exploração e produtividade dos cortadores de cana

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA RELATÓRIO FINAL PROJETO: Os cortadores de cana e a abusiva exploração da mais-valia absoluta PLANO DE TRABALHO: Exploração e produtividade dos trabalhadores do corte da cana Lucas Bezerra de Araújo Estudante bolsista PIBIC/CNPq Orientadora: Profª. Dra. Maria Augusta Tavares CCHLA/UFPB/DSS Relatório final do PIBIC/CNPq apresentado à Pró-Reitoria de Pós Graduação e Pesquisa referente aos trabalhos de pesquisa desenvolvidos no período de agosto de 2013 a agosto de 2014. João Pessoa Agosto/2014

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Relatório Final de Pesquisa (PIBIC/CNPq).

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Page 1: Exploração e produtividade dos cortadores de cana

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

RELATÓRIO FINAL

PROJETO: Os cortadores de cana e a abusiva exploração da mais-valia absoluta

PLANO DE TRABALHO:

Exploração e produtividade dos trabalhadores do corte da cana

Lucas Bezerra de Araújo Estudante bolsista PIBIC/CNPq

Orientadora: Profª. Dra. Maria Augusta Tavares

CCHLA/UFPB/DSS

Relatório final do PIBIC/CNPq apresentado à Pró-Reitoria de Pós Graduação e Pesquisa referente aos trabalhos de pesquisa desenvolvidos no período de agosto de 2013 a agosto de 2014.

João Pessoa Agosto/2014

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Os cortadores de cana e a abusiva exploração da mais-valia absoluta

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1. Introdução

O projeto de pesquisa Os cortadores de cana e a abusiva exploração da mais-valia absoluta – realizado a partir de financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) – inscreve-se num contexto adverso, no qual a subsunção real e formal do trabalho ao capital é uma regra na dinâmica societária. Hodiernamente, vivenciamos um processo de mundialização do capital (CHESNAIS, 1999), que na mesma proporção, mundializa também a questão social (IANNI, 1995). Nesse sentido, os rebatimentos dos ditames capitalistas ao mundo do trabalho merecem, também por parte da academia, uma atenção peculiar1.

No cenário em voga, verifica-se que a mais-valia relativa e a mais-valia absoluta2 articulam-se velozmente para dar curso à acumulação em escala ampliada. Para que isso ocorra sem embargos, o capital não dispensa nenhuma oportunidade de alavancar sua composição orgânica, elevando o capital constante em detrimento do capital variável, substituindo trabalho vivo por trabalho morto.

Acometidos por essas mutações no interior do desenvolvimento capitalista queremos, firmados no real, desvendar as determinações histórico-concretas que expressam a realidade de exploração do trabalho dos cortadores de cana – nosso objeto de estudo. A produção caniveira no Brasil, existente há mais de cinco séculos, convive intimamente com a maior entre as contradições do capitalismo: riqueza de um lado, miséria de outro.

Neste relatório final de pesquisa, colocamos em pauta a conflituosa relação entre capital e trabalho no universo canavieiro e suas refrações aos trabalhadores rurais assalariados. Esse contexto coincide com a emersão e consolidação de um novo padrão produtivo que tem intensificado a exploração, exacerbando a incontrolabilidade do capital (MÉSZAROS, 2002) por mais-dinheiro (D’), isto é, mais trabalho excedente e igualmente o aumento da exploração que conduz a humanidade a expressões cada vez mais bárbaras da “questão social”.

Em razão disso, a orientadora do projeto, Maria Augusta Tavares (2013), destaca que o objetivo da pesquisa é:

Adensar a historicidade e o exercício da crítica teórica, mediante o estudo da articulação da mais-valia absoluta à mais-valia relativa e a uma maior aproximação com as particularidades do capitalismo no Brasil, tendo em vista afirmar a capacidade que tem a teoria de fundamentar a análise da realidade e de contribuir com a superação da ordem instituída (TAVARES, 2013, p. 18).

Em conformidade com o referido objetivo, a exposição deste relatório consubstancia dois

momentos essenciais: a fundamentação teórica e as ações pertinentes ao plano de trabalho. No que tange aos fundamentos, apresentamos alguns aspectos particulares da formação social

brasileira, compreendendo-os como pré-requisitos centrais à apreensão da dinâmica do mundo agrário e, de maneira peculiar, do trabalho no corte da cana. Além disso, situamos nosso objeto de estudo a partir das determinações do tempo presente, oriundas da crise do capital que eclode nos anos 1970, anotando suas inflexões ao mundo do trabalho a partir das respostas do capital à sua própria crise – expressas, grosso modo, pela reestruturação produtiva e pelo neoliberalismo. Incitamos, ainda, o debate que relaciona “questão social” (cujas expressões informam o objeto do Serviço Social) e

                                                                                                                         1 Em meio ao recrudescimento conservador no meio acadêmico, sobremodo nas ciências sociais, protagonizado majoritariamente pela disseminação da retórica pós-moderna que nega a centralidade do trabalho (OFFE, 1989) e, por sua vez, a luta de classes, cabe demarcar uma posição que ‘rema na maré contrária’: “Antes de abandonar o marxismo como estão fazendo muitos por desinformação, perplexidade ou desinteresse, deve-se, primeiro, esgotar as possibilidades que esse pensamento nos oferece para desenvolver essa reflexão. Estou convencido de que o marxismo nos levará a um redescobrimento da classe operária e do seu papel, na atualidade, na tarefa de pensar e construir um mundo melhor” (MARINI, 2005). 2 “A mais-valia produzida pelo prolongamento da jornada de trabalho chamo de mais-valia absoluta; a mais valia que, ao contrário, decorre da redução do tempo de trabalho e da correspondente mudança da proporção entre os dois componentes da jornada de trabalho, chamo de mais-valia relativa” (MARX, 1988, p. 251).

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questão agrária, dado que ambas estão íntima e dialeticamente articuladas e, aliadas à história, explicam vastamente a realidade do trabalho rural na cadeia produtiva em que o corte da cana adquire sentido.

Já no que se refere aos aspectos mais específicos de nosso plano de trabalho, que traduzem a análise de dados, a discussão organiza-se assim: (a) síntese da relação entre o modelo de desenvolvimento agrário adotado pelo Estado brasileiro e a cadeia produtiva da cana-de-açúcar; (b) apresentação do processo de trabalho vigente na produção canavieira; (c) interlocução com os dados sobre a produtividade dos cortadores de cana e a adoção do salário por peça; (d) discussão em torno das condições de vida dos trabalhadores do corte.

O presente relatório consubstancia, portanto, os resultados da pesquisa, apresentando indicativos do trabalho bruto no canavial (SANT’ANA, 2012) na realidade agrária contemporânea. Para tanto, faremos referência direta às leituras por nós realizadas e aos dados secundários consultados, executados no período de vigência deste projeto, que possibilitaram as análises ora expostas.

1.1 Cronograma de Atividades Período: Agosto de 2013 a agosto de 2014

Meses 2013 2014

ATIVIDADES AGO SET OUT NOV DEZ JAN FEV MAR ABR MAI JUN JUL

Pesquisa bibliográfica para apreensão das categorias econômicas.

Pesquisa Bibliográfica dos clássicos da formação político-econômica do Brasil.

Relatório Parcial Pesquisa bibliográfica sobre o objeto específico

Reunião Orientadora (quinzenal)

Contatos com grupos de pesquisa afins

Elaboração de Artigo Elaboração de Pôster para Enc. Avaliação

Relatório Final

As atividades programadas para a pesquisa foram cumpridas de acordo com o planjeamento. A pesquisa bibliográfica foi realizada, bem como, a coleta e sistematização de dados secundários. Por razões de ordem objetiva, não conseguimos, durante a pesquisa, estabelecer contato com grupos de pesquisa afins. Contudo, participamos de eventos que envolvem nossa temática, permitindo a interlocução com outras universidades. Assim, a análise a propósito da relação entre exploração e produtividade do trabalho na atividade canavieira, apresentada neste relatório final, atesta o rigor e a curiosidade científica que nos moveram na busca pelo conhecimento desse objeto.

2. Metodologia

Referindo-se ao processo investigativo, o sociólogo brasileiro Florestan Fernandes afirmava, com frequência, que devemos saturar o objeto pensado com determinações concretas. Nessa perspectiva, nosso marco teórico situa-se na opção pelo materialismo histórico-dialético (a teoria social inaugurada por Marx e Engels). Tal escolha deve-se ao fato que, sob nosso prisma, é a

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perspectiva que mais fornece subsídios ao entendimento da realidade, permitindo atingir sucessivas aproximações ao real.

No seio da modernidade, a linha de análise fundada por Marx e Engels contrapõe-se, centralmente, à razão formal-abstrata (cuja máxima reside no positivismo) uma das duas grandes formas de perceber a realidade, engendradas pela razão moderna. A teoria social positivista propaga a naturalização da realidade, analisando os “fatos sociais” a partir do método desenvolvido pelas ciências naturais. Derivaram daí: a engenharia social, a matemática social, a física social, etc. (cf. COMTE,1996; DURKHEIM, 2007). No mais, põe como regra o distanciamento entre sujeito e objeto; e não sendo suficiente, sustenta que a “neutralidade” é fundamental ao processo de pesquisa. Já na razão dialética marxiana, a análise opera-se a partir de categorias como: totalidade, contradição, mediação e historicidade. Em Marx:

[...] a crítica do conhecimento acumulado consiste em trazer ao exame racional, tornando-os conscientes, os seus fundamentos, os seus condicionamentos e os seus limites – ao mesmo tempo em que se faz a verificação dos conteúdos desse conhecimento a partir dos processos históricos reais. É assim que ele trata a filosofia de Hegel, os economistas políticos ingleses (especialmente Smith e Ricardo) e os socialistas que o precederam (Owen, Fourier) (NETTO, 2011a, p. 04).

Diferentemente dos positivistas e dos que partilham da “sociologia compreensiva” de Weber,

Marx não se preocupou em escrever postulados sobre método. Diante disso, seu método de análise encontra-se no decurso de sua trajetória intelectual. Pode-se dizer que são raros os fragmentos de textos que o autor aponta, de modo sistemático, a sua direção analítica. Dentre essas poucas oportunidades, Marx destaca no prefácio à Introdução da crítica da Economia Política que:

Na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais aquelas até então se tinham movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas essas relações se transformam em seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social. Com a transformação da base econômica, toda a enorme superestrutura se transforma com maior ou menor rapidez (MARX, 1982, p. 25, grifos nossos).

Esse fragmento desbarata, por exemplo, os que acusam Marx de ser unifatorialista ou

determinista econômico. Para não ser prolixo, basta fazer referência à categoria da totalidade, frequentemente afirmada no seu percurso teórico-metodológico, na qual as múltiplas determinações conformam um todo complexo; e não fatos isolados, vistos a partir de si mesmo.

Outro aspecto decisivamente inovador no método inaugurado por Marx e Engels é a relação que se estabelece entre sujeito e objeto. Em concordância com Netto (2011a, p. 16) “esse método implica [...] uma determinada posição (perspectiva) do sujeito que pesquisa: aquela em que se põe o pesquisador para, na sua relação com o objeto, extrair dele as suas múltiplas determinações”. Portanto, não há um distanciamento entre o sujeito e o objeto. Ao contrário, conformam uma unidade dialética, estando intrinsecamente articuladas.

Inserida nessa base teórico-metodológica, fundada na crítica da economia política, esta pesquisa, de caráter bibliográfico e com suporte em dados secundários e na realidade – é claro -, possui como objeto de estudo a exploração do trabalho e extração da mais-valia absoluta no corte da

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cana, observando as condições de vida e trabalho presentes no espaço da agroindústria canavieira, no qual o antagonismo capital/trabalho encontra-se excessivamente próximo.

Durante a pesquisa, as atividades foram constituídas por: (a) reuniões presenciais, nas quais primeiramente ocorreu o levantamento bibliográfico e posteriormente, a leitura e o debate das obras relacionadas à temática da pesquisa; (b) consulta documental a fontes e dados censitários/estatísticos (a exemplo do IBGE, MAPA, EMBRAPA, DIEESE); e (c) procedimento de leitura individual das referências bibliográficas indicadas pelo projeto, combinando-os a fichamentos e elaboração de sínteses discutidas coletivamente.

