma reflexão e atuação do professor sobre e,

considerando a importância e/ou significado de uma cultura de corpo/movimento. E isso,

conforme Medina (1990b, p. 68), reforça a incapacidade da Educação Física em justificar a si

mesma, pois, a sua realidade, em nosso país, tem sido marcada pela disposição acrítica sobre

o significado da cultura corporal de movimento, que fundamenta esta área de conhecimento.

Ensejo que proporcionaria aos “seus profissionais, uma atuação coletiva mais comprometida

com um real estado de bem-estar físico, mental, social [...]”.

Digo isso não pela falta de reconhecimento do significado do conhecimento e

capacidade que a criança tem em realizar atividades corporais, mas por considerar, em

concordância com Betti e Zuliani (2002, p. 75), que é dever da Educação Física conduzir o

aluno à descoberta de motivos e sentidos nas práticas corporais, de maneira que eles consigam

compreender e analisar todas as informações relacionadas à cultura corporal de movimento,

em que o professor será responsável por “auxiliar o aluno a compreender o seu sentir e o seu

relacionar-se na esfera da cultura corporal de movimento”.

Nesta perspectiva, fica clara a importância da atuação do profissional de Educação

Física, através de uma prática comprometida com o ato educativo, no favorecimento da

abrangência e desenvolvimento de seus alunos por vias de atividades corporais. Pois, a

consciência e o comprometimento do profissional desta área de atuação, são condições

determinantes das finalidades, dos objetivos, dos conteúdos, dos métodos e, até mesmo, do

conceito de Educação Física. Da mesma forma, o professor, “não se comprometendo com o

que faz, não exala a energia necessária ao seu relacionamento com os alunos [...]. Por esse

raciocínio, qualquer atividade pode perder ou ganhar em valor, dependendo da atitude que

tomamos ao realizá-la” (MEDINA, 1990b, p.73-74).

Outra consideração observada, é que a possibilidade de fazer o que quisessem e onde

quisessem, sem a interferência do professor, assim como fora relatado pelas crianças

investigadas, não só possibilitou a elas a percepção de um corpo livre, como, também, deu o

tom do comportamento frente à aula e ao professor. É o que pode ser percebido ao investigar

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a realidade das aulas de Educação Física decorridas no campo do estudo, como mostra o

Relato seguinte:

Relato VII– “Na educação física só joga futebol” – (Observação 01/10/2009)

[...] Percebi que alguns alunos não estavam no espaço destinado à aula de Educação Física, e nem no entorno da quadra. Então, procurei-os e encontrei alguns deles na sala jogando Stop. Perguntei sobre o motivo de estarem ali e não na aula de Educação Física, então eles responderam que sempre vão para a sala, perguntei o porquê de ficarem sempre na sala, responderam que não gostam de jogar futebol, então ficam na sala fazendo outra coisa. Perguntei se já tinham conversado com o professor sobre não gostarem de jogar futebol, se já pediram outra atividade e se avisaram que estavam na sala, uma das alunas respondeu que não era necessário, que eles sempre fazem isso e que o professor não briga. Perguntei o porquê de não ficarem na aula, disseram que não ficam porque não gostam da aula, mais uma vez perguntei se já tinham dito isso ao professor, uma delas respondeu: “sim, já falei”, perguntei o que ele disse, ela respondeu: “nada, ele não ligou, ele não liga para o que a gente fala”. Uma aluna, ao me ver anotando o que a colega respondeu disse: “escreve professora, continua escrevendo, eu vou falar”. Pedi pra ela falar o que queria me dizer, então ela disse: “não gostamos de jogar bola porque o professor, ele não fala pra jogar bola e não deixa fazer outra coisa”. Perguntei que outra coisa ela gostaria de fazer, ela respondeu: “outra coisa ué, menos só ficar jogando bola”. As outras meninas que estavam por ali, perto, fizeram sinal com a cabeça em concordância com o que a colega tinha dito.

Percebe-se com este fragmento que mesmo sendo atribuído à criança a opção de

participar ou não na atividade que caracterizava a aula e/ou a busca de outra atividade, dentro

do que o ambiente oferecia, seja por estrutura física ou recursos materiais, houveram aquelas

que perceberam na condução e condição da aula, elementos que puderam ser entendidos como

moderadores da liberdade corporal na Educação Física que participavam, o que, por fim, pode

indicar certa limitação às possibilidades de manifestações corporais, neste momento escolar.

A consequência adjacente da condução e condição da aula de Educação Física na

escola investigada incidiu, também, em um número considerável de alunos dispersos da aula.

E, neste aspecto de aula, em que a atividade praticada retrata-se no “jogo pelo jogo”, o

envolvimento através de movimentos corporais, pode perder o significado para os alunos, ou,

ainda, pode ganhar significados que atribuam uma ideia de frivolidade ao corpo em

movimento.

Para além de ter dito não gostar de jogar bola e que gostaria de fazer outra coisa na

aula, a aluna, que solicitou a anotação de seu descontentamento com a única atividade

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ocorrida na Educação Física da escola investigada, representou graficamente a percepção de

seu corpo jogando dama com uma amiga, enquanto os colegas jogavam futebol na aula, como

pode ser visualizado na figura 16.

No instante em que perguntei o motivo de estar desenhando o corpo em outra

atividade, no momento da aula, ela disse ser uma “coisa” que ela “ gosta mais de fazer na

Educação Física”. Quando perguntada sobre o motivo de não estar participando do jogo de

futebol, a aluna mencionou, mais uma vez, que estava jogando dama porque é uma coisa que

ela mais gosta de fazer na aula. Ela mencionou que gosta de jogar futebol, mas não todos os

dias como acontece na aula e que, se pudesse “cada dia iria brincar com alguma coisa.

Brincar com dama, outro dia com dama humana, um dia só com futebol, um dia só com

bolita” (Ias – 10 anos – F). O que revela o desejo que a aluna tem de participar de atividades

variadas nos momentos em que é ofertada a aula de Educação Física.

Figura 16 – Jogando dama em sala enquanto os colegas de turma jogam futebol na aula de Educação Física

(Ias/F – 10 anos)

Até mesmo os alunos que encontravam-se constantemente engajados na atividade da

aula, pelo menos no momento em que seu time estava jogando, foram despojados das

inúmeras possibilidades de envolvimento que essa disciplina é capaz de ofertar. E, em

resultado ao modo como decorria, a Educação Física, assim como fora verificada, distancia-se

do propósito de conceber e interagir sobre o ser em sua dimensão corporal.

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Porquanto, no contexto em que encontra-se enredada, a Educação Física, ministrada na

escola investigada, perde em abrangência, enquanto atividade que tem valor educativo, que

pode, segundo Medina (1990b), educar o movimento e pelo movimento e, ainda, como indica

Betti e Zuliani (2002, p. 75), que tem o dever de capacitar o aluno de maneira que ele possa

refletir e “posicionar-se criticamente diante das novas formas de cultura corporal de

movimento”, enquanto sujeito de transformação, que pode produzir e reproduzir essa cultura,

usufruindo de todas as suas particularidades em benefício da qualidade de vida.

Ainda no sentido de indicar aspectos que foram mencionados como moderadores de

movimentação corporal, torna-se importante ressaltar ter sido relatado, durante a entrevista,

outras situações, além da atividade rotineira, que puderam ser compreendidas como

limitadoras das possibilidades de manifestação corporal em aula de Educação Física, onde,

algumas crianças, ao comparar a liberdade de exploração do espaço na aula de Educação

Física com o momento destinado ao recreio, atribuíram à restrição de possibilidade de

exploração do espaço escolar com sendo uma delas.

