eurocentrismo

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Joana Duarte - Eurocentrismo.

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    O ocaso do eurocentrismoAutor(es): Duarte Bernardes, JoanaFonte:Publicado por: Imprensa da Universidade CoimbraURLpersistente: http://hdl.handle.net/10316.2/3577

    Accessed : 11-Oct-2012 13:51:54

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    O ocaso do eurocentrismo

    Joana Duarte Bernardes

  • Joana Duarte Bernardes, Mestre em Teoria e Anlise da Narrativa pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC), doutoranda em Histria, especialidade de Histria da Arte na FLUC, bolseira da Fundao para a Cincia e a Tecnologia, Colaboradora do CEIS20. E-mail: [email protected].

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    Que filosofia libertar da pedra de Ssifo, da roda de xion,as naes da Europa a quem uma poltica ambiciosa condenou?

    J. G. Herder

    Enquanto projecto civilizacional e econmico, a ideia de Europa haver sempre de ser confrontada com a irnica falncia da sua epopeia e do seu locus como centro do mundo: o sculo XX, o mais trgico que a humanidade conheceu, representa o violento desfecho da secular tenso entre os sonhos racionalistas e o fundo belicista que sustentou a formao e afirmao europeias desde sempre. Pensar a crise desta hegemonia luz da articulao entre o sentimento trgico, o plano utpico e o desejo de domnio sobre o outro, poder esclarecer que derivas do racionalismo respondem ou estimulam a crise do esprito europeu e as suas contradies. Com efeito, o pensamento da intelectualidade, localizado entre as Grandes Guerras e a queda do muro de Berlim (1989), traduz a instvel dialctica entre um horizonte de expectativas, pautado pela vontade de a razo controlar a Histria, e o eterno regresso, sempre metamorfoseado, das utopias fracassadas ou compensatrias.

    Assim, poder-se-ia aventar que os primeiros passos rumo a uma construo europeia so dados no quadro de uma vocao universalista. A Europa foi defendida enquanto espao em que Razo, Liberdade e Direito seriam as marcas seculares, no apenas de um carcter europeu, mas de um territrio pensado como uma civilizao em que a Histria e a possibilidade do Novo seriam, voluntariamente, convocadas para enformarem a possibilidade, mesmo que infinita, da realizao da utopia. A longa noite instalada pela Primeira Guerra, confirmao da Europa como um cemitrio povoado por povos que cantam antes de se assassinar1, fazia dos cerca de oito milhes de mortos em combate, de uma Europa central e de leste devastada pela misria e da queda definitiva de uma hegemonia mundial falaciosa (porque nunca fora a hegemonia de todos mas estivera sempre sob a autoridade de um imprio ou de uma nao) a prova irrefutvel de um espao que havia conseguido materializar o lado sombrio do seu niilismo. A disposio poltica de um continente cindido em estados hostis transportava, assim, para as naes h muito constitudas ou recentemente tornadas independentes e para os seus nacionalismos o fantasma do estatuto do estrangeiro e do estranho.

    Com o advento do primeiro ps-guerra, o discurso intelectual europeu (ou, pelo menos, parte dele) viria a encarnar o que, no decurso do sculo XIX, fora o grande combate do continente: a inevitabilidade do sentimento de crise como marca identitria, partindo-se da assuno de que o tempo do mundo era o tempo da Europa, embora com a sensao nova de que essa temporalidade se estava a esgotar (Schopenhauer; Nietzsche; Spengler). Da que a conscincia de crise no pudesse ser equacionada mediante uma lgica revolucionria como havia sido desde a chegada da moderna experincia do tempo. Em certo sentido, a Revoluo Russa de 1917, apesar das aparncias, soou a muitos como um novo ponto de partida, quando, para outros, tambm era um ponto de chegada. Com efeito, a emergncia de discursos salvadores encontrava agora uma hiptese lgica que estivera vedada aos sucessivos projectos

    1 SOREL, Georges apud DUROSELLE, J. B. LIde dEurope dans lhistoire. Paris: Denel, 1965, p. 256.

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    revolucionrios e contra-revolucionrios anteriores: o trmino da guerra apresentava-se como fim da crise e tambm como provao e prenncio de que jamais as evolues prognosticadas no Iluminismo e no decurso do sculo XIX se iriam cumprir.

