everardo backeuser citado em educação 1925

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ARTIGO Rev. Online da Bibl. Prof. Joel Martins, Campinas, v.2 , n.3, p.55-67 , jun.2001. 55 VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA DOMÉSTICA NA EDUCAÇÃO DE ESCRITORES BRASILEIROS Maria Helena Palma de Oliveira RESUMO: Este trabalho apresenta, inicialmente, a amostra mais ampla de escritores brasileiros que escreveram autobiografias, em prosa, e que privilegiaram a infância e/ou a adolescência como idade de vida e que, além disso, relataram episódios de violência doméstica sofrida. São destacados, dessa amostra, os dados referentes à violência psicológica que tiveram como motivação o processo de educação desses escritores. Esse tipo de violência ocorreu em razão de duas amplas categorias motivacionais: a imposição pelo adulto agressor de um modelo disciplinador e o processo de escolarização. Finalmente, analisam-se e discutem-se os dados textuais dos episódios de violência doméstica psicológica relatados pelos escritores brasileiros em suas autobiografias. PALAVRAS-CHAVE: Educação ; Violência doméstica ; Violência psicológica ; Escritores brasileiros ; Autobiografia ABSTRACT:This work presents, initially, the widest sample of Brazilian writers who wrote autobiographies, in prose, and who emphasized their childhood and/or adolescence as an age of life having, besides that, related episodes of domestic violence. In this sample, is detached the data which refers to the use of the psychological violence in the writers’ educational process. This kind of violence occurred in reason of two motivational categories: the imposition by the assaulting adult of a discipline model and the process of schooling. Finally, is analyzed and discussed the text data from the domestic psychological violence episodes related by Brazilian writer’s in their autobiographies. KEY-WORDS: Education ; Domestic violence ; Psychological violence ; Brazilian writers, Autobiography

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    Rev. Online da Bibl. Prof. Joel Martins, Campinas, v.2 , n.3, p.55-67 , jun.2001. 55

    VIOLNCIA PSICOLGICA DOMSTICA NA EDUCAO DEESCRITORES BRASILEIROS

    Maria Helena Palma de Oliveira

    RESUMO: Este trabalho apresenta, inicialmente, a amostra mais ampla de escritoresbrasileiros que escreveram autobiografias, em prosa, e que privilegiaram a infncia e/ou aadolescncia como idade de vida e que, alm disso, relataram episdios de violnciadomstica sofrida. So destacados, dessa amostra, os dados referentes violncia psicolgicaque tiveram como motivao o processo de educao desses escritores. Esse tipo de violnciaocorreu em razo de duas amplas categorias motivacionais: a imposio pelo adulto agressorde um modelo disciplinador e o processo de escolarizao. Finalmente, analisam-se ediscutem-se os dados textuais dos episdios de violncia domstica psicolgica relatadospelos escritores brasileiros em suas autobiografias.

    PALAVRAS-CHAVE: Educao ; Violncia domstica ; Violncia psicolgica ; Escritoresbrasileiros ; Autobiografia

    ABSTRACT:This work presents, initially, the widest sample of Brazilian writers who wroteautobiographies, in prose, and who emphasized their childhood and/or adolescence as an ageof life having, besides that, related episodes of domestic violence. In this sample, is detachedthe data which refers to the use of the psychological violence in the writers educationalprocess. This kind of violence occurred in reason of two motivational categories: theimposition by the assaulting adult of a discipline model and the process of schooling. Finally,is analyzed and discussed the text data from the domestic psychological violence episodesrelated by Brazilian writers in their autobiographies.

    KEY-WORDS: Education ; Domestic violence ; Psychological violence ; Brazilian writers,Autobiography

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    As discusses que se estabelecem nestetrabalho decorrem do estudo daconstruo social da infncia no Brasilsob a temtica da Violncia Domsticacontra Crianas e/ou Adolescentes(Oliveira, 1998, 2001). O estudo tomou,numa perspectiva hodierna do fenmeno1,a produo autobiogrfica em prosa depoetas, prosadores, crticos e ensastasbrasileiros de todos os perodos literriosque privilegiaram a prpria infncia comoperodo de vida e relataram esse tipo deviolncia.

