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“Exposição fúnebre e symbólica” – Um estudo das exéquias da Infanta Dona Maria Francisca Dorotéia, em Paracatu, 1771 1 Flávia Klausing Gervásio Mestranda – Universidade Federal de Minas Gerais O presente trabalho visa analisar uma tradição recorrente na América Portu- guesa Setecentista: a celebração de exéquias ou rituais fúnebres na ocasião da morte de reis, príncipes ou membros da elite local. Para tanto, foi enfocada a ceri- mônia realizada na Vila do Príncipe de Paracatu, em 1771, por ocasião do faleci- mento da infanta Dona Maria Francisca Dorothéia, filha de Dom José I. Nascida sob a efetivação de diversas “demonstrações de jubilo” no dia quinze de novembro de 1768, a infanta Dona Maria Francisca Dorothéia, porém, teve uma morte precoce no dia 14 de janeiro de 1771, quando ainda não havia completado três anos. A triste notícia de seu falecimento, recebida em todos territórios sob o domínio português, era acompanhada pela exaltação das qualidades morais da defunta. A mesma possuía todos os “sinais de verdadeira catholica e era “em tudo conforme as suas Reaes Virtudes . Logo, tão nobre e virtuoso exemplo, era como um espelho de comportamento para as massas que acompanhavam o fato, sendo, por isso, necessário a celebração de atos públicos que fundiriam luto, exaltação e pompa. Momentos de celebração da monarquia em que o Estado transcendia a figura do governante, as “demonstracoens de jubilo” era uma conjunção de celebrações religiosas, atividades militares, atos teatrais, cerimônias públicas e manifestações culturais diversas. Em seu conjunto, formavam um ato simbólico altamente valori- zado, já que a morte era o símbolo da passagem e da reafirmação mística da força divina. A apresentação destes atos, com pompa e cerimônia, permitia a demonstra- 1 Este artigo é parte de uma pesquisa realizada para monografia de final de curso de História (UFMG) sob a orientação da Professora Doutora Adalgisa Arantes Campos. APM SC 148 COD 10. Ibidem.

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“Exposição fúnebre e symbólica” – Um estudo das exéquias da Infanta Dona Maria Francisca

Dorotéia, em Paracatu, 17711

Flávia Klausing GervásioMestranda – Universidade Federal de Minas Gerais

O presente trabalho visa analisar uma tradição recorrente na América Portu-guesa Setecentista: a celebração de exéquias ou rituais fúnebres na ocasião da morte de reis, príncipes ou membros da elite local. Para tanto, foi enfocada a ceri-mônia realizada na Vila do Príncipe de Paracatu, em 1771, por ocasião do faleci-mento da infanta Dona Maria Francisca Dorothéia, filha de Dom José I.

Nascida sob a efetivação de diversas “demonstrações de jubilo” no dia quinze de novembro de 1768, a infanta Dona Maria Francisca Dorothéia, porém, teve uma morte precoce no dia 14 de janeiro de 1771, quando ainda não havia completado três anos.

A triste notícia de seu falecimento, recebida em todos territórios sob o domínio português, era acompanhada pela exaltação das qualidades morais da defunta. A mesma possuía todos os “sinais de verdadeira catholica”� e era “em tudo conforme as suas Reaes Virtudes”�. Logo, tão nobre e virtuoso exemplo, era como um espelho de comportamento para as massas que acompanhavam o fato, sendo, por isso, necessário a celebração de atos públicos que fundiriam luto, exaltação e pompa.

Momentos de celebração da monarquia em que o Estado transcendia a figura do governante, as “demonstracoens de jubilo” era uma conjunção de celebrações religiosas, atividades militares, atos teatrais, cerimônias públicas e manifestações culturais diversas. Em seu conjunto, formavam um ato simbólico altamente valori-zado, já que a morte era o símbolo da passagem e da reafirmação mística da força divina. A apresentação destes atos, com pompa e cerimônia, permitia a demonstra-

1 Este artigo é parte de uma pesquisa realizada para monografia de final de curso de História (UFMG) sob a orientação da Professora Doutora Adalgisa Arantes Campos. � APM SC 148 COD 10. � Ibidem.

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ção do poder e da união do Estado com a Igreja, daí a importância da realização deste rito na América Portuguesa.

Era necessária a participação de diversos setores da sociedade para a realização do evento, assim, por meios de circulares, a notícia se espalhou nas mais variadas regiões. Existe uma documentação que acusa a celebração destes ritos comemorati-vos em algumas localidades da Capitania de Minas, como, por exemplo, em São Bartolomeu, na Freguesia de Nossa Senhora de Nazareth da Cachoeira, em Santo Antonio da Caza Branca e no Arraial de Paracatu. O documento que atesta a celebra-ção em Paracatu é um relato de festa, a “Expozição Fúnebre e Symbolica”4, de auto-ria do Reverendo João Souza Tavares.