    A demonizao do inimigo alemo (Tratado de Versalhes, 1919)2, por um lado, e a irrefrevel permanncia dos nacionalismos (Tratado de Saint-Germain e Tratado de Trianon)3, encenaram a negao da morte do velho continente, elaborando um mapa baseado na conteno poltica, econmica e cultural de uma certa Europa: a dos vencedores. A paz a qualquer preo viria a ser, pois, o palco ideolgico que torna possvel a construo de uma outra utopia alternativa, quer s dos sculos anteriores, quer que havia sido comeada em 1917.

    Desta feita, o pensar-se a utopia surge como o retomar, que se queria crtico da crtica, das teorias do Progresso criadas pelos pensadores iluministas, porque gizado luz de um critrio que, mais do que prever a contnua perfectibilidade humana (Kant; Condorcet), assumia como ltima a Primeira Guerra Mundial, sentida como catstrofe e, por isso, como fim e como promotora de vrios tipos de esperana. Isto , a construo de uma sociedade solidria, fraterna e auto-suficiente seria propiciada pelo perodo que se seguia ao conflito; este, j no o lapso temporal cavado pela Revoluo e identificado como crise, mas sim a urgncia de um futuro outro. Todavia, tal desejo seria suficientemente enigmtico para que todos no pensassem como os continuadores da viso revolucionria do tempo instaurado pela Modernidade, ou como a sua face contrria: os contra-revolucionrios, revolucionrios sua maneira. Outros, porm, mais utpicos mas menos impacientes perante a Histria, apropriaram-se dos sonhos mais antigos sobre as possibilidades da construo de uma sociedade mais justa e pacfica, e projectaram-nos numa ideia de Europa vocacionada, no para a anulao das contradies, mas antes para o seu equilbrio num quadro que teria de superar as causas que levaram sua agonia. Dir-se-ia estar-se na presena do incio da procura de uma terceira via, sintomaticamente extensvel dialctica decorrente da afirmao das autonomias e das independncias nacionais e da necessidade de as desenvolver em novos contextos multinacionais.

    Esta terceira via procurou destacar as afinidades vicinais, de ordem poltica, econmica e cultural, depois de uma guerra que, afinal, mais do que mundial, fora uma guerra civil. Teria de se sublinhar, pois, e em primeira instncia, que essa natural afectividade advinha da proximidade da terra. E se o sculo XIX havia privilegiado as relaes contratuais, no contexto de entre-guerras tal facto reflectir-se- em propostas

    2 Tratado de Versailles (231): Les Gouvernements allis et associs dclarent et lAllemagne reconnat que lAllemagne et ses allis sont responsables pour les avoir causs, de toutes les pertes et de toutes les dommages subis par les Gouvernements allis et associs et leurs nationaux en consequence de la guerre, qui leur a t impose par lagression de lAllemagne et de ses allis. [01-02-2010]. (Disponvel em WWW: .

    3 Todos os tratados resultantes da Conferncia de Paris advogavam o princpio da autodeterminao dos povos (le droit des peuples disposer deux-mmes); os tratados de Saint-Germain e de Trianon, que negoceiam as condies da paz entre os Aliados e a ustria e a Hungria, respectivamente, demonstram at que ponto as potncias aliadas estavam dispostas, em funo de interesses nacionais, a violar, atravs das condies apresentadas, esse mesmo princpio. Vide MUET, Yannick Le dbat europen dans lentre--deux-guerres. Paris: Economica, 1997, principalmente captulo I; DUROSELLE LIde dEurope dans lhistoire, p. 261 e ss.