As reuniões do grupo de pesquisa ocorreram semanalmente, entre bolsistas e colaboradores; e quinzenalmente, com a presença da professora orientadora. Organizamos, além disso, um calendário com atividades de leituras e debates para compreensão da temática com a qual trabalhamos.

Debruçamo-nos teoricamente sobre obras como o livro I d’O Capital de Karl Marx, o debate sobre Estado realizado pela tradição marxista, clássicos da realidade brasileira (Florestan Fernandes, Caio Prado Júnior, Octávio Ianni, Francisco de Oliveira, Carlos Nelson Coutinho...) e autores mais recentes que discutem a questão agrária e, especificamente, a realidade dos cortadores de cana, a exemplo de José Roberto Novaes, Francisco Alves, Marilda Villela Iamamoto e Raquel Santos Sant’Ana.

3. Apresentação de resultados e discussões

3.1 O Brasil entre o moderno e o arcaico: duas faces, uma só moeda.

O atual estágio do desenvolvimento capitalista, sob o compasso da mundialização, carrega profundas marcas do passado. Em escala planetária, o desenvolvimento do modo de produção em vigor não ocorreu de modo uniforme. A inegável habilidade da classe burguesa em tornar-se mundialmente dominante, na sua feroz sede por trabalho excedente, tem ignorado as particularidades da formação social de regiões e países, a exemplo do Brasil, cujo capitalismo tardio na busca por acumulação penaliza ainda mais o trabalho.

A apreensão dos traços particulares da formação histórico-social brasileira requer que se conheça a organização da produção, a conformação das classes sociais, a feição assumida pelo Estado e o caldo cultural e político disseminado pelas elites dominantes.

De modo preciso, referimo-nos ao ciclo do desenvolvimento desigual e combinado, que mescla características de períodos históricos diferenciados, ocasionando um descompasso temporal no âmbito das relações sociais de produção e reprodução3. Nos termos de Trotsky (1967, p. 25), essa tendência histórica “significa aproximação das diversas etapas, combinação das fases diferenciadas, amálgama das formas arcaicas com as modernas”.

No tempo presente, relações atrasadas – em sua ampla maioria, típicas de formações sociais pré-capitalistas, como é o caso do trabalho análogo à escravidão - persistem e são rapidamente refuncionalizadas à lógica da acumulação em escala ampliada.

O ‘moderno’ se constrói por meio do ‘arcaico’, recriando nossa herança histórica patrimonialista ao atualizar as marcas persistentes e, ao mesmo tempo, transformando-as no contexto de mundialização do capital sob a hegemonia financeira (IAMAMOTO, 2001, p. 101).

Assim, parece-nos indispensável assinalar, ainda que de modo breve, as determinações que permeiam tal universo para entender historicamente o espaço ocupado pela agroindústria canavieira na

                                                                                                                         3 A relação entre o desenvolvimento histórico desigual e a condição operária na produção agroindustrial canavieira constitui parte da vasta reflexão contida em Iamamoto (2001) – que, por sinal, é amplamente incorporada por nós durante a apresentação e discussão dos resultados. Tal objeto compõe a sua tese de doutorado, intitulada Trabalho e Indivíduo Social:   um estudo sobre a condição operária na agroindústria açucareira paulista, defendida em 2001 no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e publicada em livro pela editora Cortez no mesmo ano.

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economia brasileira e, por consequência, o processo de trabalho no corte da cana e seus desdobramentos nas condições de vida dos trabalhadores dessa cadeia produtiva.

As condições históricas da emergência burguesa no Brasil são categoricamente distintas das chamadas “burguesias conquistadoras”, àquelas que moldaram as relações sociais de produção e reprodução ao seu jeito a partir de um processo revolucionário. Segundo Florestan Fernandes (2006), a ‘Revolução Burguesa’ no Brasil não constitui um episódio histórico. Ao contrário, insurge nas entranhas da sociedade brasileira, forjando-se no plano estrutural de modo excessivamente subalterno.

Em consonância com essa análise, observemos rapidamente o que expoentes do pensamento marxista no Brasil - a exemplo de Jacob Gorender, Caio Prado Júnior, Octavio Ianni e Carlos Nelson Coutinho - analisam sobre esse processo. Para Gorender (1982), a revolução burguesa, entendida classicamente, “é uma categoria inaplicável à história do Brasil”. O que embasa tal assertiva é a caracterização do autor no que alude aos elementos constitutivos e sustentadores da “revolução burguesa”, reiterando que sua concretização é típica e restrita aos países cêntricos. Octavio Ianni (2004) sustenta que a burguesia no Brasil assume um papel completamente distinto do assumido pelas famigeradas “burguesias conquistadoras”, pois consolida o que há de mais atrasado nas relações sociais e, consequentemente, não assume um perfil revolucionário. Desta feita, Ianni (2004) conclui que o que acontece no Brasil é uma espécie de “contra-revolução burguesa”. Em convergência com essa análise, Carlos Nelson Coutinho explica que:

[...] as transformações políticas e a modernização econômico-social no Brasil foram sempre efetuadas no quadro de uma “via prussiana”, ou seja, através da conciliação entre frações das classes dominantes, de medidas aplicadas “de cima para baixo”, com a conservação essencial das relações de produção atrasadas (o latifúndio) e com a reprodução (ampliada) da dependência ao capitalismo internacional; essas transformações “pelo alto” tiveram como causa e efeito principais a permanente tentativa de marginalizar as massas populares não só da vida social em geral, mas sobretudo do processo de formação das grandes decisões políticas nacionais (COUTINHO apud MARANHÃO, 2009, p. 24).

No Brasil, os processos de participação popular e de base social foram historicamente

recusados em detrimento de “acordos pelo alto”, de decisões “de cima para baixo”, revelando o caráter autocrático do Estado burguês aqui emergido (MAZZEO, 1997). Desse modo, a burguesia consolidada no Brasil possui uma natureza fundamentalmente anti-nacional, anti-democrática e anti-social, como analisa Florestan Fernandes em seu clássico Revolução Burguesa no Brasil.

É possível afirmar que as elites dominantes no país sempre tentaram, a qualquer preço, dificultar a organização política das classes subalternas, inclusive no plano da formalidade e da legalidade. O “perfil burguês” do Brasil possui, assim, sérios problemas com princípios democráticos – entendidos, aqui, na condição de valores universais, como sustenta Coutinho (2007). Não à toa, o autoritarismo exacerbado funciona como recurso em determinados momentos históricos que, em geral, coincidem com momentos de ascenso nas lutas de massa.

Apesar do perfil dirigente, as classes subalternas não deixaram, em momento algum, de se organizar coletivamente. Vários são os exemplos de luta e resistência que escrevem a história dos povos indígenas, negros escravos, operários, camponeses, estudantes etc. Recorde-se, por exemplo, as experiências de Canudos, Cabanagem, Caldeirão, enfrentamento à Ditadura Militar, El Dorado dos Carajás, Diretas Já!...

Esse conjunto de particularidades permite entender melhor, a partir da história, o lugar que se insere o universo canavieiro e seus trabalhadores. Se, por um lado, o desenvolvimento das forças produtivas caminha a passos largos, por outro, o capital continua a se utilizar da combinação entre o moderno e o arcaico, entendidos aqui como duas faces de uma única moeda: a da acumulação - que na condição de lucros demonstra a razão de ser da classe burguesa. Nos dias atuais, não é diferente: o presente permanece lançando luz sobre o passado. É o que veremos adiante.

3.2 A propósito do tempo presente: mudanças na dinâmica da produção e o

mundo do trabalho

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Observar as transformações em curso no interior do modo de produção capitaneado pelo capital constitui interesse nosso, uma vez que expressam a movimentação burguesa a partir de seus anseios e os impactos que incidem sobre o mundo do trabalho e, logo, sobre as condições de vida da massa dos que vivem da venda de sua força de trabalho. Nesta seção, nosso objetivo consiste na construção de uma síntese que apresente as principais determinações estruturais e conjunturais que acometem o modo de produção capitalista a partir de meados dos anos 1970, traduzidas como marco inicial de uma crise sistêmica, cujo impulso à reorganização político-gerencial do capital é uma das principais marcas. Para ilustrar o percurso de nossa argumentação, concordamos com Mota (2009) ao sistematizar que há três aspectos indispensáveis a essa discussão, quais sejam: (a) os impactos no processo de acumulação; (b) as mudanças verificadas na gestão do trabalho; (c) e as implicações no modo de ser e viver da classe trabalhadora. Todavia, antes de partir para a análise dessas mutações, torna-se oportuna uma breve reflexão sobre a inerência da dinâmica de crises na ordem do capital e as dimensões da crise estrutural do capital, observando a crise do taylorismo-fordismo como expressão fenomênica dessa crise (ANTUNES, 2009).

O desenvolvimento sociohistórico do capitalismo é marcado por uma alternância entre períodos de prosperidade e de depressão. Para Netto e Braz (2011d), “a história, real e concreta, do desenvolvimento do capitalismo, (...) é a história de uma sucessão de crises econômicas” (p. 156), que se explicam e se esbarram nos limites próprios da organização social capitalista.

É inconteste que a dinâmica de crises esteve presente em outros modos de produção. Todavia, as crises no capitalismo expressam uma natureza fundamentalmente particular. A explicação para isso está no fato que: as crises nas sociedades pré-capitalistas evidenciavam essencialmente uma subprodução de valores de uso, decorrentes de acidentes naturais ou algumas catástrofes sociais (através de algumas guerras). Já no capitalismo, a movimentação é inversa: há uma superprodução de valores de uso, que caminha na trilha da contradição central desta sociabilidade: a produção é amplamente socializada e a distribuição é apropriada por uma minoria detentora dos meios de produção, gerando simultaneamente dois polos radicalmente opostos: riqueza de um lado e, de outro, o pauperismo (MARX, 1980).

Desse modo, a crise pode ser caracterizada como uma perturbação que reside no movimento em que a mercadoria não se converte em mais-dinheiro (D’), dificultando a reprodução ampliada do capital.

É fulcral assinalar, portanto, que “a crise não é acidente de percurso, não é aleatória, não é algo independente do movimento do capital. (...) a crise é constitutiva do capitalismo: não existiu, não existe e não existirá capitalismo sem crise” (NETTO; BRAZ, 2011d, p.157, grifos nossos).

A partir do acúmulo forjado pela tradição teórica advinda de Marx, pode-se inferir que há dois tipos de crises: cíclicas e sistêmicas/estruturais. As crises cíclicas4 são fenômenos recorrentes no curso deste modo de produção e compõem toda a história do capitalismo. Já as crises sistêmicas ou estruturais possuem uma dimensão superior, pois ocorrem em períodos mais longos, desestruturam e constroem, sob os seus escombros, uma nova fase, isso porque significam a exaustão de um período histórico de acumulação de capital.

No que se refere à essencial função das crises no capitalismo, Netto e Braz (2011) reafirmam o que já havia sido observado por Marx, apontando que e dinâmica de crises constitui os mecanismos mediantes os quais o modo de produção capitalista restaura, sempre em níveis mais complexos e instáveis, as condições necessárias à sua continuidade e, portanto, ao atendimento do motivo de sua existência: o lucro.

A propósito da crise contemporânea, Mészaros (2002) aponta que há, em sua estrutura, uma característica de incontrolabilidade, tendo em vista que:

o capital jamais se submeteu a controle adequado duradouro ou a uma autorrestrição racional. Ele só era compatível com ajustes limitados e, mesmo esses, apenas enquanto pudesse prosseguir sob uma ou outra forma, a dinâmica de auto expansão e o processo de acumulação (p. 100).