Este documento é uma amostra das atitudes e representações perante a morte além de demonstrar os padrões culturais de uma elite, que se buscava estabelecer e se impor na sociedade. Ele se apresenta, portanto, com uma concepção de auto-ridade e de regra que prevê uma observância estrita das hierarquias e uma re-intro-dução dos padrões de comportamento social dos portugueses.

É exemplo de uma vertente específica da literatura sobre a morte, o Panegíri-co, com foco na pompa, entendida como magnificência�, e nos emblemas. De-monstra, assim, como as estruturas de poder e de significado podiam ser usadas para conformar e expressar os valores da sociedade.

O gênero Panegírico surgiu com Isócrates, em �80 a.C., sob a forma de um dis-curso que se fingia como apresentado diante de uma assembléia de jogos olímpicos. Por extensão, era considerado Panegírico todo discurso público de interesse comum às pessoas reunidas, podendo ser individual, coletivo, de um lugar, um valor.6

Em Roma, o Panegírico tomou a forma de Laudatio, um louvor de grandes ho-mens, sendo o Laudatis funebris uma forma especializada, na qual se fazia o elogio de um homem a ser imitado pelas gerações seguintes após a morte do mesmo.

Houve posteriormente uma incorporação do gênero à oratória sacra, em que os santos se tornaram sujeitos da predicação. Com o prestígio crescente dos modelos hu-manistas, o Panegírico foi incluído no conjunto heteróclito das formas historiográficas (em que conviviam os tratados, os relatos, as corografias, as cosmografias, e as crôni-cas) e passou a ser entendido como um “repertório de exemplos”, constituído por dis-cursos de louvor às qualidades morais dos grandes. Havia uma seleção das partes mais significativas e na quantidade de eventos, seleção esta que devia ser entendida como signo ou amostra das virtudes que existiam nas demais ações não referidas.

4 “Expozição Fúnebre e symbolica”. TAVARES, João de Souza. In: Coleção Lamego, IEB/USP- Cod. �8.04. � Campos, Adalgisa. “A visão nobiliárquica nas solenidades do setecentos mineiro” In: X Encontro Regional de História- caderno de resumos. Mariana: UFOP,1996. p. �4.6 Sobre o tema panegírico ver: PÉCORA, Alcir.In: As Excelências do governador. SP: Cia das Letras, �00�.

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O Panegírico descreve genericamente ações já passadas, produzindo uma nar-rativa à qual “dá fé”, sendo, por isso, um discurso que autoriza a verdade destes feitos. Colocavam-se os fatos diante dos olhos do leitor, por meio de uma composi-ção assentada na vivacidade do que se narra, de modo que ele os imagina testemu-nhados pela vista, no exato presente da leitura.

Imbuído da função pedagógica da imagem, o relato de João de Souza Tavares se inicia com a disposição do título - Expozição Fúnebre e Symbolica - junto a um bra-são que ostenta rocalhas ao seu redor e uma coroa real na parte superior, de modo a já indicar a relação intrínseca com a corte portuguesa.

A narrativa da criação do mundo, das criaturas terrestres e celestiais, do tempo e, finalmente, do homem “Príncipe absoluto do Universo”7, é precedida por uma capitular ornada de flores e pássaros, que “ilustraria” parte das descrições realiza-das no texto. O principal elemento sustentador do discurso do autor é a autoridade da Bíblia. A idéia presente o tempo todo é a de que o mundo seria pensado como tendo, simultaneamente, uma natureza histórica particular e uma dependência do divino, o que resultaria em uma projeção permanente de Deus no real.

7 “Expozição Fúnebre e symbolica”. TAVARES, João de Souza. In: Coleção Lamego, IEB/USP- Cod. �8.04.

FIG.�- Capitular. In: Coleção Lamego, IEB/USP- Cod. �8.04

FIG.1- Brasão. In: Coleção Lamego, IEB/USP- Cod. �8.04

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Assim, as Escrituras forneciam o modelo católico da oratória sacra, pois acredi-tava-se que estas estariam prefiguradas nos eventos, de tal modo que a história con-temporânea aos pregadores seria a versão mais atualizada do texto sagrado, efetuan-do como que um avanço na predestinação providencial do universo criado.

Do mesmo modo, os fatos históricos discursariam sobre os planos de Deus e reuniriam um repertório maior de referências circunstanciais aptas para a eluci-dação das figuras misteriosas empregadas por Deus para se comunicar com os homens. Esta ação verbal presente na oratória sacra, de descoberta e atualização dos sinais divinos ocultos na ação do mundo, tinha em vista a produção de um movimento de correção moral na assembléia de fiéis. Logo, a eficácia na conversão dos homens derivaria não apenas do sentido espiritual dos relatos bíblicos, mas também de sua conciliação com as ocasiões em que se efetivava a história.

