evisitando campos de outrora: exercÍcios de comparaÇÃo etnogrÁfica a partir da obra de c. wagley...

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Texto de Camila Galan de Paula

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  • Revista Habitus Vol. 10 N.2 Ano 2012

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    REVISITANDO CAMPOS DE OUTRORA: EXERCCIOS DE

    COMPARAO ETNOGRFICA A PARTIR DA OBRA DE C.

    WAGLEY E E. GALVO SOBRE OS TAPIRAP E TENETEHARA

    (1940-1949)

    REVISITING ERSTWHILE FIELDWORKS: ETHNOGRAPHIC COMPARISON EXERCISES STARTING

    ON C. WAGLEY AND E. GALVOS WORK ON TAPIRAP AND TENETEHARA INDIANS (1940-1949)

    Camila Galan de Paula*

    Cite este artigo: PAULA, Camila Galan de. Revisitando Campos de Outrora: Exerccios de

    Comparao Etnogrfica A Partir da Obra de C. Wagley e E. Galvo sobre os Tapirap e

    Tenetehara. Revista Habitus: revista eletrnica dos alunos de graduao em Cincias Sociais -

    IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, p.128-143, Dezembro. 2012. Semestral. Disponvel em: <

    www.habitus.ifcs.ufrj.br >. Acesso em: 30 de Dezembro. 2012.

    Resumo: Enfocando as produes textuais de Charles Wagley e de Eduardo Galvo sobre as

    populaes Tapirap e Tenetehara-Guajajara (1940-1949), busca-se entender como as relaes

    amerndias com no humanos (animais, plantas, esprito etc.) foram retratadas. Parte-se,

    portanto, de tema que importante para a etnologia indgena contempornea, e reelabora-se o

    material desses antroplogos dos anos 1940 a fim de se estabelecer uma comparao e possvel

    dilogo entre antropologias de duas pocas distintas.

    Abstract: Focusing Charles Wagleys and Eduardo Galvos work on Tapirap and Tenetehara-

    Guajajara groups (1940-1949), this article intends to comprehend how Amerindian relations

    with non-human beings (animals, plants, spirits etc.) were characterized. The starting point is,

    therefore, an important theme in contemporary Amerindian ethnology. The material by these

    1940s anthropologists was revisited so that a comparison and a dialog between anthropologies

    of two distinct periods could be established.

    Palavras-chave: Charles Wagley; Eduardo Galvo; etnografia; histria da antropologia.

    Key words: Charles Wagley; Eduardo Galvo; ethnography; history of anthropology

    1. Introduo

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    partir de produes textuais de Charles Wagley (e de Eduardo Galvo, nos casos de

    coautoria) sobre as populaes Tapirap e Tenetehara-Guajajara do perodo 1940-

    1949, busca-se apresentar uma releitura possvel do modo pelo qual o antroplogo

    retratou as relaes amerndias com no humanos. O recorte adotado no presente artigo tem

    dupla motivao: por um lado, enfatiza-se parcela da obra de Wagley e Galvo que

    frequentemente marginal nas pesquisas sobre a produo intelectual desses antroplogos

    (SILVA, 2007; ROSA, 1993; FIGUEIREDO, 2004; DOMINGUES, 2010); de outro, parte-se de

    construes erigidas ao longo das ltimas dcadas na etnologia sul-americanista que colocam

    em cheque a universalidade da ontologia naturalista (DESCOLA, 1994; 1996; 2005) nas

    cosmologias regionais, ao ressaltarem a importncia das relaes entre humanos e no humanos

    nas prticas e concepes indgenas, realando-se que nessas filosofias, os marcadores Natureza

    e Cultura no operam como entre euro-americanos modernos (id.; ibid; VIVEIROS DE

    CASTRO, 1996; 2002a ).

    Os termos da releitura aqui proposta ficam, assim, mais claros: parte-se de temas

    notadamente caros a certo tipo de reflexo e prtica antropolgica contemporneos, em especial

    no campo do americanismo tropical; trata-se, portanto de um esboo de comparao entre

    reflexes, questes e descries contemporneas e de outrora. Busca-se, assim, apresentar como

    esses antroplogos retrataram conexes entre humanos e animais, vegetais, espritos, donos etc.

    e quais reflexes elaboraram sobre elas. Temas como xamanismo, caa, horticultura ocupam,

    portanto, lugar privilegiado no tratamento dispensado ao material de campo de Wagley e

    Galvo. Ressalta-se, porm, que esses temas no tinham a centralidade que tm para a etnologia

    indgena dos tempos atuais e/ou que, e principalmente, no se elaboravam reflexes e questes

    antropolgicas do mesmo modo.

    Para aquela antropologia dos anos 1940, pensar espritos, animais, plantas, donos como

    gente, no algo que se coloca como questo ou como reflexo[1]. Pensar, tambm, que

    elaborar reflexes e pesquisas nesses termos contemporneos seja o nico modo possvel de se

    compreender o Outro seria, no mnimo, desrespeitoso com os trabalhos dos antroplogos aqui

    em estudo. Assim, quer-se entender a partir de um exerccio comparativo[2] que

    declaradamente parte de temas contemporneos, de que modo certa antropologia e certos

    antroplogos pensaram e elaboraram reflexes que buscavam, talvez de outro modo, a partir de

    outro referencial terico e certamente de outras questes, entender as prticas e pensamentos

    de seus interlocutores indgenas.

    Uma vez que se fez um recorte temtico no nosso corpus de anlise, o que se apresenta a

    seguir no so propriamente as formulaes dos antroplogos, e sim uma reelaborao e

    reorganizao umas das possveis, e certamente no a nica - de seus artigos e monografia

    com vistas a iluminar o esboo comparativo a que se visa aqui. Wagley e Galvo foram a campo

    com seus referenciais tericos, tendo lido certos autores, dialogando com certos antroplogos e

    tudo isso certamente ressoa na sua relao com seus sujeitos de pesquisa, nas questes que se

    colocam e que colocam aos Tapirap e Tenetehara-Guajajara. De modo semelhante, adentrei a

    A

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    leitura das etnografias desses antroplogos tendo tambm lido certos autores, tendo tambm

    elaborado determinadas reflexes, tendo aprendido um modo de me relacionar com a teoria

    antropolgica e com a leitura de trabalhos de outrora. (Tudo isso, claro, de modo ainda muito

    incipiente). O que se quer to somente destacar a qualidade da etnografia de Galvo e Wagley,

    a seriedade com que eles, em seu tempo e com suas questes, buscaram entender a alteridade.