    O universo pesquisado abrange toda ahistria da produo literria brasileira de1500 a 1997. A amostragem inicial partiudos escritores elencados em "Histriaconcisa da literatura brasileira" deAlfredo Bosi (Bosi, 1997), no entanto,outros escritores foram acrescentadosdurante a pesquisa. Do total de 539escritores listados, apenas 48 (8,9%)produziram autobiografias. Considerandoos escritores que produziramautobiografias, ou seja, os que, segundoLejeune (1975), expressaram no texto opacto autobiogrfico, que permite saberque o relato tem como narrativa a prpriavida do escritor, 44 (91,7%) abordaram ainfncia enquanto idade de vida, o quemostra que a mesma foi um perodobastante privilegiado pelos escritores;alm disso, 27 escritores (62,8%) dos querelatam a infncia, apresentam episdiosque podem ser categorizados hoje comoViolncia Domstica contra Crianas e

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    1 Como qualquer anlise de contedo representasempre uma e apenas uma das possibilidades deum olhar instrumentalizado, tambmsociohistoricamente constitudo, sobre um dadocorpus, o estudo optou por reproduzir osepisdios analisados (veja Oliveira, 1998, AnexoB), a fim de que possam vir a ser revisitados poroutros leitores capazes de outras leituras...

    Adolescentes. O Quadro 1, apresentadona seqncia, detalha esses dados. Aviolncia autobiograficamente relatada foicategorizada em Psicolgica, Fsica eNegligncia. No foi relatado nenhumcaso de Violncia Sexual domstica.

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    QUADRO 1 - Escritores brasileiros com autobiografia por perodoperodo literrio e pelo tipo de violncia domstica

    sofrida na infncia e/ou adolescncia

    Tipo de ViolnciaPer odo Li terrio

    Escr i tor (a)Psicolg ica Fs i ca Negl ig nc ia

    Jos J . C.Med ei ro s e Albuquerqu e(1867-1934)

    X

    Hu mber to de Campos (1886-1947) X X X

    Real i s mo/Parnas iani s mo

    Mrio Set t e (1886-1950) XSimbol i s mo lvaro M. da Soledad More i r a (1888-

    1964) X

    Everardo Backeuser (1879-1951) X XJos Perei ra d a Graa Aranha (1868-1931)

    XPr-Moderni s moPaulo Setbal (1893-1937) XAfonso Arinos d e Melo Fran co (1905-1990)

    X X

    rico Ver ss imo (1905-1975) X X XGilber to Amado (1887-1969) X X X

    Moderni s mo

    Pedro Calmon d e Bi t ten cour t (1902-1985)

    X

    Alceu Amoro so Lima (Tr i s to d e Atad e)(1893-1983)

    X

    An tonio Car los Vi l l aa (1928) XAu gu sto Freder ico Sch midt (1906-1965) XCarmo Bern ardes (1915) X XCyro V. dos Anjos (1906-1994) XEugnio Go mes (1897-1972) X X XGraci l i ano Ramo s (1892-1953) X X XHelena S i lve i ra (1911-1984) XHerb er to Sal es (1917) X XJos Amri co de Almeid a (1887-1980) X X XJos Lins do Rego (1901-1957) X X XLedo Ivo (1924) X XLu s Jard im (1901-1987) X X XMuri lo Mendes (1901-1975) XPaulo Duar t e (1899-1984) X X

    Tendnc ias

    Conte mporneas

    Pedro Nava (1903-1984) XTotais 27 23 14 12Fonte : Oliveira (1998, p .173)Rev. Online da Bibl. Prof. Joel Martins, Campinas, v.2 , n.3, p.55-67 , jun.2001. 57

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    Entende-se por violncia o padro derelacionamento assimtrico-hierrquicode poder, cujos objetivos aparecem bemdefinidos no contexto da dominao,explorao e opresso. Para Chau (1985),a violncia ocorre quando se convertemos diferentes em desiguais e adesigualdade numa relao entre superiore inferior; de outro ngulo, a violncia,enquanto ao, transforma o ser humanoem coisa, em objeto. O impedimento ou aanulao da atividade e da fala deoutrem violncia. Para Chau(1985, p.23-62) a violncia ...uma realizao determinada das relaesde fora, tanto em termos de classessociais quanto em termos interpessoais".A autora aborda questo sob doisangulos:

    "como converso de umadiferena e de uma assimetria,numa relao hierrquica dedesigualdade, com fins dedominao, de explorao e deopresso"; alm disso, "como aao que trata o ser humano nocomo sujeito, mas como coisa. Estase caracteriza pela inrcia, pelapassividade e pelo silncio".(Chau, 1985, p.61-62).

