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lar um pouco da evolução dos sistemas de saúde do mundo para termos uma ideia de como chegamos aqui. 44 ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA Aconteceu que vieram outros administradores, que come- çaram a pensar na distribuição, na regionalização do sistema de saúde. O primeiro secretário a fazer o trabalho de regiona- 45 ANAIS • Ano I • Volume 1 46 ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA 47 ANAIS • Ano I • Volume 1TRANSCRIPT
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ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA
Jofran Frejat
Antes de falar especifi camente de Brasília, é preciso fa-
lar um pouco da evolução dos sistemas de saúde do
mundo para termos uma ideia de como chegamos aqui.
As coisas começaram a ter uma organização sistematizada
há mais de 100 anos, com a industrialização da Alemanha, quan-
do foram criados os primeiros sistemas previdenciários, que
passaram a atender a população. Com o fi m da Segunda Guer-
ra Mundial, percebeu-se a necessidade de dar amparo àquelas
pessoas que estavam sem nenhum atendimento previdenciário
e de saúde. Eram pessoas que iam ao hospital quando tinham
dinheiro. E quando não tinham, não havia possibilidade.
No Brasil, não foi diferente. A partir de 1929 foram criadas
as caixas de Previdência Social com os institutos (os IAPB, IAPC
e IAPI), cujo excedente de receita acabava sendo transformado
em recursos para a saúde. Havia uma resistência grande den-
tro da Previdência em transferir esses recursos para a saúde.
Na época da Segunda Guerra Mundial, a orientação no Brasil
era no sentido do saneamento básico. Era o Brasil de Mangui-
nhos, o Brasil de Oswaldo Cruz, cujo objetivo era sanear os
portos para abri-los ao comércio exterior. Quem tinha dinhei-
ro, ia para o médico particular, o “semideus” da época, e quem
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não tinha recursos, acabava nos hospitais públicos estaduais ou
municipais, em prontos socorros ou nas santas casas de mise-
ricórdia. Era onde eram atendidos os indigentes, os inválidos e
os doentes mentais.
Com a criação da ONU e da OMS houve uma verdadeira
necessidade de se atender mais a população, que não tinha um
espaço para atendimento. Naturalmente, no Brasil, a Previdên-
cia Social foi um elemento importante para que se começasse a
sistematizar o atendimento de saúde. Foram os hospitais previ-
denciários, como o IPASE, por exemplo, que deram um grande
salto de qualidade no desenvolvimento da Medicina no Brasil.
O Hospital do Servidor do Estado foi um grande hospital e era
referência nacional.
A Previdência também teve outro período, em 1970, em
que houve o Plano de Pronta Ação. Embora privatizante – ca-
minhava-se para a privatização – teve uma grande possibilidade
de desenvolver rapidamente o atendimento médico, apesar de
ter levado à especialização, deixando de lado o generalismo.
Brasília foi um modelo avançado, à frente de tudo isso. Iniciou
com o Plano Diretor de Saúde, criado pelo Bandeira de Mello,
que naturalmente era um plano com uma visão desenvolvimen-
tista, como era tudo na época de Juscelino. Pensava-se muito
grande. Bandeira de Mello imaginou, por exemplo, 11 hospitais
distritais para o Plano Piloto.
Aconteceu que vieram outros administradores, que come-
çaram a pensar na distribuição, na regionalização do sistema
de saúde. O primeiro secretário a fazer o trabalho de regiona-
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lização foi Francisco Pinheiro Rocha. Foi ele quem, sob críticas,
criou o segundo Hospital Distrital (o L2), o Hospital do Gama,
e entregou o de Sobradinho para a Universidade. A UnB tem
grande responsabilidade pelo trabalho que fez em Sobradinho.
Foi esse o primeiro trabalho de regionalização, ou seja, acom-
panhando aquilo que era a ideia inicial de Bandeira de Mello,
vinculado ao Plano Piloto. Até porque ele não imaginava que
fossem surgir Taguatinga e Gama. Não existia perspectiva de
hospitais nessas áreas. Ele pensava em postos de saúde rural.
Isso se desenvolveu com um trabalho aqui no Distrito Fede-
ral, que pretendia a unifi cação dos vários sistemas, embora ini-
cialmente não começasse assim. Pelo menos na Secretaria de
Saúde foi assim, mas ainda existia o IAPM, IAPI e IAPC e uma
porção de centros de atendimento regionalizados e localizados
nesses institutos.