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    que, no obstante o seu pragmatismo, no podero prescindir da concepo do espao europeu como ponto de partida para um ideal que congregasse comum-idades e, simultaneamente, contrapesasse identidades nacionais. O que fazia da Europa, pela primeira vez e diferentemente dos lugares utpicos de More e Campanella ou do El Dorado uma utopia com uma base ntica, pois no podia escamotear a sua referencialidade geogrfica.

    Um antigo sonho universalista

    Se o pensamento iluminista propugnava o progresso como consequncia possvel de um tempo linear que era possvel acelerar, fazendo, assim, da Europa uma vanguarda e, portanto, lugar mais histrico do que os outros4 (e no qual, necessariamente, a consumao perfectiva do homem estaria situada num longe futuro), ento o papel destinado ao Europeu seria sempre o de guia de todos os povos, rumo a essa sociedade ideal e por vir. Uma sociedade situada, pois, fora do alcance dos olhos e fora da paisagem conhecida.

    Agora, pelo contrrio, a Europa era um mundo novo, mas com a conscincia de que tinha regressado, definitivamente, a casa, e, por isso, redimida pela auto-conscincia de que uma era estava a chegar ao fim. O Movimento pan-europeu5, com sede em Viena, di-lo de outra forma ao representar a Europa como um projecto in fieri (que a caracterstica primordial da Utopia), com uma geografia que, perante o patentear da derrocada e do sofrimento, somente seria crvel se fosse prometida como uma utopia realista. E isto sobretudo porque a sagesse, nica lio da histria, ditava que s paulatina e pragmaticamente ela seria realizvel, como quem constri um edifcio a partir dos alicerces e passo a passo. Sendo assim, a unio aduaneira, os projectos econmicos e, acima de tudo, a soluo dos conflitos franco-germnicos condies necessrias para que a paz se cumprisse segundo Coudenhove-Kalergi6 fazem sentido apenas a partir de uma unidade geogrfica, que, posteriormente, Aristide Briand transformar no grande corolrio dos laos federais.

    4 Cf. CONDORCET Esquisse dun tableau historique des progrs de lesprit humain. Paris: Boivin, 1933, p. 206 e ss. Com efeito, desde os finais do sculo XVIII, a par da consolidao de uma experincia linear do tempo, cresce no apenas a crena na Revoluo, como tambm a ideia de que os povos se haviam desenvolvido assincronicamente a ponto de a Europa poder ser elevada a voz do universal e sobre a China se dizer que se tratava de um povo ahistrico. Cf. CATROGA, Fernando Os Passos do homem como restolho do tempo. Memria e fim do fim da Histria. Coimbra: Almedina, 2009, p. 191 e ss.

    5 Ironicamente, recorde-se como o principal activista do movimento paneuropeu tinha origem austraca: o conde Coudenhove-Kalergi quem, em 1922, publica o artigo Paneuropa, ein Vorschlag, dando assim o primeiro passo pelos seus Estados Unidos da Europa. Em 1924, cria oficialmente o Movimento em Viena, a partir da qual inicia o seu priplo pelas demais capitais europeias, rumo a uma converso ao paneuropeanismo. Sobre as origens e consolidao de uma corrente de pensamento europesta, dos anos subsequentes Primeira Guerra at ao incio da Segunda, vide CHABOT, Jean-Luc Aux origines intellectuelles de lUnion Europenne. Lide dEurope unie de 1919 1939. Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 2005.

    6 Cf. KRGER, Peter Unification conomique et politique de lEurope au XXe sicle. In MALETTKE, Klaus (dir.) Imaginer lEurope. Belin; De Boeck, 1998, p. 205.

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    Ao fazer radicar numa espcie de geofilia europeia a base lgica para uma construo federalista e para a manuteno da ordem7, equacionava-se uma regenerao da Europa enquanto conjunto de enlaces geogrficos voltados para um horizonte comum: a paz. Independentemente das solues de vocao economicista inerentes ao projecto de Briand, em causa est, para o que por ora nos interessa, o recurso a uma ideia de Europa que funcionasse enquanto possibilidade reinventiva de si mesma, por forma a constituir-se como espao de esperana e de interveno8.