    Na tentativa de comparao implcita de modos distintos de se buscar entender

    pensamentos e prticas indgenas sobre sua relao com no humanos, contudo, talvez eu seja

    mais influenciada pelas sistematizaes e reflexes contemporneas da etnologia indgena sul-

    americanista do que desejvel. possvel, assim que eu resvale em anacronismo, ao deixar a

    sensao para o leitor de que a antropologia dos anos 1940 seja mais incompleta que a atual, ou

    que esta tenha superado aquela, e descoberto definitivamente como se constitui e organiza o

    pensamento e a vida indgenas. A inteno no esta. Passemos, sem mais delongas, releitura

    interessada dos trabalhos de Galvo e Wagley.

    2. Breve nota sobre o corpus

    Recorre-se, para as sees seguintes, a artigos (WAGLEY, 1940; 1942; 1943a; 1943b;

    WAGLEY, GALVO, 1963 [1948]) e monografia (WAGLEY, GALVO, 1949) publicados no

    perodo entre 1940 e 1949[3]. A opo por esse material se deveu, em primeiro lugar, a sua

    pequena explorao por outras pesquisas, que em geral e por motivaes diversas, sobretudo

    por causa dos recortes feitos pelos autores - se ativeram mais ao livro Amazon Town (WAGLEY,

    1953), estudo de comunidade de Wagley (SILVA, op. cit; DOMINGUES, op. cit.; FIGUEREDO,

    op. cit.). Quanto a trabalhos dedicados a Eduardo Galvo, h mais comentrios sobre as

    pesquisas dessa fase inicial de sua carreira (SILVA, op. cit.); no entanto a dimenso etnogrfica

    - as descries advindas da pesquisa de campo, que se referem s prticas e elaboraes

    indgenas - preterida em detrimento de discusses acerca das orientaes tericas contidas

    nesses textos. Em segundo lugar, enfoca-se perodo em que ambos os autores estiveram

    dedicados a essas duas populaes indgenas de modo mais ou menos contnuo. Ainda que se

    possa ver, no Quadro I, mudana de interesse de pesquisa por parte de Charles Wagley a partir

    de meados dos anos 1940, somente a partir de 1948 que Galvo e Wagley estudam os caboclos

    de Gurup e apenas no ano seguinte que o antroplogo norte-americano inicia sua participao

    no Programa Bahia-Columbia. A partir de 1947, Galvo empreende pesquisas sem a participao

    de seu mestre. Assim, nosso corpus refere-se a publicaes dos anos 1940-1949 resultantes de

    pesquisas de campo realizadas entre 1939-1945.

    Ano Wagley Galvo Wagley & Galvo

    Campo/Visitas Campo Campo

    1939

    1940 Campo entre os

    Tapirap

    (fev/maio 1940)

    1941 Campo entre os

    Tenetehara

    (out/1941 a mar/1942)

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    1942 Visita a Gurup anterior

    a planejamento do

    SESP*.

    Campo entre os

    Tenetehara

    (out/1941 a mar/1942)

    1943

    1944 Visita a Juazeiro

    1945 Campo entre os

    Tenetehara

    (fev a maio)

    1946

    1947 Expedies ao Alto Rio

    Xingu (abr/jun), em

    especial Kamairur

    1948 Pesquisa no Vale

    Amaznico (jun-set)

    para a Organizao

    Cultural, Cientfica, e

    Educacional das

    Naes Unidas para o

    Instituto Internacional

    da Hilia Amaznica.

    Pesquisa em Gurup no

    mbito do "Gurup

    research project"

    1949

    1950 Bahia Expedio ao Alto Rio

    Xingu (abr/jul)

    1951 Excurso cientfica ao

    Alto Rio Negro

    (set 1951- jan 1952)

    Quadro I - Vistas e Campos de Wagley e Galvo 1939-1951. Fontes: ROSA, 1993; SILVA, 2007; FIGUEIREDO, 2004. *SESP: Servio Especial de Sade Pblica

    Por fim, outro motivo nos levou a restringir nosso material de pesquisa a trabalhos de

    campo realizados ao longo desses seis anos: trata-se de enfocar somente os estudos desses

    antroplogos entre populaes indgenas, para assim manter a classificao de nossos nativos,

    uma vez que para esses autores, caboclos e ndios so muito diferentes, como se percebe no

    trecho a seguir e nas discusses empreendidas por Silva (op. cit., p. 287-300) em seu livro sobre

    Galvo:

    Finalmente, deve-se dizer que o caboclo brasileiro, at mesmo aqueles da Amaznia cujos modos

    de vida contm tantos elementos indgenas, no um ndio. Embora os indivduos possam

    obviamente ter descendncia amerndia, eles no se pensam como ndios; no tm orgulho nem

    vergonha da herana indgena. So brasileiros que jogam futebol, apostam no jogo do bicho,

    discutem poltica local e nacional e celebram o Carnaval e o Dia da Independncia, do mesmo

    modo que os brasileiros fazem pelo pas afora. Apenas os poucos grupos tribais so pensados

    como ndios. Tais grupos tribais so tidos com menosprezo como selvagens ou curiosidades

    pelos caboclos; e as tribos remanescentes esto rapidamente sendo assimiladas. (WAGLEY, 1951,

    p. 132, traduo nossa)

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    Alis, essa diviso operada nos trabalhos desses autores permaneceu por muito na

    etnologia indgena, ou ainda permanece. Escrevendo nos anos 2000, Marta Amoroso (2006, p.

    194), em comentrio a livro de Peter Gow, nota que antroplogos com Wagley e Galvo

    construram uma imagem dominante de uma Amaznia nativa perdendo suas culturas e se

    assimilando massa no indgena de camponeses rurais, de caboclos, cujas comunidades, por

    meio das transformaes scio-econmicas advindas do sistema dos patres acabaram por se

    assimilar a comunidades modernas, baseadas no cristianismo e nas relaes de mercado. So

    relativamente recentes os trabalhos que enfatizam modos nativos de se pensar esses processos

    e o trabalho de Peter Gow comentado pela antroploga importante para isso. A partir desse

    tipo de pesquisa, abre-se a possibilidade de se matizar a diferena radical entre indgenas e

    caboclos com que Galvo e Wagley trabalharam. Trabalha-se neste artigo, contudo, com a

    diviso celebrada pelos antroplogos aqui em destaque.

