exegese de lucas 1.46-56 – cÂntico de maria david dias da
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EXEGESE DE LUCAS 1.46-56 – CÂNTICO DE MARIA
Por
David Dias da Silveira Junior
Monografia apresentada em cumprimento à disciplina “Exegese de
textos selecionados do Novo Testamento”, ministrada pela
Profª. Drª. Ivoni Richter Reimer, do curso de Mestrado em Novo
Testamento.
SEMINÁRIO TEOLÓGICO BATISTA DO SUL DO BRASIL
RIO DE JANEIRO
NOVEMBRO
2001
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
1. TRADUÇÃO, 1
1.1. Texto Grego, 1
1.2. Tradução literal, 1
1.3. Texto Almeida, 2
1.4. Avaliação da tradução de Almeida, 3
1.5. Conclusão, 3
2. CRÍTICA TEXTUAL, 6
2.1. Decodificação do aparato crítico, 6
2.2. Avaliação das variantes, 6
3. ANÁLISE LITERÁRIA, 10
3.1. Delimitação do texto, 10
3.2. Estrutura do texto, 11
3.3. Integridade e coesão do texto, 12
3.4. Análise das fontes escritas, 12
4. ANÁLISE REDACIONAL, 14
5. ANÁLISE DAS FORMAS, 18
5.1. Determinação do gênero e característica formal, 18
5.2. Lugar Vivencial, 18
5.3. Intenção do texto, 18
6. ANÁLISE DE CONTEÚDO, 19
6.1. Nova tradução, 19
6.2. Estudo de dois termos-chave, 20
7. ATUALIZAÇÃO, 24
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
INTRODUÇÃO
Este estudo visa demonstrar a importante tarefa da exegese1 que
é a de entender a fundo o texto, em nosso caso o bíblico, den-
tro do seu contexto. Para isso, procura através de uma aborda-
gem histórico-crítica2, redescobrir o passado bíblico levando
em consideração os aspectos: teológico, eclesiológico, socio-
lógico, econômico, político, cultural e religioso, de tal for-
ma que o que foi narrado se torne transparente e compreensível
hoje, possibilitando o entendimento do objetivo que o texto
teve em sua origem.
Aplicamos estes métodos na perícope do evangelho segundo Lucas
1.46-56 – Cântico de Maria ou Magnificat3, procurando nos apro-
ximar ao máximo da riqueza teológica contida neste hino. Para
tanto, primeiramente, apresentamos uma comparação em paralelo
entre o texto grego4, a tradução de Almeida revista e atualiza-
da e a nossa tradução literal, destacando as principais diver-
gências observadas. Em seguida, partimos para a crítica textu-
al decodificando o aparato crítico5 e analisando duas das vari-
antes encontradas. Passamos, então, a análise literária com os
objetivos de delimitar e estruturar o texto, verificar seu
grau de coesão e integridade e constatar se fez ou não uso de
fontes escritas. Posteriormente, realizamos a análise redacio-
nal buscando identificar o interesse do autor ao redigir o
cântico, destacando, também, a análise das formas através das
características formais, gênero, lugar vivencial e a intencio-
nalidade dos textos.
1 termo derivado da palavra grega εξηγησις / exegesis que significa descrição ou narração;
2 método de leitura diacrônica da Bíblia, isto é, histórica porque lida e analisa fontes histó-ricas procurando determinar sua formação e crescimento e, crítico porque emite juízo sobre es-sas fontes; 3 primeira palavra do Cântico de Maria na Vulgata;
4 texto da 27º edição do Novum Testamentum Greace – Nestlé-Aland;
5 parte inferior das páginas do NT grego que contém as variantes ao texto adotados pelo editor.
Após estes passos, realizamos a análise do conteúdo, esclare-
cendo o significado do texto em seu todo e em seus detalhes.
Finalmente, propomos a atualização do Cântico de Maria, atra-
vés da reflexão sob os aspectos pessoal, eclesial e social,
com o objetivo de apresentar a importância deste texto para o
indivíduo dentro de suas relações privadas, de seus compromis-
sos como membro do corpo de Cristo e como cidadão na socieda-
de.
“Interrogado pelos fariseus sobre quando viria o reino de
Deus, Jesus lhes respondeu: Não vem o reino de Deus com visí-
vel aparência. Nem dirão: Ei-lo aqui! Ou: Lá está! Porque o
reino de Deus está dentro de vós”. (Lucas 17.20-21)
1. TRADUÇÃO DE LUCAS 1.46-56 – CÂNTICO DE MARIA
1.1. Texto Grego
V. 46: Και ειπεν Μαριαµ, Μεγαλυνει η ψυχη µου τον κυριον,
V. 47: Και ηγαλλιασεν το πνευµα µου επι τω θεω τω σωτηρι µου,
V. 48: Οτι επεβλεψεν επι τνη ταπεινωσιν τηθωεινωςιν της δουλης αυτου.
ιδου γαρ απο του νυν µακαριουσιν µε πασαι αι γενεαι,
V. 49: οτι εποιησεν µοι µεγαλα ο δυνατος. και αγιον το ανοµα αυτου,
V. 50: και το ελεος αυτου εις γενεας και γενεας τοις φοβουµενοις αυτον.
V. 51: Εποιησεν κρατος εν βραχιονι αυτου, διεσκορπισεν υπερηφανους
διανοια καρδιας αυτων
V. 52: καθειλεν δυναστας απο θρονων και υψωσεν ταπεινους,
V. 53: πεινωντας ενεπλησεν αγαθων και πλουτουντας εξαπεστειλεν κενους.
V. 54: αντελαβετο Ισραηλ παιδος αυτου, µνησθηναι ελεους,
V. 55: καθως ελαλησεν προς τους πατερας ηµων, τω Αβρααµ και τω σπερµατι
αυτου εις τον αιωνα.
V. 56: Εµεινεν δε Μαριαµ συν αυτη ως µηνας τρεις, και υπεστρεψεν εις τον
οικον αυτης.
1.2. Tradução Literal
V. 46: E disse Maria: Engrandece a alma minha ao Senhor.
V. 47: E regozija o espírito meu em Deus, o salvador meu.
V. 48: Porque viu a pobreza da sua escrava, porque eis que a-
gora, todas as gerações me chamarão de feliz.