Para Manuel Pires de Almeida, tratadista português que 16��, publicou o livro “Poesia e Pintura”8, da mão divina saíram os melhores poemas. Segundo ele, foi Deus tão excelente pintor, que nenhuma imaginação poderia alcançar a sombra de tanta perfeição. Várias e diversas maravilhas pintou Deus na criação do mundo e, sobretudo, retratou-se a si mesmo criando o Homem, o Anjo e o Verbo.

Não correspondeu o homem, porém, aos desígnios divinos, pois, ao invés de se conter com as “dilícias” do Paraízo”9, transgrediu, “com a sugestão do Demônio”10, a Lei sobre a qual não poderia comer frutos da Arvore da Ciência e, assim, Deus “lhe promulgou a Sentença de morte na fragilidade da vida.”11

A desobediência a Deus seria para o autor um “execrado insulto”, diante do qual a perda da imortalidade seria considerada até um “limitado castigo”. Assim, como a “gravidade da culpa clamava em satisfação da sua malicia, outra mais rigo-roza pena proporcionada ao delisto, transcedeo o rigorozo da Sentença a todo o gênero humano, como filhos e descendentes de Adão, fructos contaminados de huma raiz”1�. A morte, desde então, seria um atributo inviolável a todos os homens. Neste exemplo, podemos ver a imbricação entre o Texto Sagrado – no caso, o Gê-nesis – e a história, de modo que a condição perene humana é justificada – e atua-lizada – por meio de uma retórica cristã.

No Panegírico normalmente encontramos a narrativa das ações do protagonis-ta. No caso da “Expozição Fúnebre”, porém, a pessoa homenageada é uma infanta de poucos anos de vida e, portanto, sem grandes feitos memoráveis a serem lem-brados pela população. Para comprovar a virtuosidade da dita criança, foi necessá-rio ao autor utilizar um artifício retórico ao assemelhar a virtude da filha à do pai,

8 ALMEIDA, Manuel. “Poesia e Pintura.” (16��). In: MUHAMA, A. Tratado seiscentista. SP: Edusp, �00�. 9 “Expozição Fúnebre e symbolica”. TAVARES, João de Souza. In: Coleção Lamego, IEB/USP- Cod. �8.04.10 Ibidem. 11 Ibidem. 1� Ibidem.

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o rei D. José I. Segundo João Tavares, o monarca era “amorozo pay daquella ado-rada filha, a quem com o régio esplendor de sangue a conferio”1� e nem mesmo a morte da sua descendente lhe tirou a compostura. Pelo contrário, pois a seguir da dor deste golpe, “rebentou aquelle firme e constante coração como mina violenta, e reconcentrada no mais intimo de sua regia, e soberana profundidade nas obras mais pias, e catholicas”14.

O Panegírico traz também, a narrativa das ações e dos ditos do protagonista na hora da sua morte. A infanta Dona Maria Francisca Doroteia, apesar de virtuosa e magestosa, era também mortal, logo, não poderia escapar da inexorabilidade da morte. Sendo assim:

Invadio sem aquella divinizada soberania, pela fragilidade da natureza, des-compondolhe os humores daquella natural economia de que carece o indivi-duo humano para conservação do vital espírito, precipitarão a com este arti-ficiozo estratagema a hua aguda, e chronica enfermidade.15

A partir da afirmação constante das virtudes morais da infanta e da força do seu régio sangue, o autor construiu uma encenação trágica da sua agonia. O obje-tivo era constituir no texto uma fusão dos lugares capitais da virtude civil, como a justiça, a prudência, a temperança e a fortaleza, com as virtudes teologais, como a fé, a esperança e a caridade.

Há no relato, portanto, uma caracterização da personificação, uma composi-ção de um caráter singular articulado à imitação de virtudes. É necessário frisar, porém, que o louvor devia contemplar a produção de exemplo virtuoso com vistas à emulação das pessoas, de modo que a imitação dos melhores servisse ao propó-sito de superação da condição particular e de reforço da concórdia e da saúde do organismo do estado.

A ênfase na caracterização da pureza da infanta é fundamental na medida em que se buscava a salvação da alma desta figura régia. Era necessário, portanto, evidenciar as suas virtudes de maneira a assegurar o seu destino. A morte, que saí-ra vitoriosa do confronto narrado, não tirara os méritos de Dona Maria Francisca, já que esta morria “obedecendo a voz de Deos, que a chamava como Espoza, para a coroar de gloria no Empyreo.”16 Assim, sendo o triunfo terreno frágil e passageiro, o que vale é o da eternidade, que só os puros e virtuosos conseguem.

