evolução dos processos de triagem psicológica em uma clínica-escola

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Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 1, p. 33-42, janeiro/abril 2004 (1) Psicóloga do Núcleo de Psicologia Aplicada da Universidade Federal de Uberlândia; Especialista em Psicologia Clínica. Endereço para correspondência: Rua 1 nº 91 – Jardim Panorama Araguari/MG Cep: 38440-240. (2) Psicóloga e Doutora do Núcleo de Psicologia Aplicada da Universidade Federal de Uberlândia e docente do Centro Universitário do Triângulo. Endereço para correspondência: Av.: João XXIII nº 698 Santa Maria – Uberlândia/MG Cep: 38408-056. E-mail: [email protected] EVOLUÇÃO DOS PROCESSOS DE TRIAGEM PSICOLÓGICA EM UMA CLÍNICA-ESCOLA IMPROVEMENT OF THE TRIAGE PROCESSES IN A PSYCHOLOGY CLINICAL SCHOOL Hélvia Cristine Castro Silva PERFEITO 1 Sandra Augusta de MELO 2 RESUMO Este trabalho é um relato de experiência sobre a evolução dos processos de triagem em um serviço de Psicologia aplicada de uma universidade federal. Apresenta breve histórico desse serviço de extensão na universidade e na rede de atendimento à saúde pública; procura compreender o desenvolvimento de suas rotinas no âmbito acadêmico, técnico e assistencial; observa que a evolução desses procedimentos está relacionada com a busca de ocupação de um lugar que venha articular ensino, pesquisa e extensão e conclui, finalmente, que o serviço em questão não pôde realizar esta tarefa por causa de questões institucionais, ou seja, das dificuldades de integração e articulação entre os diferentes segmentos envolvidos, gerando a necessidade de se repensar e construir uma nova prática. Palavras-chave: triagem psicológica; clínica-escola de psicologia; psicologia clínica. ABSTRACT This paper is an experience report about the evolution of the triage processes in a applied psychology service of a federal university: shows a brief history of this extension service that attends the public health net; it looks for to comprehend the development of its routines in the academic, technical and assistance field; observes that the evolution of these proceedings connects

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Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 1, p. 33-42, janeiro/abril 2004

(1) Psicóloga do Núcleo de Psicologia Aplicada da Universidade Federal de Uberlândia; Especialista em Psicologia Clínica.Endereço para correspondência: Rua 1 nº 91 – Jardim Panorama Araguari/MG Cep: 38440-240.

(2) Psicóloga e Doutora do Núcleo de Psicologia Aplicada da Universidade Federal de Uberlândia e docente do CentroUniversitário do Triângulo. Endereço para correspondência: Av.: João XXIII nº 698 Santa Maria – Uberlândia/MGCep: 38408-056. E-mail: [email protected]

EVOLUÇÃO DOS PROCESSOS DE TRIAGEMPSICOLÓGICA EM UMA CLÍNICA-ESCOLA

IMPROVEMENT OF THE TRIAGEPROCESSES IN A PSYCHOLOGY CLINICAL SCHOOL

Hélvia Cristine Castro Silva PERFEITO1

Sandra Augusta de MELO2

RESUMO

Este trabalho é um relato de experiência sobre a evolução dos processosde triagem em um serviço de Psicologia aplicada de uma universidadefederal. Apresenta breve histórico desse serviço de extensão na universidadee na rede de atendimento à saúde pública; procura compreender odesenvolvimento de suas rotinas no âmbito acadêmico, técnico eassistencial; observa que a evolução desses procedimentos está relacionadacom a busca de ocupação de um lugar que venha articular ensino, pesquisae extensão e conclui, finalmente, que o serviço em questão não pôderealizar esta tarefa por causa de questões institucionais, ou seja, dasdificuldades de integração e articulação entre os diferentes segmentosenvolvidos, gerando a necessidade de se repensar e construir uma novaprática.

Palavras-chave: triagem psicológica; clínica-escola de psicologia; psicologiaclínica.