V. 49: Porque me fez grandes coisas o poderoso, e santo é o
seu nome.
V. 50: E a sua misericórdia é de geração e geração sobre os
que o temem.
V. 51: Com seu braço agiu poderosamente, dissipou o soberbo no
entendimento do seu coração.
2
V. 52: Derrubou os poderosos dos tronos e elevou os pobres.
V. 53: Encheu de bens a ponto de transbordar os que estavam
famintos e despediu vazios os ricos.
V. 54: Ajudou a Israel, seu servo, para lembrar-se da miseri-
córdia.
V. 55: Como falou para nossos pais, para Abraão e para sua se-
mente eternamente.
V. 56: Permaneceu Maria cerca de três meses em comunhão com
Isabel e voltou para a casa dela.
1.3. O Texto de Almeida
V. 46: Então disse Maria: a minha alma engrandece ao Senhor,
V. 47: e o meu espírito se alegrou em Deus, meu Salvador,
V. 48: porque contemplou na humildade da sua serva. Pois,
desde agora, todas as gerações me considerarão bem-aventurada,
V. 49: porque o poderoso me fez grandes coisas. Santo é o seu
nome.
V. 50: A sua misericórdia vai de geração em geração sobre os
que o temem.
V. 51: Agiu com o seu braço valorosamente; dispersou os que,
no coração, alimentavam pensamentos soberbos.
V. 52: Derribou do seu trono os poderosos e exaltou os humil-
des.
V. 53: Encheu de bens os famintos e despediu vazios os ricos.
V. 54: Amparou a Israel, seu servo, a fim de lembrar-se da sua
misericórdia
V. 55: a favor de Abraão e de sua descendência, para sempre,
como prometera aos nossos pais.
V. 56: Maria permaneceu cerca de três meses com Isabel e vol-
tou para casa.
3
1.4. Avaliação da Tradução de Almeida
V. 46 - a versão
• Substitui “e” por “então”;
V. 47 – a versão
• Substitui “regozija”, que está no presente, por “ale-
grou”, que está no passado;
V. 48 – a versão
• Traduz “ταπεινωσιν” como sendo humilde, embora a tradução
apropriada defina como pobreza;
• Substitui “escrava” por “serva”;
V. 49 – a versão
• Omite o “e” no início da parte “b” do versículo;
V. 50 – a versão
• Omite o “e” no início da frase;
• Substitui “e” por “em”;
V. 51 – a versão
• Traduz “κρατος” por “valorosamente” quando o original dá
ênfase ao “ato poderoso, poder, domínio”;
V. 52 – a versão
• Substitui “pobres” por “humildes”;
V. 53 – a versão
• Traduz “ενεπλησεν” por simplesmente “encher” quando o verbo
grego nos transmite a idéia de “encher a ponto de trans-
bordar”;
V. 55 – a versão
• Interpreta o verbo “falar” no sentido de “prometer”;
V. 56 – a versão
• Substitui o pronome “ela” pelo sujeito implícito “Isabel”
1.5. Conclusão
A versão de Almeida para Lucas 1.46-56 caracteriza-se por:
4
1. Realizar substituição de “e” por “então” no v. 46, mudando
a seqüência do texto. Com a utilização do “e” tem-se a i-
déia de continuidade da perícope anterior enquanto que a
substituição por “então” reflete a reação do sentimento de
Maria em conseqüência da declaração de Isabel. Não chega a
comprometer o conteúdo do texto;
2. Mudar o tempo verbal do presente para o passado, v. 47,
compromete a declaração de Maria, uma vez que, estando no
presente transmite-nos a verdadeira idéia de continuidade
do sentimento, enquanto que no passado a de um momento úni-
co, específico e temporário desta alegria;
3. Traduzir “ταπεινωσιν” como “humilde”, vv. 48 e 52, excede os
limites da competência de uma tradução, pois nos passa sim-
plesmente a idéia de respeito, reverência e submissão,
quando o correto seria “pobreza” que denota alguém que sen-
te falta do que lhe é essencial à vida. Tal interpretação
compromete a original mensagem do texto;
4. Substituir “escrava” por “serva” distorce, também, o senti-
do original, uma vez que, “servo” é aquele que presta ser-
viços, criado ou servente enquanto que a palavra “escrava”
designa alguém que está sujeito a um senhor como proprieda-
de dele. Compromete a mensagem do texto.
5. Apresentar pequenas omissões do original grego, como, p.
ex., as introduções copulativas com και (=e), no início dos
vv. 49b e 50, sem alteração substancial de conteúdo;
6. Traduzir, no v. 51, “κρατος” por “valorosamente” ofusca a
intenção original de exaltar o poder e a soberania de Deus,
como “domínio, poder e ato poderoso”. Comprometendo o con-
teúdo do cântico;
7. Traduzir, v. 53, de forma imprecisa “ενεπλησεν”, como sendo,
simplesmente, “encher” não retrata a profundidade do senti-
do original que é “encher a ponto de transbordar”, dando-
nos a idéia de plenitude, de sobejar e até mesmo de contá-
gio;
5
8. Substituir o verbo “falar” por “prometer” modifica o senti-
do original pois nos passa a idéia que Deus se viu obrigado
pela promessa que fez. Para nós a palavra de Deus tem “pe-
so” de promessa, mas, para Ele é simplesmente uma palavra
(falar) e “...eu velo sobre a minha palavra para a cum-
prir.” (Jeremias 1.12)
2. CRÍTICA TEXTUAL
2.1. Decodificação do aparato crítico
V. 46: A sigla utilizada antes de Μαριαµ do v.46 aponta para
uma substituição. Μαριαµ é substituída por Elisabeth nos se-
guintes manuscritos: códices latinos a e b, texto original do
minúsculo 1, Irineu na versão armênica, Orígenes em manuscri-
tos latinos, Niceta e conjecturas de comentaristas.
V. 48: A sigla utilizada antes de επι aponta para a inclusão da
palavra κυριος em um manuscrito maiúsculo D.