No relato de João de Souza Tavares narra-se os preparativos das exéquias ocorridas em Paracatu. Para isso, o autor regride até a ação do rei D.José I, que abriu “com especial liberalidade os importantes thesouros da sua magnífica e Im-

1� Ibidem. 14 Ibidem. 1� Ibidem. 16 Ibidem.

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perial Coroa para a pompoza despeza do Régio Funeral da sua sereníssima Filha”17. Não obstante a realização de sufrágios “por todos os Bispados, e Freguezias do Reyno”18, foi, porém, ordenado praticar o mesmo “por todas as Igrejas de suas dillactadas conquistas, para que nem nos certoens mais incultos do Brazil, (...), deixasse de chegar com a noticia a pena, e com a liberalidade os sufrágios da alma”19.

Sendo assim a vontade régia, se executou “em toda a Capital de Villa Rica, e suas annexas por pastoral expedida do Rdo Cabido do Bispado de Mariana”.�0 O autor, diante disto, se embrenha em um artifício retórico ao afirmar que os textos produzidos nestas ocasiões, confeccionados por “Elegantes Escriptores” seriam im-portantes narrativas e, conseqüentemente, os modelos fundamentais para que ele ocupasse o lugar de “chronista de tanta grandeza”�1.

A importância da exteriorização do culto é longamente justificada pelo autor, para quem “as paixoens internas da alma mal se explicão pelas vozes, por ser limi-tada a esphera da Rethorica para a expozição dos votos enternecidos”��. Nem mes-mo o uso de imagens, “onde o matiz mais fino da pinctura nunca passa de huma morte cor pela opacassidade das sombras”��, era justificada. Nem palavras, nem símbolos, o importante naquele momento era dizer o indizível e expô-lo através de “operaçoens externas, como factos públicos, e objectos visiveis, que a ninguém se occultão, porque a todos se manifestão”�4. As palavras e as imagens teriam lugar nesta celebração, mas como auxiliares da produção de sentidos. O fundamental era, portanto, a manifestação visível da obediência dos soberanos através de atos pré-determinados.

Os elogios do texto não se limitavam à Família Real sendo também direciona-dos aos membros da burocracia colonial, como o Capitão Geral das Minas, o Con-de de Valladares: “em cujos hombros tem descançado com tanto acerto, e felicida-de, o dilatado e laboriozo governo de sua inimitável regência”��. Foi este que por “carta firmada de seu punho ordenou ao Comandante do Destacamento deste Ar-rayal de São Luiz, e Sancta Anna, Minas do Paracatu, o Furriel de Dragoens Mano-el Lopez Saraiva, como único, e zelozo executor da suas mais importantes, e parti-culares ordens.”�6

17 Ibidem. 18 Ibidem. 19 Ibidem. �0 Ibidem. �1 Ibidem. �� Ibidem. �� Ibidem. �4 Ibidem.�� Ibidem. �6 Ibidem.

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Tão “piedoza acção que por tão catholica e pia clamava pela brevidade do mais accelerado effeito”�7 deveria ser cumprida sem mais tardar. Logo, foi convo-cado o Vigário Geral da Freguesia, Antonio Mendes de Santiago, para que junto do sobredito Furriel, se esforçassem por deixar todos os preparativos concluídos até a data da celebração. A importância do evento ditava a excelência da pompa, daí a necessidade de construção do “mausoléo, paramentos preciozos, para a compos-tura na indigencia de galloens, e ricas vellas”. Era preciso, enfim, ter a “magnificên-cia recommendada”.�8

O primeiro arranjo do Furriel foi, segundo o relato, a contratação dos “mais engenhozos architectos para o desenho da mais acertada ideia da estructura do Mausoléu”�9 e, concluída esta etapa, foram chamados “os oficiais mais destros da terra” para confeccioná-lo. Seguiu-se a estas ações, a divulgação de circulares “por toda a Milícia de hum e outro Regimento, para que no dia predeffinido se achassem formados no terreno da Capella de Sancta Anna, municiados de pólvora para o obsequio militar das cargas que se havião por vezes repetir.”�0

No dia �� de Novembro de 1771, véspera do esperado acontecimento, se ouviam clarins e roucos parches, expedidos pelos Coronéis dos Regimentos da In-fantaria e da Cavalaria Auxiliar e, por meio de sinais, era lembrado às companhias militares que no dia seguinte: “se achassem regularmente formadas, segundo as ordens que lhe forão conferidas.”�1 Para aumentar o clima de luto no arraial, fize-ram bater os sinos de modo que “enternecião os ânimos mais endurecidos, convo-cando o clero, para a piedoza acção dos primeiros sufrágios na celebração das vésperas, persuadindo ao mesmo tempo a todos os mortaes”.�� O dobre do sino era como que um meio de comunicação com a população do arraial, alertando, cha-mando e convocando as pessoas para os mais diversos acontecimentos.