    3. Reelaborao das descries sobre os Tapirap e os Tenetehara

    3.1 Os Tapirap

    Por serem predominantemente agricultores e sedentrios os Tapirap tm uma

    experincia espacial limitada, mas a nsia por conhecimentos novos suprida pelas viagens dos

    xams. O tipo de contato entre homens e sobrenaturais naquela sociedade feito

    exclusivamente pelo paj (WAGLEY, 1942, 285). Leigos podem tambm sonhar as viagens dos

    xams so tidas como deslocamentos onricos porm sentem medo, uma vez que no detm os

    saberes necessrios para domesticar e familiarizar os acnga (espritos) malignos. A fora

    sobrenatural do paj permite-lhe se mover livremente nesse mundo de espritos e demnios.

    Um paj nunca tem medo em suas viagens de sonho, pois os espritos so seus amigos e a fora

    de um paj aumenta proporo em que ele confraterniza com esses seres (id., 1943b, p. 10-11).

    Quando compara os pajs tapirap aos tenetehara, Wagley (1942, p. 286-288) nota

    certas diferenas sobre como e onde se d a sua relao com os sobrenaturais. Os pajs tapirap

    no so possudos por espritos, como os xams tenetehara. Mesmo quando os sobrenaturais

    entram em seu corpo, no caso de transes da cerimnia do Trovo, as almas (iung) dos pajs

    tapirap separam-se do corpo (et) (ibid., p. 10) e viajam, embarcadas em canoas ou

    transformadas em pssaros, morada do Trovo.

    Um relato do paj Panteri, que o antroplogo coletou, sobre seu transe-viagem em uma

    cerimnia do Trovo o seguinte[4]:

    Comi muita fumaa e tornei a fumar ainda. Cantei, vi um grande sol que se aproximou de mim e

    desapareceu. Vi muitos sis pequenos. Eles aproximaram-se e distanciaram-se. Eu vi o Trovo.

    Era pequeno e veio numa pequena canoa. Era um filho do Trovo (Top). Usava um pequeno

    ornamento de cabea, feito de penas de arara vermelha. Tinha um pequeno tembet. Tentei

    arrancar-lhe o tembet (deste modo Panteri vencer o Top), mas ele deixou a casa. Ento tudo

    escureceu (Panteri no derrotara o Top, e conseqentemente este o havia atingido com uma

    flecha). Vi muitos sis. Viajei, cantando enquanto andava. Andei trs dias e subi num grande

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    morro, no outro lado do Araguaia. de l que o sol se levanta. Vi o Trovo; grande; e o seu corpo

    coberto de cabelo branco. Tem muitas penas de arara vermelha. Vi muitas almas de pajs e Top

    prximo dele. No falei e voltei depressa. (ibid., p. 34)

    O paj e seus deslocamentos tm importncia na vida tapirap de maneiras diversas: na

    agricultura, na pesca, na caa, na concepo de crianas. Quanto s atividades agrcolas, o

    antroplogo relata a funo do paj de purificar alimentos, enfatizando duas cerimnias: a do

    mel e a do milho. Esse cultivar s pode ser consumido aps o paj o ter purificado. No apenas

    proteger os ndios dos perigos dos perigos do consumo do milho, mas tambm assegurar a

    proteo das roas algo que deve ser feito pelo xam. Quando a poca de chuvas se inicia, o

    xam deve combater o Trovo e seus sobrenaturais (ibid., p. 22) de modo a proteger as

    plantaes. Quanto purificao do milho, a autor no apresenta consideraes nativas sobre as

    causas do perigo de se o comer antes da cerimnia. Tambm no explana em que consiste o

    ritual, apenas dizendo que o paj sopra tabaco sobre o milho. Aqui no se relata viagens

    onricas, comunicao com espritos, nada disso. O dilogo dos pajs com vegetais no aparece

    em nenhum trecho dos artigos; se plantas possuem espritos essa a traduo adotada para

    o que os animais possuem no se consegue saber a partir das descries de Wagley. No artigo

    de 1943, apenas se diz que o paj experimenta o milho para ver se ele est perigoso. O trecho

    seguinte mostra isso: os informantes eram incapazes de lembrar de alguma ocasio em que o

    milho ou o mel silvestre, provados pelos pajs, tenham sido considerados perigosos para o

    consumo. (ibid., p. 22). Mas os pajs purificam o alimento para torn-lo seguro ou atestam a

    segurana de consumi-lo? Nas duas pginas em que trata do tema, Wagley parece oscilar em sua

    interpretao. Talvez a dvida dos antroplogos sobre como tratar o tema decorra de diferentes

    respostas dadas a suas perguntas; possvel que seus informantes em campo no concordassem

    quanto ao que acontece. Dada a opo em trabalhar com artigos prontos, no conseguimos

    identificar a origem da ambiguidade, deixando apenas registrado que no se a compreende

    como uma falha do trabalho desses etnlogos, mas como algo inerente pesquisa etnogrfica.

    Os sonhos-viagens do paj tambm tm importncia para a caa e a pesca. Nos meses

    em que os Tapirap precisam nadar para pescar tartarugas, o xam precisa proteg-los de

    jacars, arraias, piranhas e cobras grandes - que acreditam se esconderem no fundo dos rios e

    para tanto se desloca oniricamente e amarra com cips as mandbulas dos jacars, bate nos

    dentes das piranhas, de modo que elas no possam morder, e amarra as cobras com ns feitos

    de suas prprias caudas. (ibid., p. 20). O controle do xam sobre as varas de porcos-do-mato

    uma possibilidade, ainda que Wagley no tenha conhecido ningum com essa capacidade

    enquanto esteve em campo, e a garantia de abundncia desses animais para a caa realizada

    por meio da ida do xam s aldeias dos porcos, da cpula com suas fmeas e do controle sobre

    os ampukya espritos que choram, de quem os porcos so xerimbabos (ibid., p. 20). O paj

    tambm consegue informar os caadores onde encontrar varas de porcos (id., 1940, p. 259). A

    morada desses animais num morro, prximo ao rio Tapirap, denominada Towaiyaw, rabo

    anelado do quati (id., 1943b, p. 20).