ABSTRACT

This paper is an experience report about the evolution of the triage processesin a applied psychology service of a federal university: shows a brief historyof this extension service that attends the public health net; it looks for tocomprehend the development of its routines in the academic, technical andassistance field; observes that the evolution of these proceedings connects

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to the search of a role to articulate the teaching, research and extension andfinally concludes that, this service, can not manage this task because theinstitutional issues, it means, the difficulties of integration and articulationbetween the different parts involved, creating the need to change and build anew practice.

Key words: psychologist triage; psychology clinical school; clinicalpsychology.

INTRODUÇÃO

A Psicologia Clínica é um campo deaplicação da Psicologia que impõe desafios aoseducadores. Somente estudar Psicologia Clínicanão ensina a ser clínico: ser clínico se aprendesendo, ou seja, a ênfase do estudo teórico nestaárea não refuta a idéia de que a clínica se aprendeno contato com o paciente. Esta é a importânciacrucial das clínicas-escola que, por lei, devemfazer parte dos serviços de Psicologia aplicadaligados aos cursos.

Entretanto, não há modelos pré-formadospara a constituição destes espaços de apren-dizado que, para além de sua função no ensino,devem sustentar-se num tripé que inclui ainda aextensão e a pesquisa – cerne da função que asuniversidades desempenham na sociedade, aomenos idealmente.

A rotina das clínicas-escola é complexa eenvolve diversos segmentos e atividades diferentespara servir a objetivos também diferentes, emborainterdependentes. Práticas de disciplina, estágiossupervisionados, os interesses e necessidadesda população e a necessidade de disponibilizare estruturar dados que possam ser utilizadospara pesquisas coexistem e precisam seratendidos no espaço dos serviços de Psicologiaaplicada. Estas três vertentes – ensino, pesquisae extensão - não são de fácil articulação numaproposta única de trabalho, muito embora façamparte de um só projeto que, de uma forma maisampla, podemos dizer tratar-se do projeto de“universidade” - espaço no qual se pretendeproduzir, transmitir e aplicar conhecimentos.

Apesar de ser uma necessidade óbvia, aarticulação entre extensão, ensino e pesquisa,que consta nos objetivos de todas as universi-

dades, não se mostra, ao menos na área daPsicologia, um denominador fácil de ser atingido.Este trabalho descreve a trajetória de uma buscanesse sentido e procura avaliar a eficácia dosprocedimentos utilizados na sua realização; éum relato de experiências e esforços empreen-didos para realizar os objetivos descritos acima,e uma avaliação do que se pôde conseguir coma atual organização da rotina dos atendimentosem triagem na clínica-escola da Faculdade dePsicologia da Universidade Federal de Uberlândia,constituída como Núcleo Integrado de Psicologia(NIPSI).

O LUGAR DO ENSINODA PSICOLOGIA APLICADA

Uma articulação perfeita entre a pesquisa,a extensão e o ensino deveria fundar-se empesquisas epidemiológicas que mapeassem aclientela e os atendimentos oferecidos pelosserviços de Psicologia aplicada das universidades.Somente por meio desses dados, poder-se-iadelinear as ações e possibilitar correções derumo na extensão e no ensino, norteando atémesmo a construção dos currículos. Entretanto,na prática isso não é uma tarefa fácil.

Num serviço de Psicologia aplicada a rotinaenvolve vários aspectos que se entrelaçam, como:recepção; construção do kit de prontuário, comseus formulários, pela secretaria; pré-seleção declientes, segundo a clientela-alvo ou o critério deexistência de vagas; forma de registro dos dados;uso da clínica por profissionais e estagiários comdiferentes propósitos; uniformidade da rotina deregistro, até o relacionamento entre pessoas queincorporam a clínica de forma definitiva e aqueles

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que somente ocasionalmente lançam mão deseu espaço e procedimentos.

A estrutura e a dinâmica dos espaços deaplicação da psicologia nas universidades,parecem ser indicativos de como são integra-dos,ou não, o ensino, a pesquisa e a extensãonuma dada instituição.