[...] pouca oportunidade, é que é assim, oportunidade o professor já fala assim: “faz o que quiser, joga bola ou fica brincando de Queimada”, essas coisas né? Mas não pode sair da aula dele. Aí eu gosto mais de jogar bola, quando não tem, quando os times não me escolheram, eu fico brincando com as meninas... de Xadrez, é só outra coisa que tem... porque eu não gosto de ficar muito sentada né? Começa a doer minha barriga, essas coisas. Porque, por isso que eu não gosto de ficar muito sentada. Aí eu fico correndo, porque eu gosto de correr, aí eu gosto de brincar de bola. No Xadrez eu não gosto muito, porque eu fico sentada jogando. Ai... eu... ruim ficar sentada, ficar muito sentada, aí eu jogo bola, porque ali eu vou fazer um monte de coisa, jogar, correr, pegar a bola, chutar... Aí, no recreio, assim, aí eu já vou estar... movimento mais. Movimentando mais no recreio, porque daí eu já posso fazer tudo o que eu quero. E essas coisas que eu gosto de fazer, é pular, correr, é pegar as pessoas, brincar com as pessoas, né? Na Educação Física eu posso, mas não posso muito, né? Porque a prof... a [pronunciou o nome da diretora que será resguardado aqui], a professora falou assim que não pode ficar correndo, se não atrapalha as aulas, ali em frente, ali, aí pode ficar brincando na quadra [...] na hora do recreio é mais divertido, porque tem mais espaço, mais espaço, porque na Educação Física é só na quadra e o negócio, né? O Futebol. (Ann/F – 10 anos)

Sinto mais ou menos livre, menos livre que no recreio, no recreio eu estou mais livre ainda... Porque eu estou correndo, eu estou mais livre ainda, pela escola inteira eu posso correr, na escola eu posso andar, posso lanchar... Educação Física só na quadra. (Lo/F – 10 anos)

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A restrição de exploração de espaço e a ocorrência de uma única atividade como

proposta de aula, visto que as outras atividades que as crianças escolhem para participar são

decorrentes de sua recusa em interagir no jogo de Futebol, pode ter sido responsável por

remeter à memória das crianças Ann e Lo, a um determinado espaço físico e a uma ação, de

maneira que elas tenham desenhado a percepção de seu corpo na atividade corriqueira da aula

e o espaço físico em que a aula acontece, por lhes serem familiar, como pode ser visto nas

figuras 17 e 18.

Figura 17 – Jogo de futebol. Pouca oportunidade na aula (Ann/F – 10 anos)

Figura 18 – Jogo de futebol. Percepção do corpo mais ou menos livre na aula de Educação Física (Lo/F – 10

anos)

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Pelo contexto em que a aula é realizada, soma-se à atividade retratada com mais

frequência nos desenhos das crianças, o espaço em que ela é desenvolvida. Nos traços

esboçados, a baliza e a bola de futebol são os elementos mais frequentes, como podem ser

vistos e lidos os desenhos e falas se assemelham no retrato da percepção do corpo circunscrito

pelos momentos vivenciados na aula de Educação Física.

Figura 19 – Painel com desenhos que retratam a percepção do corpo na aula de Educação Física.

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Dessa maneira, pela comunicação das crianças fica subentendido que a aula de

Educação Física, para além do tempo e do contingente, outrora mencionado por uma das

crianças, também se diferenciou do recreio por haver menor possibilidade de exploração do

espaço físico e, para a criança que fazia questão de estar na aula ou pela obediência em

permanecer no espaço destinado a ela, distinto de outros colegas, diferenciou-se também pela

limitação de possibilidade de atividade. Podendo ser percebido um corpo moderado nas

práticas das aulas de Educação Física, pela demarcação espacial, ainda que teoricamente, e

constante atividade em suas vivências.

Porém, se o corpo do recreio pôde ser percebido nas narrativas anteriores, como um

corpo mais livre, por ter maior acesso aos espaços escolares, o corpo da Educação Física pôde

ser percebido como um corpo mais livre por manifestar-se mais tempo que no recreio.

Percebo que meu corpo está se movimentando muito... Está mais livre... Porque na quadra é um lugar que se agita mais, né? Do que no recreio. [...] porque na... no recreio é quinze minutos de mi... quinze minutos, e na quadra é uma hora... Ah! Porque na quadra tem mais, tem mais hora, né? Pra se movimentar. (Je/F – 10 anos)

Mesmo percebendo que o corpo na aula de Educação Física se movimenta mais,

durante a entrevista Je indicou o jogo de Dama e Xadrez como as atividades que mais pratica

nesta aula. Para representar a percepção de seu corpo neste momento escolar, Je desenhou-se

em uma atividade que alegou não acontecer na aula, sendo ela o jogo de Voleibol (Vide figura

20). Ao ser questionada sobre essa escolha, uma vez que a atividade não é ofertada pelo

professor, a aluna assim se manifestou: “queria jogar vôlei e basquete também... jogar

futebol, não gosto muito” (Je/F – 10 anos)

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Figura 20 – Percepção do corpo no jogo que gostaria que tivesse na aula de Educação Física ― jogo de voleibol (Je/F – 10 anos)

No decorrer das entrevistas, durante a fase de análise e, depois, confrontando-as com

as observações feitas em campo, pude verificar que a condição de movimentação e a escolha

do que fazer foram determinante para a noção de corpo livre, nos momentos de Educação

Física. As falas de dois meninos e o desenho de um deles podem atestar essa constatação:

Sinto meu corpo livre, solto... Hum, tcho vê, livre, eu posso brincar bastante... Legal... Diferente das outras aulas... Porque essa pode brincar e as outras não podem... Não pode, ah! Porque é um momento pra nós estudar... Não sei, a professora prende nós... Assim, a professora não deixa nós fazermos nada. (Da/M – 10 anos)

Ah! Porque na... dentro da sala aí, é... a gente tem que... nós temos que... [...] temos que ficar... estudando, ficar... prestando atenção na aula, ficar lá... olhando a professora, ficar prestando atenção na aula. E na Educação Física... nós não escrevemos, nós não... somos obrigados a fazer uma coisa, nós... já escolhemos por vontade própria. (Lu/M – 10 anos)

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Figura 21 – Jogo de futebol. Percepção do corpo extrovertido na aula de Educação Física (Lu/M – 10 anos)

No entanto, a condução e condição em que a aula de Educação Física é desenvolvida

na escola investigada e a supervalorização do conhecimento racional apregoado à criança em

sala de aula, podem acarretar impressões de pouca valia ao brincar e sua prática.

Porque a Educação Física é só pra gente brincar, a gente não faz muita coisa, assim, de ginástica, a gente só brinca. Na hora do recreio a gente precisa, porque a gente vai descansar um pouco da aula, porque tem todo dia. A Educação Física não tem todo dia... só tem na terça e na quinta. Só pra gente brincar um pouco, não faz nada, só brinca... Brincar... é bom brincar, porque a gente pode, pode brincar de qualquer coisa, de desenhar, de qualquer coisa que a gente pode brincar. Porque é muito bom, as crianças gostam de brincar [...] mas depois, aí eu não sei nada, aí eu vou pensar só em brincar, brincar. Aí toda vez se eu... for pra escola só pra brincar, nem adianta ir à escola, porque tem casa, a gente brinca em casa. Lá em casa a gente pode brincar [...] é um pouco porque eu acho e um pouco... Porque me disseram que na escola, antes, quando eu não sabia, eu entrei na escola com 4 anos, aí minha mãe, minha mãe fala pra mim que na escola não é lugar de ficar brincando, é pra prestar atenção, fazer que a professora fala, ai pro meu lado também tenho certeza, porque na escola é pra gente aprender, não pra gente ficar brincado, aí

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melhor a gente aprender, porque a gente vai precisar disso no futuro, pra alguma coisa que a gente for fazer. (Lo/F – 10 anos)

Com esta fala, novamente é revelado a representação que a criança tem da aula de

Educação Física ocorrida na escola-campo deste estudo. E, talvez por não haver uma prática

de atividade organizada, orientada e diversificada pelo professor, em que o brincar é eleito,

organizado e mantido pelos prórpios alunos, Lo tenha comparado a aula de Educação Física

com o recreio. Na comparação feita pela criança, em que a Educação Física só acontece em

dois dias da semana e o recreio pode ser participado em todos os dias letivos, sendo que “a

Educação Física é só pra gente brincar, a gente não faz muita coisa, assim, de ginástica, a

gente só brinca”, o recreio é eleito por Lo como sendo o momento que eles precisam para

descansar das aulas em sala. E isso pode ter acontecido pelo reconhecimento da aluna de que

podem brincar, livremente, em ambos os momentos da escola.

Contudo, para além da diversão, do desenvolvimento de aspectos físicos, é presiso

considerar a potencialidade que a Educação Física têm no auxilio ao desenvimento de

aspectos cognitivos, por vias do aprendizado que promove, mesmo que seja em determinada

especificidade da dimensão humana. Mas, para isso, conforme recomenda o vade-mecum dos

PCNs o profissional responsável pelo desenvolvimento desta área de conhecimento deve ter

claro e levar a ponto que mesmos que em uma aula de Educação Física, os aspectos físicos do

corpo

sejam mais evidentes, mais facilmente observáveis, e a aprendizagem esteja vinculada à experiência prática, o aluno precisa ser considerado como um todo no qual aspectos cognitivos, afetivos e corporais estão inter-relacionados em todas as situações. Não basta a repetição de gestos estereotipados, com vistas a automatizá-los e reproduzi-los. É necessário que o aluno se aproprie do processo de construção de conhecimentos relativos ao corpo e ao movimento e construa uma possibilidade autônoma de utilização de seu potencial gestual. O processo de ensino e aprendizagem em Educação Física, portanto, não se restringe ao simples exercício de certas habilidades e destrezas, mas sim de capacitar o indivíduo a refletir sobre suas possibilidades corporais e, com autonomia, exercê-las de maneira social e culturalmente significativa e adequada. [...] Aprender a movimentar-se implica planejar, experimentar, avaliar, optar entre alternativas, coordenar ações do corpo com objetos no tempo e no espaço, interagir com outras pessoas, enfim, uma série de procedimentos cognitivos que devem ser favorecidos e considerados no processo de ensino e aprendizagem na área de Educação Física. E embora a ação e a compreensão sejam um processo indissociável, em muitos casos, a ação se processa em frações de segundo, parecendo imperceptível, ao próprio sujeito, que houve processamento mental. É fundamental que as situações de ensino e aprendizagem incluam instrumentos de registro, reflexão e discussão sobre as experiências corporais, estratégicas e grupais que as práticas da cultura corporal oferecem ao aluno (PCN, 1997, p. 27).