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    Interessante notar que as moradas dos animais e sobrenaturais possuem localizao

    geogrfica precisa. A noroeste, onde a terra acaba e a gua comea (ibid., p. 24), fica

    Maratawa, morada dos deuses, heris culturais, das almas descorporificadas dos pajs no ps-

    morte (panc-inwera). Ainda sobre esse local, Wagley escreve que

    Diversos informantes descreveram Maratawa como uma ilha. Para os Tapirap, o cu iluminado

    circundado por um cu negro e em todos os lados abaixo das bordas do cu iluminado, onde o cu

    negro comea, a terra termina e a gua principia. Assim, a terra uma ilha ampla cercada de gua

    por todos os lados. Os Tapirap esto dispostos a admitir, porm, que para alm dessa gua pode

    haver outra terra. (id., 1940, p. 254, traduo nossa)

    Alm de todos os seres j mencionados, Wagley cita os espritos (ancnga), divididos

    em dois tipos principais: (1) ancnga inwera alma ou espritos descorporificados dos mortos

    que vivem apartados dos vivos em aldeias abandonadas e (2) as criaturas malignas, muito

    diferentes entre si, divididas em classes e naturezas (id., 1943b, p. 8) no explicitadas pelo

    antroplogo.

    Os (1) ancnga inwera em geral vivem afastados dos vivos, porm s vezes vagueiam

    pelas aldeias tapirap, em especial quando sentem frio (ibid., p. 9). Raramente aparecem para os

    vivos, que quando os vem, ficam assustados. J em sonhos sobretudo nos do paj so

    visitados pelos Tapirap, que com eles aprendem cantos novos para as cerimnias. Esses

    espritos de mortos falecem novamente, se transformando em animais como sapo (se o ancnga

    inwera for de homem prestigiado), pombo, r, veado, paca. J os (2) ancnga malignos

    habitam o interior das florestas, distantes dos ndios. Quando esses espritos encontram os

    vivos, em geral os matam. Em tempos mticos, um paj chamado War matou muitos deles em

    guerras e por isso contemporaneamente os espritos malignos existem em nmero mais

    reduzido. Atualmente alguns desses seres so xerimbabos dos Tapirap e vivem na casa dos

    homens durante algumas temporadas do ano.

    Os xams e seu contato com outros seres tambm so fundamentais na concepo de

    crianas. Diversas espcies (ibid., p. 19) ou entidades Wagley lista algumas delas: o trovo, a

    noite, os macacos, porcos-do-mato, jacu, jacamim, tucunar, pacu, piranha e curimat -

    controlam os espritos de crianas (ibid., p. 19) . Cabe ao xam tomar os espritos infantis

    desses seres em suas viagens de sonhos e os trazer aos pais, que lhe haviam ofertado presentes.

    Assim, consegue-se saber a origem dos filhos, conforme relata o antroplogo:

    Um pai contou-me que levou mel ao paj Urukum, fazendo-lhe sonhar. Urukum viajou casa

    do Trovo, trazendo-lhe uma criana para sua esposa. Outro presenteou com peixe a um paj, que

    lhe trouxe uma criana de um pequeno peixe chamado piau (Leporinus sp.), e ainda deu mel a um

    paj que lhe trouxe uma criana de mutuca (Tabanidae). (ibid., p. 19)

    Quanto ao Trovo, Wagley parece no esclarecer nos artigos a diferena entre o trovo

    (Kanawana), cujo nome prprio seria Pururuka (id., 1940, p. 257), e suas criaturas, os top[5],

    pois escreve tanto top cause lightning quanto Thunder is angry and make lightning (ibid.,

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    p. 257). Apesar dos Tapirap descreveram os top como xerimbabos do Trovo, Wagley nota

    certa intercambialidade entre os termos. A morada do Trovo e de suas criaturas descrita

    como sendo no topo de um morro prximo a Maratawa no artigo de 1940. J em Xamanismo

    Tapirap (id., 1943b), o antroplogo escreve que o Trovo vive em Maratawa.

    As descries acerca da cerimnia do Trovo so bastante extensas, e aqui

    apresentaremos apenas um resumo breve. Acontece em mais de um dia, durante o perodo de

    chuvas, em dezembro ou em janeiro. Os pajs chamam o trovo e desafiam seus sobrenaturais.

    Sinteticamente, Wagley resume todos os acontecimentos que ir descrever em maior mincia

    mais adiante do seguinte modo:

    Numa intoxicao frentica, pelo engolir da fumaa do tabaco, constante danar e cantar, [os

    pajs] caem em transes durante os quais viajam at a casa do Trovo. Os pajs e corajosos leigos

    que tomam parte nesta cerimnia, so abatidos pelas flechas dos Top, caindo ao cho em

    contores. O comportamento violento a nota principal dessas cerimnias contra o Trovo e

    seus seres. (ibid., p. 29)

    3.2 Os Tenetehara

    Uma vez que dentre os materiais analisados sobre os Tenetehara encontrava-se uma

    monografia, nossas reelaboraes sobre as relaes indgenas com no humanos puderam ser

    mais extensas. Dividimo-las em tpicos.

    Classes de sobrenaturais

    No captulo de The Tenetehara Indians of Brazil dedicado vida religiosa, os autores

    identificam quatro classes de seres sobrenaturais (karowra, termo genrico) pensadas pelo

    grupo: (1) criadores ou heris culturais, (2) donos da gua e da floresta; (3) azang, espritos dos

    mortos e (4) os piwra, espritos dos animais.