Uma reflexão e a melhoria deste espaçoenvolvem uma articulação de todos os segmentos:técnicos administrativos, alunos, professores,supervisores e clientela e isso não é algo simplesde se conseguir. Trata-se, na verdade, de umdesafio de gestão, numa organização – auniversidade – que, histórica e culturalmente,carrega entraves administrativos peculiares.

Aparentemente, a necessidade de umaavaliação e mudança de funcionamento em umempreendimento tão complexo, como os centrosde Psicologia aplicada, fica enormementedificultada, pois as questões de gestão nasuniversidades, especialmente as públicas, sãodesvalorizadas ou caem por terra diante de outraprioridade: a política tanto interna como externaà instituição.

A operacionalização do funcionamento dasclínicas-escola é tão desafiante que váriosencontros entre profissionais têm sido promovidose artigos têm sido produzidos sobre as iniciativasinstitucionais que buscam um funcionamentoótimo a partir de questões específicas. Exemplodisso são os trabalhos de Fontolan (1997) eBartz (1997) que discutiram suas experiênciasnos atendimentos de plantão psicológico no VEncontro Estadual de Clínicas-Escola daUniversidade São Judas, assim como o de Moratoe outros (1997), que fizeram uma reflexão sobreas implicações teórico-práticas em plantãopsicológico no XXVI Congresso Interamericanode Psicologia em São Paulo.

Não obstante essas e muitas outrasiniciativas realizadas por outras faculdades quepossuem um centro de Psicologia aplicada, nãohá um modelo recomendável e adequado aospropósitos desse órgão que possa ser chamadopadrão, ainda mais pelas diferenças regionais epelas diferenças nas estruturas das universidades.

Estas dessemelhanças inviabilizam a generali-zação, embora não os intercâmbios. As clíni-cas-escola de Psicologia têm que buscarcaminhos singulares para a construção de rotinasadequadas e para a solução das questões quelhes são impostas pelo desafio de cumprir suavocação que é tão complexa.

Esses desafios não aparecem descoladosdos desafios da própria profissão. O espaço seinstitui com a mesma complexidade e com osmesmos problemas que se relacionam àconstrução da identidade profissional agravados,entretanto, por questões de ordem prática quepedem soluções também práticas.

Num trabalho de 1983, Lopez estuda asclínicas-escola da cidade de São Paulo e concluique as dificuldades destes órgãos refletiam asindefinições do psicólogo quanto ao seu lugar esuas práticas diante das solicitações da comu-nidade. Hoje em dia, estas dificuldades sãoencaradas como parte da diversidade do campoda Psicologia e da própria condição humanamutável, que exige do psicólogo uma posturacriativa e flexível, possibilitando que haja umtrânsito por diversos saberes e fazeres (Ancona--Lopez, 1996).

É essa mesma flexibilidade e essacriatividade que a construção de um espaçoclínico-educacional impõe às universidades. Ouseja, não há soluções prontas, mas todas aserem criadas mediante novos e antigos desafios.

Apesar de dificilmente poder ser copiada, aestruturação dos serviços de atendimento à saúdepública em clínicas-escola pode fomentarreflexões, discussões e servir de parâmetro paraoutras iniciativas.

Se observado através de sua história, pode--se dizer que o Núcleo de Psicologia aplicada daUniversidade Federal de Uberlândia inicialmentefuncionava quase que exclusivamente como umórgão centrado no ensino. A ênfase exclusivanessa vertente acabava gerando enormes filas deespera, em que as pessoas dificilmente eramatendidas, além do que não havia uma padroni-zação em seus procedimentos. Nessa épocaocorriam fatos curiosos, como a identificação de

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clientes em espera que já haviam falecido semterem sido atendidos.

Num segundo momento, houve umaimplementação do serviço de extensão e odirecionamento do foco para as necessidades dacomunidade, o que gerou um atendimento muitomaior em quantidade do que em qualidade.Nesta fase, a preocupação com a clientela ocupouo centro; entretanto, as tentativas de atendimentoem quantidade eram predominantes, o queindisponibilizava a clínica para o exercício deuma busca da excelência.