    E se certo que a paz proposta pela Sociedade das Naes (da qual os EUA no faziam parte) era de ndole econmica por urgncia , o espao europeu era pensado agora como hiptese conciliadora do homo faber e do homo contemplativus. Deste modo se harmonizava o descobridor do outro que o Iluminismo consagrara com a especificidade da esperana agora oferecida econmica primeiro, poltica, depois. Reinventada como futuro Paraso cvico, a nova Europa a Paneuropa recuperaria o seu papel, se no como a vanguarda fautora da Histria, pelo menos como ncleo fundamental para o reequilbrio do mundo, sobretudo porque os mais clarividentes comeavam a perceber que, com o reconhecimento do direito dos povos autodeterminao e a constiturem-se como Estados-Nao, o renovamento da Europa implicava a amputao do palco em que tinha exercido, durante sculos, a sua hegemonia: os imprios coloniais. Filha dos traumas e debilitaes causados pelas guerras, a nova Idade de Ouro europeia estaria dependente, portanto, da conquista de um estado de paz, interno e externo. Os contornos economicistas da nova ordem deveriam ser executados tendo em vista a consecuo de uma eunomia, condio para o cumprimento da utopia possvel que seria a paz perptua9.

    As ideias de europesmo e de bom europeu (propostas por Max Scheler10), voltadas para o cumprimento da paz entre os homens, pressupunham que a construo europeia resgatasse o ideal de civilizao sustentado pela reposio da igualdade e pelo aperfeioamento do homem (Condorcet). Todavia, o movimento para a paz preconizado pelos intelectuais construtores do novo ideal de Europa seria necessariamente diferente daquele anunciado por Kant. Da que os universalismos europeus de antes do sculo XX

    7 Je pense quentre des peuples qui sont gographiquement groups comme ceux dEurope, il doit exister une sorte de lien fdral. Ces peuples doivent avoir la possibilit, tout moment, dentrer en contact, de discuter leurs intrts, de prendre des rsolutions communes, dtablir entre eux un lien de solidarit qui leur permette de faire face, au moment voulu, des circonstances graves si elles venaient natre. (in DUROSELLE op. cit., p. 275). Com efeito, e num registo afectivo, escrevia Georges Steiner, no seu ensaio A Ideia de Europa, que o que faz do continente um todo identitrio precisamente a possibilidade de ser percorrido a p condio para que possa fomentar-se um sentimento de vizinhana. Cf. STEINER, G. A Ideia de Europa. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 28.

    8 BLOCH, Ernst Le Principe Esprance, II, Les pures dun monde meilleur. Paris: Gallimard, 1982, p. 362 e ss.

    9 Cf. SCHELER, Max LIde de paix et le pacifisme. Paris: Aubier, 1953. Note-se que a obra produto de uma conferncia realizada pelo autor em Berlin, em 1927, no Ministrio da Reichswehr, na Escola Superior de Poltica. Segundo o autor, ainda que a ideia de paz perptua seja antiga, pertence somente a um determinado nmero de civilizaes, capazes de, atravs de um pacifismo instrumental, organizar a paz. Cf. GOYARD-FABRE, Simone La Construction de la paix, ou, Le Travail de Sisyphe, Paris: Vrin, 1994, p. 227; RAU, lisabeth du LIde dEurope au XX sicle. Paris: ditions Complexe, 2001, p. 40 e ss.

    10 SCHELER, Max apud RIBEIRO, Maria Manuela Tavares A Europa dos Intelectuais nos alvores do sculo XX. Estudos do Sculo XX. Coimbra: CEIS 20. n 2 (2002) p. 116.

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    possam ser integrados na fundamentao de um desejo imperialista que se traduzia pela guerra e pela conquista; pelo que o apelo a uma unificao, confederao ou federao da Europa, se, para alguns, poderia conduzir a um novo tipo de imprio, para todos implicava a existncia de um consenso segundo o qual do seu renovamento nasceria uma nova ordem poltica que, ao ter a pretenso especfica de prolongar a paz11 europeia, almeja ser, simultaneamente, um baluarte da paz no mundo.