    A violncia no pode ser vista como umfenmeno inerente natureza humana,mas como um fenmeno condicionado aomodo de organizao social, que historicamente construdo. Existe aviolncia estrutural, constitutiva dacondio de ser-humano - condio essaque tem nas relaes sociais, o prprioespao das relaes de poder. Essa no a nica possibilidade de relacionamentohumano, no entanto, a quehistoricamente se repete. Relacionando-se violncia estrutural, ou seja, violnciaentre classes sociais, resultante do modode produo das sociedades desiguais,coexiste a violncia inerente s relaes

    adulto criana (Azevedo e Guerra,1989, p.35). Essa violncia de carterinterpessoal nem sempre tem seusdeterminantes na violncia estrutural.Concretiza-se no poder do adulto sobre acriana: uma forma de aprisionar avontade e o desejo da criana, desubmet-la, portanto, ao poder do adulto,a fim de coagi-la a satisfazer interesses,expectativas ou paixes deste" (Azevedoe Guerra, 1989, p.35)

    A violncia domstica contra crianase/ou adolescentes inter-relaciona duasquestes: famlia e infncia. Por isso,imbrica-se diretamente no padrosociohistrico do uso da violncia comosoluo de conflitos. Esse contexto derelacionamento interpessoal que envolvea famlia e a infncia, encontra-seprofundamente marcado pelas relaesque os processos de educao e deescolarizao estabelecem.

    A violncia a que se refere este trabalho, especificamente, a ViolnciaDomstica contra Crianas e/ouAdolescentes, ou seja, a violnciapraticada no lar, por pais (biolgicos oude afinidades), responsveis legais(tutores, padrinhos, etc). ou parentes(irmos, avs, tios, primos etc.), contracrianas e/ou adolescentes (todos osmenores de 18 anos).

    A violncia domstica concretiza-seatravs da violncia fsica, da violnciapsicolgica, da negligncia e da violnciasexual. A abordagem deste estudo especificamente a violncia psicolgicadomstica e sua relao com processo deeducao na infncia e/ou adolescncia deescritores brasileiros. A Figura 1 trazdetalhes da freqncia, das estratgiasutilizadas, bem como das motivaes parao ato.

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    FIGURA 1 - Caracterizao da Violncia domstica psicolgicapela freqncia, estratgia e motivao para o ato

    A conceituao de violncia domsticaest relacionada tambm a outrasquestes conceituais complexas como amotivao do agente (agressor) e o efeitodo ato sobre a vtima (Azevedo e Guerra,1989). A motivao para o ato prende-sedialeticamente a fatores que envolvem aquesto infncia, a questo famlia, aquesto violncia. A questo infnciavincula-se conscincia que determinadacultura tem da infncia: quais ossentimentos que se relacionam a ela:quais os mitos que esse sentimentocomporta; enfim qual o valor da infncia

    e em que tipo de atitudes ele podeconcretizar comportamentos decompreenso, aceitao e respeito paracom a criana. A questo famlia liga-seao padro de relacionamento interpessoal,esse padro comporta fatores conjunturaise estruturais, j apontados anteriormente.A conjugao desses fatores pode facilitara ocorrncia de violncia contra crianase adolescentes no interior da famlia,espao marcado pela distribuio desigualde poder.

    Freqncia

    0

    10

    20

    30

    40

    50

    60

    70

    80

    Ocorrncia freqente

    Ocorrncia isolada

    Estratgia (1)

    Intimidao/ameaa/humilhao

    Isolamento/reclusoaprisionamento

    Inculcao desofrimento/imposio devontadeExigncias intelectuaisexcessivas

    Motivao (2)

    Estabelecimento de modelodisciplinar/transgresso destemodeloEnsino/escolarizao

    Rejeio

    Instabilidade afetiva/familiar

    Fonte: Oliveira (1998, p.178)

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    O efeito do ato sobre quem o recebeu temcarter importantssimo no que se refere sua identificao como violnciadomstica. O efeito danoso do ato sobre acriana ou adolescente consideradotanto no seu carter efetivo quantopotencial. Significa que cabe destacar osofrimento que a ao do adulto provocana criana vtima. Nesse caso, procurou-

    se sempre privilegiar uma visoindividualizada, uma vez que, se, porexemplo, o olhar da av de Pedro Navarepresentou um momento de sofrimento ereflexo capaz de marcar toda umamudana de comportamento da criana de8 anos, ento este fato no poderia serexcludo (Nava, 1977).