Posteriormente, então, deu-se ênfase naqualidade. Os profissionais se voltaram para apossibilidade e necessidade de construir umespaço em que o foco recaísse sobre a excelênciano atendimento, já que o órgão não tinha ascaracterísticas de um serviço ambulatorial strictusensu, mas antes de um local em que diferentesinteresses deveriam ser conciliados, comodiscutido anteriormente. Surgiu, no grupo detrabalho, a consciência de que o poder públicodeveria arcar com aquilo que lhe caberia e acompreensão de que o NIPSI seria mais umapeça na estrutura do atendimento à saúde mental,com a peculiaridade de estar ligada a um órgãoque visa ao ensino e à pesquisa.

A necessidade de uniformizar procedi-mentos, gerar e disponibilizar dados para pesquisaveio junto com essa fase e essa consciência.Discute-se este ponto adiante.

HISTÓRIA DO NIPSI

O NIPSI e a distritalização da atenção àsaúde mental em Uberlândia

O Serviço de Psicologia Aplicada daUniversidade Federal de Uberlândia (UFU) foiorganizado em 1979, em conformidade com a lei4119, que versa sobre a criação dos cursos dePsicologia e dos serviços de Psicologia aplicadanas universidades brasileiras.

Desde sua fundação até 1988, todos osatendimentos no NIPSI eram realizados por

supervisores docentes e seus estagiários. Apartir de então, duas psicólogas iniciaram otrabalho de atender à alta demanda em esperagerada nos anos anteriores pelos estágiossupervisionados, já que, com a finalização dotempo previsto para os estágios e/ou odesligamento dos alunos por ocasião da suaformatura, os pacientes eram deixados em espera.Além disso, muitos prontuários eram abertossem que os pacientes fossem efetivamenteatendidos.

Em 1992, outra psicóloga foi incorporada àequipe e passou a realizar triagens de pacientes,além de atender os pacientes que ficavam ouvoltavam às filas de espera após os estágios.

A partir desse ponto, inaugurou-se umanova frente de atuação para a clínica-escola alémdo ensino: a atividade de extensão propriamentedita, com a presença de profissionais psicólogoscontratados especificamente para isto.

Em 1996, o grupo de psicólogos, contandoentão com quatro membros, começou a seorganizar em torno da idéia de humanizar oatendimento, extinguir as filas de espera edesenvolver um processo de triagem adequadoaos seus propósitos.

Com a participação da coordenação doNIPSI, o processo de triagem passou, então, avigorar na forma de estágio supervisionado de 10estagiários do curso de Psicologia da UFU,selecionados a cada ano, com o objetivo principalde atender às demandas infantil, adolescente eadulta, originárias de todo o município e ainda demunicípios vizinhos.

Em 1997, foi instituído o Plano Diretor deSaúde Mental de Uberlândia, por meio de fórumde discussões desde o ano anterior. Foramestabelecidas diretrizes e normas sobre aassistência, a promoção de saúde e a reinserçãosocial do portador de sofrimento psíquico. Comisso, houve uma reformulação do sistemaexistente visando à racionalização do modelo deatenção à saúde, viabilizada pela efetivainterinstitucionalização das partes envolvidas.

O NIPSI foi incluído nesse processo comoum dos dispositivos de atendimento à saúde

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mental dentro dos recursos do município e, comisso, várias alterações foram possíveis com afinalidade de buscar a excelência ao em vez daquantidade de atendimentos.

Algumas mudanças foram realizadasobedecendo princípios sanitários definidos peloSistema Único de Saúde (SUS). No novo arranjo,a cidade foi dividida em setores sanitários definidosem norte, sul, leste, oeste e centro, que passarama ter dispositivos de saúde que delimitavam suasações para as populações dos bairros do setor.Assim, cada centro de saúde não mais atenderiaa toda a cidade, mas somente à população dosbairros próximos.

Nesse redimensionamento coube ao NIPSIatender pacientes procedentes do distritosanitário leste do município.