                                                                                                                         4 Amplamente discutidas por Ernest Mandel (1990).

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Dessa forma, a partir da crise que acomete o modo de produção capitalista particularmente nos países centrais, nos anos 19705, a “ditadura aberta do capital” é estimulada a reordenar suas estratégias político-gerenciais para conseguir obter as taxas de lucro existentes antes da crise em questão. Num esforço de síntese, Antunes (2009) aponta os traços que estão na base desse momento histórico, são eles: (a) queda da taxa de lucro; (b) esgotamento do padrão de acumulação taylorista-fordista; (c) hipertrofia da esfera financeira; (d) maior concentração e centralização de capitais; (e) crise do Welfare State; (f) incremento acentuado das privatizações. Em meio a esse contexto, o capital gesta novas formas de acumulação, cuja máxima reside no padrão toyotista, o chamado modelo japonês, cuja experiência não surge exatamente nos anos 1970, como pode parecer. Sua lógica de organização na empresa Toyota data os anos 1950. O que afirmamos, aqui, é que sua supremacia, iniciada nos anos 1970, está expressa na condição de resposta do capital à sua crise. Numa palavra, referimo-nos à reestruturação produtiva do capital, que incorpora esse padrão produtivo, impondo-o como universal. Na sua origem, o principal objetivo do padrão toyotista consistiu em tornar as empresas japonesas tão competitivas quanto as norte-americanas, “opondo-se” a “rigidez” do fordismo.

Dentre o conjunto de características da produção toyotista, destacamos: a organização da produção “flexível” (HARVEY, 1997); produção horizontalizada mediante subcontratações, acarretando consequências às relações trabalhistas; combate aos desperdícios; produção de acordo com as demandas; crescimento em consonância com o fluxo das mercadorias; redução de muitos modelos em séries reduzidas; instalação do just-in-time6 e do kanban7. Instaura-se, assim, a lógica do: zero atraso, zero estoque, zero defeitos, zero panes (GOUNET, 1999). Esta crise tem, de fato, proporções devastadoras que demonstram, inclusive, a atualidade do pensamento de Marx, na medida em que a lei do valor-trabalho se fortalece e adquire, dia após dia, maior vigência – estendendo-se até hoje.

3.3 Questão agrária: expressão da “questão social” no Brasil

Enquanto o pensamento liberal e a doutrina social da Igreja Católica entendem a “questão social” a partir da moralidade e do plano individual, na tradição advinda de Marx a “questão social” é apreendida sob o ponto de vista da totalidade: complexa, dinâmica e contraditória. Para entendê-la criticamente é necessário considerar a exploração do trabalho pelo capital e, além disso, as lutas sociais desempenhadas pela massa dos trabalhadores no transcurso da história.

José Paulo Netto (2011b), autor devidamente inscrito na tradição marxista, afirma que a “anatomia” da “questão social” reside na Lei Geral da Acumulação Capitalista, tendência histórica observada por Marx no capítulo XXIII d’O Capital. Em linhas gerais, concebemos a “questão social” como o conjunto das desigualdades que expressam como o capitalismo produz e distribui sua riqueza, e como essa contradição se insere na agenda política da classe trabalhadora. Portanto, para os que partilham do método crítico-dialético, a questão social deve ser apreendida em seu conjunto, inclusive nos ângulos da mediação e da contradição, conforme expõe Netto (2011a).

                                                                                                                         5 Para Harvey (1997), há um colapso no sistema a partir de 1917, iniciando-se um período de rápida mudança, de fluidez e de incerteza. Para o geógrafo, “há sempre o perigo de confundir as mudanças transitórias e efêmeras com as transformações de natureza mais fundamental da vida político-econômica. Mas os contrastes entre as práticas político-econômicas da atualidade e as do período de expansão do pós-guerra são suficientemente significativos para tornar a hipótese de uma passagem do fordismo para o que poderia ser chamado regime de acumulação “flexível” uma reveladora maneira de caracterizar a história recente” (HARVEY, 1997, p. 119). 6 Um dos principais pilares do sistema Toyota. No just-in-time, nada deve ser produzido, circulado ou consumido antes da hora prevista. É a lógica da produção de acordo com a demanda. 7 Outro importante elemento na organização toyotista. O kanban é uma espécie de luz ou cartão que indica as tarefas à serem executadas pelos trabalhadores. Sua sinalização oscila de acordo com percurso da tarefa: “à fazer”, “em andamento” ou “finalizada”.

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Neste sentido, Santos (2012) assegura que faz toda diferença pensar a questão social a partir da categoria formação social, de modo que se ampliam as possibilidades de atingir sucessivas aproximações ao real no debate da relação capital x trabalho no Brasil8.

O caráter dependente que estrutura a economia brasileira expressa em larga medida as particularidades da “questão social” aqui engendrada. O capitalismo tardio, a modernização conservadora, o truculento processo migratório no sentido campo-cidade, o padrão adotado para exploração da força de trabalho, a histórica flexibilidade e precaridade nas relações de trabalho9 exemplificam essa afirmação, desvendando-se como “nós de um mesmo cordão”.

Nas palavras de Sant’Ana (2012, p. 153), a questão agrária “expressa os diferentes conflitos decorrentes do uso da terra e/ou da relação capital/trabalho desencadeados ou aprofundados pelo modelo de desenvolvimento agrário vigente”.

Nessa direção, a contribuição de Prado Jr. (1979) é decisiva. Em concordância com esse autor, a “concentração da propriedade fundiária [...] caracteriza a economia agrária brasileira, bem como das demais circunstâncias econômicas, sociais e políticas [de modo que] a utilização da terra se faz predominantemente e de maneira acentuada, em benefício de uma reduzida minoria” (PRADO JR., 1979, p. 15). Isso evidencia que a propriedade de terras no Brasil é historicamente motivo de grande ambição das elites dominantes. A grande concentração de terras está diretamente presente na realidade nacional, arraigada na estrutura social e política.

A aliança Estado-empresa privada (IANNI, 1979) inscreve-se como garantidora dessa estrutura. Esse “casamento classista”, traduzido como projeto do capital para garantir sua hegemonia, ratifica-se no modelo de desenvolvimento agrário adotado pelo Estado brasileiro. A síntese da estrutura fundiária no Brasil é, nesse sentido, bastante ilustrativa:

TABELA 01

Síntese da Estrutura Fundiária no Brasil - 2003 Grupos de área total Nº de imóveis % Área em há % Área

média (ha) Pequena Menos de 200 ha 3.895.968 91,9 122.948.252 29,2 31,6 Média 200 a menos de

2000 há 310.158 7,3 164.765.509 39,2 531,2

Grande 2000 ha e mais 32.264 0,8 132.631.509 31,6 4.110,8 Total 4.238.421 100,0 420.345.382 100,0 99,2 Fonte: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) apud Oliveira e Stedile, 2004, p. 12.

Esses dados revelam, terminantemente, a inexistência de uma política de reforma agrária no

Brasil. Observemos, além disso, que apenas 0,8% dos imóveis ocupam 31,6% da área em hectares (ha). A grande propriedade nas mãos de poucos demonstra a intencionalidade e as diretrizes adotadas pelo Estado brasileiro; isso sem falar no quantum de propriedade rural improdutiva, não cumprindo a famigerada “função social” estabelecida pela Constituição Federal de 1988. Conforme dados do próprio INCRA, 120.436.202 hectares das grandes propriedades são improdutivos no Brasil (OLIVEIRA; STEDILE, 2004, p. 13).

Outro aspecto que merece destaque diz respeito ao seguinte: já que a “questão social”, analisada sob o ângulo da totalidade, também se preocupa em dar conta do processo que resulta nas lutas desempenhadas pelos trabalhadores em geral, vale lembrar que os conflitos de classe no campo

                                                                                                                         8 Santos (2012) faz esse debate a partir de marcos históricos do processo de industrialização: a “industrialização restringida” e as duas fases da “industrialização pesada”. “A ‘industrialização restringida’ foi um marco na gestação dos pilares sobre os quais se ergue o mercado e o regime de trabalho no Brasil” (idem, p. 135). Já a “industrialização pesada” caracteriza-se, segundo a autora, pela completude do processo do capitalismo retardatário brasileiro. Afinal, cabe lembrar que não participamos da primeira Revolução Industrial! A “industrialização pesada” (central, diante de seus impactos sobre a chamada ‘questão social’) dá um “ponta pé” para a organização de uma nova estrutura industrial, “com base nas indústrias mecânicas, de material elétrico e comunicações, de material de transporte, química e uma nova indústria metalúrgica” (idem, ibidem).  9 A propósito da tendência à precarização e informalidade nas relações de trabalho presente no capitalismo contemporâneo, Tavares (2004) desenvolve uma vasta pesquisa e reflexão.

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são objeto de uma desmedida repressão estatal e das empresas privadas através de seus legítimos representantes.

Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) relatam que as ocorrências de conflitos de terra cresceram de significativamente entre 2001 e 2010. No ano de 2001 registraram-se 625; em 2010, a quantidade de conflitos atingiu o quantitativo de 853. Já média dos assassinatos, foi de 38, com alta de 73 em 2003 e baixa de 26 em 2009 (CPT, 2011).

Sob tal espectro, a “demonização” do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)10 é emblemática. Desde sua fundação, em 1984, o MST enfrenta o latifúndio no Brasil e propõe a construção de um projeto de Reforma Agrária Popular. O movimento é constantemente perseguido pelos mais diversos mecanismos das elites dominantes, inclusive pela grande mídia. Um caso fatídico para recordar é o Massacre de El Dorado dos Carajás, ocorrido em 1996, culminando na intervenção propriedade privada através dos seus emissários, que assassinou 19 trabalhadores sem-terra (MST, 2011).

A propósito de como o capital, na fase da financeirização11, vem incidindo no contexto agrário brasileiro, Ianni (1999) diz que “o mundo agrário [...] está tecido e emaranhado pela atuação das empresas, corporações e conglomerados agroindustriais” (p. 37). Os impactos atingem as esferas social, ambiental, cultural e econômica. O investimento gigantesco no agronegócio acompanhado do incentivo a modernização, a falácia dos agrocombustíveis e a expansão dos monocultivos reduzindo a biodiversidade tornam-se enfáticas nesse cenário de consolidação cada vez mais efetiva da “grande agricultura”.

Ocorre, assim, uma “integração” do mundo agrário à dinâmica da sociedade urbano-industrial (IANNI, 1995, p. 50), ora nas estruturas de dominação, ora nas de apropriação. De acordo com Lefebvre (1983), prolifera-se o tecido urbano, estendendo-se largamente, “consumindo os resíduos da vida agrária” (p. 10).

Perante essa situação, os trabalhadores rurais se encontram majoritariamente em situação de “vulnerabilidade social”, constituindo o grande público usuário da política de assistência social12. Sitcovsky (2009), a partir de dados do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, mostra que 1.684.290 trabalhadores rurais no Brasil são beneficiários do Programa Bolsa Família (PBF), o equivalente a 15% dos atendidos, por área de ocupação. Qualquer semelhança não é mera coincidência com a histórica relação entre fome e produtividade do trabalho no país.

Esses elementos nos remetem diretamente as interfaces entre questão agrária e a “questão social”, sendo a última, razão de existência do Serviço Social. Sant’Ana (2012) afirma que “a relação entre questão agrária e social não é algo que a profissão tenha conseguido produzir grandes acúmulos teóricos, e isto está expresso na forma restrita como a questão agrária é entendida nos congressos da categoria” (p. 151). Assim, infere-se que, malgrado expressivos avanços ídeo-políticos e teórico-metodológicos do Serviço Social brasileiro, há dificuldades no que tange às necessárias mediações                                                                                                                          10 “O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é um movimento socioterritorial que reúne em sua base diferentes categorias de camponeses pobres – como parceiros, meeiros, posseiros, minifundiários e trabalhadores assalariados chamados de sem-terra – e também diversos lutadores sociais para desenvolver as lutas pela terra, pela Reforma Agrária e por mudanças na agricultura brasileira” (DICIONÀRIO DE EDUCAÇÂO DO CAMPO, p. 497). 11 Acerca do atual momento do capitalismo, marcado pela privatização das conquistas sociais, Bihr e Chesnais (2003, p. 03) apontam que “o capital financeiro multiplica as pressões para se apoderar das formas socializadas da relação salarial: os vários sistemas de proteção social edificados durante décadas. Por exemplo, a transformação dos regimes de aposentadoria por distribuição em benefício dos fundos de pensão ou os incentivos fiscais para desenvolver fórmulas individuais de economia salarial. Os seguros privados, cuja máxima é “a cada um de acordo com seus meios (de contribuição)”, buscam apropriar-se de parte da riqueza social, produto do trabalho, até o presente mais ou menos redistribuído sob a forma de fundos públicos ou sociais”. 12 “Constitui o público usuário da política de Assistência Social, cidadãos e grupos que se encontram em situações de vulnerabilidade e riscos, tais como: famílias e indivíduos com perda ou fragilidade de vínculos de afetividade, pertencimento e sociabilidade; ciclos de vida; identidades estigmatizadas em termos étnicos, cultural e sexual; desvantagem pessoal resultante de deficiências; exclusão pela pobreza e, ou, no acesso às demais políticas públicas; uso de substâncias psicoativas; diferentes formas de violência advinda do núcleo familiar, grupos e indivíduos; inserção precária ou não inserção no mercado de trabalho formal e informal; estratégias e alternativas diferenciadas de sobrevivência que podem representar risco pessoal e social” (BRASIL, 2004, p. 27).