    QUADRO 2 - Escritores brasileiroscom autobiografia e relato deviolncia psicolgica domstica nainfncia e/ou adolescnciapor perodo literrio e pela motivaodo ato

    MotivaoPerodos Literrios Escritores brasileiros com autobio-grafia com relato de violnciapsicolgica domstica na infncia e/ouadolescncia

    Estabelecimentode modelodisciplinador outransgresso domodelo

    Processo de ensi-no ouescolarizao

    J.J. Campos Medeiros e Albuquerque XRealismo/Parnasianismo Humberto de Campos X XSimbolismo lvaro M. de Soledad Moreyra X

    Everardo Backeuser XPr-ModernismoJos Pereira da Graa Aranha XAfonso Arinos de Mello Franco Xrico Verssimo XModernismoGilberto Amado XAlceu Amoroso Lima XAntnio Carlos Villaa XCarmo Bernardes XCyro Versiani dos Anjos XEugnio Gomes XGraciliano Ramos X XHelena Silveira XHerberto Sales XJos Amrico de Almeida X XJos Lins do Rego X XLedo Ivo XLus Jardim X X

    TendnciasContemporneas

    Paulo Duarte XTotais 21 17 09Fonte: Oliveira (1998)

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    A Violncia Psicolgica, tambmdenominada de tortura psicolgica,caracteriza-se pelo grande sofrimentomental que o adulto causa criana. Paraisso, o adulto pode utilizar-se de diversosprocedimentos como depreciar a criana,bloquear seus esforos de auto-aceitao,ameaar abandon-la; provocando atravsdo medo e da ansiedade o sofrimentopsicolgico. Esse tipo de violncia podeassumir duas formas bsicas: neglignciaafetiva e rejeio afetiva: A neglignciaafetiva consiste numa falta deresponsabilidade, de calor humano, deinteresse com as necessidades emanifestaes da criana. A rejeioafetiva caracteriza-se por manifestaode depreciao e agressividade para coma criana. (Azevedo & Guerra, 1989,p.41)

    Houve dois motivos interligados para aocorrncia de violncia psicolgicadomstica relatados pelos escritoresbrasileiros, sendo que o conjunto dessasmotivaes componente fundamental doprocesso mais amplo de educaofamiliar: a primeira categoriamotivacional foi decorrente do objetivoda famlia de estabelecer um modelodisciplinador ou foi decorrente datransgresso, por parte da criana ou doadolescente, do modelo disciplinador queestava sendo imposto. O Quadro 2,mostra que grande parte dos escritoresbrasileiros estudados (17) sofreuviolncia psicolgica devido a essacategoria motivacional. Outra motivao,tambm bastante recorrente, vinculou-seao processo de ensino/escolarizao,relatado por 9 escritores. Essas foram asmotivaes mais apontadas pelosescritores; juntas envolveram 21 (91,3%)dos 23 escritores (conforme Quadro 2)que relataram violncia psicolgica nainfncia e/ou adolescncia.

    No entanto, apenas os dados quantitativosno conseguem expressar os significadosdas relaes familiares enredados nosepisdios de violncia psicolgicadomstica sofrida pelos escritoresbrasileiros que marcaram o processo deeducao/escolarizao na infncia. Essalimitao impe a necessidade dediscusso de dados autobiogrficostextuais. Nesse sentido, o episdiorelatado por Lus Jardim esclarecedor:

    "Floriano Ivo, pai do meu amigoLdo Ivo, poeta e escritor, viu-medo lado de fora e convidou-me aentrar. Recusei o convite, masaceitei o clice de vinho-do-portoque ele me deu na janela. Era aprimeira vez que bebia aquele vinhogeneroso. Aceitei repeties, e, daa pouco, um tanto transtornadopelo lcool, acabei entrando nafesta. Foi um escndalo para asminhas irms. Sabendo que nolhes obedecia, recorreram autoridade das minhas tias Santa(Maria Quitria) e Lica (MariaAugusta), irms da minha me.Elas riram e nada me disseram, euento continuei na festa como umpenetra de honra.No dia seguinte a fisionomia demame indicava que ela sabia detudo. Estremeci. Involuntariamenteme apalpei, como a proteger aspartes onde eu sabia que a chinelagrossa bateria sem piedade. Disse-me, carrancuda:

    Quero falar comvoc l no fundo do quintal.Suspirei, aliviado. Sabia que surrano seria dada com meu pai emcasa. A conversa foi esta, emcarter srio, grave, articuladas aspalavras para meu espanto atmansamente: ela no me daria umasurra. Pancadas, por mais fortesque fossem, no seriam puniobastante para o ato vergonhoso que

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    eu tinha praticado. Ela ento haviafeito uma promessa a NossaSenhora da Conceio, e eu deviasaber que os castigos do Cu erambem piores do que os da terra. Eis apromessa: se eu bebesse qualquerlquido que contivesse lcool, ela, aminha me, morreriainstantaneamente. Dependia demim que ela vivesse ou morresse.Devo ter ficado com a macilnciados mortos. Arregalei os olhos deespanto doido, senti o sangue fugir,frouxos msculos e tendes. Tibieztotal. Ela saiu, e eu ali fiquei,ptreo, indeciso, mortificado. Pusum olhar que era um pedido desocorro ao meu Cajueiro, certo deque o Cu no me ajudaria mais.No cheguei a ver nenhum gestovegetal, porque as minhas lgrimasno deixaram.Era um pranto diferente, copioso,denncia lquida de que eu era oltimo dos seres, triste meninoimprestvel para a vida. O suicdio,mesmo que fosse o maior dospecados, seria o castigo que eumerecia. Eu no poderia contarcom Nossa Senhora da Conceio,a minha madrinha, porque ela jestava envolvida na sentena, aminha me recorrera a ela primeirodo que eu. A morte da minha medependia de mim... a morte daminha me dependia de mim, era oque eu ouvia, repetidamente, nemsei de onde vinha a voz. Entre crere no crer, uma ameaa pairava,misteriosa, em nome de um dosdonos do Cu.Ningum acredita tanto emmistrios quanto eu, que vasta aboa ignorncia da criana. Rezei,fiz promessas adoidadas,comprometi-me a ter procedimentoimpossvel, como se me fosse fciltornar-me anglico. Depois chorei,chorei, at ser vencido por umalassido benfazeja. Acordei meio

    assombrado, desejando fugir demim mesmo.Quantos dias passei esmagado poraquela impresso tremenda? Nosei. O martrio foi passando,passando, vencido talvez, pelopoder da vida.A minha me jamais poderiaimaginar que a minha reao fossea de quem, subjugado por umtormento, divisasse no suicdio asalvao derradeira. que elaqueria, como admirvel me,excessiva na severidade, que o filhotivesse em todos os sentidos amelhor das condutas. Ela queriaque eu fosse modelar, figurino paratodos os meninos do mundo.Infelizmente para mim, eladesconhecia o meu ntimo, asensibilidade atrapalhada da minhanatureza. Eu tambm osdesconhecia. Sentia-lhes apenas asconseqncias, expresses tortas demim mesmo." (Lus Jardim, 1976,p.14-15)

    Tentando um dilogo com o discurso deFoucault (1987)2 aqui com o objetivo deentender a arte de punir "as deliqncias"infantis narradas pelos escritoresbrasileiros em suas autobiografias,observou-se que em relao violnciapsicolgica os agressores em questo,apresentaram um alto refinamento datcnica de punio.

    No episdio expresso acima, a meagressora substituiu a violncia fsica jcomum no modo de relacionamento como filho (Jardim, 1976), por uma novaestratgia. Apostando no sentimento de

    2 O texto de Foucault (1987, p 27 a 32) esclarecedor quando trata da tecnolgia polticado corpo principalmente atravs de aparelhoseficientes na arte de punir as crianas em casa.