Essas medidas organizaram o atendimentomunicipal à saúde mental como um todo, possi-bilitando a otimização dos recursos, gerandomelhoria qualitativa no atendimento e reduzindofilas de espera. Isto pôde ser observado em todosos setores e para o NIPSI abriu novaspossibilidades que o colocavam frente a frentecom sua função enquanto uma clínica-escola, ouseja, constituir-se um núcleo de apoio ao tripéensino-pesquisa-extensão.

O PROCESSO DE TRIAGEM NO NIPSI

O processo de triagem é a porta de entradados pacientes ao “universo Psi”, pois os clientesdesconhecem o que é um serviço psicológico,uma vez que este tipo de trabalho não temrepercussão em seu universo cultural e educa-cional.

Se o paciente não se sentir mobilizado peloprimeiro atendimento, talvez não prossiga na suabusca por ajuda e, nesse sentido, a triagempromove uma conscientização maior do pacientebem como da família em relação às suasdificuldades.

Entrevistas de triagem costumam ser maisdo que coleta de dados com os quais se organizaum raciocínio clínico sumário que vai orientar o

encaminhamento. As entrevistas tomam a formade uma intervenção breve, já que ao dar aosclientes uma oportunidade de se engajarem emseu próprio atendimento, torna-os responsáveispor seus problemas (Ancona-Lopez, 1995).

O simples acolhimento já tem significadoimportante para muitos clientes. Por acolhimentoentende-se uma disposição afetiva do psicólogo,uma atitude de escuta que visa receber, aceitar,em que a expressão do sofrimento já proporcionaalívio ou mesmo certa clareza em relação àsituação vivida, criando condições para modifi-cá-la.

É dessa maneira que o processo de triagemé realizado e encarado no NIPSI: não como ummero processo de seleção de demanda ou coletade dados da história do cliente, mas como parteda intervenção psicoterapêutica propriamentedita. Nessa fase há uma clarificação da situaçãopsicodinâmica individual ou grupal, para além dosimples levantamento de dados e isso tem efeitopsicoterapêutico. Essa discussão está de acordocom as idéias de Ancona-Lopez (1995), quandodiscorre sobre o psicodiagnóstico também comoprocesso de intervenção. As altas durante oprocesso de triagem são um indicativo relevanteque corrobora com tal idéia.

A triagem, para o psicólogo, é um processode conhecimento de quem procura por atendi-mento e que busca, muito além dos sintomas,saber qual é o sofrimento e onde estão suascausas. Para muito além dos sintomas, dasqueixas, das designações nosológicas, oprocesso de conhecimento do cliente procurauma compreensão mais ampla e mais aprofundadado sujeito e do grupo em que ele está inserido.Encontramos respaldo para isso em trabalhoscomo o de Brasil (1999), que discute sobre acompreensão do fenômeno psicológico incorpo-rado aos determinantes econômico-sociais eculturais presentes nas demandas populacionaisque buscam o serviço de saúde mental.

O processo de triagem pode ser contínuo àpsicoterapia quando o triador é o mesmo queatenderá o cliente, ou pode constituir uma etapaà qual se seguirá outra nova, com outro pro-fissional, quando houver encaminhamento. Outra

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possibilidade é que a alta ocorra durante oprocesso de triagem.

Falando de outra forma, a triagem é umprocesso psicodiagnóstico que tem início, meioe fim, dura de 4 a 5 sessões, mas cujo fim nãoserá percebido pelo cliente quando for umprocesso contínuo, mas somente quando houvernecessidade de que o paciente seja encaminhado.

Essa necessidade de encaminhamentopode vir do caso, quando há uma indicação paraa qual o triador não está preparado para atender;do triador, quando este está sobrecarregado deatendimentos; ou também quando há solicitaçãode pacientes para atendimento para outrosestágios supervisionados do curso de psicologia.Neste caso, os pacientes são triados e encaminha-dos aos supervisores conforme a necessidade eespecificações do tipo de caso a que o estágio sedestina a atender.

É preciso ressaltar, entretanto, que essemodelo não foi assim concebido desde o início dofuncionamento do NIPSI, mas é o resultado dapráxis desenvolvida ao longo dos anos pelaequipe de psicólogos.