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entre questão agrária e “questão social”. Mais que isso: há limitações no entendimento da questão agrária como manifestação particular da “questão social” no Brasil e, por sua vez, do embate de classes, uma vez que a intervenção do capitalismo na agricultura é deliberadamente agressiva. Assim, está posto aos assistentes sociais brasileiros o desafio de aprofundar cada vez mais a investigação do conjunto de contradições presentes no campo. Dessa forma, as possibilidades estarão abertas para compreender mais amplamente as múltiplas determinações que acometem a unidade contraditória campo-cidade no Brasil.

Nota-se, explicitamente, que a questão agrária é ponto central na estrutura de classes no Brasil. A forma como tal questão se expressa na dinâmica societária contemporânea merece uma necessária articulação ao debate da “questão social”. Na verdade, ambas são inseparáveis; diretamente interligadas e articuladas dialeticamente sob a égide do modo de produção capitalista. Assim, assinala-se que a preocupação particular com a questão agrária relacionada umbilicalmente à “questão social” se expressa na necessidade histórica de superação desse modo de produção (des)ordenado pelo capital que “jamais se submeteu a controle adequado duradouro ou a uma autorrestrição racional” (MÈSZAROS, 2002, p. 100). Por fim, parece-nos que o dilema “socialismo ou barbárie?”, já levantado por Rosa Luxemburgo no século XX, permanece mais atual do que nunca.

3.4 Desenvolvimento agrário “à brasileira” e a cadeia produtiva da cana-de-

açúcar

A concentração de terras é constitutiva da realidade brasileira desde o processo de colonização

que originou a apropriação da terra dividida em grandes lotes. Isso, combinado ao trabalho escravo, conforma o que Gorender (2010) denomina de escravismo colonial - sustentado via coerção e propriedade latifundiária.

Contudo, dialeticamente, esta realidade não é aceita passivamente ou sem a criação de mecanismos de resistência por parte de alguns setores. Basta observar, por exemplo, que a luta pela terra e por reforma agrária aparece de modo insistente na programática política dos segmentos organizativos da classe trabalhadora.

Trata-se, desse modo, da forma como a contradição capital x trabalho finca suas raízes na realidade agrária e de como a questão agrária se apresenta enquanto particularidade da “questão social”. Nas palavras de Sant’Ana (2012, p. 153), a questão agrária “expressa os diferentes conflitos decorrentes do uso da terra e/ou da relação capital/trabalho desencadeados ou aprofundados pelo modelo de desenvolvimento agrário vigente”.

Nessa direção, a contribuição de Caio Prado Jr. (1979) é decisiva para elucidar o fenômeno supramencionado. De acordo com esse autor:

[a] concentração da propriedade fundiária [...] caracteriza a economia agrária brasileira, bem como das demais circunstâncias econômicas, sociais e políticas [de modo que] a utilização da terra se faz predominantemente e de maneira acentuada, em benefício de uma reduzida minoria (PRADO JR., 1979, p. 15).

Dessa forma, percebe-se a centralidade que a questão agrária assume na configuração do desenvolvimento desigual e combinado que conforma a condição de dependência/heteronomia estabelecida aos países periféricos13.

No que tange especificamente à produção da cana-de-açúcar no Brasil, tal atividade é tradicional e, portanto, nada recente. Presente no território brasileiro desde o século XVI, a produção canavieira compõe a realidade nacional, demarcando desde sua gênese a conflituosa e antagônica relação entre capital e trabalho. Nesta direção, é indispensável situar a histórica aliança entre o setor

                                                                                                                         13 Vale assegurar que, mediada por essas características e, portanto, pela perspectiva teórica que orienta este texto, a questão agrária está intrínseca à chamada questão urbana.

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canavieiro e o Estado brasileiro, que ocorre permanentemente numa “perfeita” sintonia, cuja finalidade reside na obtenção do lucro.

O “casamento” entre usineiros e Estado não está deslocado das particularidades do desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Ao contrário, é justamente a compreensão histórica de nossa formação social que possibilita identificar as raízes e o desenvolvimento de um modelo agrário pactuado entre os setores dominantes, por intermédio do Estado burguês. Portanto, as condições não-clássicas do triunfo burguês nos marcos da dependência perpassam, essencialmente, pelo processo de modernização conservadora (FERNANDES, 2004), pela economia de exportação, pelos “acordos pelo alto” e pela aversão à participação popular (IANNI, 1994; OLIVEIRA, 1977), como apresentado na primeira seção. Analisar historicamente o desenvolvimento da produção de cana entre nós, as transformações no mercado do açúcar e seus reflexos na economia brasileira é ponto nodal ao entendimento do modelo de desenvolvimento agrário moldado pelas elites dominantes.

O início dos anos 1960 é, nesta direção, palco de importantes mutações no mercado mundial do açúcar. Prova disso, são os rebatimentos da Revolução Cubana (1959) à produção de açúcar no Nordeste brasileiro, sob o comando dos Estados Unidos. Isso significa que, com o embargo econômico à Cuba, em 1961, o mercado norteamericano realocou sua “ilha” produtora de açúcar. Desta feita, o direcionamento da produção nordestina destinava-se ao mercado externo, suprindo os interesses do mercado norteamericano, pela via da ampliação das exportações. Sob esse contexto histórico, na acelerada dinâmica mundial da luta de classes, os camponeses demonstraram potencial organizativo através das Ligas Camponesas14, que demonstraram um salto político na organização dos trabalhadores do campo. Já os representantes do capital (mais precisamente, os usineiros), mostraram-se cautelosos entre o período de 1962-196415. Nesse momento, a conjuntura brasileira encontrava-se agitada e os rumos do país incertos. A proposta das Reformas de Base, apresentada pelo conjunto dos movimentos sociais e forças populares ao governo de João Goulart (Jango) assustou a burguesia brasileira que, costumeiramente, nunca perdeu privilégios e detesta ter suas regalias atenuadas16. Tal processo de ascensão das lutas sociais gestou o “medo burguês” que resultou no famigerado Golpe Militar de 1964, marco fundante da forma aberta da autocracia burguesa (NETTO, 2011c).

Nesse período, o comportamento dos preços do açúcar é a principal pauta discutida pelo setor industrial desse ramo. Em 1967,

se estreia um “novo ciclo estimulado pelas despesas governamentais, pela utilização da capacidade instalada e por investimentos na indústria de bens de capital. Na indústria açucareira, a preocupação com a expansão transcende a mera expansão da área cultivada” (JATOBÁ et alli, 1985, p. 57).

A política de fusão e relocalização das usinas é uma comprovação prática dessa asserção,

visando, fundamentalmente, “expandir a capacidade instalada das usinas, acreditando-se que uma fábrica com capacidade inferior a 500.000 sacas não seria econômica” (Op. Cit. p. 59). Não obstante, a referida política não só expandiu a capacidade total da produção como modificou a economia de muitas microrregiões nordestinas.

Os anos 1970 também trazem à tona novas determinações. Na primeira metade dessa década, os preços do petróleo estavam em alta, apresentando implicações aos países majoritariamente importadores. Em 1975, no governo de Ernesto Geisel, registra-se um marco na história do modelo de

                                                                                                                         14 Conforme o Memorial das Ligas Camponesas, as “Ligas Camponesas foram associações de trabalhadores rurais criadas inicialmente no estado de Pernambuco, posteriormente na Paraíba, no estado do Rio.de Janeiro, Goiás e em outras regiões do Brasil, que exerceram intensa atividade no período que se estendeu de 1955 até a queda de João Goulart em 1964” (Disponível em <http://www.ligascamponesas.org.br/?page_id=99>. Acesso em 07 mai. 2014). 15 Os baixos preços postos pelo mercado externo traduzem, em certa medida, essa desconfiança (JATOBÁ et alli, 1985). Além disso, o controle inflacionário e a correção de preços dos serviços das empresas governamentais também marcam esse ciclo. 16 Nesse contexto, é indispensável pontuar o Estatuto da Terra, lançado pelo governo de Goulart. Tal documento previa a realização da reforma agrária somado à modernização da agricultura.

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desenvolvimento agrário brasileiro: a instituição do Programa Nacional do Álcool (PROÁLCOOL), apresentado pelo governo federal como uma opção energética adequada para o país. Em verdade, ao contrário do que foi propalado pelo Governo Geisel, a criação de tal programa materializou - pela via do financiamento, do fornecimento direto de créditos - a aliança do Estado brasileiro com os grandes empresários da indústria do açúcar e do álcool17. E é justamente o PROÁLCOOL o grande impulsionador da abusiva expansão do monocultivo da cana-de-açúcar no Brasil. Sant’Ana (2012, p. 23) diz que “o Pró-Álcool viabilizou o processo de modernização do setor canavieiro sem destruir as bases latifundiárias da estrutura agrária brasileira”.   Em âmbito mundial, esse processo também é reflexo da chamada “revolução verde”, que dissemina novas técnicas na produção agrícola – a tão propalada “modernização da agricultura”.

Além disso, o alargamento da produtividade da cana e uma consequente contração na produção alimentícia são “função e causa de transformações nas relações de trabalho vigentes” (ibid, p. 64). O uso do trator, a força de trabalho migrante do Agreste e o fluxo sazonal dos trabalhadores assinalam implicações ao trabalho do corte da cana: “cresce o número de trabalhadores clandestinos, os despossuídos moradores de ponta de rua” (id, ibid).

Se tomados como base os dados censitários registrados à época, pode-se inferir que a permuta da mão-de-obra de moradores (a chamada produção familiar) para a mão-de-obra dos “trabalhadores clandestinos” é limitada. Contribuem para isso: (a) deficiências de coleta, como a variação da data do Censo em relação ao calendário de produção; (b) imprecisão na conceituação das categorias de trabalhadores rurais18 (JATOBÁ et all, 1985).

No trânsito entre os anos 1960 e 1970, a população rural brasileira decresce consideravelmente, expressando-se materialmente na forçada migração constatada no sentido campo-cidade. Verifica-se, nesse recorte temporal, um aumento desmedido da população em situação de rua19. Todavia, a população rural especificamente do sistema canavieiro manteve-se relativamente constante.

O trânsito entre os anos 1970 e os anos 1980 é de grande importância à organização dos trabalhadores do campo. Data-se, desse período, a fundação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do ressurgimento da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG). Em meio à crise do regime militar, o movimento camponês organizado a partir de pautas unitárias, engrossa as fileiras da luta social no bojo do processo de redemocratização nacional. Quanto às movimentações das elites dominantes, no ingresso da década de 1980, as portas do Brasil já estavam inteiramente abertas ao capital estrangeiro. No plano da intervenção política, a União Democrática Ruralista (UDR), fundada em 1985, funciona como principal representante dos anseios dos latifundiários, com considerável peso institucional e legislativo/parlamentar, até hoje - vale frisar.

Com o término da Ditadura, embora as eleições tenham ocorrido pelo Colégio Eleitoral (sendo, portanto, indiretas), a reforma agrária retorna, em alguma medida, à agenda política de governo. Em 1985, no governo de José Sarney, é lançado o 1º Plano Nacional de Reforma Agrária - uma proposta ambígua, controversa e que praticamente não se materializou20.