V. 50: 1)A sigla indica que as palavras contidas no intervalo
′ειs γενεαs και γενεας foram substituídas por εις γενεας γενεων nos ma-
nuscritos: maiúsculos A C2 D(*) Θ, minúsculo 33, texto majoritá-
rio (m), códices latinos a b c com pequenas alterações, versão
Siríaca Heracleana e 2)Idem por εις γενεαν και γενεαν nos manuscri-
tos: maiúsculos N Ψ, famílias dos minúsculos 1 e 13, minúscu-
los 579, 700, 1424, 2542, no lecionário 2211, 3)Idem por
απο γενεας εις γενεαν nos minúsculos 565, 1241, por poucos outros
manuscritos, vulgata edição Clementina com pequenas divergên-
cias e versão copta saídica, e 4)o texto proposto por Nestlé-
Aland (=txt) é testemunhado pelos manuscritos unciais B C* L W
Ξ, vulgata, versão siríaca peshita, e versão copta boáirica.
2.2. Avaliação da variante do v. 46, v. 48 e do v. 50
1) Variante do v. 46 sobre a substituição de “Maria” por “Eli-
sabeth” em alguns manuscritos.
Evidência Externa:
Em termos de quantidade, a utilização de “Maria” conta com a
maioria dos manuscritos, uma vez que o aparato crítico não faz
referência aos textos que Nestlé-Aland considerou original.
7
Isto nos faz entender que, com exceção dos códices latinos a e
b(fins séc. II), texto original do minúsculo 1 (séc. IX), Iri-
neu versão armênica (fins séc. II), Orígenes em manuscritos
latinos (fins séc. II), Niceta e conjecturas de comentaristas,
todos os demais manuscritos testemunham a 27ª versão de Nes-
tlé-Aland.
Evidência Interna:
Pelos critérios de que “o texto mais curto deve ser o preferi-
do” e “o texto mais difícil costuma ser o original”, nesta va-
riante, não nos permite fazer uma avaliação fundamentada. Ob-
servamos, no entanto, que a utilização de “Maria” é o texto
que melhor se harmoniza com as tendências do autor.
Conclusão:
Tomando por base os critérios de evidência externa e interna
somos da opinião, concordando com Nestlé-Aland, que o texto
que utiliza “Maria” tem maior probabilidade de ser o original.
2) Variante do v. 48 sobre a inclusão de “κυριος” ao texto.
Evidência Externa:
Em termos de quantidade, a omissão conta com a maioria dos ma-
nuscritos, pois somente o maiúsculo D apóia a inclusão de
“κυριος”. O aparato crítico pressupõe que todos os demais manus-
critos e versões omitam.
Evidência Interna:
a) Uma regra da evidência interna sustenta que “o texto mais
curto deve ser o preferido”, por este critério a omissão de
“κυριος” pode ser considerada como original;
b) Outra regra define que “o texto mais difícil costuma ser o
original”, então, a omissão deve ser preferida, já que o su-
jeito “κυριος” está oculto (implícito) no texto.
8
Conclusão:
Considerando os critérios de evidência externa e interna somos
da opinião que o texto sem o “κυριος” tem maior probabilidade de
ser o original, assim como é apresentado na 27ª edição de Nes-
tlé Aland.
3) Variante do v. 50 sobre a substituição de palavras no in-
tervalo.
Evidência Externa:
a) Em termos de quantidade o texto proposto por Nestlé Aland
conta com a maioria dos manuscritos.
b) A idade dos manuscritos apresenta o seguinte quadro:
Textos que apóiam Nestlé Aland: B(IV), C*(V), L(IX), W(V),
Ξ(VI), vulgata, versão siríaca peshita e versão copta boáiri-
ca.
Textos que substituem: 565(IX), 1241(XII), vulgata edição Cle-
mentina(V), versão copta saídica e por poucos outros manuscri-
tos.
Observamos que o texto que Nestlé Aland considerou original é
apoiado pelos manuscritos mais antigos o que nos leva a prefe-
ri-lo.
c) Quanto ao tipo de texto ao qual pertencem os manuscritos:
Alexandrino Ocidental Cesareano
Nestlé Aland B,C,L,v.copta W -
Substituição v.copta - 565
O texto adotado por Nestlé Aland é testemunhado por quatro ma-
nuscritos do tipo alexandrino, que favorece sua originalidade,
enquanto que a subsituição, somente por um.
9
Evidência Interna:
O emprego de ambas as construções é válido porque tanto as mu-
danças gramaticais quanto de significado não torna o texto
“mais curto ou mais longo”, nem o faz “mais difícil ou mais
fácil”, tampouco nos permite identificar “o texto que melhor
se harmonize com as tendências do autor quanto a estilo e vo-
cabulário”.
Conclusão:
Considerando, principalmente, o critério de evidência externa,
somos da opinião que o texto proposto por Nestlé Aland tem
maior probabilidade de ser original.
3. ANÁLISE LITERÁRIA
3.1. Delimitação do texto
Podemos constatar que há consenso6, exceto quanto ao v. 56, so-
bre a delimitação deste texto. Por se tratar de um cântico,
provavelmente proveniente de um material exclusivo já que ne-
nhum outro evangelho o apresenta, se destaca bem tanto da pe-
rícope anterior Lucas 1.39-45 sobre a visita de Maria a Isa-
bel, quanto da posterior Lucas 1.57-66 que narra o nascimento
de João Batista. Não há dúvida de que Lucas 1.46-56 deva ser
diferenciado da perícope anterior e posterior, e isto pelos
seguintes motivos:
3.1.1. A perícope anterior – Lucas 1.39-45
• Narrativa sobre a visita de Maria a Isabel;
• Ocorreu na região montanhosa na cidade de Judá;
• Reconhecimento e exaltação do Senhor, ainda no ventre,
por Isabel.
3.1.2. A perícope posterior – Lucas 1.57-66
• Introduz um assunto novo que tem seu centro o nascimento
de João Batista;
• Introduz personagens novos não se referindo mais a Maria;
Quanto ao v. 56, para alguns autores7 parece duvidoso que deva
realmente vir conectado com o v. 55, como sugere a maioria das
versões. Para eles, o v. 56 aparece como uma conclusão que não
está diretamente ligada aos versículos imediatamente anterio-
6 Existe consenso quanto a delimitação do cântico como perícope, entretanto, há divergência quanto à localização do v. 56, se antes do v. 46 ou depois do v. 55. Cf nota 7. 7 Cf, p. ex., em Pikaza J. A Teologia de Lucas. São Paulo: Ed. Paulinas, 1978. p. 26.