No NIPSI, a triagem é considerada umaetapa importante nas suas três frentes de atuação:extensão, ensino e pesquisa, uma vez queproporciona atendimento à comunidade, é oponto forte do estágio oferecido pelos psicólogose é uma rica fonte de dados que pode gerarpesquisas diversas.

Avaliando a história do modelo de atendi-mento feito pelos psicólogos técnico-administra-tivos adotado no NIPSI, pode-se dizer que noinício ele se prestava a diminuir a fila de esperae a atender os casos que foram atendidos masnão concluídos pelos estágios. Em outrasclínicas-escola de Psicologia pode-se tambémperceber a constante preocupação com filas deespera, como ilustrado no trabalho de Peres(1997), que retratou uma tentativa de minimizarestas filas, por meio da utilização de triagemgrupal, objetivando dinamizar o atendimento,conhecer melhor a clientela e planejarintervenções mais efetivas.

A triagem dos pacientes ingressantes noNIPSI até o final do ano de 2002 foi realizada nosistema de plantões por 10 alunos estagiários,tendo como supervisores os psicólogos do NIPSI.Nos plantões os alunos permaneciam disponíveispara atender a demanda, durante todo o turno aeles designado, em dois períodos de quatrohoras.

O estágio em triagem tinha por objetivooferecer oportunidade ao aluno de vivenciar esteprocesso de recepção e avaliação dos pacientes,delineando os diversos quadros psicopatológicos,e desenvolvendo o raciocínio clínico.

Os plantões funcionavam em dias fixos dasemana para cada faixa etária: infantil, adoles-cente e adulto. Este procedimento visava facilitarà população saber quando procurar poratendimento. É preciso ressaltar que, sempreque havia excedente de pacientes, os plantõeseram fechados. Esta decisão foi tomada pelossupervisores, tendo em vista o número depacientes que podiam ser atendidos pelossupervisores psicólogos, pelos seus estagiáriose pelos estágios que eram oferecidos e quesolicitavam pacientes ao sistema de triagem.

Aqueles pacientes triados nos plantõeseram atendidos imediatamente após a conclusãoda triagem objetivando-se, desta forma, ummelhor nível de resolutividade e alívio dossofrimentos psíquicos, especialmente peloaproveitamento da motivação do paciente nomomento em que procurava por ajuda na clínicapsicológica. Além disso, esta forma de procederevitava a formação de filas de espera.

Sob o ponto de vista da pesquisa, pode-sedizer que os prontuários gerados no serviço deplantão, tal qual era realizado até o fim do ano de2002, ou seja, de forma padronizada, se encontramem condições de oferecer material organizadopara pesquisas clínicas diversas e estão àdisposição de pesquisadores da Instituição.

Vale ressaltar que, casos que não passarampela triagem ficaram fora de levantamentosestatísticos por não seguirem padrões de registro,sendo impossível qualquer tipo de controle sobreeles.

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O REGISTRO DE DADOS

Por estar inserido em uma faculdade, oNIPSI não escapa à sua vocação para fomentare produzir pesquisa. A preocupação com olevantamento de dados estatísticos da triagemocorre desde 1996, pois percebeu-se a riquezade dados que eram gerados pelos atendimentos.Naquela ocasião, começaram-se a fazertabulações dos casos triados em relação à faixaetária, ao sexo, ao encaminhamento, àprocedência (bairros) e queixas. Pesquisassemelhantes são encontradas nos trabalhos deTérzis e Carvalho (1988) e Barbosa (1994) sobrea identificação da população atendida em clínicas-escola.

As tabulações eram feitas manualmentesobre o material bruto dos prontuários dospacientes. Estes prontuários muitas vezesencontravam-se incompletos, por falta deestruturação de registro de dados e deprocedimentos de pesquisa. Exemplos destetrabalho são mostrados em anexo (anexo 1).