Brasília teve um plano exemplar. A Fundação Hospitalar foi
uma criação inteligente e que permitia um trabalho importante
do profi ssional, vinculado à população. Isso se desenvolveu bem
até algum tempo. Depois, essa sistemática começou a decair,
mas foi cumprida em grande parte a tentativa de fazer com que
tivéssemos um serviço único de saúde. Brasília era o protótipo,
que serviu de exemplo para que, na Constituinte de 1988, fosse
criado o Sistema Único de Saúde, que havia começado na Previ-
dência Social com o Previsaude, o SUDS e o SUS. Na verdade,
havia uma intenção política de fazer um sistema que atendesse
a todo mundo. Acontece que se ampliou o atendimento e não
se cuidou do sistema na outra ponta. O excedente da receita
que ia para a Saúde era de 20 a 30%.
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Na administração Brito (ex-ministro da Saúde), logo de-
pois da Constituinte, esses recursos foram retirados da Previ-
dência para a Saúde. Quando estávamos saindo da Constituin-
te, esse grupo da reforma sanitária pretendeu que o INAMPS
saísse do Ministério da Previdência e fosse para a Saúde. Es-
tabeleceu-se nas disposições transitórias que 30% iriam para a
saúde e, durante algum tempo, isso aconteceu. Até que Brito
cancelou esse repasse e a União teve que bancar parte disso.
Veio o Jatene (ex-ministro da Saúde), que percebeu que não
tinha dinheiro, e trouxe a proposta do imposto do cheque, a
CPMF, que foi aprovada graças ao prestígio dele. Ninguém
queria isso, mas Jatene tinha muita força política e era uma
pessoa respeitável. Ele disse que não havia dinheiro, pois a
Previdência não repassava; insistiu com isso e foram realmente
aprovados os 0,20% para a Saúde.
Aprovamos 0,20% com a condição de que o recurso fosse
especifi camente para a saúde, e foi, mas o governo, retirou a
parte com que entrava. O problema fi cou do mesmo tamanho,
tanto é que Jatene saiu do Ministério da Saúde em seguida.
Depois, ampliaram a CPMF para 0,38% – que correspondiam a
41 bilhões de reais – e começaram a partilhar: 41% para a Saú-
de, 21% para a Previdência Rural, 21% para programas sociais,
15% para o superávit primário e um percentual pequeno para
administrar tudo isso. A utilidade foi passada para outros se-
tores, e o imposto acabou caindo, porque o dinheiro não era
de fato para a saúde, como devia ser. Agora, há tentativas de
aprovar outro imposto do cheque para disponibilizar recursos
para a saúde – que devem gerar algo em torno de 10 bilhões
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de reais. Ora, se com R$ 17 bilhões (os 41%) não se resolveu,
não será com 10 bilhões que vão resolver. É necessário investir
nos setores que realmente precisam.
As pessoas passaram a ser exigentes, a saúde passou a ser
direito do cidadão e dever do Estado, e surgiram programas
paralelos, como o Saúde da Família, com atendimento domici-
liar. O agente de saúde foi criado aqui no Distrito Federal, em
Planaltina, com o Átila (médico do SES-DF), e depois foi esten-
dido aos centros de saúde. O Estado do Ceará pegou a ideia e
o Ministério da Saúde ampliou para o Brasil inteiro.
O declínio do setor de saúde teve início quando acabaram
com a Fundação Hospitalar, que era fonte de recursos para os
secretários. O dinheiro passou todo para a Secretaria de Fazen-
da e o secretário de Saúde solicitava os recursos fi nanceiros à
Secretaria de Finanças para ver se conseguia comprar as coisas
necessárias. A segunda razão desse declínio é que a Secreta-
ria se tornou trampolim político. Pessoas com interesse político
passaram a assumir a função por serem detentores de tal ou
qual conhecimento. No momento em que se impõe política na
saúde, a coisa não funciona, pois ela tem que ser técnica, tem
que funcionar tecnicamente, como foi a regionalização, a cria-
ção dos centros de saúde e dos postos rurais e a ampliação feita
por vários secretários, cada um tentando criar um sistema de
saúde, que hoje está cada vez mais distorcido.