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Quanto a relação feita ao aprendizado, em que Lo desvincula do brincar e, por sua vez,

da aula de Educação Física a possibilidade de aprender algo que possa lhe ser últil para o

futuro, que serivará para algo que for fazer, isso pode, também, refletir a representação

coletiva que se tem a respeito de jogos e brincadeira e a necessidade de envolver o aluno, no

maior tempo da escola, em atividades que lhe seja útil para a vida de adulto.

Betti e Liz (2003), em um estudo que investigou o comportamento de alunas

estudantes da 5ª a 8ª série do ensino fundamental, frente às aulas de Educação Física,

considerando sua percepção, expectativa, preferências e sentimento em relação a essas aulas,

verificaram que, embora a disciplina de Educação Física tenha sido referida como a disciplina

preferida das aulas investigada, ela também fora apontada como uma das disciplinas escolares

menos importante pelas mesmas alunas. Isso, segundo os autores, se deve à disposição

comum em atribuir “maior importância às disciplinas heurísticas e científicas, e menor às

disciplinas humanísticas” (Ibid., p. 139).

Essas atribuições de valores díspares às disciplinas escolares, de acordo com o grau de

importância estabelecida a elas, assim como verificado por Betti e Liz (2003), quando

pensadas junto à desvalia atribuída à aula de Educação Física pela criança participante desta

investigação ― em que a aula aparece referida como um momento em que é “Só pra gente

brincar um pouco, não faz nada, só brinca”, e a escola é considerada como local de

aprendizagem para situações futuras, em que “na escola é pra gente aprender, não pra gente

ficar brincado, aí melhor a gente aprender, porque a gente vai precisar disso no futuro, pra

alguma coisa que a gente for fazer”, assemelham-se a ideia de frivolidade conferida pela

sociedade ao jogo e a brincadeira, mencionada por Snyders (1988), em que o brincar e o jogar

são desconsiderados na escola por não corresponderem a um conhecimento útil e socialmente

aceito, já que não tem representatividade no mercado de trabalho.

Inserida neste contexto de aprendizagem que antecipa e/ou prepara para a vida de

adulto, como bem advertiu Santin (2001), no qual os momentos de ludicidade vão cedendo

espaço à formação para o atendimento à produtividade exigida no mercado de trabalho, a

criança apreende condutas próprias do relacionamento social com as questões econômicas.

Assim, envolvidas nessa relação com o aprendizado escolar, a criança entra em

contato com o papel que deve desempenhar em seu grupo social e, em maior ou menor

intensidade, dependendo de como e do quanto apreendeu dos valores imputados pelos adultos,

predominantes na sociedade que integra, ela incorpora e assume uma postura de restrição ao

brincar, julgando-o inoportuno para aquele espaço, a fim de atendimento aos interesses e

convenções escolares/sociais.

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No entando, ainda que o jogo e a brincadeira não ocupem um lugar de destaque em

uma educação que visa a preparação para vida de adulto, para ocupação do mercado de

trabalho, é preciso esclarecer que, como refere Château (1987, p. 29) o jogo, naturalmente,

antecipa as ocupações sérias. Ainda que o jogo não seja um treinamento, as experiências que

ele proporciona incitam treinamento involuntário ao mundo do adulto. Tendo como

característica principal a seriedade, na qual ora tem característica de trabalho, ora de sonhos.

“O jogo representa, então, para a criança o papel que o trabalho representa para o adulto.

Como o adulto se sente forte por suas obras, a criança sente-se crescer com suas proezas

lúdicas”

Mesmo que o brincar não tenha “nada a ver com o futuro” e seja uma “situação na

qual não podemos senão atentar para o presente”, assim como consideram Maturana e

Verden-Zöller (2004, p. 231) ― considerações estas em que percebo, de certa forma,

contestação às situações de preparo, ainda que involuntário, para o mundo do adulto, previsto

no jogo, por Château (1987), de qualquer maneira, se quisermos realmente movermo-nos na

direção de uma proposta educativa que considere o corpo lúdico presente na escola, é preciso

entender no brincar, assim como indicou Maturana e Verden-Zöller (Id., loc. cit.), uma

preparação para se “fazer o que se faz em total aceitação, sem considerações que neguem sua

legitimidade”. Ao invés de pensar no lúdico como uma preparação para nada.

Com efeito, mesmo que o jogo e a brincadeira, naturalmente, não tenham que “prestar

contas” a qualquer intenção de aplicação útil, muito embora eles estejam impregnados de

conceitos sociais a respeito do que pode ser obtido de proveito ou não, assim como referiu

Brougère (1998), a maneira como são tratados pelo adulto, e principalmente pelo professor

que conduz a sua prática, reforça a ideologia social de priorizar atividades em que, delas,

pode-se obter alguma serventia. O que pode acarretar em contínua desvalorização e/ou

restrição de práticas de atividades lúdicas no ambiente escolar.

Por tais verificações, pôde-se compreender a percepção que as crianças têm de seu

corpo no momento em que estão em aula de Educação Física, a partir das vias de acesso à

manifestação corporal favorecida nesta aula, que contribuiu para a verificação das situações

cotidianas que refletem na forma como lidam e se ocupam da realidade que vivenciam neste

momento escolar.

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3.3 Momento livre... o retorno à natureza

Reconhecendo a criança em suas características particulares, compreendendo sua

manifestação corporal assinalada pela riqueza de movimentos a que se propõe, que brinca,

que corre, que se expressa naturalmente e, através do que foi visto e ouvido no decorrer desta

investigação, apreendi que os momentos em que ela estava livre de atividades direcionadas

por um professor, ou outro agente do corpo escolar, representaram os momentos em que a

criança, mais de perto, pode ser percebida como tal. Era como se fosse um retorno a sua

natureza em um ambiente em que o brincar tem hora e lugar certo de acontecer.

Pela entrega descomprometida ao movimento exercido nos momentos livres, pôde-se

compreender um corpo autônomo, em unanimidade, nas falas das crianças investigadas.

Percebido pelas possibilidades de exploração dos espaços escolares, de poder realmente

escolher do que e com quem gostariam de brincar e/ou conversar nesse momento.

Na hora do recreio eu acho ele mais legal [referindo-se à percepção de seu corpo]... Eu acho que ele se movimenta mais, porque ali eu vou brincar do que eu quiser [...] eu acho legal porque eu vou me movimentar, não vou ficar parada [...] porque ali eu vou estar brincando do que eu quero, não do que as pessoa querem. Ai eu arrumo uma brincadeira, do que eu quero. Vamos brincar de pega-pega, aí vou e vou chamar as pessoas para brincar de pega-pega. Aí brinca quem quiser, brinca de pega-pega, nós brincamos. Aí já... já é o que eu quero brincar, não o que os outro querem... No recreio, assim, aí eu já vou estar movimentando mais... no recreio, porque daí eu já posso fazer tudo que eu quero. E essas coisas que eu gosto de fazer, é pular, correr, é pegar as pessoa, brincar com as pessoas, né? Porque brinca, movimenta mais o corpo, porque ali no recreio já é pra brincar, né? Já tem o recreio pra descansar, pra brincar, pra beber água, é um momento livre pra nós fazermos qualquer coisa que a gente quiser... Eu acho que ele se movimenta mais do que na Educação Física. (Ann/F – 10 anos)