Pode-se observar naquele registro (anexo1) o número elevado de pacientes atendidos emtriagem naquela ocasião. Este fato devia-se àfalta de normas e à delimitação da populaçãoatendida, abrangendo todo o município e aindamunicípios vizinhos. A maioria dos atendimentosera realizada em grupo e os profissionais supriama alta demanda com outros estágios além datriagem, chegando-se a ter 30 estagiários atuandono atendimento, sob supervisão de quatropsicólogos.

Daquela época até o presente, pode-seobservar, como já dito anteriormente, umamudança que adequou o tipo de atendimento aoperfil de uma clínica – escola: a troca da quantidadepela qualidade e a preocupação em extinguir filasde espera – que por si só constitui uma ranhuranos princípios éticos.

Nos anos de 1999 a 2001, foram instituídasnovas formas de registro de dados nos prontuáriosdos pacientes atendidos em plantão. Para issoforam feitas visitas a clínicas-escola de outrasuniversidades, foram colhidas informações sobreseus procedimentos de captação, seleção e

atendimento da demanda, assim como sobredocumentação em prontuários e demais rotinasda secretaria.

Foram criados: um novo modelo deanamnese, um para atendimento de adultos eoutro para crianças e adolescentes, uma “Fichacom dados do atendimento”; uma folha de“Autorização para uso dos dados clínicos eepidemiológicos em pesquisas e publicações”;e, por último, um formulário para “Levantamentode dados epidemiológicos e clínicos dosprocessos de triagem” – que consiste num resumodos dados do caso com vistas a pesquisas. Estasúmula, assim como outros formulários, deverãosofrer alterações segundo a avaliação que é feitasobre eles, a partir do seu uso.

CONCLUSÕES

A intenção implícita na formatação doprocesso de triagem em vigor durante os anos de1996 até 2002, e dos procedimentos de registrode dados que evoluíram a partir de sua prática foiconstituir a porta de entrada de pacientes noNIPSI e, dessa maneira, uniformizar rotinas eregistros de forma a disponibilizar dados para arealização de investigações, servindo a todos ospesquisadores ligados ao curso de psicologia.

A proposta desse processo de triagem eraa articulação do serviço de extensão dentro doensino clínico com os diversos estágios, emdiferentes abordagens, oferecidos pelo curso.Isto é, como porta de entrada, a triagemidentificaria e direcionaria os pacientes segundoo diagnóstico e as solicitações dos supervisores.Os pacientes seriam encaminhados para osestágios segundo particularidades de cada um.

Mas isso não se efetivou na prática, já quenão houve uma regularidade no oferecimento dosestágios supervisionados dos professores queeram abertos por períodos temporários e atendiama demandas específicas e, em geral, nãorequisitavam os pacientes ao serviço de triagemjá estruturado, preferindo captá-los de outrasmaneiras.

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As razões para isso podem ser atribuídasà falta de comunicação imposta pela distânciaentre as carreiras docente e administrativa e afalta de articulação, ou seja, trabalho em equipe;e também à decrescente abertura de estágiospelos professores-supervisores, uma vez que aoferta de estágios foi bastante reduzida porreceber pontuação baixa na avaliação dosdocentes.

Chegou-se à conclusão que o processo detriagem, embora idealizado para propósitos deintegração, tornou-se algo fechado em si mesmo,visto que havia poucas possibilidades deencaminhamento de pacientes, ficando osatendimentos quase restritos aos profissionaisresponsáveis por essa tarefa e seus estagiários.

Atualmente, a demanda espontânea datriagem recebe atendimento pela própria equipede psicólogos e seus estagiários em quase suatotalidade, fato comprovado em levantamentorecente (Perfeito e Melo, 2003). Este fato apareceagravado pela alta demanda causada pelofechamento dos atendimentos pela rede pública,que hoje se restringe à atenção aos casosgraves, ficando o NIPSI como única referênciapara atendimento de casos leves e moderadosdo setor leste do município. Resulta disso umasuperdemanda, a qual não é possível escoar noatual modelo de funcionamento: no ano de 2002,não foi possível manter o funcionamento semanaldo plantão, esgotando-se as vagas nos primeirosmeses do ano.