    Sobre os (1) heris culturais, os autores escrevem que Mara o mais importante. O

    trecho da lenda[6] sobre Mara longo, e est transcrito a seguir:

    De acordo com a lenda, ele veio terra em busca da Terra Bela (Yw porng). Uma vez tendo

    encontrado esse local ideal, ele criou o homem e a mulher. Esse casal original vivia em paz sob

    condies ideais at que Ywan, deidade da gua, sorrateiramente comeou a manter relaes

    sexuais com a mulher. O homem era inocente em relao ao sexo at que Mara lhe contou o que

    estava acontecendo e o instruiu a matar o esprito da gua (ver p.131). Ele ensinou, ento, o

    homem e a mulher a procriar e disse, Agora vocs faro um filho e morrero. Mais tarde, quando

    seu filho tiver um filho, ele morrer tambm. Mara ensinou o homem a plantar mandioca e

    como dela fazer farinha. Inicialmente, a mandioca plantava-se sozinha, crescia e amadurecia em

    um mesmo dia, mas por a humanidade no acreditar em Mara, ele ficou furioso e fez com que a

    mandioca crescesse devagar. Agora os homens esperam toda a estao chuvosa entre a plantao

    e a colheita da mandioca, e devem desempenhar a estafante tarefa de plantar e desenterrar os

    tubrculos da terra. Mara tambm trouxe o algodo e ensinou as pessoas a fazer redes; ele roubou

    o fogo dos abutres e ensinou os homens a assar a carne ao invs de deix-la secar ao sol. Mara

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    logo cansou-se de viver entre os homens e se retirou para a Aldeia dos Deuses; l ele ainda vive

    uma existncia ideal com abundncia de alimentos, que crescem sem serem cultivados. Antes de

    Mara vir at ns, dizem os Tenetehara, Os homens no sabiam nada. Apenas Mara sabia.

    (ibid., p. 100-101, traduo nossa).

    Tambm h Makwan, que roubou a noite da Mulher Velha (Old Woman) e Aruw, que

    os ensinou a fazer a Festa do Mel de acordo com o ritual que Ele aprendeu quando visitou a

    aldeia dos jaguares (ibid., p. 101, traduo nossa). Tup tambm heri cultural nativo. Os

    antroplogos apontam, baseando-se principalmente nos trabalhos de A. Mtraux (1928)[7]

    sobre os Tupinamb, que entre os Tenetehara ele no to importante quanto o tornou os

    missionrios.

    Tambm se escreve sobre demnios da floresta: Zurupar, criador de insetos e rpteis

    incmodos, como mosquitos, cobras, aranhas e centopias venenosas. Esse demnio

    contemporneo aos heris, no entanto vive ainda hoje no fundo da floresta ou dos rios.

    Outros sobrenaturais so os (2) donos da floresta (Marana wa) e da gua (Ywan),

    considerados maus por punirem, causando doenas e m sorte na caa e pesca. So temidos e

    respeitados. Esses seres masculinos protegem seus domnios e as criaturas que vivem neles.

    Suas punies em geral referem-se a excessos cometidos durante a caa ou a pesca, ou

    contaminao das guas, conforme o caso descrito no livro atesta:

    um rapaz que vivia na aldeia do Jacar um dia matou um macaco quando estava caando. Ele j

    tinha mais carne do que conseguiria usar, mas ele decide assar o macaco e lev-lo a sua aldeia. Ele

    notou que o macaco pulou e estremeceu enquanto estava sendo cozido. Era algo estranho, mas ele

    no prestou muita ateno ao fato naquele momento. Ele permaneceu na floresta por muitos dias

    para caar e ento, repentinamente, foi acometido por um ataque de febre e no conseguia

    encontrar o caminho de volta aldeia. Cinco dias depois seus companheiros o encontraram semi-

    enlouquecido vagando pela floresta e tiveram que o arrastar fora de volta aldeia. Marana wa

    coloca um pedao de folha dentro do corpo de algum e essa pessoa enlouquece, explicou-se.

    Apenas um xam consegue trazer essa pessoa de volta a seu juzo. (ibid, p. 102-103, traduo

    nossa).

    Marana wa em geral associado aos porcos selvagens e s rvores de copaba (ibid., p. 103). O

    leitor remetido ao captulo sobre Vida Econmica, ao trecho em que Wagley e Galvo

    escreveram sobre a caa (ibid., p. 57).

    Tanto humanos quanto animais possuem espritos, que se distinguem de seus corpos.

    Os dos humanos so chamados ekwe, e vivem aps a morte na aldeia dos deuses. No entanto,

    aqueles que morrem por feitiaria ou por desobedincia das interdies do incesto ou

    nascimento de filhos tornam-se (3) azang, espritos errantes. Comparando essa cosmologia com

    a de outras populaes Tupi os autores no explicitam a quais grupos se referem, nem a que

    etnografias recorreram - Wagley e Galvo chegam a pensar que possvel que, em tempos

    aborgenes, se acreditasse que apenas o esprito dos xams iriam morada dos deuses e que

    todos os outros humanos teriam suas almas transformadas em azang[8]. Esses sobrenaturais

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    em geral habitam cemitrios, mas podem ser encontrados na floresta. H diversos relatos de

    encontros tenetehara com azang transformados em animais, eles s podem ser distintos de

    outros animais quando uma flecha ou bala de um caador os atinge. So os donos do milho e o

    controlam. Uma nota de rodap na pgina 105 da monografia (ibid.) indica haver discordncia

    entre os informantes dos antroplogos sobre se os azang de fato se metamorfoseiam em veados,

    tapires ou sapos, ou se, alternativamente, o que se v so os espritos desses animais, e no um

    azang transformado.

    Esse esprito dos animais chamado (4) piwra e vive aps a morte. So considerados

    malvolos frente aos humanos, pois protegem suas espcies. Quando se quebra os tabus

    alimentares da gravidez, do ps-parto ou da infncia, o piwra do animal ingerido pode causar

    doenas fsicas ou mentais s pessoas. Muitas doenas cotidianas so atribudas a piwra, e o

    xam descobre qual o animal responsvel pelo objeto que foi introduzido no corpo do doente. O

    piwra do jaguar parece ter mais importncia no imaginrio tenetehara do que os outros. Ele

    pode entrar nos corpos de outros animais, que passam a adquirir algumas de suas

    caractersticas morfolgicas. Nem todos os animais possuem piwra, em especial as espcies de

    menor porte, como alguns peixes e roedores pequenos.

    A caa uma atividade que envolve riscos, pois a maioria dos animais possui piwra,

    conforme se explanou acima. Alm disso, porcos selvagens so protegidos pelo sobrenatural

    Marana wa, o dono da floresta. Outro risco envolvendo a caa de animais a possibilidade de

    se encontrar um azang, esprito errante, na floresta. Um homem que enfureceu um sobrenatural

    dito panema, porm, na realidade, so seus instrumentos de caa e pesca que se tornam

    azarados (unlucky).