À medida que cai o padrão do serviço público, surgem os
planos de saúde e, naturalmente, suas operadoras. Chegou-se
à marca de 500 hospitais geridos por operadoras de plano de
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saúde no País inteiro. O último é o Nove de Julho, em São Pau-
lo, que acabou de passar para a Amil. O médico é refém desse
tipo de procedimento. Preocupa-me muito a situação para a
qual o Distrito Federal está caminhando. Já tivemos um bom
sistema de saúde, tivemos difi culdades e, em determinado mo-
mento, achei que, como tínhamos uma rede pronta, criada des-
de a base até o ápice, poderíamos começar a fazer uma forma-
ção de pessoal com outra visão que não a que hoje a população
tem do médico. E isso nos levou à criação de uma Faculdade
de Medicina, com o objetivo de dar aos profi ssionais de saúde
da Rede Hospitalar a oportunidade de ensinar aquilo de que
tinham conhecimento.
Tínhamos gente de alta qualifi cação. Tentei várias vezes fa-
zer um plano docente assistencial com a Universidade de Brasília
e não consegui. Na primeira vez em que tentei, em 1980, quan-
do a UnB devolveu o hospital de Sobradinho, a proposta do
reitor era que eu entregasse todos os cargos comissionados da
Fundação para que ele fi zesse o programa docente assistencial.
Quer dizer, eu teria que tirar os colegas que tinham criado o
sistema de Brasília; não iria tirar todo esse pessoal. A última vez
foi ainda com o reitor Lauro Morhy, que nem resposta me deu.
Decidimos fazer uma Faculdade de Medicina, e nosso ob-
jetivo futuro é fazer uma universidade temática: que tenha Me-
dicina, Enfermagem, Odontologia, Farmácia, Fisioterapia, Ad-
ministração Hospitalar. Temos a rede, que é o maior campus de
que se pode dispor para isso, mas parece que já querem incluir
outras áreas. Onde se vai conseguir pessoal especializado para
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ensinar e o campus para treinamento? Essas preocupações me
assaltam e não sei se é um bom caminho, porque parece mais
uma ação política, como a terceirização de um hospital que es-
tão tentando fazer.
Essa terceirização, em princípio, diz-se que funciona bem,
mas, primeiro, o hospital terceirizado só atende no limite da
capacidade: se há 200 leitos, 200 pessoas serão internadas. Ul-
trapassado esse limite, as pessoas vão voltar para o Hospital do
Gama, para o Hospital de Base ou de Taguatinga. Isso porque
o pessoal de lá não vai atender, não há possibilidade.
Um hospital funcionando assim vai driblar a Lei de Respon-
sabilidade Fiscal, porque seu limite não inclui o pagamento de
serviços, como em um hospital terceirizado. É possível colocar
quem se quiser para trabalhar, pessoas sem concurso e sem
especialização. A briga hoje da terceirização é entre empresas
operadoras de planos de saúde e algumas Organizações Sociais
que estão se estabelecendo. O passo seguinte é congelar salá-
rios, como o INAMPS, e extinguir carreiras. Não sei como é que
as pessoas não estão percebendo o caminho que está sendo
seguido. É isso que vai acontecer: terceiriza-se, esvaziam-se os
hospitais, mais gente é colocada, tira-se de um hospital para ou-
tro, congelam-se os salários e, depois, extinguem-se as carreiras.
Não vejo pessoas com muita experiência, que acompanha-
ram a história da Medicina, dando opiniões sobre isso. É bem
verdade a alegação de que os funcionários não querem traba-
lhar, mas o serviço é a cara do chefe. Quem é que não sabe
disso? Se o chefe é ruim, o serviço é ruim. Se não tem quem
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busque, quem mande, quem vá atrás, a coisa não vai andar.
Preocupo-me com isso, porque pode até ser que alguns profi s-
sionais se interessem por essa terceirização, mas será que isso
é bom para a população e para Brasília? Será que foi com isso
que sonhamos quando viemos para cá? Viemos com um obje-
tivo diferente: queríamos participar de um programa de saúde
unifi cado que atendesse a população, tanto o mais pobre quan-
to o mais rico, e, seguramente, sabemos que o hospital público
é sempre um referencial até para a clínica particular. Vocês são
referência dentro do serviço público mas fora dele, o paciente
só vai à primeira consulta e o retorno não é remunerado. O nú-
mero de exames é reduzido, porque as operadoras de planos
de saúde estabelecem o número de exames que se pode usar.
Por que eles querem os hospitais? Porque querem reduzir cus-
tos e, reduzindo custos, isso bate nas costas do paciente e nas
costas do profi ssional. O profi ssional não vai poder utilizar tudo
aquilo de que precisa e que acha importante. O resultado dessa
decadência do atendimento é que a relação médico/paciente
está cada vez pior. Primeiramente, porque o paciente reclama
do médico o tempo todo – até porque a mídia coloca isso. Em
segundo lugar, judicializaram o atendimento médico. É preciso
que os Secretários de Saúde que estão entrando comecem a
discutir com a Justiça sobre o que está sendo determinado.