Assim, “concorreo todo o povo a capella de Sancta Anna onde se officiavão as vésperas e se havia de conduzir no dia seguinte o officio”��. O assombro foi geral diante da preparação fúnebre da dita capela: o arco-cruzeiro estava coberto de negro luto e abrigava diversos esqueletos, tanto nos capitéis de cima, como nos pedestais de baixo, sendo rematado por um tarjão com a seguinte inscrição: “SUB HOC SIGNO VINEES”.�4

�7 Ibidem. �8 Ibidem. �9 Ibidem. �0 Ibidem. �1 Ibidem. �� Ibidem. �� Ibidem. �4 Ibidem.

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Os esqueletos se coroavam com “tropheus da morte” e, reproduzindo o gênero vanitas da pintura, exibiam o desengano com os bens terrenos- cetros, diademas- como recurso de afirmação da superioridade da vida espiritual, pois eterna. Eles também carregavam inscrições morais que objetivavam chamar os fieis à fugacidade da vida. Como nestes excertos: “olha, que te avizo: alerta, e que hás de morrer avi-zo”, “que hes vivo, e que hás de morrer he certo, e ninguém o ignora, mas quando há de ser a hora, não o podes he saber”��. Eram, portanto, no dito do próprio autor, como que uma “carta de recomendação, e despertador do mortal descuido”�6.

Os ornamentos do Mausoléu eram dos mais nobres e vistosos, possuindo bro-cados, toalhas, banquetas, castiçais, franjas, ceras, luzes e metais preciosos. Obser-vava também, conforme as praticas de então, uma “bem regulada simetria”.

Junto ao Mausoléu, “em onze grandes tarjoens”, em obras “não menos engenho-zas”, encontravam-se “outros tantos Emblemas Moraes e Alegóricos nos seus sentidos e figuras com que as letras (eram) accommodadas as suas genuínas applicaçõens”.�7

�� Ibidem.�6 Ibidem. �7 Ibidem.

FIG.�- Mausoléu. In: Coleção Lamego, IEB/USP- Cod. �8.04

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Havia na Europa do Antigo Regime uma longa discussão sobre o que seria a arte, o fazer artístico, e qual seria a relação entre os seus diversos gêneros.�8 As práticas eram regradas e consistiam em uma variedade de modelos disponibilizados aos artis-tas. Assim, mais do que buscar uma criação individual visava-se o reconhecimento da tradição, como forma de melhor incitar a memória dos possíveis espectadores. Neste contexto, surgiu o gênero Emblemático, que se fazia valer da relação intrínseca entre as figuras e as letras: “Grandes são as proporções, grandes as semalhanças, concordâncias ou simpatias, que tem a tinta, e a cor, a pena, e o pincel. E tanto se parecem entre si que escassamente se vê sua diversidade.”�9 O lema “Ut pictura po-esis”, contido na “Arte Poética” de Horácio40 era a base interpretativa e a fundamen-tação para a teoria de equivalência entre a pintura e a poesia.

Segundo Manuel Pires de Almeida, o Emblema é uma composição moral, que constaria de título, figura e versos. No titulo se mostraria o intento, na figura, com pouca clareza, daria a entender a moralidade, e nos versos “vária e eruditamente” se explicaria a figura ou figuras, que sempre deviam ser bem achadas. Neles, as palavras deveriam ser ponderadas e escolhidas, pois todo bom emblema deveria ser sentencioso “para bem publico e namorar o animo ou com a novidade da coisa, ou com noticia notável de antiguidade”.41

Este gênero partia do principio de que “tudo o que o pincel mostra com a viveza das cores mostra a pena com a flor dos conceitos”4�. Ambos deleitariam a “doutos e ignorantes” já que os doutos se recreariam com a boa invenção e sua alegoria, e os ignorantes com as cadências do verso. Assim, a razão do emblema devia ser manifesta de modo que não a deixasse de “entender os necios, nem moleste totalmente aos sá-bios.” Havia, portanto, que “mostrar seu conceito como entre vidraças.”4�

Tanto a produção escrita quanto a imagética devia ter como norte a verossimi-lhança e como fim aproveitar com deleite os ânimos. Na contemplação destas artes buscava-se avivar e despertar o engenho, alegrar a imaginação e exercitar o juízo, julgando o artificioso e o natural e ensinando, moralmente, os exemplos para le-vantar os ânimos às coisas grandes. Logo, para a pintura e a poesia serem proveito-sas e deleitosas, era necessário que as coisas imitadas verossimilmente se conhe-cessem por tais e lhe convinham antes “fazerem idéia da mais excelente e levarem por alvo o Universal”.44

�8 Ver LICHTENSTEIN, J (org). A pintura - textos essenciais. O paralelo das artes. São Paulo: Ed. �4, �00�. �9 ALMEIDA, Manuel . “Poesia e Pintura.” (16��). In MUHAMA, A. Tratado seiscentista. SP: Edusp, �00�. 40 Citado em: MUHAMA, A. Tratado seiscentista. SP: Edusp, �00�. 41 ALMEIDA, Manuel. “Poesia e Pintura.” (16��). In MUHAMA, A. Tratado seiscentista. SP: Edusp, �00�. 4� Ibidem. 4� Ibidem. 44 Ibidem.