Em 1988 é aprovada a nova Constituição Federal (CF/1988), fruto de um processo político-cultural de polarização de interesses antagônicos. Evidentemente, a Constituição acarreta implicações novas à sociedade brasileira advindas do embate entre as classes, o que explica seu conteúdo contraditório21. Na síntese de Sant’Ana (2012, p. 26), o que sucede são “algumas conquistas dos trabalhadores e muitas do capital”.                                                                                                                          17 De um lado, o Estado brasileiro prepara, num ritmo acelerado, o terreno para a monopolização da economia brasileira. De outro, inúmeras mortes e torturas marcam o quadro da desmedida e absurda repressão à militância de esquerda. 18 A imprecisão do Censo é também justificada pelas múltiplas ocupações de trabalhadores e, de igual maneira, pela inconstância das relações de trabalho: ora no urbano, ora no rural; ora empregado, ora desempregado. Nos termos de Marx (1988) refere-se a uma superpopulação relativamente supérflua, sendo nesse caso, flutuante. 19 Um exemplo real/concreto das interfaces entre questão urbana e questão agrária. 20 “A partir de uma ampla mobilização das classes dominantes, o 1º Plano Nacional de Reforma Agrária quase não saiu do papel, pois, ao final do mandato de Sarney em 1989, apenas 83.687 famílias (cerca de 1%) haviam sido assentadas” (SANT’ANA, 2012, p. 26). 21 A CF/1988 estabelece, por exemplo, a função social da terra, prevista no artigo 186.

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Nos anos 1990, a diretriz neoliberal - que segue os preceitos da cartilha do Consenso de Washigton e do Fundo Monetário Internacional (FMI) - já está incorporada pelo Estado brasileiro. A minimização do Estado para o trabalho e maximização para o capital dá um tom cada vez mais liberalizante de continuidade do modelo de desenvolvimento agrário, pautado, a partir de então, pelo agronegócio. Sob a égide desse modelo socioeconômico, o Estado facilita ainda mais o ingresso do capital estrangeiro (a exemplo das empresas tecnologicamente mais avançadas), dando completude a um ciclo já iniciado há algum tempo. O jornal Folha de São Paulo, orgânico da classe burguesa, revela que no ano de 1995, no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), a previsão de financiamento do Governo junto aos usineiros foi de 200 milhões de dólares. Ainda nessa década, registra-se altíssima inflação. Somado a isso, os lucros oriundos de petróleo estavam em baixa, o que ocasionou a desativação do Instituto de Açúcar e do Álcool (IAA) existente desde 1933, tornando insustentável a manutenção do PROÁLCOOL (SANT’ANA, 2012).

A pesquisa de Delgado e Sant’Ana (2011) conclui que no período de 1983-2003, o Estado brasileiro alterna entre uma política externa destinada à produção de superávit primário e uma política mais liberalizada com frouxa regulamentação das atividades produtivas.

Nos anos 2000, entra em cena a falácia dos agrocombustíveis (SANT’ANA, 2012). Sob a direção do capital financeiro, nota-se no Governo FHC rebatimentos profundamente negativos à classe trabalhadora. Os altíssimos índices de desemprego entram na ordem do dia, agravando as expressões da “questão social” e dificultando objetivamente os instrumentos de luta e organização dos trabalhadores. Nos termos de Sant’Ana (2012), os mandatos de FHC provocaram uma “satanização” dos movimentos sociais e populares, com um destaque particular ao MST, que durante esse período obscuro travou lutas impetuosamente resistentes. O governo FHC promove, ainda, o lançamento do Programa Novo Mundo Rural, gerido por representantes do agronegócio que firmam seus pés no processo de modernização “à brasileira” da grande agricultura, isto é, a agricultura da e para as elites.

Em 2003, toma posse Luís Inácio Lula da Silva (Lula)22, a partir de uma coalizão entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e frações do empresariado brasileiro. Essa “confluência de interesses” se traduz, apesar de algumas determinações novas, em continuidade à diretriz econômica anterior, a qual se opunha anteriormente. Certamente, o velho ditado “deu os anéis para não perder os dedos” exemplifica bem essa caracterização mensurada, neste espaço, em termos genéricos, dada sua complexidade23.

Em 2004, o Governo Lula lança, através do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o 2º Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) (cf. BRASIL, 2004). Com objetivos tímidos, as metas não ultrapassaram 42% (SANT’ANA, 2012). A previsão do 2º PNRA era assentar 900 mil famílias, mas apenas cerca 381.000 foram assentadas. No mais, o tão comentado (e atualíssimo) Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que perdura até o Governo Dilma, tem firmado um investimento bilionário como subsídio ao setor canavicultor (idem, ibidem).

Destarte, o que se verifica na realidade é a inexistência de mudanças efetivas na estrutura agrária brasileira, ao passo em que a pauta política da Reforma Agrária distancia-se cada vez mais da agenda governamental. Dados do INCRA (2003) mostram que 120.436.202 hectares de terra das grandes propriedades são declaradamente improdutivos. Esse cenário aponta, numa proporção devida, a necessidade de pressão constante por parte dos movimentos sociais comprometidos com os interesses dos trabalhadores, sobremodo, dos movimentos sociais do campo, que possuem na Via Campesina a principal referência de articulação política e unidade nas lutas.

                                                                                                                         22 Lula, fundador e dirigente do PT, é fruto das lutas travadas nos anos 1980. Nesse período, se destacou no meio sindical, expressando os interesses da classe trabalhadora em diversos momentos de embate. Entretanto, ao eleger a meta-síntese “Lula lá!” como prioritária, distancia-se das lutas populares e das pautas democráticas, em detrimento de uma aliança com frações dominantes, mais vinculadas ao capital produtivo. Apesar do imenso apoio das camadas populares, sustenta-se num acordo essencialmente conservador. 23 Dentre a heterogênea produção de importantes pesquisadores que vem se dedicando ao estudo do PT e do seu governo, destacamos: SECCO, L. . História do PT. 2. ed. São Paulo: Ateliê, 2011.; SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.; IASI, Mauro Luis . As metamorfoses da concência de classe: o PT entre a negação e o consentimento. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006.

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Apesar das políticas compensatórias e de transferência de renda do Governo Federal (em especial, o Programa Bolsa Família), que possuem importância em meio à barbárie, o que se percebe, ainda hoje, é a presença exorbitante da pobreza absoluta e relativa no campo, em contraste com os superlucros obtidos pelos representantes da grande agricultura, que tem sido cada vez mais beneficiados pelo executivo federal.

Os oligopólios, o agronegócio, as fusões e a entrada das multinacionais expressam a hegemonia do capital financeiro e o pacto de atendimento do Estado brasileiro às demandas do capital nacional e internacional. Em suma, nos referimos aos mecanismos utilizados pelo sistema de metabolismos do capital (MÉSZAROS, 2002) para ampliar a acumulação, através da exploração do trabalho. O complexo agroindustrial canavieiro se inclui nesse cenário.

3.5 O processo de trabalho

“O capital é trabalho morto, que apenas se reanima, à maneira dos vampiros, chupando trabalho vivo e que vive tanto mais

quanto mais trabalho vivo chupa”. (Marx)

Sob o prisma marxiano, o processo de trabalho é inerente à atividade criativa, que pertence exclusivamente ao mundo dos homens, comum a todas as formas de sociabilidade. Compreende, assim, o conjunto das condições materiais necessárias à produção de valores de uso. Inclui-se aí: a energia humana despendida, os instrumentos e as ferramentas de trabalho, a terra, matéria-prima etc. Segundo Marx (1983, p. 150), “os elementos simples do processo de trabalho são a atividade orientada a um fim ou o trabalho mesmo, seu objeto e seus meios”. A totalidade de tais elementos conforma o que se denomina por forças produtivas.

As determinações histórico-concretas que particularizam a sociabilidade capitalista imprimem uma feição diferenciada ao processo de trabalho. Sob o comando da lógica da mercadoria, o processo de trabalho é parte substancial do consumo da força de trabalho pelo capitalista: por um lado, porque “o trabalhador trabalha sob o controle do capitalista a quem pertence seu trabalho” (MARX, 1983, p. 154) e, por outro, porque “o produto é propriedade do capitalista, e não do produtor direto” (Id., 1983, p. 154). Assim, caracterizar o processo de trabalho é condição necessária ao entendimento da complexa teia de relações sociais de produção e reprodução que constitui a exploração do trabalho nos canaviais. Interessa-nos saber, aqui: como se processa o corte manual; se há uma organização sistemática do processo produtivo; se existem mutações no corte da cana em decorrência da última reestruturação produtiva do capital; a média da jornada de trabalho etc24. Porém, é preciso caracterizar, antecipadamente, o espaço da usina, percebido como central na dinâmica dos canaviais. Na história da produção de cana-de-açúcar no Brasil, a “modernização” do processo produtivo envolve o percurso que vai do engenho à usina. As usinas surgem no final do século XIX, como proposta do então Imperador Dom Pedro II, e consistia no seguinte: instalar engenhos centrais (posteriormente denominados de usina) para a centralização industrial. Tal proposição, que é de 1876, precede a oficialização jurídica da propriedade privada e a afamada abolição da escravatura (IAMAMOTO, 2001). Em A classe operária vai ao campo, Octávio Ianni (1976) descreve, com rigor analítico, que a usina é:

(...) uma fábrica fora do lugar, da cidade, no campo; (...) inserida no processo de reprodução do capital agrário. Na usina, capital agrário e industrial aparecem conjugados, subsumidos um ao outro. (...) Na usina, a cana-de-açúcar é industrializada, transformada em açúcares e álcoois, seguindo as exigências e a

                                                                                                                         24 Poderíamos explorar, ainda, elementos com a inserção da maquinaria e suas inflexões ao processo de trabalho. Todavia, tal debate é feito, de modo estrito, pelo plano de trabalho dedicado ao estudo da mecanização no corte da cana-de-açúcar, pela nossa colega Laila Alvarenga, sob a mesma cordenação.

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lógica da produção industrial (...). Na usina, a força de trabalho e a divisão social do trabalho organizam-se produtivamente, segundo os movimentos e os andamentos do capital industrial. Pouco a pouco as exigências da usina se esclarecem e se impõem nos canaviais, sobre os fazendeiros, os plantadores e os operários rurais (...). Ao desenvolver-se no campo, a usina incute no verde dos canaviais uma vibração e uma aspereza que nada têm a ver com a doçura da cana-de-açúcar (IANNI, 1976: 36-37).

Apreende-se, desse modo, como a lógica industrial finca suas raízes no espaço agrário: via

assalariamento da força de trabalho e apropriação privada da totalidade do processo produtivo. No universo canavieiro, o que impera é a produção de mais-valia no bojo da dinâmica de produção e reprodução do capital industrial, que na mesma proporção propicia a valorização da propriedade fundiária25.

Dito isso, voltemos às nossas pretensões iniciais. O processo de trabalho nos canaviais está inteiramente sintonizado, obviamente, à

subordinação da agricultura à lógica do capital. O labor no corte da cana, na globalidade que compreende o processo de trabalho, faz parte da chamada “tarefa pesada”, no sentido árduo da expressão. De acordo com os trabalhadores, trata-se de um “serviço bruto” (SANT’ANA, 2012), que possui na exaustão uma marca central. Nas duas últimas décadas há notáveis mudanças no universo da produção canavieira, dentre as quais se destacam: o desenvolvimento científico e tecnológico, os embates de classe e as formas mais recentes de gestão do trabalho, com base nas determinações da última reestruturação produtiva do capital, a que aludimos anteriormente. No que se refere aos avanços tecnológicos, há um grande peso de investimento estatal e privado. Na esfera do Estado, destacam-se os centros de pesquisas nas Universidades públicas que, com o financiamento de órgão de fomento, têm se dedicado ao avanço de tecnologias para a produção de açúcar e álcool, conforme demonstra Francisco de Oliveira (2007).

Apesar de tais mutações, no que tange ao trabalho nessa cadeia produtiva, permanecem como tendências: (a) longas jornadas de trabalho; (b) e a máxima intensificação do trabalho, com o estímulo do salário por peça (IAMAMOTO, 2001). A conjunção entre ambas não é um acidente de trajeto; ao inverso, explica-se na e pela história. Há uma relação de unidade entre as duas tendências, na proporção direta em que, na dinâmica contemporânea do capitalismo monopolista, aprofunda-se a combinação entre a mais-valia absoluta e a mais-valia relativa para ampliar a acumulação – inclusive, em conjunturas de crise. Noutras palavras, o usineiro unifica, em um mesmo processo de trabalho, o prolongamento da jornada de trabalho e a máxima redução do trabalho socialmente necessário. O trabalhador dedica, dessa maneira, a maior parte de seu tempo e de sua vida a um tempo que não lhe pertence (MARX, 1983). Se aludido à história da organização do trabalho nos marcos do capitalismo, podemos conceber em termos de fordismo e toyotismo como um somatório: “rigidez” e “flexibilização” a um só tempo26.