11
res e aos posteriores, sugerindo que estaria melhor localizada
após o v. 45 formando uma só perícope (Lucas 1.39-45,56). En-
tretanto, em nossa opinião, o v. 56 estaria mais apropriado,
no contexto, como o encerramento do período em que Maria per-
maneceu com Isabel, vindo exatamente como nos sugere a maio-
ria das versões logo após o v. 55, já que de acordo com a lei-
tura do evangelho de Lucas percebe-se que o autor entende que
Maria esteve com Isabel até esse período.
3.2. Estrutura do texto
3.2.1. Diagramação
1,46a - Introdução
46b-55 – Cântico de Maria
46b-48a – Situação e motivo da alegria
48b-50 - Certeza da bem-aventurança através de Deus
51-55 - Ação de Deus
56 - Conclusão
3.2.2. Constatação de amarras
A “amarração” do texto está totalmente determinada na narrati-
va do cumprimento dos anseios do Antigo Testamento através dos
atos poderosos de Deus ao longo da história para com o povo de
Israel e mais especificamente através de Maria com o nascimen-
to de Jesus – O Salvador. Constatamos as repetições dos ter-
mos: κυριον (v.46), Θεω (v.47), σωτηρι (v.47), εποιησεν (v.49),
αγιον (v.49), bem como, o pronome demonstrativo αυτου para se
referir a Deus como um bordão a marcar o ritmo do cântico. Es-
tes diferentes aspectos da manifestação de Deus (Senhor, Deus,
Salvador, Poderoso, Santo) encontradas no texto, são as “amar-
ras” que os ligam à Maria individualmente (vv. 46-49), aos po-
12
bres de maneira geral (vv. 52-53) e a Israel como um todo (vv.
54-55).
3.2.3. Relações de convergência e oposição
Pontos de convergências entre:
Deus e Maria – vv. 46-47;
Deus e os humildes – v. 52;
Deus e os famintos – v. 53;
Deus e Israel – v. 54;
Deus e Abraão – v. 55;
Maria e Isabel – v. 56;
Pontos de oposição entre:
Deus e os que alimentavam pensamentos soberbos – v. 51;
Deus e os poderosos – v. 52;
Deus e os ricos – v. 53;
3.3. Integridade e coesão do texto
A narrativa de Lucas 1.46-56 apresenta um problema que nos
chamou atenção que é o abrupto surgimento do v. 56 como estra-
nho ao cântico. Observando o texto que foi modelado no cântico
de Ana (1 Samuel 2.1-10) e em citações de salmos (p. ex. Sl
34.3s; 44.4-6; 111.9, 117.15s, etc.), notamos que tanto a pe-
rícope anterior quanto a posterior, se apresentam como blocos
isolados que foram “costurados” por Lucas, o v. 56 é uma des-
sas “costuras”. Todavia, esta hipótese deverá ser aprofundada
no estudo sobre a redação do texto.
3.4. Análise das fontes escritas
Na análise das fontes escritas, no caso específico da perícope
Lucas 1.46-56, encontramos grandes dificuldades, pois não e-
13
xiste o correspondente sinótico, o que nos impede de fazer um
estudo em paralelo. Neste primeiro momento, apresentamos duas
análises das fontes escritas, tomando por base o texto em por-
tuguês da versão de Almeida revista e atualizada, a saber:
Vv. 46-55 e 1 Samuel 2.1-10 – Pela característica da citação,
chega-se à conclusão preliminar que Lucas buscou inspiração no
cântico de Ana, e isto, devido às semelhanças apresentadas,
como por exemplo: a intervenção especial de Deus em favor da
suplicante (Lucas 1.46-49; 1 Samuel 2:1), depois passa à evo-
cação das atitudes de Deus em geral (Lucas 1.50-55; 1 Samuel
2.2-10) e por fim apresenta uma série de antíteses pondo em
contraste, especialmente, os ricos e os pobres, os fracos e os
poderosos (Lucas 1.50-53; 1 Samuel 2.2-10). Apesar disto, as
afinidades se encontram mais no nível dos temas e idéias do
que no nível do vocabulário.
Vv. 49 e Salmo l44.4-6s – Apesar desta citação referir-se a um
texto da Septuaginta, chegamos à conclusão que não houve uti-
lização literal da fonte e sim afinidade, isto é, Lucas utili-
zou-se de formulações literárias inspiradas na Escritura, como
por exemplo, “de geração em geração” (v.50)8, “despedir de mãos
vazias”(v. 53)9, e “lembrando de sua misericórdia”(v. 54)10.
Vv. 54-55 e Isaías 41.8-9 – Podemos estabelecer um paralelo
entre estes dois textos, principalmente, pela semelhança de
vocabulário, no qual Israel é chamado “servo” de Deus. Conse-
guimos neste trecho perceber um aspecto da teologia de Lucas,
que sustenta a fidelidade de Deus em socorrer Israel, povo que
foi escolhido e protegido por Ele.
8 Salmos 100.5; 103.11
9 Jó 22.9
10 Salmos 98.3; Hc 3.2
4. ANÁLISE REDACIONAL
A análise redacional, da mesma forma que a análise das fontes
escritas no caso específico da perícope Lucas 1.46-56, nos o-
ferece um alto grau de dificuldade, pois não temos como esta-
belecer um estudo comparativo com as fontes utilizadas, nos
impedindo de constatar repetições de termos, estilos, idéias e
destaques teológicos ao longo do texto. Apesar disto, merece
destaque em nossa análise o fato de não existir paralelo sinó-
tico do cântico de Maria, e isto, pelas seguintes razões:
1º) O evangelho segundo Mateus, que foi elaborado para Judeus,
cita abundantemente o Antigo Testamento com o objetivo de pro-
duzir nos leitores a convicção de que Jesus Cristo é o Messi-
as, representando o cumprimento das profecias. Daí podemos
compreender a genealogia de Jesus retroceder, somente, até A-
braão e a ênfase que é dada aos costumes judaicos. O objetivo
de Mateus, seria perfeitamente complementado pela teologia do
cântico, pois, contém declarações que fazem parte da sua pró-
pria teologia que é ampla e dá ênfase na vida pessoal, social
e política, reinvindicando uma libertação integral, onde dívi-
das oriundas da opressão político-sócio-econômica fossem per-
doadas e vidas voltassem a ter paz com possibilidade de viver
com dignidade, liberdade e construção social e cultural autô-
nomas, a partir da graça de Deus que são igualadas através da
obra salvadora de Jesus Cristo11. Possivelmente, Mateus não te-
ve acesso a esta fonte, uma vez que este evangelho (+/- 80
d.C.) foi escrito antes de Lucas (85-90 d.C.) que fez uso, a-
lém de Marcos e fonte Q, de material exclusivo.