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Para “fazer eleição da idéia mais excelente e da forma mais notável”4�, convi-nha ao poeta e ao pintor, mover primeiro em si os afetos, porque assim moverão os ânimos, e desta maneira procede ao furor que enleva e arrebata, não só ao pintor e poeta, mas também aos ouvintes e espectadores.

A Contra Reforma utilizou-se da relação texto-imagem como meio da sua pro-paganda da fé. A Igreja acreditava que a fixação das imagens e o incremento dos textos que as acompanhava, resultava em uma ação mais penetrante sobre a sensi-bilidade. Deste modo, o sentido que se queria dar às imagens estava explícito no texto e vice-versa.

A imagem que complementa um texto serve para mostrar a veracidade da historia da vida, para exemplificar métodos teológicos, científicos e para decifrar códigos da experiência individual e coletiva. Logo, a relação texto-imagem é rele-vante para a compreensão do sistema de signos de uma determinada sociedade conforme a perspectiva histórica.46

No texto de João de Souza Tavares, há uma descrição dos Emblemas utilizados na decoração efêmera do rito fúnebre. Além de explicitar os temas e as imagens, o autor se delonga na moralidade contida em cada um, produzindo um “exórdio” aos leitores, de modo que seguissem o exemplo da virtuosa infanta.

É importante ressaltar, porém, que as representações contidas no relato não são, muitas vezes, fidedignas às suas explicações: por exemplo, um templo antigo de Éfeso, foi representado por uma construção de um templo católico da Idade Moderna. Porém, mais do que apresentar os tópicos “veridicamente”, acreditamos ser o intento do autor, passar as mensagens de modo que seus interlocutores a consigam decifrar. Assim, as figuras se encontram com “adaptações” aos signos que se acreditavam comuns.

Um exemplo de análise de emblemas feito por João de Souza Tavares é a des-crição do primeiro emblema apresentado no texto: “VIRTUS ETIAM MORTE PE-REMPTIS LUCET”. Nela, o autor descreve o templo de Diana, em Éfeso, considera-do como “hua das sette maravilhas do mundo”47. O poema citado na “Expozição”, de um “Poeta vulgar”, o caracteriza magnificente.

4� Ibidem. 46 Ver AVILA, Cristina. A Palavra no espelho. Belo Horizonte, Faculdade de Letras-UFMG, �001(Tese) . 47 “Expozição Fúnebre e symbolica”. TAVARES, João de Souza. In: Coleção Lamego, IEB/USP- Cod. �8.04.

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O Emblema representa este templo em chamas “abrazado e consumido em fogo pela presumpção louca de Herostrato”48. Junto á esta representação, se encon-trava o seguinte mote, ou título: VIRTUS ETIAM MORTE PEREMPTIS LUCET.49

Na descrição deste Emblema há a construção de um discurso de glorificação e exaltação da grandiosidade da virtude cristã, baseado na afirmação de que esta seria uma “segura ponte por onde passa uma ditoza alma, sem o receyo das tem-pestades do século, para o Porto appetecido de Bem aventurança”�0 dizia o Poeta.

A morte não teria jurisdição sobre a virtude, pois mesmo roubando-lhe a vida, esta resplandeceria em claridade. Seguindo uma analogia com a imagem, em que o “grandiozo” Templo de Diana se reduzia às cinzas, o autor rememorava que a “vir-tude da sua magnificencia” sobrevivia graças aos “assombros da memória” e garantia um lugar nos “Annaes da Fama” à esta importante “Maravilha do Mundo”.

48 Ibidem. 49 Ibidem - Tradução: “A virtude ainda brilha mesmo com a morte”. �0 Ibidem.

FIG.4-Emblema 1 In: Coleção Lamego, IEB/USP- Cod. �8.04

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A virtude seria independente de tudo para a glória do seu merecimento, logo: “nem carece das lisonjas do mundo, nem recea os olvidos da morte porque das mesmas cinzas dos eu estrago, sabe erigir eternos padroens no Templo da Memória para os seus applauzos”.�1

Segue-se o paralelo com a personagem do panegírico. A “nossa Augustissima Infanta templo espiritual da Graça do baptismo”�� e “tão chea e adornada de virtu-des, como para consolação da nossa saudade entoa a Fama pouco importa que lhe roubasse a morte em vida, se não lhe poderá em nenhum tempo das suas esclarecidas virtudes diminuir a gloria?”�� À tristeza da perda de uma integrante da Família Real sobrepunha-se, portanto, o sentimento de eternidade da virtude católica da infanta.