Ah, me sinto solto ué, meu corpo solto... Correr, brincar, fazer tudo... Assim, livre, por exemplo, correr, assim, fazer o que quiser... Ah! Se divertindo... Se divertir, é, brincar, correr ficar conversando com os amigos, contar piada, muito livre pra mim... Assim, ô! Se divertindo, assim. Aí eu fico feliz ué... Eu penso assim, alguém mandou em mim ué... Ai estraga a brincadeira. (Da/M – 10 anos) Eu, alegre no recreio... Aí eu posso jogar bolita, eu fico alegre... Eu gosto muito de fazer isso no recreio, fico com o corpo tranquilo... Gosto de brincar de Pega-pega e jogar Bolita... porque eu gosto de me divertir... Divertir, brincando de pega-pega, fico correndo, eu e meus amigos. Aí nós vamos e corremos

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juntos, quando vê o outro, sai correndo... Feliz... Alegre [referindo-se à percepção de seu corpo]. (Er/M – 11 anos) Ah! Porque no recreio eu sinto mais livre, porque eu brinco, jogo bola, prefiro. Muito agitado [referindo-se à percepção de seu corpo]... Porque eu corro, subo em cima da árvore, jogo bolita... Porque correndo eu sinto mais livre, porque correndo o vento bate, nós não ficamos suando... Quando eu estou correndo, ele, o corpo se sente leve... Estar correndo, aí se está livre. Não está com as professoras falando no seu ouvido. (Fe/M – 11 anos)

As referências sobre as atividades participadas no momento do recreio, não só revelam

a possibilidade e a forma de exploração dos espaços escolares, como, também, a

diversificação de atividades que são vivenciadas neste momento escolar, em que, a interação

do corpo em movimento, fica evidente em todas as práticas vividas pelas crianças.

As possibilidades de explorar os diferentes ambientes da escola, a variedade de

atividades vivenciadas nos momentos livres de intervenções pedagógicas, também puderam

ser percebidas nas figurações feitas pelas crianças. Em que, das quatro vinhetas apresentadas

acima, uma de cada criança entrevista, somente os desenhos de duas delas representam a

mesma atividade ― o jogo de futebol, ou o jogo de bola, como referiram as crianças. No

entanto, o jogo fora representado em locais diferentes (Vide figuras 23 e 25).

Figura 22 – Percepção do corpo durante a brincadeira de pega-pega no recreio (Ann/F –10 anos)

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Figura 23 – Percepção do corpo enquanto joga bola no campo de terra, no recreio (Da/M – 10 anos)

Figura 24 ― Percepção do corpo enquanto joga bolita no recreio (Er/M – 11 anos)

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Figura 25 – Percepção do corpo enquanto joga bola no pátio, no recreio (Fe/M – 11 anos)

Esse encontro da criança com diversas possibilidades de manifestações corporais,

consiste em um momento em que a criança pode extravasar em sua condição de ser brincante.

O que pode ser importante para a ampliação do contato social entre alunos, das mais

diferentes faixas etárias, haja vista que as crianças investigadas brincavam com colegas de

diferentes turmas e ano escolar, como também pode contribuir no alívio para as necessidades

de movimentação tão particular à criança e tão ignorada quando ela está em sala de aula.

Lima e Gomes (2000, p. 114), descrevendo o momento do recreio como um intervalo

maior quando os alunos podem exprimir diversos movimentos corporais espontâneos ―

maior do que os intervalos entre trocas de professores, de uma aula para outra, indica que é

neste intervalo, que “os movimentos de expansão e distensão tendem a ser mais amplos. Se há

uma palavra, certamente não professoral, para uma versão de recreio é festa. Um pátio tende a

ser o lugar da dança, no sentido de ser o espaço que se enche de movimento”.

Neste momento em que elas podem percorrer pelos espaços escolares, podem fazer

intercâmbio entre os demais alunos, podem praticar diversas atividades ou podem optar em

não fazer alguma coisa, todas as crianças participantes desta investigação, optaram por uma

brincadeira ou um jogo para representar oral e graficamente a percepção de seu corpo. Assim,

o brincar e o jogar, mostraram-se significativos para as crianças e instigadores de

manifestações corporais, que são suprimidas no maior tempo de estada na escola. O que

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demonstra que, mesmo com pouco tempo para movimentarem-se livremente, a criança

sempre busca entrar em contato com a atividade que lhe é mais satisfatória, expressa em

interações lúdicas. Como é demonstrado no Relato a seguir há uma passagem da observação

ocorrida no momento livre pertinente ao recreio:

Relato VIII – “O recreio” – (Observação 05/10/2009)

Ao soar o sino, indicando a saída para o recreio ― momento de intervalo entre as duas primeiras aulas e as duas últimas, com duração prevista para 15 minutos, mas, na prática, durava em média 20 minutos, os alunos saíram correndo da sala de aula, distribuindo-se em diversas atividades. Alguns alunos foram ao encontro de colegas que estudam em outras turmas e formaram grupos, dos quais, um deles, contendo uma grande quantidade de alunos, foi para a quadra jogar futebol e, como não possuía bola para usar nesse momento, hoje usaram uma garrafa pet de 600 ml, em substituição da bola. Outro grupo se reuniu em um espaço da escola onde o chão é de terra, para jogar bolinha de gude. Um grupo de meninas brincou de pular corda, outro passeou pelos corredores da escola, conversando. Tiveram alguns meninos que brincaram de pega-pega junto com as meninas, hoje o grupo que brincou de pega-pega foi bem maior. Alguns alunos ficaram na sala, divididos em dois grupos, um dos grupos jogou Stop e o outro jogou UNO. Fizeram isso até soar o sinal que indicou a finalização do recreio.

A variedade de condutas corporais adotada, relatada e registrada graficamente pelas

crianças nos momentos em que estão livres na escola, quando aproximada às condições

impostas ao corpo em sala de aula, se mostra oposta na percepção e expressão dos

interlocutores, nas entrevistas. Suscitando em um corpo descomprimido, enlevo, em razão da

liberdade de movimentação nos momentos livres de atividade direcionada. Mostrando-se,

assim, como um corpo autêntico da criança, manifesto no âmbito escolar.

Focalizando o olhar, a partir do que fora mencionado pelos participantes deste estudo,

nas percepções corporais de acordo com as circunstâncias reconhecidas em determinados

espaços escolares, pode-se dizer que o momento em que as crianças estão diante de interações

isentas de orientações de um adulto, considerados por esta investigação como momentos

livres ― em que a criança dispõe da oportunidade de escolher livremente a atividade e os

companheiros para realizá-la, elas podem ser como realmente são.

Isso pode ser justificado, principalmente e justamente, pelo aspecto de liberdade que

encontram nesse momento escolar, em que, no estudo desenvolvido por Gomes (2001, p. 155-

156), fora compreendido nas falas das professoras participantes e, então, apresentadas as

próprias falas para explicar que neste tempo escolar, os alunos “fazem o que eles querem,

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‘podem fazer tudo’, ‘se sentem menos responsáveis’ e ‘despreocupados’ porque estão ‘soltos’,

‘livres’, ‘à vontade’, ‘ninguém olhando’”. E na sala de aula, a situação é bem diferente, lá

“não se pode fazer nada sem autorização ― até para beber água é preciso pedir ―, existe o

controle ― ‘Agora é assim, aqui não pode’ ―, ou seja, enfim, na sala exigem-se regras, é

preciso cumprir regras!”.

E neste contexto de espaços e tempos escolares distintos pelo o que pode e o que não

pode no “aqui e agora”, vão se configurando as diferentes percepções que os alunos têm de

seu corpo nos variados e antagônicos momentos em que a escola se apresenta.

Percebo que meu corpo está bem livre... Porque no recreio é uma hora, é uma hora que a gente sai da sala, aí nós ficamos no pátio brincando... Acho legal... Ah! Porque a gente movimenta o corpo, porque na sala a gente não movimenta, na sala a gente só fica sentado... Porque no recreio a gente movimenta muito o corpo, aí fica mais legal [...] porque no recreio é uma hora de brincar... Ah! Porque no recreio a gente agita mais o corpo, aí não é igual na sala de aula ué... Ah! Porque lá a gente não pode brincar, correr, lá é uma hora pra a gente estudar, prestar atenção no professor. (Je/F – 10 anos) Sinto movimentando... Porque nós estamos, é um momento livre, nós temos que brincar... Não gosto de ficar parado... Porque aí nós perdemos todo tempo. Aí nós não podemos brincar, conversar, porque aí nós já vamos pra sala. Aí nós temos que ficar parado copiando e prestando atenção. (He/M – 10 anos) Eu percebo que ele está mais extrovertido do que na sala de aula, como uma menininha quietinha. Ele ficou mais alegre, assim, né? Que vai participar de um teatro, assim, nós brincamos de dança, qualquer coisa assim, né? Daí fica mais legal. (Le/F – 9 anos)

Na percepção do corpo vivenciando os momentos livres de qualquer condução de um

adulto, na escola, as crianças demonstraram, através de comparação, a representação que têm

do momento de sala de aula e dos momentos livres de interferência de um adulto, deixando

claro o que podem ou não podem fazer, de acordo com momento escolar que tiver

vivenciando. Também, no conteúdo da elocução das crianças, pôde-se compreender suas

preferências e formas de brincar. E, no agir das crianças por escolha, pôde-se visualizar o

brincar acontecendo de forma voluntária. Neste momento, a criança joga, brinca por brincar,

brinca pelo prazer que pode sentir nessa atividade.