Observando o movimento da realidade canavieira, verifica-se que: O processo de trabalho no corte de cana na década de 1980 consistia em cortar retângulos com 6 metros de largura, em 5 ruas (linhas em que são plantadas a cana), por um comprimento que variava por trabalhador, que era determinado pelo que ele conseguia cortar em um dia de trabalho. Este retângulo é chamado pelos trabalhadores de eito, e seu comprimento varia de trabalhador para trabalhador, pois depende do ritmo de trabalho e da resistência física de cada um. A partir desta explicação, percebe-se que é possível medir o que o trabalhador produziu em um dia de trabalho de duas formas distintas: pelo comprimento do eito, ou pela quantidade de cana cortada. Se a opção for pelo comprimento, a medida do que ele produziu é o metro linear, ou o metro quadrado, caso a opção seja pela quantidade de cana cortada no eito, só é possível medir o trabalho pesando-se a cana cortada (ALVES, 2006, p. 92, grifos nossos).

                                                                                                                         25 Sob o viés da crítica da economia política, a complexa relação entre capital industrial e renda capitalizada na agroindústria canavieira é largamente discutida por Iamamoto (2001). 26 A “flexibilidade” se expressa, sobremodo, na fragilidade dos contratos trabalhistas (os chamados “contratos por safra”) e na demarcação dos planos salariais.

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O capitalista, no auge de sua “esperteza”, prefere que o processo de trabalho seja encaminhando pelo comprimento do eito, visto que, nessa alternativa, os cortadores de cana não conseguem mensurar sua produção diária, dado que a balança que verifica a quantidade da produção encontra-se na usina e que os cortadores dificilmente teriam acesso.

Analisando o processo de trabalho na agroindústria canavieira, Iamamoto (2001) afirma que há traços, no âmbito da organização, característicos da divisão manufatureira do trabalho. Embora a lógica produtiva esteja subjugada ao uso da ciência (incluindo a maquinaria), no corte de cana, o trabalhador coletivo é o próprio organismo vivo do trabalho, com a utilização de suas ferramentas. E, além disso, há nos canaviais funcionários fiscalizadores que representam a autoridade e o comando no âmbito da produção, com vistas a assegurar o ritmo de trabalho social médio.

A organização do trabalho no corte manual ocorre por meio de turmas de trabalhadores que operam de modo simultâneo, em observância com os lotes de cana, que são divididos por estradas. O corte é feito rente ao solo, com retirada das folhas verdes do topo para, em seguida, empilhar os talos. Há, neste sentido, duas normas estabelecidas aos trabalhadores que chamam nossa atenção: (1) o corte deve ser cuidadoso, feito no ponto natural de quebra; assim, não devem ficar pedaços (restos da ponta) de cana no solo, pois é exatamente aí que reside a sacarose tão estimada pelos usineiros; (2) a resistência física dos cortadores é objeto de supervisão direta e permanente de um funcionário da usina, diante de uma “atividade repetitiva, extenuante, realizada a céu aberto sob o sol, na presença da fuligem e poeira num período de trabalho que varia de 8 a 12 horas/dia” (LIMA, 2013, p. 104). Em termos numéricos:

O cortador de cana pode ser comparado a um atleta corredor fundista, de longas distâncias [...] Um trabalhador que corte 6 toneladas de cana, em um eito de 200 metros de comprimento por 6 metros de largura, caminha durante o dia uma distância de aproximadamente 4.400 metros e despende aproximadamente 20 golpes com o podão para cortar um feixe de cana, o que equivale a 66.666 golpes por dia [...] Além de andar e golpear a cana, o trabalhador tem de, a cada 30cm, abaixar-se e torcer-se para abraçar e golpear a cana bem rente ao solo e levantar-se para golpeá-la em cima (ALVES, 2006, p. 95).

Não há, assim, limite legal da exploração. Apesar das denúncias de morte por exaustão, a

usinagem do capital permanece burlando a “legalidade” que se materializa, tão somente, no plano formal e abstrato. No real e concreto, constata-se o abusivo, o desmesurado, o inescrupuloso, o desumano, o “ilegal”. As jornadas prolongadas são acrescidas à negação do descanso semanal, à violação do ritmo biológico, à troca do dia pela noite, estabelecendo, nos termos de Iamamoto (2001), uma unidade às avessas entre a vida e o trabalho, reduzindo “o tempo de vida exclusivamente ao tempo de trabalho” (p. 199). Eis o castigo aos “livres como pássaros”, cujas condições de vida serão expostas mais adiante.

3.6 Exploração e produtividade dos cortadores de cana: o “salário por peça” como

lei geral

Como dissemos, a relação entre exploração e produtividade constitui a principal preocupação de nosso plano de trabalho. Realizaremos aqui uma interlocução com os dados referentes à produtividade dos cortadores de cana, que se objetiva como um dos determinantes da exploração que os acomete, pela via do “salário por peça” ou “salário por produção”.

Antes, consideremos que a cana-de-açúcar é uma das principais culturas da economia brasileira. De acordo com o IBGE (2014, online), a cana é a segunda cultura mais plantada, perdendo apenas para a soja. São mais de 10 milhões de hectares com plantação de cana, divididos territorialmente da seguinte forma:

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Mapa 01 – Divisão territorial da produção de cana-de-açúcar no Brasil. Fonte: NIPE/Unicamp, IBGE

(2014). O IBGE informa, ainda, que em 2013 a produção canavieira atingiu o recorde de 670.000.000

de toneladas, comprovando categoricamente a existência de uma investida produtiva do capital sucroalcooleiro e contrariando o discurso dos usineiros, segundo os quais há uma “crise nas metas de produção”. Entre 2008 e 2012, o investimento atingiu a cifra de 23 bilhões de dólares em 76 projetos para construção de usinas de açúcar e etanol e cerca de 10 bilhões de dólares na produção do açúcar (NEVES et al, 2010). No ano 2008, em virtude da fusão Cosan-Shell, a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) elaboraram um documento intitulado Monopólio na produção de etanol no Brasil, apresentando as trágicas consequências sociais e ambientais do monocultivo da cana-de-açúcar. A formulação aponta que, até 2025, a previsão é que o país tenha 615 usinas de etanol.

O Gráfico 01 apresenta a evolução da produção de cana, açúcar e álcool no Brasil desde a implementação do PROÁLCOOL, em 1975, até o biênio 2007/2008, dados mais recentes que encontramos.

Gráfico 01 - Evolução da produção brasileira de cana, açúcar e etanol. Fonte: IBGE, Unica (2008)

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Observe-se que, a partir do ingresso aos anos 2000, a produção cresce em um ritmo acelerado. Entre 2001/2002 e 2007/2008 a produção praticamente duplicou, ritmo que tem se mantido. Tal elevação explica-se a partir do destaque ao etanol, dado pela economia brasileira ao mercado internacional. Nesse momento, o Estado incorpora o discurso “sustentável” de energia “limpa e renovável” com ênfase na tecnologia flex., biocombustíveis ou, como preferem alguns, agrobiocombustíveis.

Trata-se, em síntese, de uma “briga” no mercado para assegurar a liderança mundial, pois o Brasil é, na atualidade,

o maior produtor mundial de cana-de-açúcar, segundo a UNICA, o maior produtor e exportador de açúcar, segundo United States Department of Agriculture (USDA), e o segundo maior produtor de etanol do mundo, segundo a F.O.Licht. De acordo com o Procana, o setor sucroalcooleiro foi responsável por aproximadamente 2% do PIB nacional e por 31% do PIB da agricultura no Brasil em 2012, tendo empregado cerca de 4,5 milhões de pessoas (BIOSEV, online).

UNICA é a União da Indústria de Cana-de-Açúcar, com sede em São Paulo (SP). USDA é o

Departamento de Agricultura do governo estadunidense. F. O. Licht é, por sua vez, o órgão que apresenta o relatório mundial da produção de etanol e biocombustíveis. E, por último, a empresa ProCana Brasil, atua como “central de informações sucroenergéticas”. Todas essas representam o agronegócio e a usinagem do capital; e, portanto, não revelam a condição a que estão submetidos os propagandeados 4,5 milhões de “empregados no mundo da cana” e, de modo particular, os que atuam no corte.

Lima (2013) avalia que o impulso dado pelo setor canavieiro incidiu na dinâmica geográfica e nas territorialidades. Sua pesquisa sinaliza que o crescimento da produção vem “ampliando as áreas de cultivo da cana-de-açúcar e/ou intensificando a produtividade por meio de arranjos tecnológicos e da ampliação da exploração do trabalho” (p. 23).

A precarização é o que preside as condições de trabalho no corte da cana. A modalidade de salário que impera é o salário por peça: lei geral no universo canavieiro, tendência deliberadamente comprovada pela dinâmica histórica.

O salário por peça não é novo no mundo dominado pelo assalariamento da força de trabalho. Marx, no capítulo XIX d’O Capital, intitulado Salário Por Peça, já explicara e denunciara o caráter perverso dessa modalidade de pagamento salarial. Até mesmo Thomas Malthus, expoente do pensamento econômico burguês, declara o seguinte:

Confesso que vejo com desgosto estender-se cada vez mais o uso do salário por peça. Trabalho realmente duro, durante 12 ou 14 horas por dia ou por tempo mais longo, é demais para qualquer ser humano (MALTHUS, 1814 apud MARX, 1980, p. 644).

Para entender tamanha dureza, ressalvemos, sob a ótica da crítica da economia política, os elementos que caracterizam o salário por peça. De acordo com Marx (1980), o salário por peça é, tão somente, uma forma modificada do salário por tempo, uma vez que a fórmula que determina o preço do tempo de trabalho permanece inalterada: valor da jornada de trabalho = valor diário da força de trabalho. Um dos aspectos irracionais do salário por peça consiste no fato que a qualidade média do trabalho é controlada pelo resultado (ou seja, o pagamento integral do salário por peça), proporcionando ao capitalista uma média da taxa de mais-valia e, portanto, da produtividade, intensidade e duração do trabalho. Dessa maneira, “o salário por peça se torna terrível instrumento de descontos salariais e de trapaça capitalista” (MARX, 1980, p. 639). Além disso, o salário por produção contribui que, entre a figura do capitalista e a figura do assalariado, brotem “parasitas que subalugam o trabalho. O ganho dos intermediários decorre da diferença entre o preço do trabalho que o capitalista paga e a parte desse preço que eles realmente pagam ao trabalhador” (idem, p. 640). Destarte, o salário por peça conjuga, ao mesmo tempo, a intensidade do trabalho e a tendência ao rebaixamento salarial, com acréscimo à duração do trabalho. No mais, transfere para o trabalhador uma tarefa que, em tese, é do capitalista: a responsabilidade pelo ritmo do trabalho. Em suma, é a modalidade de salário mais conveniente ao modo de produção capitalista – não por acaso, é a mais

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desumana. Em razão disso, Marx (1980) já alertara que o salário por peça em nada beneficia os trabalhadores do campo, inclusive.

Sob esta modalidade, estão enquadrados os trabalhadores do corte da cana-de-açúcar. Ao contrário das situações analisadas por Marx em O Capital, nas quais os trabalhadores tinham o controle da sua produção, os cortadores de cana sabem apenas quantos metros cortaram no transcurso de uma jornada de trabalho. Não possuem, entretanto, nenhuma noção do valor que por eles é produzido, haja vista que o valor do metro só é fixado depois que a cana passa pela balança da usina, que, como já dito, fica longe do eito. Como explica Alves (2006):

O peso da cana varia em função da qualidade da cana naquele espaço, e a quantidade de cana naquele espaço depende, por sua vez, da uma série de variáveis (variedade da cana, fertilidade do solo, sombreamento etc.). Nas usinas, onde estão localizadas as balanças, é feita a conversão do valor da tonelada para o valor do metro. Como é feito nas usinas, pelo seu departamento técnico, esse cálculo é feito sem o controle do trabalhador [...] (ALVES, 2006, p. 93).