2º) O evangelho segundo Marcos, além de ser o primeiro é o
mais conciso de todos. Foi escrito originalmente para gentios,
11
Cf. o artigo de Ivoni Richter REIMER, Perdão de dívidas em Mateus e Lucas. Por uma economia sem exclusões, Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, n. 33, p.138, 1999.
15
isto é, não-Judeus, com o objetivo evangelístico de apresentar
Jesus Cristo como Filho de Deus que veio para redimir a huma-
nidade. Este objetivo Marcos procurou atingir através de um
texto reduzido, selecionando ao máximo os fatos e as mensagens
mais relevantes da vida de Jesus, não sendo pertinente, por-
tanto, apresentar o cântico de Maria, principalmente, porque
os gentios não viviam debaixo da promessa de Deus a Abraão,
conseqüentemente, não aguardavam a vinda do Messias.
3º) O evangelho segundo Lucas é o livro mais longo do Novo
Testamento, por isso mesmo, mais rico em detalhes do que os
outros. Apesar de Lucas ter um destinatário específico, Teófi-
lo (Lucas 1.3 e Atos 1.1), percebemos em seus escritos uma o-
bra ampla com propósitos evangelísticos, apologéticos e teoló-
gicos para toda humanidade.
Partindo destas observações, chegamos à conclusão que Lucas
verdadeiramente compreendeu, através de acurada investigação,
o que é seguir a Jesus, e elaborou sua obra (Evangelho e A-
tos). Como Jesus ensinou12, o autor dedica atenção especial ao
ser humano, sobretudo, aos pobres, humildes, pequenos, pecado-
res públicos, marginalizados e principalmente as mulheres, es-
tas que eram tão ausentes da vida social no mundo Palestino.
Ele mostra, através deste cântico, que Jesus é o Messias e
veio justamente para eles, trazendo-lhes justiça e libertação.
Estas, não para que simplesmente sejam aceitos na sociedade,
nem tampouco para que vivam em função da Parousia13, mas, para
que eles comecem a viver o Reino de Deus imediatamente (Lucas
17:20-21), construindo uma nova sociedade que tenha novos va-
lores, e, a partir daí, escrevam uma nova história onde todos
tenham direito à liberdade e à vida.
12
através de acurada investigação e inspiração do Espírito Santo, pois Lucas não conviveu com Jesus; 13
ou a segunda vinda de Cristo;
16
Portanto, o Magnificat, que à primeira vista pode passar desa-
percebido, se revela como perícope fundamental no contexto in-
tegral da teologia de Lucas, proclamando: “a intervenção (de
Deus) em favor de Maria (vv. 46-49), a ocasião para a revela-
ção das “políticas” de Deus em favor dos pobres (vv. 50-53) e
marca a realização decisiva da salvação e das promessas em fa-
vor de Israel (vv. 54-55)”14.
Estrutura do Evangelho de Lucas15
1.1-4 – Prefácio
1.5-2.52 – O advento do salvador
3.1-4.13 – A preparação do salvador para seu ministério
4.14-9.50 – O ministério na Galiléia
9.51-19.28 – A viagem para Jerusalém
19.29-21.38 – O ministério em Jerusalém
22.1-24.53 - A partida do salvador
A harmonia observada no contexto literário menor é evidente,
sobretudo, quanto a perícope anterior onde podemos verificar
correspondências literárias entre as duas. Ao olharmos mais de
perto para o v. 48b “Pois, desde agora, todas as gerações me
considerarão bem-aventurada,” percebemos o reflexo do v. 45
“Bem-aventurada a que creu, porque serão cumpridas as palavras
que lhe foram ditas da parte do Senhor.”, também constatamos
semelhanças de vocabulário tanto mais notáveis quanto se trata
de termos pouco freqüentes em Lucas, p. ex., v. 47 “e o meu
espírito se alegrou em Deus, meu Salvador,” nos lembra a ex-
clamação de Isabel no v. 44b “a criança estremeceu de alegria
dentro de mim.”, e ainda o v. 49 “porque o Poderoso me fez
grandes coisas. Santo é o seu nome.”, nos remete ao v. 35
14
Cf em Gourgues, Michel. Os hinos do Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 1995 p.51 15 Kevan, E.F. O Evangelho segundo S. Lucas, em: Davidson, F. (ed.) O Novo Comentário da Bí-
blia. Tradução de SHEDD, R.D. São Paulo: Vida Nova, 1997. pp 1029 a 1059.
17
“Respondeu-lhe o anjo: Descerá sobre ti o Espírito Santo, e o
poder do Altíssimo te envolverá com a sua sombra; por isso,
também o ente santo que há de nascer será chamado Filho de
Deus.” E v. 37 “Porque para Deus não haverá impossíveis em to-
das as suas promessas”. Semelhantemente, na perícope posteri-
or, segue o nascimento de João Batista, aquele mesmo que ainda
no ventre de sua mãe (v.41) estremeceu de alegria quando da
chegada de Maria com o Salvador também no ventre. O contexto
literário menor mostra-nos o encontro de duas mães que traziam
consigo pessoas peculiares que já estavam intimamente (espiri-
tualmente) ligadas, com o objetivo de que um (João Batista –
aquele que prepararia o caminho) fosse o precursor do outro
(Jesus Cristo – o Salvador). No contexto literário maior, tam-
bém, podemos ver o cântico inserido e elaborado de forma es-
tratégica nos escritos de Lucas. Se fixarmos um pouco mais a
visão, perceberemos que a estrutura do Magnificat é ampliada
através das linhas do evangelho, partindo da salvação indivi-
dual de Maria, a todos os excluídos e depois a todo Israel de
forma geral e finalmente a toda humanidade levando em conta
que essa salvação era para ser vivida no reino que está no
meio (em) de nós.