O Ministério Público está fazendo diagnósticos e procedi-
mentos. Há uma ação correndo contra mim. Um juiz mandou
que eu determinasse a revascularização miocárdica de determi-
nado paciente, que mandei para o Hospital de Base, os colegas
analisaram e disseram não haver indicação. Lamentavelmente,
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há colegas no Brasil inteiro que têm entendimentos com em-
presas que importam medicamentos que sequer são reconheci-
dos e registrados na ANVISA. Assim, o profi ssional é obrigado
a aplicar, porque o doente ouviu dizer que aquilo é bom e o Mi-
nistério Público manda comprar. Estamos diante de uma situa-
ção extremamente delicada, sendo cada vez mais pressionados,
não só pela população. A mídia sempre tem notícia na porta do
hospital. A pessoa reclama que está esperando há três, quatro
horas, mas está bem. Eles não pensam que você pode estar
em cirurgia ou atendendo a um paciente mais grave. Ele fi ca
uma hora na fi la do banco, mas não fi ca meia hora aguardando
no serviço hospitalar. O doente não é bobo, prefere o pronto
socorro ao centro de saúde. Ele vai atrás daquilo que pensa
ser melhor, embora, muitas vezes, o atendimento não precise
alcançar esses limites.
O que se pode fazer? O que move o médico? Só há duas
coisas que movem o profi ssional: ciência e dinheiro. Se ganha
mal e não exerce a profi ssão com dignidade, não adianta. No
interior do Brasil, o programa Saúde da Família é inteiramente
desvirtuado. O médico sai da capital, vai para o interior uma
ou duas vezes na semana, receita muita gente, e vai embora.
Aquele acompanhamento é uma balela. O programa Saúde da
Família não está sendo feito como deveria ser, porque o colega
chega lá e não tem um exame de laboratório, um Raio-X, não
tem absolutamente nada. Como podemos resolver? Só há um
caminho. Temos que valorizar o profi ssional, dar a ele a condi-
ção para que possa trabalhar, e não é difícil.
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Quando se passava 30% da receita da Previdência para a
Saúde, tínhamos o valor correspondente a 104 bilhões de reais.
Hoje, o orçamento do Ministério da Saúde é de 48 bilhões de
reais. Cortaram mais da metade dos recursos. Como se quer
resolver o problema da saúde, que tem uma tecnologia que
se desenvolve tão rapidamente quanto a informática? Eu não
conheço nenhuma outra atividade que exija tanta tecnologia
quanto a Medicina.
Alegam que os pacientes vêm das cidades-satélites para
cá, o que aumenta muito a pletora desses pacientes nos hos-
pitais e o sistema não estaria preparado. Isso não acontece só
em Brasília, acontece em São Paulo, no Rio de Janeiro e em
Belo Horizonte. A solução é resolver com o prefeito, mas o
prefeito não quer doente; hospital, enfermeiro e doentes dão
trabalho. Então, não interessa a ele fazer o hospital. Ele prefe-
re uma ambulância, em que bota o paciente e diz que ele será
atendido no melhor hospital do Centro-Oeste. O mecanismo
para fazer o prefeito construir o hospital é “meter a mão no
bolso” que é onde dói. Falei isso com o Serra, na época em
que era candidato à Presidência da República, mas ele não
quis mexer com os prefeitos. Se não tem compensação ban-
cária, se desconta da cidade de onde o paciente veio e passa-
se o recurso para a localidade do atendimento. No mínimo,
o prefeito será obrigado a pensar duas vezes. Não há outro
caminho. Nenhum prefeito está interessado em construir um
hospital, porque sabe que hospital dá trabalho e é um proble-
ma difícil de resolver.
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Acho que a Faculdade de Medicina do GDF é um ponto de
infl exão na formação dos profi ssionais e nós, os mais velhos, te-
mos obrigação de manifestar nossas posições sem medo. Dizer
que o Ministério Público está errado em fazer isso, que ele está
nos obrigando a cometer uma infração penal, nos obrigando
a dar um medicamento que a ANVISA sequer reconhece em
registro. Como vou utilizar um medicamento que a lei não am-
para? A saúde é um direito de todos e dever do Estado, desde
que não agrida a profi ssão sagrada, que é a profi ssão médica.
Jofran Frejat: Médico cirurgião do Hospital Regional da Asa Sul e ex-Secretário de
Estado da Saúde do Distrito Federal.