    A postulao da paz como meta para a qual deveriam convergir os esforos de unir e no de unificar12 as naes europeias seria a condio para se concretizar o velho projecto da paz perptua. No entanto, e se verdade que a defesa do federalismo, tal como foi apresentada no contexto da criao da Sociedade das Naes (1919), se apoiava claramente no princpio kantiano segundo o qual o direito das gentes deve fundar-se numa federao de estados livres13, para que a hospitalidade universal pudesse ser atingida, a mesma Sociedade estaria longe de poder ser e agir como uma liga mundial. Tendo sido uma das grandes crticas sua prtica a desigualdade nos critrios de desarmamento das naes resultantes da Conferncia de Paris14, partia-se do antigo preceito de que o estado natural da humanidade a guerra, privilegiando-se, desta feita, no a revoluo do tempo capaz de instaurar o estado de paz mas antes a imediata omisso de hostilidades (Kant).

    Assim se explica o grande erro da Sociedade: contrapor ao militarismo uma fora de direito. E mesmo considerando esta falha devedora do pensamento das Luzes, a verdade que ela talha a grande divergncia entre a Paz acreditada pela Aufklrung e o pacifismo (de certa forma, uma diplomacia liberal, devedora do projecto para a recuperao europeia traado pelo Presidente W. Wilson) que deveria nortear a aco da Sociedade das Naes: a construo da federao europeia surgia, naquele tempo em que se vivia a iluso do derradeiro ps-guerra, como o incio da concretizao do melhor que o pensamento ocidental havia prometido durante sculos e, em particular, a partir do sculo XVIII. Aquela foi tambm a conjuntura em que os prprios intelectuais, perante os escombros e a hecatombe, j no duvidavam que a Europa se despedia, dolorosamente, de uma era em que tinha sido o centro do mundo. S lhe restaria regenerar-se, no para voltar a ser o que foi a vanguarda mas sim para retomar aquilo que tambm ela defendeu, embora no o tenha sempre praticado.

    Na medida em que deixara irreversivelmente de ser o nico encarnador do universal, a adaptao da realidade europeia nova ordem do mundo teria de partir necessariamente de um sentimento de auto-conscincia, segundo o qual o seu

    11 Vide RIBEIRO, Maria Manuela Tavares Os Estados Unidos da Europa e os congressos universais da paz. Revista de Histria das Ideias. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. N 30 (2009) p. 491-504.

    12 The principle that European political cooperation should be directed towards the following essential object: a federation based on the idea of union and not of unity that is to say, a federation elastic enough to respect the independence and national sovereignty of each State while guaranteeing to all the benefits of collective solidarity in the settlement of the political questions affecting the destiny of the European commonwealth or that of one of its members. (BRIAND, Aristide Mmorandum [10-02-2010]. Disponvel em WWW: .

    13 KANT, E. A Paz Perptua. Um projecto filosfico. A Paz Perptua e outros opsculos. Lisboa: Edies 70, 1992, p. 132 e ss.

    14 Cf. SCHELER, Max LIde de paix, p. 112 e ss.

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    redimensionamento transnacional no poderia ser o grmen de um novo imprio expansionista. Mais: teria de ser a sua morte como imprio. Por isso, havia a forte certeza de que os projectos europeus fracassariam se no fossem capazes de se afirmarem como garantia de paz pblica, de paz interna e de paz externa. Porm, agora, a pressuposio dos seus valores, como o cosmopolitismo e a virtude, no consentia leituras que sobrevalorizassem as hegemonias nacionalistas e imperialistas. O mesmo dizer que apenas uma idealizao da Europa como dimenso moral do mundo, a que se chegaria no atravs da dimenso nacional, mas mediante a experincia da Europa como uma metafsica, poderia corresponder s novas circunstncias inter-nacionalistas. Entende-se que assim seja, tanto mais que o espectro do Estado-Nao tem sido sempre o formato-modelo que est subjacente ao iderio dos que, sobretudo entre as duas Grandes Guerras, o tentavam superar, elevando a Europa a objecto terico. Entre estes, encontramos Julien Benda.