Ou, também, como explica uma cortadora de cana:

O preço da cana não é um preço geral. Não é um preço. Falam assim: essa cana é uma quantia, ali é outra. Cada tabela de cana é um preço. Eles fazem o campeão da cana e conforme o peso eles pagam a cana. Eles calculam o preço da cana. Agora, se a cana é pequena, eles pagam uma mixaria; se uma cana grande, eles pagam melhor (Trabalhadora apud IAMAMOTO, 2001).

Francisco Alves (2006) afirma, resumidamente, que o salário por peça é o responsável pela

morte dos cortadores de cana. A lógica é: quanto mais é produzido, “melhor” é o salário; quanto mais corta, mais ganha; e quanto mais se corta cana, maior é o índice de mortes por exaustão na atividade canavieira, acidentes de trabalho, doenças contraídas em função do corte. Estimula, além disso, uma competitividade entre os trabalhadores, como é possível observar na seguinte fala:

Na empreita, cada um quer cortar mais, porque se ele cortar mais, ele ganha mais; se cortar menos, ganha menos. Por isto eles procuram trabalhar mas para ganhar mais. Quanto mais trabalha, mais metro faz, mais ele ganha [...] (Trabalhadora apud IAMAMOTO, 2001).

Com efeito, desde a instituição do PROÁLCOOL que a produtividade caminha a passos largos. Nos anos 1950, a produtividade girava em torno de 3 toneladas de cana cortadas por dia de trabalho; já na década de 1980, a média registrou o quantum de 6 toneladas por dia/homem ocupado; no trânsito aos anos 2000, a produtividade atingiu cerca de 12 toneladas por dia, isto é, dobrou (cf. ALVES, 2006). Decerto, o salto na produtividade não está desconectado das mudanças verificadas no interior do desenvolvimento capitalista. Na cena contemporânea, a associação entre o capital agroindustrial e o latifúndio resulta na gerência do capital financeiro no contexto agrário brasileiro.

De acordo com os trabalhadores, não há melhoria salarial efetiva nos últimos 10 anos. Enquanto a produtividade do trabalho se eleva, o preço da tonelada decresce. Como já asseguramos, o aumento da produtividade corresponde, proporcionalmente, à intensificação do ritmo. Marx (1980, p. 640) já indicara que “[...] dado o salário por peça, é naturalmente do interesse pessoal do trabalhador aplicar sua força de trabalho o mais intensamente possível, o que facilita ao capitalista elevar o grau normal de intensidade”.

Para ilustrar, tomemos como exemplo a realidade do Estado da Paraíba. Vejamos: 1. De acordo com a Federação dos Trabalhadores na Agricultura da Paraíba (FETAG), há

cerca de 28.000 cortadores de cana no estado, que atuam nas 10 unidades produtoras27, que compreendem, territorialmente, algo em torno de 150.000 hectares. A quase totalidade

                                                                                                                         27 São elas: Japungu, Monte Alegre, Santa Teresinha, Agroval, Miriri, São João, Santa Matilde, Tabu, Macaíba e Giasa.

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da produção se dá pelo corte manual. Há apenas duas usinas que possuem suporte para a mecanização, mas pouco utiliza, quais sejam: Japungu e Giasa.

2. Para fazer jus às determinações do Ministério do Trabalho e Emprego, os usineiros afirmam que todos os cortadores de cana possuem a Carteira de Trabalho assinada e que, portanto, estão na formalidade. Anualmente, há uma reunião entre usineiros, sindicatos do patronato e FETAG chamada de Convenção Coletiva, que estabelece as tarefas para o regime de produção e “consensua” o salário de acordo com as atividades. Há, por causa disso, um salário fixo mensal, que hoje corresponde à R$ 734,00 + 10% de gratificações, conforme consta na Convenção Coletiva 2013/2014. Desse modo, o cortador teria sua diária no valor de R$ 24,46.

3. Contudo, como já dissemos, o que preside o trabalho nos canaviais é o salário por peça. Lembremos: o cortador ganha por tonelada cortada, cujo preço a ser pago também é definido na Convenção Coletiva. Hoje, por cada tonelada de cana cortada, o trabalhador ganha R$ 6,57. A média da produtividade no Estado é 06 toneladas cortador/dia. A FETAG informa, ainda, que há trabalhadores que, em uma jornada de trabalho, cortam 20 toneladas de cana.

4. Se o cortador produz, sob a modalidade do salário por produção, 06 toneladas/dia, sua diária será algo em torno de R$ 39,42, sendo, portanto, um montante superior ao salário fixo. Assim, os cortadores "optam", evidentemente, pelo salário por produção. E o tão propalado e mísero salário fixo é mera falácia da “legalidade”. O salário por peça torna-se, enfim, um fetiche. Eis o “segredo”: é precisamente a modalidade de salário que incita mais-trabalho.

5. Resultado: o índice de produtividade cresce em projeção ascendente, como é possível analisar no gráfico abaixo, que apresenta a evolução do processamento de cana-de-açúcar no estado, até a safra de 2009, atingindo a máxima de quase 6 milhões de toneladas processadas.

Gráfico 02: Evolução do processamento de cana-de-açúcar na Paraíba, ano/safra. 2002-2009.

Fonte: MAPA (2010); ÚNICA (2010)

Por fim, analisamos que o universo canavieiro mantém, em seu interior, uma dinâmica dúbia: por um lado, utiliza-se do aporte tecnológico moderno (máquinas e tratores de última geração, satélites de geoprocessamento etc.); e, por outro lado, não dispensa o lucro que o capital variável lhe confere, valendo-se de relações de trabalho pré-modernas, análogas à escravidão e de uma modalidade de salário que resulta em mortes incontáveis28.

3.7 Condições de vida e trabalho: o “casamento” entre a miséria e a produtividade

                                                                                                                         28 Apenas no estado de São Paulo, entre 2004 e 2007 registraram-se 21 mortes por exaustão no corte da cana (REDE SOCIAL DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS, 2008). Todavia, a mensuração desse quantitativo merece atenção, uma vez que comumente os atestados de óbito dos cortadores de cana declaram razões desconhecidas ou paradas cardiorrespiratórias (PASTORAL DO MIGRANTE, 2013). Assim, os dados oficiais mais escondem do que revelam.

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Ao desvendar a lógica do capital, Marx (1983) analisa que os trabalhadores, durante sua existência material, não são nada mais do que força de trabalho e que, em razão disso, a totalidade de seu tempo é restrita ao tempo de trabalho que autovaloriza o capital. Não há, desta feita,

tempo para educação humana, para o desenvolvimento intelectual, para o preenchimento de funções sociais, para o convívio social, para o livre jogo das forças vitais físicas e espirituais, mesmo o tempo livre de domingo [...] pura futilidade! Mas em seu impulso cego, desmedido, em sua verocidade por mais-trabalho, o capital atropela não apenas os limites máximos morais, mas também os puramente físicos da jornada de trabalho [...] reduz o sono saudável para a concentração, renovação e restauração da força vital a tantas horas de torpor quanto à reanimação de um organismo absolutamente esgotado torna indispensáveis (MARX, 1983, p. 211).

Consideramos, assim, que "o capital não se importa com a duração de vida da força de trabalho"

(MARX, 1983, p. 212). No que se refere estritamente às condições de vida dos assalariados rurais no corte da cana-de-açúcar, essas carregam consigo, historicamente, a marca da precariedade.

É necessário conceber, de antemão, que a “opção” pelo trabalho no corte da cana deve ser apreendida à luz das metamorfoses que permeiam o mundo do trabalho. Sem dúvidas, as alterações que ocorrem no interior da forma social capitalista moldam os seus próprios ditames. Não à toa, apresentamos o cenário atual do estágio monopólico do capital, bem como a tese do desenvolvimento desigual e combinado.

Explanados o processo de trabalho e o salário por peça, preocupa-nos também descortinar as condições de vida e trabalho a que estão subjugados os cortadores de cana-de-açúcar.

O dispêndio de energia física por parte desses trabalhadores é excessivo, desgastante, doloroso. Trata-se de um cotidiano marcado por vidas em “tons de cinza” que traduzem uma vivência cristalizada no cansaço; uma precariedade que não se expressa apenas nas condições de trabalho, mas sim, no conjunto das relações sociais.

No corte manual da cana, a força vital é consumida. Dessa maneira, no instante em que o trabalho lhes mantém a vida, também a definha (MARX; ENGELS, 2011). O trabalho é penoso, instável e parco de perspectivas, absorvido pelos trabalhadores como “um fardo pesado”. Sobre o cotidiano, dizem as trabalhadoras:

Ah, eu levanto às 4h da madrugada para fazer comida, porque nós saímos cedo, às 06h. Nós estávamos na frente do portão da usina às 06h30. E até lá (no canavial), gasta mais de uma hora e meia de viagem. Nosso motorista corre pouco. A hora do almoço é 9h, mas ninguém para no horário certo. No horário certo só pára quando paga por dia. Na hora do almoço é só meia hora de descanso, mas só obedece essa ordem quem vai por dia. Mas se está de empreita, ninguém descansa nem uma hora, nem meia hora. (...) chego na roça eu já pego, porque cedo é melhor para cortar cana. Passou do meio dia já não rende. O calor é muito, você não aguenta; você se esforça, você até desmaia na roça. Chego em casa já de noite” (Trabalhadora apud IAMAMOTO, 2001).

A cana é uma coisa complicada, porque se você não trabalha muito, você não “faz nada”; se você trabalhar normal, que nem por dia, você não faz nada. Tem que trabalhar muito. (Trabalhadora apud IAMAMOTO, 2001). A gente tem que trabalhar, os filhos ficam tristes. Ficam sozinhos em casa... Veja o que eles (da usina) disseram um dia: aquela vagabunda não veio porque não quis. Mas a gente tem bastante motivo! (D. Antonia apud IAMAMOTO, 2001).

A usinagem do capital não se preocupa, em nenhuma medida, com a vida dos cortadores para

além do trabalho. Há um conjunto de relatos que comprovam condições de trabalho na canavicultura análogas à escravidão. Façamos referência, por exemplo, à realidade constatada pela CPT de Alagoas, que por sinal, é o Estado que mais produz cana no Nordeste brasileiro. Em 2008, a CPT-AL realizou

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uma pesquisa com trabalhadores rurais, obtendo importantes dados sobre os problemas vivenciados no corte da cana-de-açúcar.

Os dados foram preocupantes quanto às carteiras de trabalho e as perspectivas de melhorias nas condições de vida, pois dos 184 entrevistados, 43,12% afirmaram que não tinham carteiras assinadas e 88,59% disseram que o serviço nos canaviais não trará mudanças favoráveis em suas vidas, devido ao baixo salário e as péssimas condições de trabalho (CPT, 2009, online).

A CPT (2009) acrescenta que 52% das pessoas “libertadas” da escravidão no Brasil

trabalhavam em usinas de cana-de-açúcar, o que confirma que o cenário de precariedade não é novo aos cortadores de cana. Nesse segmento, o capital, em um único nó, concilia miséria e produtividade. Na análise de dados observamos que há uma relação diretamente proporcional entre o nível de produtividade e o pauperismo que aflige os cortadores de cana.

Trata-se de uma unidade, uma aliança que denominamos aqui de relação miséria-produtividade. Para torná-la mais clara retomemos o exemplo da Paraíba. Nesse Estado, o município que mais produz cana é Santa Rita, localizado na Zona da Mata e apelidado por alguns de “Rainha dos Canaviais”. Na medida em que Santa Rita é o município com maior índice de produtividade é, também, o que possui os piores indicadores de pobreza na chamada zona da cana (LIMA, 2013). Em virtude disso, grande parcela dos cortadores de cana, sobretudo nos períodos entre-safras, tornam-se usuários da política de assistência social29.