    Roas

    Ao escreverem sobre as roas tenetehara os autores so minuciosos e investigam em

    profundidade e detalhe a questo da produtividade agrcola. Uma vez que uma roa aberta,

    no dura mais de trs anos e necessita-se de mata virgem para se cortar e queimar, abrindo-se

    uma nova rea de roado. As regies de crescimento secundrio, capoeiras, tm rendimento

    inferior para a plantao. As roas so plantadas em reas de planalto (highlands) por causa

    das chuvas sazonais, que alagam a vrzea - o que torna os trechos adequados abertura de

    novas plantaes ainda mais escassos. Alguns cultivares como o milho so produzidos na vrzea,

    pois podem ser semeados e colhidos durante a estao seca.

    Os cultivares tradicionais mencionados por Wagley e Galvo so: milho, feijo, abbora,

    pimenta, inhame, melancia, tabaco, amendoim, algodo e mandioca. Tambm se planta arroz,

    quiabo, pepino, cebola, cana de acar, banana, mamo, mamona e haxixe (ibid., p. 34), hbito

    adquirido com o contato com brasileiros. A cultura mais importante a da mandioca, alimento

    consumido em todas as refeies. Ela to significativa na vida tenetehara que seria refletida

    nos mitos. Nas palavras dos autores:

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    Seu sustento de vida e cultivar de base, no entanto, a mandioca, ou cassava, como por vezes

    chamada. Sob uma forma ou outra, a mandioca configura a base de todas as refeies tenetehara.

    Isso refletido na mitologia nativa. Uma histria relata como em tempos legendrios os

    Tenetehara viviam base de uma fruta silvestre chamada kamam (Solanacea), coletada pelas

    mulheres na floresta. Em seguida um importante heri cultural, Mara, trouxe-lhes a mandioca,

    que miraculosamente plantava-se sozinha, amadurecia em um dia e era colhida sem nenhum

    trabalho. Era uma era urea de lazer e abundncia. Mas a esposa de Mara envelheceu e adoeceu e

    ele desposou uma jovem. Quando ele lhe disse para ir apanhar a mandioca que ele havia ordenado

    que se plantasse no dia anterior, ela duvidou de seu marido e se recusou a ir. Mara enfureceu-se e

    disse, Doravante, vocs (pessoas) esperaro durante todo o inverno (estao chuvosa) para a

    mandioca crescer. Desde aquele dia, a mandioca cresce lentamente, e os homens tem tido de a

    plantar, colher e transformar em farinha para comida. (ibid., p. 34, traduo nossa, grifo nosso)

    Ao tentar estimar o tempo necessrio para a abertura e plantao de uma roa, os

    antroplogos no conseguiram obter dos informantes dados consistentes ou similares, pois

    segundo eles os ndios no trabalham diariamente ou com a mesma intensidade todos os dias

    em seus roados. Os autores ainda mediram as roas (ibid., p. 42-47) buscando averiguar sua

    capacidade de suprir as necessidades alimentares dos ndios. Os Tenetehara mediam a rea de

    suas plantaes por linhas, o que aprenderam a fazer com a populao rural da regio. As

    estimativas indgenas quanto ao tamanho de suas roas e as medidas dos antroplogos mostram

    certo descompasso. Alm disso, os ndios, diferentemente dos brasileiros locais, no planejam

    quanto devem plantar para suprir suas necessidades. Quando questionados, estimam algo como

    1,5 linha para sustentar uma famlia, mas essa informao tirada da experincia e no de

    planejamento.

    Os autores avaliam que se um homem plantar uma roa desse tamanho a cada ano e

    continuar plantando na roa antiga, a quantidade de alimento suficiente para o sustento de

    sua famlia, gerando inclusive algum excedente para venda.

    Devido alta do preo do babau muitos homens se ocupavam de atividades

    extrativistas em 1945. Assim, o tamanho das roas naquele ano era menor do que

    anteriormente, quase no sendo suficientes para alimentar uma famlia. O importante notar,

    contudo, que a despeito da pouca fertilidade da terra e da necessidade freqente da abertura de

    novas roas, as plantaes indgenas eram capazes de sustentar os habitantes das aldeias.

    Trata-se agora de outro aspecto dos roados, daquilo que os autores denominam roas

    cooperativas ou comunais (ibid., p. 46) das famlias extensas. Cita-se o caso de um homem que

    trabalhou no jardim de seu cunhado, e de outro que trocou seu trabalho nas roas de cada um de

    seus cinco irmos por comida: O grande grupo da famlia extensa oferece ao indivduo o

    mximo em termos de segurana econmica e os membros de tais grupos so unidos no apenas

    pelo parentesco, mas tambm por fortes laos econmicos. (ibid., p. 47, traduo nossa). Outro

    trecho do livro atesta que o carter da roa tenetehara ultrapassa as fronteiras da esfera

    econmica[9]. Homens que no trabalham nas roas, mesmo que coletem babau e ganhem

    dinheiro o bastante para prover alimentos para sua famlia, so considerados preguiosos e

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    genros malquistos. Alm de proverem os ndios com alimento, seus roados criam relaes entre

    as pessoas. No se pode aprofundar essa hiptese, no entanto, pois essa no era uma questo

    investigada por Wagley e Galvo.

    Interdies alimentares

    Quando uma mulher est grvida ela e seu marido devem adotar certas proibies

    alimentares. As caas interditas so ditas tapiwra, carregam espritos que podem entrar no

    feto, causando-lhe anormalidade. Os antroplogos listaram os animais tabu e o que a sua caa e

    ingesto pelos pais causaria aos filhos ainda no nascidos (ibid., p. 65). Exemplo disso o

    seguinte: caso ingira-se uma arara vermelha, a criana pode nascer retardada ou com um bico

    no lugar do nariz. Essas restries alimentares quanto a animais tapiwra continuam at a

    criana estar dura ou comear a andar; a ligao fsica entre pai e filho continua nesses

    primeiros meses do infante.