Já na descrição do último emblema do documento, encontram-se os seguintes motes: “sommus bulla, vitrum, glacies, flos, fabula, socnum umbra emis punctum, vox, sonus, aura, nihilhe”�4, se encontra representado, em um elevado trono, “huma coroada Magestade, liberalizando entre humildes e rendidas adoraçoens, a huns favores a muitos prêmios, a outros benefícios.”��

Segundo o autor, “he o mundo hum unniversal theatro adornado, e revestido das tapeçarias da Lizonja em que se reprezentão diversificadas tragédias pelos mortaes, reprezentando cada hum delles o seu papel, em quanto lhes dura a vida, e não chega a morte.”�6 O mundo como um teatro era uma tópica recorrente na literatura, que se referia à valorização da imagem, da aparência, e do papel social de cada indivíduo na sociedade.�7 Tudo decorria, pois, da nossa eficácia na “imaginação das couzas”. Conheceríamos as coisas não pelo o que elas são, mas pelo que aparentam.

Sendo a vida uma encenação, pensava-se, por conseguinte, que tudo terreno era também fugaz e etéreo:

Tudo quanto a farsa representa he lembrar tudo quanto se vê he fumo, e tudo quanto se logra he nada. A imaginação o pinta, a lizonja o figura, o engano o confirma, e a realidade o deleita. He flor, que com a morte se murcha, vidro que de hu sopro se quebra, sonho que em acordando se não acha, sombra que na ausência do Sol desaparece, viração que apenas se logra quando se finda, e voz que mal se articula, e logo fenece. Finalmente tudo he figura do que podia ser, e huma pintada imagem do que na realidade não he.�8

�1 Ibidem. �� Ibidem. �� Ibidem. �4 Ibidem - Tradução: “Somos bolha, vidro, gelo, flor, fabula, feno, sombra, cinzas, ponto, voz, som, ar, nada.” �� Ibidem. �6 Ibidem.�7 Sobre a tópica barroca da literatura do mundo como um teatro, ver MARAVALL. J. A cul-tura do Barroco. São Paulo: Edusp, 1987. �8 Ibidem.

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Que a glória terrena seria vã, se provava continuamente na doutrina cristã: “Que toda a gloria do mundo seja hum quase do que não he, e huma imagem ou lembra do que parece, se prova com repetidos lugares da Escriptura.”�9 Ou mesmo em autores renomados, com “não menos Agudeza, e graça”60, como em Lopes da Vega: “Dispier lo suena quien amando prensar”.61

A imaginação dos homens seria a responsável pelo apetecimento às terrenas glórias, pois imprimiria na fantasia uma imagem sedutora. Empenhados na busca dos vãos troféus, se esqueceriam de que estariam atrás apenas de uma “phantastica aprehenção”, de uma construção mental, uma “pinctura que mente”.

O monarca ocuparia, segundo o autor, um lugar privilegiado no mundo, o de maior glória terrena. Ele seria escolhido e conservado por Deus: “de quem recebe todo o poder, e jurisdicção, para o bom regimen, e governo do seu povo”6�- e seria , portanto, uma espécie de “vigário de Christo na Terra”. Maior glória, para o Mo-narca, seria ainda a de “ser amado, e obedecido de todos os seus vassalos”.6�

Porém, sobrepõe a esta grandiosidade, um “cativeiro, inda que nobre, e glorio-za escravidão”, já que ao rei é compelido ser um eterno e grande pai, tutor e pastor: “no amor Pay, no zelo tutor, Pastor no vigilar.” Assim, “Da hora em que cinge a coroa, e empenha o sceptro deixa de ser Rey, e principia a ser Pay, a Magestade com que entre tantas gloria occupa o throno, he o mayor incentivo do cuidadozo disvello, com que deve conservar em paz e justiça aos seus vassalos, sendo a imi-tação de Deos hum para todos e nada para si”64. É um destino glorioso, mas peno-so, pois o rei viveria somente para seu povo. Além disso, por mais elevada que seja esta glória, ela também é vã, de pouca duração.

Segundo o autor, a exemplar infanta teria também neste sentido, seguido a virtuosa inclinação, já que “mostrou no dezengano da morte, que as grandezas do mundo e magestades da terra, são por momentâneas e caducas:

sommus bulla, vitrum, glacies, flos, fabula, foenum.