    Julien Benda: uma filosofia para a Europa

    Como temos vindo a sublinhar, se a cooperao econmica entre as naes da Europa15 respondia constatao de si mesma como uma grande rea continental entre as demais, a verdade que este reconhecimento, mesmo quando veiculado pela urgncia da reconstruo material, no apenas era sentido como insuficiente pelos seus fautores (da a elevao a quase utopia geo- e etnogrfica do espao). Ele tambm suscitou uma justificao afectiva e transcendental do ideal europeu compensao para a impotncia dos seus Estados-Nao, mesmo os mais poderosos, e para os perigos da degenerescncia nacionalista das fidelidades que eles fomentavam, no seio da nova ordem internacional nascida depois da Primeira Guerra Mundial. Se as alternativas economicistas no puderam prescindir do apelo ideia de Europa como um conjunto de vizinhos do qual o tratamento de estrangeiro deveria estar ausente, houve tambm um movimento de desterritorializao para que fosse possvel chegar-se a uma filo-sofia da Europa ou, talvez melhor, a uma ideia de Europa como realizao da prpria Filosofia.

    Naquele que um dos melhores exemplos do que afirmmos, as crticas de Benda quer s solues fascistas, quer socialistas, quer pacifistas16, ainda que por razes diferentes, visavam encontrar uma nova vocao para uma Europa em crise. Pode mesmo dizer-se que ele professava uma crena quase sacral, no no mito europeu, mas na forma atravs da qual o europeu deveria posicionar-se perante a Europa. A sua eficcia enquanto resposta, naqueles atribulados incios dos anos de 1930, quer ao comunismo, quer aos nacionalismos que a Primeira Guerra vincara (e as respostas fascistas extremaram) reiterava a autonomia poltica das naes. Porm, a singularidade da sua utopia estava na crena na superioridade intelectual do homem desnacionalizado pois s assim

    15 Vide RAU, lisabeth du LIde dEurope , p. 88 e ss. 16 Cf. RIBEIRO, Maria Manuela Tavares A Ideia de Europa, uma perspectiva histrica. Coimbra:

    Quarteto, 2003, p. 51 e ss.

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    poder-se-ia educar a Europa17. Esta, na concepo ideal do autor do, no por acaso, Discours la Nation Europene, assemelhava-se a uma neo-utopia: surgia como um fim que a obrigava olhar no para si, mas para um horizonte de esperana no qual o eurocentrismo estaria depurado de preconceitos racialistas em ascenso. Sanada dos seus traumas recentes e de uma identidade construda pela prtica secular de imperialismos expansivos, ela poderia finalmente regressar a si mesma, isto , ao papel de uma vanguarda exclusivamente norteada pelos imperativos da Razo universal.

    Insistindo em aclarar o processo da paz europeia no sentido de demonstrar como as condies da Sociedade das Naes e dos tratados subsequentes haviam instalado uma paz postia, na qual o investimento em mecanismos diplomticos e policiais no seria suficiente para constituir um estado de paz universal, Benda faz a apologia da ideia segundo a qual a paz entre os povos e os estados tem de comear no interior da conscincia de cada um dos seus cidados. Consequentemente, a Europa no podia ser s uma Histria nem apenas uma Geografia, nem to pouco ressuscitar diversidades que acicatassem o retorno das tenses nacionais caixa de Pandora que muitas das propostas pacifistas, ento em voga, procuravam esconder18.