5. ANÁLISE DAS FORMAS
5.1. Determinação do gênero e característica formal
O cântico de Maria ou Magnificat se enquadra entre os hinos16
do Novo Testamento. Podemos identificar três aspectos diferen-
tes dos relacionamentos de Deus, a saber:
1º) Vv. 46-49 – referem-se à individualidade de Maria;
2º) Vv. 52-53 – enfocam os pobres em geral;
3º) Vv. 54-55 – destacam Israel como um todo (nação);
5.2. Lugar Vivencial
Tomando por base esses aspectos, sugerimos como lugar vivenci-
al o propósito catequético/evangelístico de trazer uma visão
completa de como a salvação que Deus oferece se manifesta na
história.
5.3. Intenção do texto
A intenção do texto de Lucas 1.46-56 está intimamente ligada
com o lugar vivencial que lhe atribuímos. Se o lugar vivencial
traz uma visão de como Deus oferece a salvação através da his-
tória, a intenção preliminar, conforme lemos em Lucas 1.3-4,
visa ratificar os fundamentos17 em que Teófilo, primeiro desti-
natário do evangelho, foi instruído.
16
Cf em Gourgues, Michel. Os hinos do Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 1995. p. 46 17
Fundamentos estes que eram contrários às escalas de valores morais e espirituais de então, mas, que foram anunciados por Lucas através de suas obras(evangelho e atos), onde a atenção está voltada não para os que são importantes aos olhos da sociedade e sim àqueles que esta mesma sociedade exclui e oprime, que são os pobres, escravos, mulheres e crianças, enfatizando que eles são os recipientes do Reino de Deus (Lucas 1.48, 51-53; 4.18)
6. ANÁLISE DO CONTEÚDO
6.1. Nova tradução
Chegando a esta etapa da exegese propomos, a seguir, uma nova
tradução do texto de Lucas 1.46-56, tomando por base o princí-
pio da equivalência dinâmica, procuramos apresentar um texto
perfeitamente adequado à compreensão dentro da língua portu-
guesa e consideramos todas as descobertas de conteúdo feitas
ao longo do trabalho de interpretação.
V. 46 – E18 disse Maria: a minha alma engrandece ao Senhor
V. 47 – e meu espírito se alegra19 em Deus, meu Salvador,
V. 48 – porque viu a pobreza da sua escrava20. De agora em di-
ante todas as gerações me chamarão de bem-aventurada,
V. 49 – porque o Poderoso me fez grandes coisas e santo é o
seu nome.
V. 50 – A sua misericórdia é de geração em geração sobre os
que O temem.
V. 51 – Com seu braço forte agiu poderosamente21 dissipando os
que tinham soberba no coração.
V. 52 – Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os po-
bres.
V. 53 – Encheu de bens a ponto de transbordar22 os que estavam
famintos e despediu vazio os ricos.
V. 54 – Ajudou a seu servo Israel lembrando-se de sua miseri-
córdia
V. 55 – como falara23 a nossos pais, a Abraão e toda a sua des-
cendência eternamente.
18
optamos pela tradução literal de και = e, por expressar melhor a seqüência do texto; 19
empregamos “alegra” no lugar de “regozija” por este não ser um verbo tão popular em nossa cultura; 20
utilizamos as traduções literais dos termos gregos ταπεινωσιν e δουλης, respectivamente; 21
substituímos “valorosamente” por “poderosamente” como no original transmite a idéia de po-der; 22
a tradução literal de ενεπλησεν enfatiza melhor o contraste entre a atuação de Deus para com os famintos e os ricos;
20
V. 56 – Maria ficou com Isabel cerca de três meses e depois
voltou para casa.
6.2. Estudo de dois termos-chave
A Análise de Conteúdo interessa-se pelo conteúdo literal e in-
tegral dos termos mais relevantes e tem por objetivo evidenci-
ar seus aspectos: teológico, eclesiológico, sociológico, este
último dentro das perspectivas: econômica, política, cultural
e religiosa.
Tradução literal dos termos encontrados nos versículos:
v. 47 - σωτηρ: (salvador – preservador) – O vocábulo grego e
cognatos, significam ações ou resultados de livramentos ou
preservação de algum perigo ou enfermidade, subentendendo se-
gurança, saúde e prosperidade. Nas escrituras, o movimento
parte dos aspectos mais físicos para o moral e espiritual. As-
sim é que as porções mais antigas do Antigo Testamento dão ên-
fase aos meios dos servos individuais de Deus escaparem das
mãos de seus inimigos, a emancipação de Seu povo da escravidão
e o estabelecimento dos mesmos numa terra de abundância; já as
posteriores dão maior ênfase às condições e qualidades morais
e religiosas da bem-aventurança e estende suas amenidades além
das fronteiras nacionais. Já no Novo Testamento, mais especi-
ficamente nos evangelhos sinóticos, a palavra salvação é men-
cionada por Jesus apenas uma vez (Lucas 19.9), onde pode refe-
rir-se a si mesmo, como a personificação da salvação que pro-
porcionara o perdão a Zaqueu ou aquilo que é evidenciado pela
transformação da conduta do publicano. Nosso Senhor, todavia,
empregou “salvar” e termos semelhantes para indicar primeira-
mente o que Ele viera fazer (Lucas 4.18, Mateus 18:11, Lucas
9.56, Mateus 20.28), e, em segundo lugar para indicar o que
23
expressa melhor a fidelidade da palavra de Deus - ελαλησεν.
21
Ele exigia da parte do homem (Marcos 8.35, Lucas 7.50,8.12,
13.24. Mateus 10.22). Outro aspecto interessante sobre a sal-
vação temos no livro de Atos que traça a proclamação (Atos
16.17) da salvação em seu impacto primeiramente sobre as mul-
tidões, as quais são exortadas: “Salvai-vos desta geração per-
versa” (Atos 2.40) e indica-lhes o arrependimento, a remissão
dos pecados, a recepção do Espírito Santo e também ao indiví-
duo que se encontra oprimido sob todos os aspectos24.
V. 54 - ελεος: (misericórdia) – No Novo Testamento a noção es-
pecífica de misericórdia – compaixão para com alguém que sofra
necessidade ou está em angústia desesperada, ou que está em
dívida e não pode solicitar tratamento favorável – é transmi-
tida pela palavra eleos, oiktirmos e splanchnon (e verbos cog-
natos). Deus é o pai da misericórdia (2 Coríntios 1.3; Êxodo
34.6; Neemias 9.17; Salmos 86.15, 103.8-14; Joel 2.13; Jonas
4.2)25.