Na ocasião da exposição do processo de trabalho, pontuamos que o corte manual é feito a céu aberto, sob o sol. Acrescentamos, neste sentido, a composição da vestimenta por eles (os cortadores) utilizada: botina com biqueira de aço, perneiras de couro até o joelho, calças de brim, luvas de raspa de couro, camisa de manga comprida, chapéu/boné e lenço no rosto e no pescoço. De tal modo, os trabalhadores ficam desidratados, com frequente ocorrência de câimbras, ou como dizem, “dá uma birola”30 (ALVES, 2006). Relata um antigo cortador:

Há, Deus me dá forças! Agora já não corto bastante cana. Já cortei bem. Depois do meio da tarde eu não aguento fazer força, mas até o meio-dia ainda vai. Depois esquenta muito. Se eu suar, dá cãibra (...). (Sr. Chico, 61 anos apud IAMAMOTO, 2001).

A partir da supremacia do toyotismo, os mecanismos de manipulação do capital sobre o

trabalho são (re)atualizados, havendo uma tendência cada vez mais presente de captura da subjetividade do trabalho, conforme sinalizam as pesquisas de Giovanni Alves (2008). No corte da cana, a “captura” da subjetividade se apresenta, especialmente, a partir de ideias como “estou cansado, mas é o jeito”, “gente como eu tem isso pra fazer” – que, no plano da semântica, naturaliza e eterniza a condição de classe. Tal discurso associa-se à baixa qualificação e escolaridade, como é possível observar na fala abaixo:

A gente quer trabalhar num serviço mais decente e não dá. Porque pessoal que não tem instrução, minha filha, não é nada neste mundo. E eu quero fazer tudo para meus filhos estudarem, para não serem um pé-de-cana igual a mim. É, eu sou pobre, mas vou lutar por isso. É um serviço muito judiado, muito cansado... Nós começamos com 10 anos e chega agora nós estamos cansadas. Eu já falei pra você, eu não estou aguentando mais. Se achasse um servicinho leve... (Trabalhadora apud IAMAMOTO, 2001, p.)

                                                                                                                         29 Souza (2007) dedica sua dissertação de mestrado ao estudo das famílias de cortadores de cana atendidas pela política pública de assistência social em Pitangueiras (SP). 30 “As câimbras começam, em geral, pelas mãos e pés, avançam pelas pernas e chegam ao tórax (...) provocam fortes dores e convulsões, dando a impressão de que o trabalhador está dando um ataque nervoso” (ALVES, 2006, p. 95).

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Em algumas realidades específicas, a jornada de trabalho diária dos cortadores de cana ultrapassa 12 horas (ALVES, 2007). Não sendo suficiente, há de modo praticamente generalizado nas usinas e lavouras as seguintes características: desproteção no trabalho, acarretando inúmeros acidentes; ausência de assistência médica; péssimas instalações sanitárias, inclusive, nos locais de refeição; transporte inseguro; e um preconceito desmedido, pois são vistos por grande parcela da sociedade como um "zé ninguém" (SANTOS; SOUZA, 2012).

Atualmente, tem prevalecido a formalização dos contratos de trabalho: sejam eles por safra ou não, por tempo determinado ou indeterminado31. Quando o contrato é feito por safra há uma implicação direta nos direitos trabalhistas, a exemplo do não-pagamento de 13º salário e das férias.

É importante frisar que as péssimas condições de vida e trabalho e as violações de direitos não são obra do acaso ou algo aleatório, espontâneo, anárquico. Ao contrário, são sistematizadas, “racionalizadas” e possuem uma raiz notadamente estrutural. Na conjuntura atual do contexto agrário, podemos inferir que as condições de exploração da força de trabalho no corte da cana fazem parte do “custo social” do agronegócio. Na verdade, um custo trágico, que ocasiona, inclusive, a morte de trabalhadores do campo.

Haja vista que o método de análise que direciona este texto não partilha da (falsa) ideia de neutralidade científica, cabe lembrar, no plano macroscópico, que há responsáveis por tamanha atrocidade: dentre tantos, “novos” e “velhos”, citamos como exemplo a Syngenta, a Bunge e Monsanto, empresas da “grande agricultura” que têm assassinado trabalhadores rurais: ora, em detrimento das condições de trabalho, ora pela repressão aos militantes dos movimentos sociais do campo32, patrocinada pelo Estado brasileiro.

Referimo-nos aqui a um nível de barbarização da vida social que informa a sociedade burguesa, que não se submete a qualquer auto-restrição racional e é fundada numa lógica incontrolável (MÉSZAROS, 2002), cuja tendência é a mesma da apontada por Marx, nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, ao afirmar que “com a valorização do mundo das coisas aumenta, em proporção direta, a desvalorização do mundo dos homens” (MARX, 1993, p. 159).

4. Considerações Finais

Em âmbito mundial, a ofensiva do capital contra o trabalho tem tomado proporções cada vez mais devastadoras. As consequências da crise atual são inescrupulosas e despidas de qualquer pudor. Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) demonstram que há cerca de 200 milhões de desempregados no mundo e que mais de 1,5 bilhão de trabalhadores estão submetidos a precárias condições de trabalho.

A “flexibilização” é, contemporaneamente, uma imposição aos trabalhadores pela via da desregulamentação e contração de relações contratuais cada vez mais frágeis, retirando direitos historicamente conquistados. Paralelamente, o Banco Mundial - que dita regras na dinâmica do capitalismo mundializado e reitera a atualidade do estágio imperialista (LENIN, 2011) - mantém sua postura anti-social (TOUSSAINT, 2010), reforçando a necessidade de não-investimento na proteção social, ocasionando uma pauperização cada vez mais expressiva da massa dos que vivem da venda de sua força de trabalho – radicalizando, portanto, as expressões da “questão social”.

Nesse contexto, cabe anotar que a produtividade do trabalho só cresce desde a emersão da crise, nos anos 1970. Com efeito, a reestruturação produtiva e a queda do muro de Berlim/fim da União Soviética em nada contribuíram com as lutas do trabalho. Apesar da crise ideológica experimentada por importantes e majoritários setores da esquerda e da fragmentação nos postos de trabalho, gerada pela lógica da acumulação flexível (HARVEY, 1997), há experiências recentes e importantes do ponto de vista da organização política dos trabalhadores. Na Europa, há greves e manifestações expressivas em diversos países, denunciando a austeridade pós-crise da dívida – é o caso da França, da Itália, da

                                                                                                                         31 Tendência analisada por Delgado e Sant’Ana (2011). 32 O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, por exemplo, tem travado inúmeras lutas contra as empresas da “grande agricultura”. Além disso, tem organizado nacionalmente a Campanha Nacional contra o uso de agrotóxicos e pela vida, presente em diversas cidades do país.

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Grécia e da Espanha, por exemplo – bem como, em outros países, inscrevem-se as lutas por liberdades democráticas (SANTOS, 2012). Na América Latina, o principal expoente é a Venezuela, que dá curso ao processo revolucionário bolivariano, declaradamente anti-imperialista. No Brasil, também há registros importantes. Dentre eles, destacamos o índice considerável de greves em diversos setores, sejam eles produtivos ou não. Nos últimos 10 anos, o número de greves atingiu, entre nós, um quantitativo sem precedentes (DIEESE, 2012). E, além disso, as manifestações massivas (fluidas, é verdade) que se espraiaram pelo país em 2013 revelaram, em larga medida, a necessidade por mudanças na estrutura social, política e econômica (canalizadas, em geral, na luta por direitos), ainda que não tenham sido dirigidas pelos setores da esquerda – com destaque aos partidos, sindicatos e movimentos sociais.

Esse conjunto de determinações, estruturais e conjunturais, possui centralidade na análise das relações de trabalho que informam nosso objeto de estudo: a relação entre exploração e produtividade no corte da cana-de-açúcar. Nesta pesquisa, observamos o desenvolvimento da produção canavieira no Brasil, segundo país no ranking de exportação de cana. As protoformas históricas para tal condição, que revelam o peso da produção canavieira no país, situam-se na condição dependente e periférica de nossa economia – o que ficou evidente na interlocução com os clássicos do pensamento social brasileiro. Se observada para além de si, a importância da cana demonstra ainda a centralidade da questão agrária em nossa formação sociohistórica33.

Em linhas gerais, com esforço de síntese, consideramos que:

(a) A usinagem do capital mantém como preferência a utilização do corte manual ao invés do corte mecanizado, haja vista que o montante de despesas com o trabalho vivo (força de trabalho) permanece inferior ao do trabalho morto (maquinário) – o que na (ir)racionalidade capitalista é uma vantagem.

(b) O processo de trabalho continua sendo encaminhado pelo comprimento do eito (linhas em que a cana é plantada), e não pela quantidade de cana cortada. Com esse método, os trabalhadores do corte não conseguem sequer ter noção de sua produção diária, em termos de valor.

(c) O ritmo da produtividade do trabalho cresce em projeção ascendente, ao contrário do que é propagado pelos usineiros sob a retórica da “crise do etanol”. Em 2013, o processamento de cana, açúcar e álcool no Brasil atingiu recorde; e, nos anos 2000, a média da produtividade do trabalho saltou de 6 para 12 toneladas cortador/dia no estado de São Paulo, por exemplo (ALVES, 2006).

(d) A modalidade de salário que impera no corte da cana-de-açúcar é decisivamente o salário por peça. Desse modo, o pagamento é feito por tonelada de cana cortada. Inclui-se a isso, a permanência de longas jornadas de trabalho, máxima intensificação do trabalho e pressão salarial para baixo (redução do tempo de trabalho socialmente necessário = redução do valor da força de trabalho).

(e) O Estado brasileiro é, em larga medida, responsável por isso – cumprindo sua função de “comitê para os negócios da burguesia” (MARX; ENGELS, 2012). No ingresso ao século XXI, o Estado brasileiro, a partir da gerência do agronegócio, incorpora de modo desmedido o discurso “sustentável” da “energia limpa e renovável” pela via de tecnologias como a flex., intensificando a produção e, igualmente, a exploração do trabalho nos canaviais.

(f) Existe uma evidente dificuldade, de caráter objetivo, da organização política dos trabalhadores do corte da cana. Em grande parte dos casos, são representantes dos usineiros que dirigem os sindicatos que, ao menos em tese, são dos trabalhadores; embora existam, em poucas localidades (majoritariamente no Estado de São Paulo), processos importantes de enfrentamento à usinagem do capital. Um marco histórico que não pode ser esquecido é a Greve de Guariba (SP), na década de 1980.

(g) Há uma estreita relação entre a produtividade do trabalho e a pauperização dos trabalhadores, entendida por nós como unidade miséria-produtividade. A condição de pobreza que assola a

                                                                                                                         33 Interessa recordar que no âmbito do Serviço Social há um escasso acúmulo teórico no que tange ao debate da questão agrária, ou ainda, na discussão que conceba a questão agrária como manifestação particular da “questão social” no Brasil (SANT’ANA, 2012), sendo a última, objeto de estudo e intervenção da profissão.

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totalidade dos cortadores de cana faz como que esses sejam endereçados, em geral, à política de assistência social, confirmando a seguinte hipótese: o corte da cana é o espaço para onde converge grande parcela dos supérfluos do campo.

Diante disso, avaliamos que é necessário ir ao centro da questão que reside na dicotomia que

marca o setor sucroalcooleiro: valendo-se, de um lado, do que há de mais avançado tecnologicamente; e, de outro, preservando relações de trabalho ultrapassadas e, em suma, desumanas (ALVES, 2006). A atividade do corte na produção canavieira é, enfim, uma ilustração exacerbada da barbárie a que está submetida a humanidade e que encontra sua explicação na dinâmica da acumulação capitalista.

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6. Publicações

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A pesquisa resultou na formulação de três artigos científicos para comunicação oral em eventos nacionais:

• O primeiro, intitulado O trabalho entre o valor de troca e a eterna necessidade, apresentado no Seminário Nacional de Formação Profissional e Movimento Estudantil de Serviço Social, sediado pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), campus Teresina.

• O segundo, sob o título A superexploração no corte de cana e o bagaço de gente: expressão do trabalho precarizado, será apresentado no Grupo de Trabalho 4 “Teoria do Valor e questão social”, no evento II Encontro Nacional Teoria do Valor-Trabalho e Ciências Sociais, que ocorrerá na Universidade de Brasília (UnB) , em outubro do ano em curso.

• E o terceiro, A face amarga da cana-de-açúcar: um esboço sobre a superexploração dos cortadores de cana foi submetido ao Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS), que acontecerá nas dependências da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em dezembro.