Incide desse momento de espontaneidade e autonomia, a imaginação criativa para

inventar situações em que é possível brincar. Dessa maneira, os momentos livres na escola,

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podem ser considerados como momentos em que o lúdico está presente e representa,

consideravelmente, o universo infantil.

Novamente destaco aqui alguns desenhos que retratam a variedade de atividades

lúdicas, vivenciadas pelas crianças nos momentos livres e que fora registrada graficamente

durante a entrevista.

Figura 26 – Percepção do corpo enquanto joga amarelinha no recreio (Je/F – 10 anos)

Figura 27 – Percepção do corpo enquanto joga pega-pega (He/M – 10 anos)

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Figura 28 – Percepção do corpo enquanto brinca de contar estórias no recreio (Le/F – 9 anos)

De forma geral, no tempo livre de que dispõem no interior da escola, as opções das

crianças recaem sobre o ato de brincar. Através de suas falas e observando as crianças nos

momentos em que estão sem a intervenção direta de um proponente escolar, tornou-se visível

a retomada de suas ações naturais, em que suas manifestações corporais se aproximam de seu

estado mais autêntico, próprio do que Maturana e Verden-Zöller (2004) identificaram como

sendo práticas ancestrais de comportamento.

Isso pode ser reflexo da natureza do aspecto do jogo como fenômeno cultural, que é

tão característico à criança. E, considerando as exigências vigentes em determinados

espaços escolares, é possível dizer que nos momentos livres, em que a criança, mais de perto,

reconhece-se e interage de acordo com suas particularidades, é que a atividade lúdica pode ser

vivida espontaneamente no tempo escolar, por ser capaz de proporcionar, segundo Huizinga

(1990, p. 11), “uma evasão da vida ‘real’ para uma esfera temporária de atividade com

orientação própria”.

Esse foi o caso das crianças investigadas que, quando estavam nos momentos

escolares livres de obrigatoriedade, controle e supervisão de um preceptor, recorriam a jogos e

brincadeiras, repletos de movimentações corporais, que deu o tom de extravasamento a este

momento escolar.

Nesta perspectiva, pode-se afirmar que as atividades lúdicas causam interesse nas

crianças e, no momento em que brincam, elas participam como sujeitos da brincadeira, e não

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como espectadoras da mesma. É o que sugere a variedade de atividades mencionadas e

retratadas graficamente pelas crianças, quando referiram sobre os momentos livres

participados na escola. Para frisar isso, trago aqui, em forma de mosaico, os desenhos das

quatorze crianças participantes deste estudo:

Figura 29 – Painel que retrata a percepção do corpo nos momentos livres

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As características mais significativas que retrataram a percepção de um corpo livre,

nos momentos em que as crianças estavam fora do campo de interação proposto por um

agente escolar, marcam a possibilidade de movimentação e a liberdade de escolha de

atividade, que se endereçaram na forma de jogos e brincadeiras. Entre os jogos e brincadeiras,

ditos e figurados aparecem: jogo de Pega-pega, jogo de bola ― Futebol, jogo de Bolita, jogo

de Amarelinha, brincadeira de corrida e brincadeira de contar estória.

E neste contexto de liberdade de atuação, novamente fora considerado pontos que

assemelham, na ocasião particular às vivências da escola investigada, o corpo do recreio ao

corpo da Educação Física, quando o corpo percebido pelas crianças nos momentos livres de

atividades direcionadas pelo professor ou demais integrantes do grupo escolar, fora retratado

com a mesma perspectiva da aula em quadra.

Eu sinto meu corpo calmo... Porque nós estamos conversando, nós estamos batendo papo até chegar na porta da sala, né? Porque ele [referindo-se a um colega] fica esperando lá na muretinha. Aí a gente, aí eu entro, aí nós vamos lá pra porta da sala, aí a gente brinca, a gente vai lá pra quadra, a gente pega a nossa mochila e vai lá pra quadra, aí a gente faz... faz a fila... [...] o momento mais livre é esse, né? Porque na Educação Física também eu fico correndo, né? Na Educação Física, né? Na hora da Educação Física e na hora do recreio, eu fico correndo, brincando. É, tem vez que eu fico jogando, é como na Educação Física [...]. (Ke/F – 10 anos)

Assim como também foram apontadas algumas diferenças.

Ah! Sin... é... sinto também, é.. é... mesma co... é... quase a mesma coisa da física [aula de Educação Física], nós brincamos também, mais... no recreio que nós, aí que nós escolhemos o que nós queremos brincar mesmo. (Lu/M – 10 anos) Eu acho que ele se movimenta mais do que na Educação Física... Porque aqui eu já vou estar correndo, brincando do jeito que eu quero, né? Do que eu quiser. Aí eu já vou movimentar mais, assim, eu sento, agacho, assim, eu faço o que eu quiser... Ah! Eu acho legal essa possibilidade. Porque, na Educação Física eu jogo bola, o que eu gosto de fazer. Aqui não, aqui no recreio eu já não gosto de jogar bola, né? No recreio, aí eu gosto de brincar, de correr, de pega-pega. Só... na Educação Física, eu mexo muito, assim, mais não quanto do recreio. (Ann/F – 10 anos)

A percepção do corpo nos momentos em que jogam e brincam sem a intervenção ou

supervisão de um adulto, é expressa pela sensação de liberdade, por poder fazer o que

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escolher e manter-se fazendo no tempo próprio do esgotamento do jogo ou da brincadeira, ou

até o término do tempo possível para aquele determinado momento.

Dessa maneira, aparecem nas falas das crianças o comportamento corporal que

assumem por gosto, por escolha e o comportamento que adotam por sujeição, por atendimento

ao que o professor, ou outro agente escolar, entendem por oportuno para determinados

momentos, que mostraram-se a esta investigação, bem demarcados.

Ao fim dessas análises, pode-se dizer a respeito da percepção que a criança tem de seu

corpo, nos três momentos investigados, que fora apresentado pontos de convergência e

divergência entre a percepção do corpo na aula de Educação Física e do corpo nos momentos

livres e que, a percepção dos dois corpos, diverge-se totalmente da percepção do corpo em

sala de aula.

Quanto aos pontos de convergência entre as percepções de corpo no momento de

Educação Física e nos momentos livres, verificou-se, através das narrativas das crianças, que

nos dois momentos o corpo pode ser considerado como livre, devido à possibilidade de

movimentação e de escolha da atividade que quisessem praticar.

O ponto de divergência, apresentado pelo confronto de relatos sobre a percepção do

corpo nos momentos escolares em destaque, revela que alguns alunos identificaram nas aulas

de Educação Física, aspectos moderadores de liberdade, expressos pela restrição de

exploração do espaço escolar e pela oferta de uma única atividade pelo proponente deste

momento escolar. Diferente do que acontece nos momentos livres, que apareceu nas falas dos

interlocutores, como momentos em que se tem maior oportunidade de acesso aos espaços

escolares e como momentos em que, realmente, pode-se escolher do que e com quem brincar.

No entanto, alguns outros alunos entenderam um corpo mais livre no momento de Educação

Física, pela possibilidade de movimentar-se num tempo maior que no recreio e, ainda, por ter

menos alunos interagindo neste momento escolar.

Quanto à percepção do corpo no momento em que estão em sala de aula, os aspectos

apresentados nesta percepção diferencia-se totalmente dos aspectos apresentado entre o

memento de Educação Física e os momentos livres. Já que, enquanto permanecem em sala de

aula, os alunos percebem seu corpo restrito em possibilidade de movimentação, refreado nas

formas de manifestação corporais e de relações interpessoais, o que levou a compreensão de

um corpo subordinado às regras vigentes neste ambiente escolar. O que permite afirmar que,

entre a percepção de corpo no momento de sala de aula e as percepções de corpo, tanto no

momento em que ocorre a aula de Educação Física e nos momentos livres, pôde-se somente

encontrar pontos de divergências.

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As informações cedidas pelas crianças participantes desta investigação mostraram-se

habilidosas, no retratar da percepção que tem de seu corpo nos diferentes espaços escolares

interessantes a esta investigação. O que proporcionou a tomada de consciência por parte desta

investigadora, de como o corpo é tratado, manifestado e percebido nos ambientes escolares

focados, a partir do relato de quem vive e sente esse corpo, ou melhor, esses corpos que são

“eclodidos” ou “invisibilizados” de acordo com o momento em que se encontram. Como se a

criança pudesse lançar mão de um corpo conforme a situação demandasse, ou tirar as

“ataduras” que refreia seu corpo na sala de aula, quando este atingisse o espaço que o leva

para fora dela.