Passaremos a análise em conjunto destes dois termos-chave, o
que faz necessário a compreensão dos cenários político, econô-
micos e sociais do Império Romano:
Tomando por base o primeiro século da era cristã, que compre-
ende o período em estudo (+/- 85-90), destacamos politicamente
a ocupação romana e as estruturas de poder das elites religio-
sas e econômicas judaicas. O sistema político romano, além de
escravagista, era mantido através de uma política opressora
com taxação e arrecadação de inúmeros impostos que geravam dí-
vidas e escravos, pois a carga tributária era tão grande que
poucos podiam pagar fazendo com que muitos entregassem, aos
credores, seus próprios filhos e filhas. Como se isso não bas-
24
DOUGLAS, J.D. (ed. org.). O novo dicionário da Bíblia, p. 1464-1465. 25
DOUGLAS, J.D. (ed. org.). O novo dicionário da Bíblia, p. 1054.
22
tasse, a guerra também era outra forma de endividamento de to-
da a população sob expansão do Império Romano. Todavia, para
que esse sistema funcionasse em sua expressão social, política
e econômica, era necessário que andasse em acordo com os pode-
rosos da terra (δυναστας), que incluíam algumas elites religio-
sas. Para tanto, o exército romano com sua força coercitiva
assegurava toda a estrutura social, econômica e política do
Império, através da prática da tortura, violação de mulheres e
crucificação de pessoas26. Foi neste cenário que Lucas regis-
trou o cântico, como um grito de esperança onde Maria, como
representante de todos os endividados e pobres (v. 48
ταπεινωσιν) que esperavam um salvador (σωτηρ), reconhece e se
alegra na grandeza de Deus. Compreendemos que a maior glória e
testemunho da santidade, da salvação e da misericórdia (ελεος)
de Deus é ele se aliar e assumir a situação dos pobres, a fim
de libertá-los. Podemos ver Deus invertendo as situações soci-
ais para criar um novo modelo de relacionamento entre as pes-
soas e os grupos humanos, onde os pobres e fracos são libertos
daqueles que orgulhosamente os exploram e oprimem (Lucas 1.51-
53; 1 Samuel 2.7-8; Salmo 107.9)27. Esta é a forma de Deus agir
(Deuteronômio 15.1-18; Êxodo 21.1-11) desde os tempos do Anti-
go Testamento, intervindo diretamente nas relações econômicas
com o objetivo de evitar o empobrecimento e a perda de liber-
dade das pessoas, gerando em cada uma delas uma satisfação
plena que transcende o mundo temporal e visível e se relaciona
diretamente com a realidade espiritual e eterna a revelação
histórica do Bem, da Beleza e da Verdade na pessoa do Deus-
homem, Cristo Jesus28.
26
Cf. o artigo de Ivoni Richter REIMER, Perdão de dívidas em Mateus e Lucas. Por uma economia sem exclusões, Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, n. 33, p.139-144, 1999. 27
Cf. STORNIOLO, Ivo, Como ler o evangelho de Lucas – os pobres controem a nova hisória. 4.ed. São Paulo: Paulus, 1992. p. 22. 28
CAIRNS, Earle E. O Cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã. 2.ed. São Paulo: Vida Nova, 1995. p.33.
7. ATUALIZAÇÃO DE LUCAS 1.46-55
O texto concentra-se na reação de Maria após conscientizar-se
da vinda do Salvador através dela. Este hino atesta a necessi-
dade que cada indivíduo, inclusive e principalmente os margi-
nalizados, e toda a humanidade têm de um libertador, tanto na
esfera espiritual quanto natural. Para isso o texto rejeita as
atitudes dos soberbos, poderosos e dos ricos em escravizar e
subjugar os que, aos olhos deles, são inferiores.
Ao trazermos este texto para a nossa conjuntura política, so-
cial e religiosa, percebemos, ainda que chocados, que existem
semelhanças em relação às necessidades daquela época, vejamos:
Olhando o aspecto político atual chegamos à conclusão que ain-
da hoje existe uma política androcêntrica que se fortalece com
a opressão do povo, com a má distribuição de renda onde poucos
vivem com muito e muitos sobrevivem com pouco ou quase nada,
onde coexistem o luxo e a pobreza, a modernidade e escravidão
e onde se observam as mais variadas formas de discriminação
social ainda que, por vezes, de forma velada. As atitudes hu-
manas, inclusive dos cristãos, nos fazem lembrar das atitudes
dos Romanos da época de Lucas, onde os interesses pessoais es-
tão em primeiro lugar, não importando o que se possa fazer pa-
ra alcançá-lo. Um texto rabínico retrata bem essa situação
(Shab 33b):
“Rabi Jehuda, Rabi José e Rabi Shimeon (aproxi-
madamente em 150 d.C.) estavam sentados juntos, e Je-huda, o filho de um prosélito, estava com eles. Rabi Jehuda disse: “Como são bonitas as obras dessa nação (Roma): eles fizeram mercados, pontes e locais de ba-nhos”. Rabi José silenciou. Rabi Shimeon bem Jochai, porém, falou: “Tudo o que eles fizeram, fizeram apenas para suas próprias necessidades. Fizeram mercados para ali colocarem prostitutas; fizeram banhos para eles
24
próprios se deliciarem neles; fizeram pontes para ali cobrarem pedágio”.29
A revelação de Deus na história se estende às relações sócio-
economicas, com o objetivo de que exista em nós um sentimento
de perdão e compaixão ao próximo, de maneira que lhe possibi-
lite a reconstrução da vida. A humanidade precisa com urgência
que o Messias nasça, não mais através de uma só mulher, mas
através de todos quantos crerem, trazendo libertação deste
sistema corrupto em que o homem se encontra, para que viva em
um novo sistema, um novo reino onde todos sejam livres e te-
nham direito a vida, onde não existe governante humano, mas
espiritual porque este reino está em e entre nós (Lucas
17.21).
Certamente Maria pode compreender a plenitude (ενεπλησεν) que o
Messias traria e a levou transbordar: “a minha alma engrandece
ao Senhor e meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador” (Lu-
cas 1.46-47).