    A crtica ao mecanicismo da Sociedade das Naes do autor de La Trahison des clercs residiu fundamentalmente no seguinte: dirigindo-se aos intelectuais enquanto agentes da Revoluo estado a que se chegaria atravs da universalidade e da universalizao de uma aco moral , Benda defende que a transformao econmica no pode gerar uma regenerao europeia. Partindo do princpio de que a revoluo tem no intelectual o seu agente prprio na medida em que encarnaria o universal por contraposio, no apenas relativamente ao particular, mas tambm ao total, a Revoluo jamais poderia materializar-se na economia, j que, em ltima anlise, as dinmicas (quer polticas, quer sociais) dela resultantes acabariam por, fatalmente, constituir ncleos nacionais voltados para si mesmos fazendo do outro um estrangeiro e do mesmo uma pea de um todo essencialista e fatalmente totalitrio19. E, ainda que admitindo a convocao dos catecismos econmicos como coadjuvantes da interveno intelectual e da aco moral, trata-se de pensar a Europa como uma escola de contornos humanistas, em que o aprendizado das diferenas seja levado a cabo no atravs de uma ordenao homogeneizadora do diverso, mas antes do reconhecimento de uma herana ecumnica de que o intelectual europeu seria o porta-voz: a Razo enquanto possibilidade humana de conceber o Esprito e, portanto, a Europa como espao, no de realizao desse ideal, mas como sua matriz irradiadora.

    Ainda que partindo de um idealismo que remetia para Plato, Descartes e sobretudo Kant, Benda convocou esse legado para defrontar e neutralizar, atravs da justia do universal, as mitologias nacionalistas. Assim, revestiu de uma lgica

    17 Et je vous dirai encore, voulant toujours que vous donniez au monde le spectacle dune race dhommes qui ne pensent pas dans le national: Dsinteressez-vous de vos nations, dsinteressez-vous de leur histoire, de leurs guerres, de leurs victoires, de leurs traits, de leurs apoges, de leurs dcadences () Vous, clercs allemands, ne soyez pas honteux de la capitulation du 11 de novembre; soyez honteux de mal raisonner, de mal penser (BENDA, Julien Discours la Nation europenne. Paris: Gallimard, 1979, p. 67-68).

    18 BENDA, Julien Discours la Nation , p. 115.19 Idem, ibidem, p. 122.

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    centrfuga a prpria concretude das soberanias nacionais, certificando ao intelectual a capacidade de se desterritorializar, pela autonomizao e emancipao espirituais. Se a culpabilidade imputada aos pensadores alemes quanto s causas da I Guerra Mundial20 decorria precisamente da sua incapacidade de falar em nome de um interesse supranacional falha que tornava o nacionalismo fonte de irracionalidade apenas seria possvel a implementao de uma virtude europeia quando se ultrapassasse o formato do estado-nao.

    Vejamos. Os direitos adquiridos deveriam continuar a nortear uma aco poltica equalitria do ponto de vista interno (mas no total) todavia, acima deles, a aco do clerc inviabilizaria, contrariamente ao que sucedera nos sculos XVIII, XIX e XX, a promoo de identidades nacionais e de nacionalismos electivos. A seu cargo estaria a difuso horizontal dos valores europeus, fugindo-se, assim, a um esquema nacionalista hierarquizante. Neste contexto, Cincia e Filosofia surgem como os caminhos da Razo, outrora trilhados pelos clercs da Idade Mdia, guiados estes por um conceito de universidade (e de universalidade) enquanto vitria do abstracto sobre o concreto que a definio que Benda escolhe para a Europa. A Cincia surgia como materializao da universalidade e identificao do diverso, enquanto a Filosofia, sendo ultrapassagem transcendental do concreto, possibilitaria que o conhecimento fosse assimilado e praticado como sagesse. Da que utilize o termo patriotas21: ao terem disposio uma herana espiritual e, por isso, partilhada e desnacionalizada os clercs europeus devero consciencializar-se que por via desta ptria comum, reino do esprito puro e desinteressado, que se chegar constituio de um patriotismo europeu. Contra o culto do gnio e da originalidade, contra os essencialismos e contra o sculo XIX, s o retorno a Plato e ao esprito apolneo poderia fazer da Europa o que ela deve ser: um ideal comum e um ensinamento lgico da paz. O homem novo desta Revoluo no seria, pois, o nico, propagado pelo romantismo (e algum anarquismo: Max Stirner). O clerc tornar-se-ia revolucionrio pelo anncio e pela difuso da palavra (isto , do lgos), e, necessariamente, pela educao para a coragem: a aco moderadora das paixes e, por conseguinte, a superao do particular. Esse vrtice superior de espiritualidade seria a