Umbra, cinis, punctum, vox, sonus, aura, nihil.”6�

O relato apresenta também a descrição do ato fúnebre em si. Com este fim, o autor inicialmente, faz referência à divisão dos espectadores - “o povo dividido em partes”66 - , que se fracionavam ante as trágicas decorações presentes na Igreja.

�9 Ibidem.60 Ibidem. 61 Ibidem. 6� Ibidem. 6� Ibidem. 64 Ibidem. 6� Ibidem. 66 Ibidem.

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Flávia Klausing Gervásio - 9��

A eclesia “alcatifada” estaria reunida do pé do arco cruzeiro até as grades. Para as pessoas mais “nobres e distintas” havia numerosas cadeiras, “segundo as preferências das suas graduaçoens”67 e também estavam disponíveis “outros assen-tos separados para as dignidades eclesiásticas”. O clero seguia em “procissão bem ordenada”, e cada um deveria buscar o “lugar que lhe competia nas cadeiras, que a roda das cadeiras se prevenirão para aquella função.”68 Os oficiais da milícia também assistiam a esta função de véspera, todos ricamente fardados “conforme as suas respectivas graduaçõens”. Os assentos, a roupa, as insignes, eram todos auxi-liares de sentido na hierarquia que se mostrava e ao mesmo tempo se confirmava visualmente à população. Era sempre recorrente, portanto, a idéia de um mundo or-ganizado de maneira onipotente, segundo uma ordem natural das coisas e, conse-qüentemente, afirmava-se, por vezes implicitamente, que a possível inversão desta ordem geraria o pecado e a culpa.

Os dobres do sino marcaram o encerramento do ato da véspera e também o início do ato “propriamente dito”: os “dobres tristes, despertando aos moradores para a pena”.69

O Furiel Manoel Lopes Saraiva, “a cujo zelo estava encarregada toda a magní-fica pompa daquelle funneral”70 fez com que se formassem no adro da Igreja os Regimentos da Cavalaria e da Infantaria, “bem regulados”.

O Reverendo Pároco celebrou o ato com o auxilio de toda a “clerezia” presen-te, “cantando todas nove liçõens por sucessivos turnos os mais destros músicos”71. Foi distribuída cera para as autoridades presentes, seguindo uma ordem de divisão: aos mais graduados, melhores ceras. O objetivo era iluminar toda a Igreja e enalte-cer os fieis com o clima fúnebre, em uma combinação de decoração, musica e clima de luto.

Finda a oração fúnebre – que, diligente por celebrar a morte de uma “açuce-na”, se caracterizou como um “sermão de rozas” – houve início a Missa “com toda aquella solemnidade, que a Relíquia Catholica, humilde e reverente tributa a tão alto, e tremendo sacrifício”.7�

As repetidas salvas serviam para “que se visse, que nos peitos enternecidos são signaes de sentimento rios de chrystal, como suores da alma, (e), nos ânimos guerrei-ros as demonstraçõens de pena são suspiros de fogo, como ardores do coração.”7�

67 Ibidem.68 Ibidem. 69 Ibidem. 70 Ibidem. 71 Ibidem. 7� Ibidem. 7� Ibidem.

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As cinzas mortais da princesa ali não se encontravam, mas estavam “represen-tadas vivas na memória, para despertadora da mais enternecida pena”74, ficando pois, aquela “funesta urna exposta ao pasmo de muitos”, em um apelo visual per-manente aos fieis.

O relato finaliza-se em uma exortação pública à imitação das virtudes do pro-tagonista. Este item se encontraria permeado por todo o relato de João de Souza Tavares, conjuntamente às inúmeras citações e parábolas, cheias de significações para a interpretação das demais histórias.

Os modelos utilizados pelo autor tinham, reconhecidamente, um valor funcio-nal e formal, já que requeriam a autoridade valorativa da palavra do outro. A escri-ta baseada em citações, floreava o texto e criava uma áurea mística sobre o discur-so, visando mais impressionar que esclarecer.

Para expressar o mistério da fé, muitas vezes indizível, era necessária a recor-rência a uma poética que fugia da razão, que se utilizava de uma subjetividade introdutória de um valor da imaginação. Assim, a fala não era apenas intelectual, mas também emotiva, já que intentava percorrer os sentidos através da linguagem poética e mística. Neste sentido, as figuras de linguagem interditariam o sentido lógico e perpassariam o texto pela paixão e pelo rebuscamento.7�

Toda esta descrição tinha, pois, como função, a representação pública osten-siva do reconhecimento da grandeza do homenageado e a ritualização católica do desengano da vaidade e vanidade dos bens terrenos, na esperança da salvação pessoal da infanta.

74 Ibidem.7� Sobre escrita litúrgica ver: AVILA, Cristina. Palavra no espelho. Belo Horizonte, Faculdade de Letras-UFMG, �001 (Tese).