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DESENLACE DA CONTEXTURA DO CORPO PERCEBIDO NA ESCOL A:

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Tentar compreender a percepção que a criança tem de seu corpo em um ambiente que

apresenta espaços distintos nos quais, de acordo com cada um deles e por sua vez demandam

interações também distintas, proporcionou reflexões muito expressivas para a apreensão de

significados e sentidos construídos nos processos de interações vivenciados no âmbito

escolar, que foram fundamentais para o cumprimento do que se propôs este estudo.

Em investigação para elucidar como a criança percebe seu corpo nos momentos

escolares inerentes a sala de aula, quadra e pátio ― compreensivos a interações em atividades

direcionadas e a momentos em que os alunos estão livres de qualquer condução pedagógica e,

com o propósito de verificar as oportunidades de interações lúdicas na escola, a partir das

questões de investigação: Como a criança percebe seu corpo no momento em que está em

atividade direcionada na sala de aula, quando está em atividade direcionada na aula em

quadra e quando está nos momentos livres de atividades direcionadas? Quais são as

oportunidades de interações lúdicas na escola? Busquei identificar elementos que

pudessem facilitar a compreensão do objeto investigado, em meio à profusão de sentidos

atribuídos ao corpo em movimento e ao corpo imerso na imobilidade, conferidos na

observação dos diferentes contextos escolares e nas falas das crianças entrevistadas,

associando o trabalho em campo com os referenciais teórico-metodológicos, de modo a trazer

à discussão a percepção corporal da criança de acordo com o seu jugo.

Nos diferentes contextos investigados, tive contato com disparidades de

comportamentos corporais vivenciadas pelas crianças ao longo de sua estada na escola.

Presenciei momentos de repressão ao movimento corporal, de espontaneidade de

movimentação e de negligências às possibilidades e riqueza de ações que se pode alcançar

com o corpo em movimento.

No entanto, o mais representativo a este estudo, corroborando seu primeiro objetivo,

foi como e o quanto a criança percebe o seu corpo em cada momento investigado. Da mesma

forma, a desenvoltura com a qual se expressaram sobre o que estava sendo perguntado a elas,

apresentou-se sobremaneira importante para a elucidação do que fica impresso em seu

imaginário a respeito das atividades corporais lúdicas, dentro e fora da escola.

A realização deste estudo teve por objetivo capital compreender como a criança

percebe seu corpo nos distintos momentos do cotidiano de sua vida escolar: seja para receber

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informações voltadas à escrita e ao número; para os conteúdos das aulas de Educação Física e

nos momentos livres de atividades direcionadas, quando me foi possível verificar as

oportunidades de interações lúdicas na escola. Essa permanência nesses momentos me

possibilitou desvendar as formas de envolvimento corporal das crianças para que eu pudesse

reconhecer o significado que eles representam para elas e, assim, poder tecer algumas

considerações.

A partir das análises feitas do momento de sala de aula, tanto pela percepção que a

criança tem de seu corpo quanto pela observação feita neste espaço escolar, pude verificar que

um comportamento “bom” é o comportamento imóvel, em que o aspecto das interações

pedagógicas ― professor-conteúdo-espaço-aluno ― é assinalado pela anulação das

possibilidades de movimentação corporal.

Os elementos relacionados ao corpo em sala de aula demonstram que o aluno que se

mantém corporalmente estático é o aluno que não incomoda o professor e não interfere

negativamente na aula e, por assim se comportar, é entendido como um bom aluno. Ao

contrário disso, infringindo as regras de comportamento, o aluno passa a ser taxado como mal

comportado, desrespeitoso ao comando do professor e que, por fim, não aprende nada. A este

aluno cabe a aplicação de medidas repreensivas como a retirada do intervalo para o recreio

e/ou da aula de Educação Física.

Durante o ato de obediência, as crianças aprendem atitudes corporais que devem ser

empregadas rotineiramente em sala de aula. Dessa maneira, o comportamento, a disciplina, o

refreamento corporal assumidos em obediência às regras instituídas no espaço destinado à

aula, revelam que os alunos entendem que as solicitações dos professores, quanto à postura de

permanência em sala, situam-se em meio condicionante para o aprendizado e para a

permissão de usufruto dos espaços externos a ela.

Nesta perspectiva, o processo de contenção das intervenções corporais produz um

corpo subordinado no processo educativo, em que a passividade corporal em sala de aula é

legitimada em nome da apreensão dos saberes escolares. E, se me for permitido expressar,

neste momento de finalização do presente estudo, o meu entendimento sobre tudo o que

acompanhei a respeito da acepção atribuída ao corpo em sala de aula ― e que me perdoem

pelo teor piegas que se apresente nele, me arrisco em fazê-lo sob a forma do seguinte slogan:

“corpo contido, trabalho intelectual garantido”. Este foi o lema que me pareceu ser cultuado

nas interações pedagógicas em sala de aula, da escola campo deste estudo.

Porém, mesmo que a sala de aula tenha se mostrado no slogan que me atrevi a

apresentar, de acordo com a impressão que tive deste momento investigado, em que a maioria

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dos alunos demonstrou obediência às determinações atribuídas ao corpo em aula e referiu que

entendem que o comportamento corporal que deve ser assumido aprimore o seu aprendizado,

também pôde ser verificado, em outras menções feitas à percepção da criança sobre seu corpo

em sala de aula, que elas não gostam de ficar com o movimento corporal contido neste tempo

escolar.

E por não gostarem da imobilidade corporal imposta a elas durante o período de aula

em sala, contrapondo a exigência de permanecerem paradas em seus lugares, neste ambiente

repleto de privações, algumas crianças arriscavam diversas tentativas de movimentações ao

criarem situações ocultadas dos professores, na tentativa de poderem se movimentar e

interagirem ludicamente com alguns colegas em sala.

Portanto, nas circunstâncias propiciadas em sala de aula, alguns alunos aproveitaram

para extravasar suas necessidades de movimentar lúdico corporalmente, em atendimento a sua

característica de criança, ao seu tempo real.

Pude constatar, ainda através deste estudo, que a educação ― aprendizado escolar,

apresentou-se, também, como mecanismo de elevação social, apontado pelos alunos como

condição necessária para ser “alguém na vida”. E que a desconsideração do corpo no processo

educativo decorre da supervalorização das operações cognitivas neste momento escolar.

O controle exercido sobre o corpo no contexto de uma educação que prima à dimensão

intelectual, ratificando a tradição racionalista de se conceber o homem e que ainda orienta a

educação, pode ser averiguada nas formas de condução disciplinar em sala de aula: na

exigência por silêncio e restrições aos movimentos corporais, que foram justificadas pelos

alunos como condição necessária para um melhor aprendizado. No entanto, no confronto

entre a compreensão dos alunos sobre a condução disciplinar e a decorrência da busca por

ações que coloquem o corpo em movimento e em interações com alguma forma de brincar,

pude perceber o que os alunos fazem por dever e o que fazer por prazer, entre o que podem e

o querem em determinados momentos que estão em sala de aula.

Neste ponto, por ter verificado as elaborações e estratégias que as crianças tinham que

adotar para poder manifestar-se corporalmente em aula, aproveitando-se das ocasiões em que

os professores não mantinha supervisão direta sobre seus atos, pude compreender que as

significações atribuídas à brincadeira na escola, principalmente pelos professores, conferem a

esta atividade, permeada de ludicidade, consideração de pouca valia, designando-a como

atividade sem importância e desnecessária, vez que não atende as requisições sociais sobre

atividades imprescindíveis ao mercado de trabalho.

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O aluno, situado neste ambiente de retenções e repreensões aos movimentos corporais,

aprende a construir e/ou a perceber seu corpo de acordo com o modelo proposto na condução

de suas vivências no espaço em que se encontra. Dessa maneira, o envolvimento dos alunos

com as imposições feitas em sala de aula, repercutiu na percepção de um corpo contido,

causado na forma pela qual as experiências em sala são possíveis de ser participadas. Neste

contexto de condução pedagógica que ensina ao corpo o seu “devido lugar”, o reduz em sua

complexidade e caracteriza-se pela negligência à corporeidade do aluno.