    Uma vez que a criana comeou a engatinhar, faz-se um pequeno ritual, wira o hmo-i

    termo diminutivo de wira o hwo, a denominao da cerimnia de puberdade (ibid., p. 73)

    para proteger a criana, pois nesse perodo que ela comea a comer algumas carnes. Nem todo

    tipo de caa permitido ingesto de uma criana tenetehara. Antes dos ritos de passagem

    rapazes e moas no podem comer carnes piwra (a lista semelhante dos tabus alimentares

    da gravidez e ps-parto). Galvo e Wagley comentam a possibilidade das crianas ficarem

    insanas. somente no final das festividades que os jovens comem as carnes outrora interditas,

    em um festival de carne moqueada. As cerimnias de passagem so descritas como sendo uma

    das fases da Festa do Milho.

    A Festa do Milho e a Festa do Mel

    A Festa do Milho realizada na poca das chuvas, quando esse cultivar plantado e

    colhido, e tem por objetivo proteg-lo. O paj chama espritos familiares pode ser um uwan

    (dono dos bichos das guas), um esprito de animal (cururu, veado, gamb, rato, anta) ou um

    azang para auxili-lo (WAGLEY, 1943a; 1942, p. 287). Um desses espritos possui o xam e a

    partir da que este pode curar. Wagley faz breve comentrio acerca desses sobrenaturais:

    segundo os Guajajara eles possuem um esprito e uma parte material, um umae (coisa a

    traduo sugerida). essa coisa que introduzida pelo feiticeiro (paj mau) e depois

    retirada pelo xam nos processos de cura.

    Para se atingir o estado de xtase, em que o esprito familiar o possui, o paj fuma

    tabaco enrolado entre casca de taquari (id., 1942, p. 286), bate o marac, e homens e mulheres

    acompanham seu canto. A intensidade da dana e dos cantos cresce, e quando intoxicado pelo

    tabaco, sai para danar fora do grupo e pula para trs com as mos chegadas ao peito (ibid., p.

    286), so esses os sinais fsicos da incorporao. O paj pode ainda perder o controle de seus

    movimentos e cair no cho sem sentidos.

    Diferenas fsicas e comportamentais do paj indiciam o tipo de esprito que lhe

    possuiu. Quando se trata de um uwan, ele dana com os braos abertos (ibid., p. 287), quando

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    pelo esprito de um gamb, dana com os joelhos juntos, em saltos curtos. Uma vez possudo por

    um veado, um xam, durante uma Festa do Milho observada por Wagley, passou a comer folhas

    de mandioca, tal qual aquele animal faz. No mesmo dia um outro [paj] comeu tapioca crua

    quando possudo pelo azang, esprito de um morto, porque como eles dizem: Azang gosta s

    tapioca crua (ibid., p. 287).

    A outra festividade importante na vida guajajara, a Festa do Mel, ocorre na poca de

    seca. O mel colhido e posto em cabaas, que so colocadas em uma maloca separada. Durante

    a noite cantos so entoados para benzer o mel (id., 1943a) e esse cantos referem-se a animais e

    pssaros da floresta (WAGLEY, GALVO, op. cit., p. 122). H correlao entre essas festividades

    e o sucesso na caa.

    Ambas as festividades, do mel e do milho, garantem alimentos aos Tenetehara. As

    tcnicas utilizadas nas roas provem alimento suficiente para o sustento dos ndios, mesmo que

    o solo amaznico e a queima de roado sejam considerados ruins por Galvo e Wagley. No s

    as tcnicas, porm, mas tambm as relaes indgenas com outros seres afianam a regularidade

    da produo de alimentos.

    4. Consideraes finais

    Assim como abordagens contemporneas sugerem que os socius amerndios no se

    limitam s relaes entre seres humanos (tomando humanidade nos termos naturalistas)

    (DESCOLA, 2005; VIVEIROS DE CASTRO, 1996; 2002a), as etnografias aqui estudadas

    tambm retratam essas relaes dos indgenas com diversos outros seres. Charles Wagley e

    Eduardo Galvo, contudo, conduziram suas pesquisas e escreveram seus trabalhos nos anos

    1940; antropologia do perodo era outra. A tematizao, o tratamento e a centralidade das

    descries sobre relaes entre humanos e no humanos operados por esses antroplogos

    diferem das reflexes da etnologia indgena contempornea. Foi necessria uma releitura e

    reelaborao interessadas dos trabalhos que compem o corpus para que se pudesse realizar

    uma comparao. A antropologia dos autores aqui em estudo distinta de uma antropologia

    renovada que busca partir das questes e esquemas filosficos prprios s sociedades indgenas

    para ento levar reflexo antropolgica mais ampla os novos conceitos e conexes apreendidos

    a partir da etnografia. Viveiros de Castro explicita assim a diferena entre essa nova

    antropologia e outras:

    O que estou sugerindo, em poucas palavras, a incompatibilidade entre duas concepes da

    antropologia, e a necessidade de escolher entre elas. De um lado, temos uma imagem do

    conhecimento antropolgico como resultando da aplicao de conceitos extrnsecos ao objeto:

    sabemos de antemo o que so as relaes sociais, ou a cognio, o parentesco, a religio, a

    poltica etc., e vamos ver como tais entidades se realizam neste ou naquele contexto etnogrfico

    como elas se realizam, claro, pelas costas dos interessados. De outro (e este o jogo aqui

    proposto), est uma idia do conhecimento antropolgico como envolvendo a pressuposio

    fundamental de que os procedimentos que caracterizam a investigao so conceitualmente da

    mesma ordem que os procedimentos investigados. Tal equivalncia no plano dos procedimentos,

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    sublinhe- se, supe e produz uma no-equivalncia radical de tudo o mais. Pois, se a primeira

    concepo de antropologia imagina cada cultura ou sociedade como encarnando uma soluo

    especfica de um problema genrico ou como preenchendo uma forma universal (o conceito

    antropolgico) com um contedo particular , a segunda, ao contrrio, suspeita que os problemas

    eles mesmos so radicalmente diversos; sobretudo, ela parte do princpio de que o antroplogo

    no sabe de antemo quais so eles. O que a antropologia, nesse caso, pe em relao so

    problemas diferentes, no um problema nico (natural) e suas diferentes solues (culturais). A

    arte da antropologia (Gell 1999), penso eu, a arte de determinar os problemas postos por cada

    cultura, no a de achar solues para os problemas postos pela nossa. (Viveiros de Castro 2002:

    116-117)

    Ser que esse modo novo de se fazer antropologia o nico que realmente busca

    entender com seriedade a alteridade amerndia? Minha resposta certamente no negativa,

    tenho muito respeito pelas questes postas pela antropologia contempornea, que muito me

    entusiasma. Antes, contudo, de dar questo uma resposta afirmativa em definitivo, o que

    tentei foi exercitar a dvida, a partir de trabalhos de etnlogos pioneiros, que, a meu ver,

    preocuparam-se seriamente em compreender o que diziam seus informantes. A antropologia,

    claro, era outra. No cobremos dela aquilo que ela nunca se props fazer.