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    culpa infantil, substituiu os sinais-obstculos corriqueiros: o cerimonial dasurra do fundo do quintal, s escondidas,e "a chinela grossa" por um novo sinalextremo: o pseudopoder da criana sobrea existncia da me. O carter extremo daprtica trouxe tona a possibilidade dosuicdio, da no existncia da vtima quese viu como culpada e incapaz de suportarum compromisso onde as partesenvolvidas tinham poderes to desiguais:a me e "Nossa Senhora" e, na ponta, ele,"atrapalhado" e "torto".

    A marca mais evidente da dor para osescritores que narraram a violnciapsicolgica na infncia foi o medo e avergonha decorrentes da intimidao,ameaa e humilhao (Figura 1). Asegunda foi o sofrimento causado pelasolido e o silncio a que a criana se vconfinada.

    O processo de silenciamento do sujeito - acriana e/ou adolescente - apresentou-sede modo mais absoluto ainda do que oprocesso de silenciamento do criminosoem "Vigiar e Punir" de Foucault (1987).Nos casos aqui estudados, no houve aquem recorrer, a fala no pde serrecuperada pelo juiz ou por outroselementos que compem o processojudicirio, como no caso do crime. Acriana devia silenciar para que sua penano fosse redobrada. O que se observouno estudo realizado que em nenhumepisdio relatado, pelos escritores, acriana e/ou adolescente que sofreu aviolncia, teve oportunidade de expressar-se, de questionar, ou de pelo menos serouvida por outro familiar no momento dedor. O nico elemento que restabeleceu apossibilidade de dilogo foi a imaginao,o sonho infantil. Lus Jardim(Jardim,1976) conversava com seucajueiro e outros vegetais do quintal;Graciliano Ramos inventava homens do

    tamanho de um polegar de criana(Ramos, 1995, p.96-98); Jos Lins doRego sentia-se compreendido pelo seucanrio (Rego, 1956, p.343 e seguintes).

    A anlise dos episdios narrados mostrouque a criana devia ser o sujeitoobediente; a punio de carterpsicolgico apresentou-se sob um modelocoercitivo-corporal. Surgiu para a maiorparte dos escritores como decorrncia daordenao do espao e do tempo dacriana e/ou adolescente no interior dacasa ou em decorrncia da escolarizao.Manifestou-se de forma bastante extremaatravs de crcere escuro para HerbertoSales (Sales, 1988) ou da utilizao decordas para Humberto de Campos(Campos, 1947), e ainda de forma maissutil, porm constante, para AntonioCarlos Villaa: numa "recluso relativa[...] de uma infncia fechada, presa"(Villaa, 1970, p.26-27). Uma infnciaque para Jos Amrico de Almeidarepresentou "a gaiola que (o) confinara"(Almeida, 1986, p.121). O mesmocontrole que levou Jos Lins do Rego"neto de um homem rico (a ter) inveja dosmoleques da bagaceira" (Rego, 1956,p.5). No entanto, o controle sobre o corpoda criana conseguiu ser rompido pelaliberdade do imaginrio, como emGraciliano Ramos:

    "Durante a priso ... Entretinha-seremexendo as maravalhas,explorando os recantos escuros,observando o trabalho das aranhase a fuga das baratas. Divagavaimaginando o mundo coberto dehomens e mulheres da altura de umpolegar de criana."(Ramos, 1995, p.90)

    O poder sobre o corpo da criana e/ouadolescente no controle do espao e dotempo expressou-se tambm na

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    exterioridade da casa, criando condiespara a violncia psicolgica sofrida porvrios escritores, principalmente porocasio da escolarizao. Tal violncia"poderia ter sido fatal" para AlceuAmoroso Lima que acusou: "Foi meu paique o provocou." (Lima, 1973, p.127)

    Uma caracterstica, no que se refere sestratgias da violncia psicolgica,chamou a ateno: o poder do olhar doagressor, constituindo-se como sinal-obstculo para a ao infantil. Ou seja,como um dispositivo voltado para ofuturo e utilizado pelo agressor para que,atravs da lembrana do delitocometido, houvesse o bloqueio darepetio de tal delito.