Quanto às verificações sobre a percepção que a criança tem de seu corpo no momento

de aulas de Educação Física, estas revelaram o contexto de oferta e condução da aula,

desenvolvida e mantida no espaço em que ocorreu a pesquisa, sob a instância de uma única

proposta ― o jogo de futebol. A maneira com que as aulas são ofertadas refletiu na percepção

de um corpo livre, em decorrência do que se tem de possibilidade de manifestação corporal e

pela possibilidade dos alunos fazerem o que quiserem, caso não optarem ou não forem

escolhidos pelo colega responsável por escalar o time para a prática do jogo/aula.

E isso ocorria sem a orientação e, algumas vezes, sem a presença do professor, assim

como acontece no tempo escolar referentes aos intervalos de aula. Em que as únicas

diferenças apontadas pelos alunos, entre a Educação Física e o recreio, foram o contingente de

pessoas envolvidas ― na aula o envolvimento entre os alunos fica restrito aos colegas de

turma, as possibilidades de exploração dos locais da escola ― no recreio a liberdade para

percorrer os espaços escolares é maior, e o tempo de envolvimento, em que a aula de

Educação Física fora apontada como momento escolar com tempo maior para movimentação

corporal.

Na percepção em que o corpo referente ao momento de Educação Física é revelado,

indica que o aluno participante dessa aula não estava sendo integrado na cultura corporal de

movimento. Visto que, a indiferença às diversas possibilidades de condução e de variação de

conteúdos, mostrou o quanto os alunos são negligenciados pelo proponente da aula, revelando

o descaso em que este momento escolar, que tem como uma de suas funções preparar o aluno

para atuar através de interações corporais ativas e lúdicas, é proposto.

Diante das reflexões apresentadas, considera-se que o corpo livre percebido pelos

alunos nesse momento da escola, indica que nem mesmo na aula de Educação Física, que tem

como principal característica interações através de movimentos corporais, o corpo é

valorizado em todas as suas potencialidades. E, com tanta desatenção sofrida pelo corpo neste

tempo escolar, a corporeidade dos alunos não é integralmente contemplada e nem mesmo

estimulada, no contexto da escola investigada.

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Neste sentido, pude constatar que a ausência de diversificação de conteúdos e

propostas metodológicas no envolvimento dos alunos em aula, que assegurassem interações

corporais mais abrangentes, restringiram a possibilidade de reconhecimento de corpo pelos

alunos, na medica que indicavam a percepção de corpo livre em face da desconsideração da

aula pelo professor.

Mediante as constatações feitas sobre as aulas observadas e de acordo com as

narrativas das crianças investigadas, pode-se afirmar que a atuação do professor no ministrar

desta disciplina, incide em sentimento de desvalia sobre as práticas corporais e sobre a aula de

Educação Física. As análises feitas, a respeito de tudo que fora apreendido dos dados neste

momento escolar, revelam pouco, ou, em algumas vezes, nenhum valor a envolvimentos

corporais na aquisição de conhecimento, no ambiente escolar.

A percepção do corpo, no momento da aula de Educação Física, restringe-se à prática

de atividade com sentido de mero entretenimento. Os alunos realizam a prática do jogo pelo

jogo e são negligenciados na função desta disciplina de incitar nos seus praticantes, o

reconhecimento de sentido e razões para manifestações corporais também no ambiente

escolar, incluídas na cultura corporal de movimento.

Outra verificação deste estudo, em torno do momento averiguado, é referente à

participação/presença dos alunos nas aulas de Educação Física, onde fora observado que a

maioria dos alunos da turma investigada, não se envolvia na atividade da aula e nem sempre

permanecia no ambiente em que ela era desenvolvida, indicando a ocorrência de

dispersão/evasão nesse momento escolar.

E, por ter sido relatado pelos alunos que neste tempo destinado à disciplina referida,

eles podiam fazer o que quisessem e onde quisessem, sem sentirem a necessidade de

comunicar ao professor onde estavam e o que estavam fazendo no tempo da aula, evidenciou-

se que neste momento escolar, a causa adjacente da dispersão/evasão é justificada pelo

menosprezo à aula e ao próprio professor.

Além disso, fora revelado que a não participação na aula fora resultado do

entendimento dos alunos, concernente à Educação Física, de ser uma aula sem importância,

onde não se aprende nada, só se brinca um pouco, onde só se joga bola. Dessa maneira, em

consequência ao modo como a aula transcorria, a Educação Física na escola investigada

distancia-se da concepção de ser humano concebido em toda a sua dimensão corporal.

Associada ao significado atribuído à aula de Educação Física, pôde ser percebida a

desvalia estabelecida à brincadeira nas falas das crianças participantes deste estudo, em que a

aula fora mencionada como local onde não se faz nada, só se brinca. Destoando-se das

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funções da escola em preparar para atuações na vida adulta, vez que a escola fora mencionada

nas entrevistas como local de aprendizagem e não de brincadeira, e o aprendizado escolar fora

apresentado como útil para situações futuras.

No contexto em que o brincar fora referido ― empregado a situações das quais não se

espera algum proveito, pude compreender as representações das crianças investigadas sobre

as práticas de atividades corporais de característica lúdica na escola e a situação de

envolvimento e desenvolvimento destas atividades no momento escolar pesquisado. Sendo

sobremaneira interessante para a verificação das oportunidades de interações lúdicas, de

acordo com o ideário sobre a finalidade de cada atividade, vivenciada na instituição de ensino

em que ocorreu esta pesquisa.

Extrapolando ao que se pretendeu este estudo, os dados tratados e analisados

permitiram, também, perceber que os conteúdos que constituem o currículo pertinente à

disciplina de Educação Física não são desenvolvidos nas aulas ministradas na escola

investigada, exceto a atividade de futebol ― e mesmo ela não é ministrada através de todas as

suas particularidades, ou com diferenciações em seu desenvolvimento.

Por força da prática constante de uma única atividade, os alunos são privados das

várias possibilidades de aprendizados e envolvimentos ao que se propõe efetivamente uma

aula de Educação Física, enquanto disciplina curricular obrigatória em ambiente escolar já nos

anos iniciais do ensino fundamental. Devido a tal ocorrência, essa disciplina sofre um descaso

até mesmo pelo profissional desta área de atuação. O que pode auxiliar na tradução dos

motivos pelos quais esta disciplina tem sido pouco valorizada em algumas instituições de

ensino.

Quanto aos momentos livres de intervenção por parte de um professor ou um

funcionário da escola, outro propósito deste estudo, que buscou investigar como os alunos

participantes percebem seu corpo nos momentos referentes à chegada, ao recreio e à saída da

escola, quando podem atuar espontaneamente, pôde-se verificar que são nestes momentos que

a criança, mais de perto, pode ser observada em suas atuações corporais, características do seu

tempo presente, ao seu aspecto de vida relacionado ao “aqui e agora”.

A espontaneidade, a variedade de movimentos corporais e a entrega descomprometida

ao jogo e a brincadeira, nas quais as crianças foram visualizadas neste momento investigado,

revelou a percepção de um corpo autentico e autônomo, devido à liberdade para movimentar-

se em diferentes espaços da escola e da possibilidade de escolha em atuar e/ou permanecer

envolvido em uma atividade.

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De acordo com que acompanhei no campo desta pesquisa, posso afirmar que os

momentos livres representam o tempo da escola em que a criança pode retomar suas

atividades particulares, familiares a sua natureza infantil, em que o jogar e o brincar podem

acontecer sem restrições ou julgamentos.

Neste sentido, as atividades vivenciadas de forma lúdica, sob a escolha da criança a

respeito do que, como e com quem brincar, acena as diversas possibilidades de manifestações

corporais que contribuem para a criança extravasar-se enquanto ser que brinca, que atua

ludicamente por condição própria, porque quer e não por ter que ser e fazer.

Dentre a variedade de envolvimentos possíveis no tempo livre, as atividades mais

frequentes praticadas pelas crianças, configuraram-se na dimensão lúdica, expressas em jogos

e brincadeiras, assim, evidencia-se que estas atividades têm significado prazeroso para a

criança que privilegia atividades em que participa por prazer e não por uma imposição.

Em decorrência da diversidade de atuações corporais manifestadas e relatadas pelas

crianças, incidindo na percepção de um corpo livre, que joga e que brinca no momento em

que é possível escolher o que fazer, pude perceber que o desejo por interações lúdicas não é

completamente anulado em face das tarefas pedagógicas e das condições educacionais que

ensina o corpo dos alunos, tanto pelo que é refutado quanto pelo que é permitido em termos

de manifestação corporal da criança, ao considerar o que é bom comportamento corporal para

o aprendizado de conteúdos escolares.