O sistema de plantão e triagem - comoporta de entrada e instrumento de articulaçãoentre os diversos segmentos (psicólogos,técnicos, supervisores, professores, alunos,estagiários, e clientela) e entre os diversospropósitos dentro da concepção de universidade(como órgão sustentado e sustentador do tripéensino / pesquisa / extensão) - não conseguiuatingir seus propósitos, tal como concebidospela equipe de psicólogos do serviço de Psicologiaaplicada.

Mais uma vez são exigidas do psicólogo aflexibilidade e a criatividade para lidar com as

dificuldades institucionalizadas e, ao mesmotempo, com demandas e mudanças diversas.

Apesar de uma certa frustração pelofracasso do modelo construído nestes últimosanos, é preciso pensar em novas alternativas quesejam ao mesmo tempo adequadas, flexíveis eviáveis à realidade da Instituição.

Um alerta, entretanto, essa experiênciaparece deixar e ele se refere à origem dasdificuldades encontradas na otimização dosprocedimentos de atendimento em saúde públicapsicológica no formato das clínicas-escola: aquestão científica que nos leva a investigar formasde melhor atender à população, as maneiras dehumanizar a relação com a clientela, melhorestécnicas adequadas ao atendimento institucionalnão são suficientes se não forem discutidas eresolvidas as questões concernentes à gestãodesse órgão.

Concluindo de outra forma, não obstante osintercâmbios e as pesquisas, e a busca dasclínicas-escola de Psicologia por caminhossingulares para a construção de rotinasadequadas à solução das questões que lhes sãoimpostas pelo desafio de cumprir sua vocaçãoque é tão complexa, é preciso perceber quesoluções que visam aos problemas ligados àprática da Psicologia não são suficientes sem aorganização de aspectos estruturais e funcionaisdo espaço destinado a essa prática. Estes doisaspectos não podem realizar-se em separado.

As clínicas-escola e, de forma maisalargada, os núcleos de Psicologia Aplicadacarecem, antes de qualquer coisa, de sercompreendidos como um sistema e umaorganização viva, com todas as necessidades degestão que lhe são peculiares.

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Recebido para publicação em 4 de junho de 2003 eaceito em 16 de fevereiro de 2004.

Page 10: Evolução dos processos de triagem psicológica em uma clínica-escola

42 H.C.C.S. PERFEITO & S.A. MELO

Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 1, p. 33-42, janeiro/abril 2004

Anexo 1: Tabulações de dados sobre os atendimentos realizados no ano de 1996

Infantil

Adolescente

Adulto

3ª idade

Total

Masculino

174

61

80

05

320

Feminino

118

96

227

33

474

Total

292

157

307

38

794

Fonte: Prontuários de pacientes atendidos em 1996.

Tabela 1. Distribuição da população atendida em triagempor faixa etária e sexo, em 1996.

Tabela 2. Distribuição de pacientes atendidos por idade, em 1996.

Fonte: Prontuários de pacientes atendidos em 1996.

Faixa etária

0-5

6-10

11-15

16-20

21-25

79

171

101

80

102

Faixa etária

26-30

31-35

36-40

41-45

46-50

66

59

45

29

21

Faixa etária

51-55

56-60

61-65

66-70

71-75

15

11

09

04

02

Tabela 3. Distribuição de pacientes por tipo de queixas, em 1996.

Ansiedade

Atraso desenv. Neuro-psico-motor

Depressão

Dificuldade escolar

Dificuldade de relacionamento

Insegurança e timidez

Medo e fobia

Nervosismo e agressividade

Problema de comportamento infantil

Problema sexual

Problema somático

Não consta

Total

Infantil

0

15

0

111

0

0

0

37

24

0

0

37

224

Adolescente

0

0

11

14

21

10

0

21

0

0

0

26

103

Adulto

19

0

52

0

55

0

18

44

0

17

23

45

273

3ª idade

0

0

16

0

0

0

0

0

0

0

0

0

16

Fonte: Prontuários de pacientes atendidos em 1996.