    A energia se limitava em muitos casos a"apenas um olhar. Para que mais?" dizEugnio Gomes (Gomes, 1969, p.126).Isso porque, conforme Ledo Ivo, vivia-seem um "universo, hoje esvado, em que osfilhos tratavam o pai de 'senhor' e a mede 'senhora', e um olhar rspido era avspera da palmatria ou da surra decinturo." (Ivo, 1985, p.41). E tambmporque a distncia entre o agressor e acriana era imensa e intransponvel,apropriada a uma "instncia suprema, asuma potestade, ante a qual separalisavam a palavra e o gesto daprole", afirmou Cyro dos Anjos (Anjos,1963, p.32); em conseqncia "umsilncio sbito caa sobre a famlia,quando seu vulto assomava porta dasala" (Idem, ibidem, p.32).

    O olhar da agressora (a av) foi omomento decisivo na vida infantil dePedro Nava; isto porque acabouprovocando a mobilidade, a mudana decomportamento do menino que conseguiuver na violncia do olhar de maldade, odesdm e o preconceito da av em relaoa ele: a sntese do modo de

    relacionamento dela com as pessoas dequem no gostava (Nava, 1973).

    Nas autobiografias estudadas, foram ospais que estabeleceram os papis dacriana e/ou adolescente unicamente emfuno dos interesses daqueles.Prevaleceu o interesse do grupo familiar,representado, geralmente, pelo chefe dafamlia. s vezes, a me foi quem maisde perto incorporou esse papel, como norelato autobiogrfico de Lus Jardim:

    "Sei que a minha me exageravanas punies. que ela no secontentava em ter o nico filhohomem apontado apenas como ummenino bem-comportado, educadoe de bons modos. Ela queria disse-lhe eu mais de uma vez, jhomem feito, e ela ria queria umsanto feito a bordoadas epuxavantes. Era o ideal de mes deento, que anteviam barbas sisudasnos filhos de sete ou oito anos, econtentes ficavam quando se diziaque os filhos delas pareciam j unshomenzinhos. Havia prazer, certoorgulho mesmo pela antecipao,isto , pela aparncia de homem nomenino ainda de calas curtas.Garotos que soubessem vender embalces, que dessem palpites sobrenegcios, desses se dizia comempfia: no so mais promessas,j so homens feitos! O meninoprodgio de ento no era o querevelasse talento e aproveitamentoincomum nos estudos, mas o quefosse precoce em compostura dehomem: sisudez, boca fechada aoriso, calas compridas, antildicos.Refiro-me aos costumes matutos,que tambm eram os meus".(Jardim, 1976, p.11).

    O modelo do mini-adulto foipredominante, a criana e/ou adolescenteno foi vista a partir de suas condiespeculiares de desenvolvimento. O que

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    havia de infantil nela devia ser contidopor entrar em confronto com o modeloideal pr-estabelecido.

    Helena Silveira representou um casobastante distinto, uma vez que o fato deque ela reclamou foi o da inculcao deum sofrimento que na realidade ela nosentira (a morte da me quando era bempequena) e, principalmente emdecorrncia da inculcao de um"modelo" de rf que atendesse ao desejodas tias (Silveira, 1983). De qualquerforma, resultante do abuso de poder dastias que apostaram no total controle damente infantil em benefcio dos prpriosinteresses.

    A gravidade da violncia sofrida merecedestaque. Em Graciliano Ramos comeoua ocorrer muito cedo (em torno dos quatroanos de idade), marcando a lembranapara toda a vida adulta (Ramos, 1995). Aviolncia chegou a transformar-se emsuplcio ou tortura, pois esteve amarrado cama com os olhos queimando peladoena a que fora acometido e pelasclaras de ovos colocadas pela famlia;alm disso, sentia as picadas dosmosquitos sem que nada pudesse fazer.Em outros escritores, Pedro Nava,Everardo Backheuser, a violncia sofridapde motivar uma mudana radical nocomportamento (Nava, 1977, Bachkeuser,1942). Em outros, ainda, a mgoa e/ou aincompreenso do fato dura anos etornou-se a marca principal da infnciaconforme relatam Afonso Arinos (Franco,1961), Alceu Amoroso Lima (Lima,1973), Lus Jardim (Jardim, 1976),Antnio Carlos Villaa (Villaa, 1970) eo prprio Graciliano Ramos (Ramos,1995). Lus Jardim tentando superar aincompreenso, quando adulto,questionou a me (Jardim, 1976, p.11 e15). No entanto, a conseqncia maisgrave, no conjunto dos escritores

    (Oliveira, 2001) foi a negatividade darepresentao de si mesmos na infncia 3.

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  • ARTIGO

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