Diante das constatações referentes à percepção que a criança tem de seu corpo em três

momentos escolares distintos, assinalados por esta pesquisa, pode-se considerar que as

crianças assimilam as condições de seu estado de permanência em sala de aula, na aula de

Educação Física, e nos momentos livres e buscam agir e permitem-se manifestar

corporalmente de acordo com estas condições, mesmo quando ocorrem a contra gosto. Assim,

através deste estudo pude constatar que as crianças investigadas compreendem que em cada

um dos ambientes escolares é possível se comportar corporalmente conforme o grau de

liberdade dada ao corpo e as suas manifestações.

A percepção do corpo referida pela criança revelou, contudo, que a maioria das

propostas de atividades articuladas na escola campo deste estudo, configurou-se pelo controle

excessivo sobre a corporeidade e a atividade jocosa dos alunos investigados, em que os atos

que geravam satisfação para eles ― os alunos, eram quase sempre confiscados pela escola.

Dessa maneira, as possibilidades de interações corporais espontâneas restringiam-se aos

momentos livres de atividades dirigidas por um preceptor, em situações em que não se

esperava algum proveito educativo da atividade participada pelos alunos.

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Chamo a atenção, ainda, para as interações na escola, que se apresentaram em

predominância por ocasiões de contenções de movimentação corporal, vez que os alunos

encontravam-se, na maior parte do tempo, em sala de aula, sob a requisição de permanecerem

assentados em suas carteiras e em organização de fila, contribuindo para a percepção de um

corpo refreado na maioria do tempo escolar.

Dessa forma, torna-se possível vislumbrar os aspectos que constituem as experiências

escolares e formam as redes de relações da criança com e através de seu corpo nos espaços

investigados, convividos pelas crianças participantes desse estudo. O que incidiu em

oportunidade para refletir sobre as condições em que o corpo se manifesta na dimensão

escolar em que está enredado, apresentando condições de conhecimento inerente às

particularidades do pensar e do sentir da criança sobre o seu corpo na escola, contribuindo

para a representação de como ela lida com os ditames das regras no cotidiano das práticas

escolares.

Embora esta pesquisa não tivesse a intenção de superestimar o papel do corpo em

movimento e nem o seu significado para a concepção do homem em sua integralidade, mas,

sim, de compreender a percepção que a criança tem de seu corpo em diferentes momentos

escolares, durante todo o encaminhamento deste estudo, fui levada a reconhecer que a

desconsideração, tanto da função como do significado, da cultura corporal de movimento,

bem como os modos pelos quais o corpo é tratado na maior parte do tempo escolar,

mostraram-se determinantes para a produção e de um ser corporalmente contido, disciplinado

e para uma cultura escolar que prioriza uma técnica padronizada de transferência de

conhecimento.

Com base nas verificações das situações cotidianas vivenciadas pelas crianças na

escola, nas quais foram referidas as formas com que lidam e se ocupam dessas vivencias, é

possível considerar que a preocupação da escola investigada centra-se na condução

pedagógica em sala de aula, em que o desenvolvimento da inteligência racional e do pensar

lógico é privilegiado por ela e que as possibilidades de acessos às vias corporais nas

experiências escolares não são valorizadas pelo espaço campo desta investigação.

Com isso, o intento de efetivar a participação corporal em maior escala na escola,

considerando seus significados, valores e funções, permanecerá quimérico enquanto o solo da

pedagogia educacional só tiver espaço para as construções designadas às funções mentais.

Inteirada das informações verificadas pela pesquisa, ao finalizar, ressalto a

necessidade de repensar o significado das manifestações corporais nos diferentes momentos

da escola, em favor do reconhecimento do aluno como ser integral e atuante, de acordo com

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as necessidades de seu próprio tempo, como forma de relacionar o aprendizado escolar em

vinculação com o corpo, colocando-o em estreita relação com a pessoa humana.

E isso depende, principalmente, de uma educação abrangente a todas as

especificidades que constitui o ser. Esta é a perspectiva deste estudo, que, em sua busca por

compreender como a criança percebe seu corpo em três diferentes ambientes escolares e por

verificar as oportunidades de interações lúdicas na escola, talvez ajude a valorizar o corpo, em

suas mais diferentes possibilidades de manifestações, nas interações pedagógicas e que, por

fim, possa coadjuvar nas inquietações por investigar o significado de vivências lúdicas para a

infância.

De maneira que, nas escolas, as vivências do corpo em movimento ganhem, cada vez

mais, um lugar de destaque, para que seja possível uma percepção corporal mais apurada,

pois, segundo Nóbrega (2005, p. 607) “a percepção não é uma representação mentalista, mas,

sim, um acontecimento da motricidade”. Neste sentido, o corpo em movimento apresenta-se

como momento fecundo de sentidos, visto que, “a percepção do corpo é confusa na

imobilidade, pois lhe falta a intencionalidade do movimento. A intencionalidade não é algo

intelectual, mas uma experiência da motricidade” (Ibid., loc. cit.).

Incitar reflexões que incidam em interações menos racionais e mais lúdicas na

educação escolar, em que seja possível ao aluno manifestar-se naturalmente através do e com

o corpo em movimento, esse é o desafio que o estudo se propõe.

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ANEXOS

ANEXO 1 ― Roteiro de Observação À criança Observar o que as crianças fazem na escola. Quando estão em sala de aula: observar o comportamento das crianças; como se relacionam com os professores e entre a turma e as suas manifestações corporais. Quando estão na quadra, em aula de Educação Física: observar o comportamento das crianças; como se relacionam com o professor e com os demais colegas da turma e as suas manifestações corporais. Quando estão livres de atividade dirigida: observar o comportamento das crianças; observar as atividades elegidas e praticadas por elas e como as crianças se relacionam entre si e as suas manifestações corporais. A todo contexto que envolve a criança na escola Observar os rituais mantidos na escola, voltado às crianças participantes. Observar como os professores interagem com as crianças e consideram suas manifestações corporais durante sua prática pedagógica. Observar como os espaços físicos da escola, interessantes a este estudo, estão organizados (comportam) para as possibilidades de manifestações corporais.

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ANEXO 2 ― Roteiro de Entrevista Solicitar que a criança desenhe como percebe o seu corpo quando está em sala de aula, quando está na quadra em aula de Educação Física e quando está nos momentos livres (momento da chegada na escola, recreio, momento da saída), considerando a sua rotina. Sala de aula Como você fica na sala de aula? Como você vai se desenhar? Por que você vai se desenhar assim? O que você está fazendo? Como você percebe seu corpo na sala de aula? Quadra (aula de Educação Física) Como você fica na quadra quando está na aula de Educação Física? Como você vai se desenhar? Por que você vai se desenhar assim? O que você está fazendo? Como você percebe seu corpo na aula de Educação Física? Momentos livres de atividades direcionadas Como você fica quando está livre na escola? No momento em que não está em aula ou uma atividade que um professor ou alguém da direção esteja passando, como quando você chega na escola, um tempo antes de soar o sinal para iniciar a aula; ou quando você está no recreio; ou quando toca o sinal no fim da aula, antes de sair da escola. O que você faz nos momentos livres? Na chegada na escola, quando você chega um pouco mais cedo e dá tempo de fazer alguma coisa antes de soar o sino para o início das aulas do dia; no momento do recreio, no momento quanto toca o sinal do fim das aulas do dia, antes de você sair da escola? Qual dos momentos livres você vai desenhar? O momento da chegada, antes de soar o sinal do início das aulas; a hora do recreio ou na saída, antes de você sair da escola. Em qual desses momentos você vai se desenhar? Como você vai se desenhar? Por que você vai se desenhar assim? O que você está fazendo? Como você percebe seu corpo no(a) (momento livre que a criança desenhou)?

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ANEXO 3 ― Solicitação De Entrada No Campo

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

FACULDADE DE EDUCAÇÃO FÍSICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

Cuiabá-MT, 28 de julho de 2009

Ao Sr(a). Diretor(a) da Escola Municipal Ministro Marcos Freire NESTA

SOLICITAÇÃO

Solicito a vossa permissão à mestranda Fabiana Cristina de Lima, do Grupo de

Estudos e Pesquisa sobre a Corporeidade e Ludicidade, da Faculdade de Educação Física e do

Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, sob a

coordenação do Prof. Dr. Cleomar Ferreira Gomes, para que possa realizar, neste

estabelecimento, uma pesquisa que dependa de filmagens, entrevistas, fotografias e de

observações sistemáticas.

Informamos que este procedimento de pesquisa é um importante instrumento na

formação desses alunos.

Respeitosamente, agradecemos a vossa colaboração.

Por ser verdade, assino.

_______________________________________ Prof. Dr. Cleomar Ferreira Gomes

Av. Fernando Corrêa da Costa s/nº Campus Universitário Ginásio de Esportes

CEP 78060-900 Cuiabá-MT Tel. (65) 3615-8837/Fax 3615-8838