29
Citação extraída do artigo de REIMER, Ivoni Richter, Perdão de dívidas em Mateus e Lucas. Por uma economia sem exclusões, Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, n. 33, pp.144-145, 1999.
CONCLUSÃO
Em nosso estudo, exegese do evangelho de Lucas 1.46-56 - o
cântico de Maria, procuramos deixar o texto bíblico falar por
si mesmo e nos maravilhamos com tamanha riqueza teológica con-
tida nesta perícope. Para tanto, fizemos uso de métodos cien-
tíficos e os distribuímos ordenadamente ao longo dos capítu-
los.
Inicialmente, fizemos uma avaliação da tradução de Almeida re-
vista e atualizada e observamos que existem algumas divergên-
cias na tradução do texto original, o que por vezes oculta a
profundidade que o autor queria transmitir. Apesar disto, es-
sas diferenças não chegam a comprometer o conteúdo teológico
do texto que temos acesso na língua portuguesa apresentada na
versão citada.
Em seguida, através da crítica textual, analisamos a versão do
texto grego proposto por Nestlé-Aland e as diferenças apresen-
tadas entre os diversos manuscritos que contém cópias do texto
em questão. Para isso, obedecemos a critérios para avaliação
de variantes que se dividem em: externos e internos. Os pri-
meiros definem que: 1 – os manuscritos mais antigos devem ser
preferidos; 2 – entre os manuscritos mais recentes, devem ser
preferidos àqueles que podem remontar a um original antigo; 3
– a qualidade dos manuscritos que reproduzem uma variante deve
predominar sobre a mera quantidade; 4 – variantes cujos manus-
critos atestem ampla expansão geográfica devem ser preferidas
àquelas originadas em um mesmo local; e 5 – variantes testemu-
nhadas pelo tipo de texto alexandrino devem ser preferidas às
demais, sobretudo por sua neutralidade estilística e sua bre-
vidade. Já os internos priorizam: 1 – as leituras mais difí-
ceis, desde que não sejam decorrentes de erros de audição ou
visão; 2 – as leituras mais breves; 3 – as leituras que não
26
estejam harmonizadas com textos paralelos; 4 – textos de lin-
guagem mais rudimentar, em detrimento daqueles com aperfeiçoa-
mentos estilísticos; 5 – as variantes que melhor reflitam as
características teológicas e estilísticas do próprio autor; e,
6 – a variante que melhor consiga explicar a origem das de-
mais. Concluímos a etapa da crítica textual avaliando qual das
variantes poderia corresponder com maior probabilidade ao tex-
to originalmente escrito pelo autor bíblico.
Passamos, então, a análise literária com o objetivo de distin-
guir o nosso texto como uma unidade autônoma de sentido, ob-
servando se a perícope forma um todo coeso e orgânico, desta-
cando seu assunto central ou pensamento normativo que a difere
do tema anterior quanto posterior. Chegamos a conclusão de que
há consenso, exceto o v. 56, quanto a delimitação do texto já
que ele se destaca bem tanto da perícope anterior (Lucas 1.39-
45) sobre a visita de Maria a Isabel, quanto da posterior (Lu-
cas 1.57-66) que narra o nascimento de João Batista. Todavia,
embora existam estudiosos que discordem com relação ao posi-
cionamento do v. 56, entendemos que deva permanecer logo após
o v. 55, como propõe a maioria das versões disponíveis, pois
Lucas entende que Maria permaneceu com Isabel até esse perío-
do.
Posteriormente realizamos a análise da redação o que nos ofe-
receu um alto grau de dificuldade, pois, no caso específico da
perícope Lucas 1.46-56, não temos como estabelecer um estudo
comparativo com as fontes utilizadas, já que não existe para-
lelo sinótico, nos impedindo de constatar as repetições de
termos, estilos, idéias e destaques teológicos ao longo do
texto. Concluímos, no entanto, que Lucas buscou inspiração no
cântico de Ana, em citações de salmos e em trechos de Isaías
através da septuaginta, e isto, pelas seguintes razões: 1 -
observamos a característica da intervenção especial de Deus em
27
favor da suplicante (Lucas 1.46-49; 1 Samuel 2.1); 2 – a evo-
cação das atitudes de Deus em geral (Lucas 1.50-55; 1 Samuel
2. 2-10); 3 – apresenta uma série de antíteses pondo em con-
traste, especialmente, os ricos e os pobres, os fracos e os
poderosos (Lucas 1.50-53; 1 Samuel 2.2-10); 4 – formulações
literárias inspiradas nas escrituras, como por exemplo, “de
geração em geração” (Lucas 1.50 e Salmos 100.5; 103.11); “des-
pedir de mãos vazias” (Lucas 1.53 e Jó 22.9) e “lembrando-se
de sua misericórdia” (Lucas 1.54 e Salmo 98.3; Habacuque 3.2);
e, 5 – semelhança de vocabulário, no qual Israel é chamado de
“servo” de Deus (Lucas 1.54-55 e Isaías 41.8-9). Apesar disto,
as afinidades se encontram mais no nível dos temas e idéias do
que no nível de vocabulário.
Então, analisamos as formas do Magnificat, que se enquadra en-
tre os hinos do Novo Testamento, identificando o seu lugar vi-
vencial como o propósito catequético / evangelístico de trazer
uma visão completa de como a salvação que Deus oferece se ma-
nifesta na e através da história.
Propomos, ainda, a análise do conteúdo, através de uma nova
tradução levando em consideração as descobertas feitas ao lon-
go do trabalho de interpretação, procurando apresentar um tex-
to perfeitamente adequado à compreensão dentro da língua por-
tuguesa. Estudamos, também, neste capítulo dois termos que
consideramos fundamentais para a teologia do cântico, dos e-
vangelhos e de toda Bíblia: Salvador (σωτηρ) e Misericórdia
(ελεος).
Finalmente, fizemos uma releitura do cântico através da atua-
lização do texto, pressupondo que a Palavra de Deus, a despei-
to de ser sempre situacional e contextual, tem uma mensagem
perene e válida para além da situação concreta em que foi for-
mulada, pelo simples fato de que a verdadeira identidade da
28
pessoa humana frente a Deus, aos seus semelhantes e ao mundo
criado, permanece igual hoje àquela que foi no passado e tam-
bém àquela que será no futuro.
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