    Em suma, o intento deste artigo foi modesto: reler trabalhos antropolgicos pioneiros

    sobre populaes indgenas das terras baixas sul-americanas, a partir, sobretudo, de suas

    descries minuciosas[10] e de um recorte temtico que possibilite a comparao (ainda que

    implcita) com a etnologia indgena contempornea. Os desdobramentos da antropologia

    regional desde ento foram inmeros, e so sem dvidas bastante conhecidos pelo leitor. Menos

    conhecidas por ns, alunos de graduao em Cincias Sociais, so as produes antropolgicas

    que se dedicaram a populaes sul-amerndias antes dos anos 1980.

    NOTAS

    *Aluna de graduao da Licenciatura em Cincias Sociais pela Universidade de So Paulo (USP). Realizou essa pesquisa sob orientao da Professora Marta Rosa Amoroso no projeto do Centro de Estudos Amerndios. Atualmente, bolsista da USP. E-mail: [email protected]

    [1] Fazendo justia ao perspectivismo amerndio, evidente que quando Viveiros de Castro elabora essa sistematizao do pensamento indgena, no diz que certos animais so gente, para os humanos, o tempo todo, mas apenas quando assumem o ponto de vista de sujeito.

    [2] Uma comparao, bem verdade, que apresenta apenas um dos termos que se est comparando. A etnologia indgena contempornea a qual nos referimos, tomamo-la como j conhecida do leitor. Por limitaes de espao e, sobretudo, de competncia, o que fazemos neste artigo uma comparao mais referida do que de fato feita. O exerccio comparativo proposto, porm, est enunciado, mas no completo; fica implcito. Ressalta-se o carter de esboo de comparao, de incio de reflexo que tem este artigo.

    [3] A utilizao dos dirios de campo de Galvo, organizados por equipe dirigida por Marco Antnio Gonalves (1996) como material de pesquisa poderia ter sido interessante para entender a antropologia em ao, digamos, parafraseando Bruno Latour. Conforme notou uma das pareceristas em verso anterior deste artigo, o que est nos livros e artigos desses antroplogos so textos que purificam muitas das ambiguidades e controvrsias do que se

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    aprendeu em campo, na interlocuo com os indgenas. necessria a reflexo: o que se apreende em pesquisas antropolgicas fruto de interlocuo, no precede a relao intersubjetiva (Cardoso, 2011) entre pesquisador e pesquisado. Assim, o que se apresenta nos textos fruto de generalizaes dos autores, pois tudo o que aprenderam sobre os Tapirap e Tenetehara, o fizeram a partir de observaes e conversas situadas, com determinadas pessoas. Ao ater minha anlise em textos que encobrem as ambiguidades da vida indgena e do que os antroplogos puderam dela compreender, assumo o problema que se coloca na homogeneizao do entendimento que esses autores tiveram das conexes estabelecidas e vividas por seus sujeitos de pesquisa. Ao leitor fica, portanto, o alerta de que tudo mais complicado do que aquilo que apresento. A dificuldade em se lidar com essas questes ao mesmo tempo em que se quer situar o debate nas discusses e histria da etnologia indgena e esta era a ideia original - algo que s recentemente percebi.

    [4] Segundo Wagley, trata-se de uma traduo livre (ibid., p. 34).

    [5] Os top so descritos assim: Top are described as small beings about a hands length in size, with with hairy down over their bodies, and wearing a small headdress of red parrot feathers, European beads, and a lip plug (WAGLEY, 1940, p. 257). Mais uma vez, essa aparente incapacidade do antroplogo em descrever de modo coerente e definitivo as relaes, nesse caso entre trovo e suas criaturas, decorre das dissenses de seus sujeitos de pesquisa, muito provavelmente, ou ainda do contexto em que os dilogos entre pesquisador e pesquisado ocorreram. H mesmo uma diferena no que tange ao tratamento desse tema nos dois artigos em que ele aparece.

    [6] Mais uma vez, seguimos os termos mobilizados pelos autores pesquisados. Wagley e Galvo usam o termo lenda (legend) e no mito.

    [7] Em diversos trechos dos artigos de nosso corpus, faz-se referncia a trabalhos de A. Mtraux, sobretudo a La rligion des tupinamba... (1928). Muitas vezes os comentrios de Wagley, em especial no seu artigo de 1940, parecem buscar complementar as comparaes traadas por Mtraux entre a religio das diferentes populaes tupi-guarani. No tendo sido esse o foco de nossa pesquisa, no entanto, apenas apontamos a relao entre os trabalhos desses dois antroplogos, sem que seja possvel seguirmos essas conexes mais aprofundadamente.

    [8] possvel que haja aqui comparao com os Tapirap, uma vez que as descries da seo anterior apontam para algo semelhante hiptese dos autores, mas em relao ao outro grupo indgena. Os Tapirap estariam em estgio de aculturao anterior ao dos Tenetehara, de acordo com a abordagem de Wagley.

    [9] A impossibilidade de delimitao da vida tenetehara em esferas como economia, vida pessoal, religio, mitos e lendas percebida pelos autores, apesar da diviso dos captulos do livro. Eles seguem as conexes nativas frequentemente, remetendo o leitor a outras pginas.

    [10] A qualidade e carter detalhista dos trabalhos de Wagley foram notados por outros autores. Viveiros de Castro (1986, p. 91), por exemplo, reconhece a qualidade da etnografia desse antroplogo ao comentar seus artigos sobre os Tapirap e sua monografia sobre o mesmo grupo, que por ser posterior ao recorte adotado neste artigo, no se encontra na nossa bibliografia.

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