    20 Cest en Allemagne que se produisit lexplosion de ce qui tait dj en train de se dvlopper dans tout le monde occidental sous la forme dune crise de lesprit, de la foi. Cela ne diminue pas notre culpabilit. Car cest ici, en Allemagne, et non ailleurs, que lexplosion sest produite. Mais cela nous dlivre de lisolement absolu. Cest un enseignement pour les autres. Cela regarde chacun (). Quand nous parlons de la culpabilit des autres, le mot peut garer. Lorsquils ont, par leur conduite, rendu possibles certains vnements, leur culpabilit est politique. En la discutant, nous ne devons pas oublier un seul instant quelle se situe sur un tout autre plan que les crimes dHitler ().LAngleterre, la France, lAmerique frent les puissances victorieuses de 1918. Cest delles, et non, des vaincus, que dpendait le cours de lhistoire. Le vanqueur assume une responsabilit quil est Seul porter, ou bien il sy drobe. Et sil le fait, il est manifestement coupable devant lhistoire. (JASPERS, Karl La Culpabilit allemande. Paris: ditions de Minuit, 1948, p. 165 e ss). E, por isso, Hannah Arendt vir a distinguir uma responsabilidade colectiva, acima de tudo de ordem poltica, que deve ser apangio de um euro-republicanismo, perfil poltico que deveria ter uma Europa ps-nacional. Cf. ARENDT, Hannah Responsabilidade. Responsabilidade e Juzo. Lisboa: Dom Quixote, 2007, p. 133 e ss; RENSMANN, Lars Revisiting the origins of Euro-Republicanism: Hannah Arendt and the normative foundations of post-national democracy in Europe. Disponvel em WWW: .

    21 Idem, ibidem, p. 69.

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    ncora da Paz, fruto da aco moral e no da viagem ex-tica para descobrimento do outro, filho da introspeco e no da tratadstica mecnica e falvel22.

    Por esta razo, contra todas as possibilidades de resposta crise agravada pela Primeira Guerra, a Europa seria a renncia do homem a ele prprio; ele deve pensar-se, no mundo do Finito, mas no mundo do Infinito. A Europa seria o signo verdico do universo (Jules Romains)23. Assim, enquanto membro de uma comunidade espiritual (E. R. Curtius; Salvador de Madariaga; Heinrich Mann)24 para quem a Tolerncia funcionaria como expresso de um lgos fraternal, o Homem Europeu deveria formar um mundo novo no qual a sociabilidade enquanto princpio utpico realizasse a conscincia filosfica e a Europa como pulso desmaterializadora. No entanto, e porque em causa estaria a superao do prprio eurocentrismo, no seria atravs do governo do intelectual que a revitalizao do velho continente teria lugar; a universidade da Europa, reactualizando o sonho de Erasmo, suporia uma inalienvel liderana intelectual e no apenas a cooperao econmica.

    As mximas dos filsofos, como Kant propusera, e o progresso alargado das cincias, geradores da objectividade e, portanto, da dignidade do outro e alicerce dos direitos naturais de todos, contribuiriam para a consolidao de um optimismo militante25. A funo primeira de uma moral europeia e no da moralidade proclamada pela Sociedade das Naes como harmonizadora de fisionomias nacionais26 que s poderia resultar numa soberania ser a de mostrar a existncia de um ideal que atravessa todas estas, mesmo quando no houve nem havia conscincia disso. Com efeito, ao postular que a ligao do europeu Europa ser sempre mais lassa do que a ligao do alemo Alemanha, do francs a Frana, Benda acabava por reclamar, diante dos intelectuais de todas as naes, a existncia de uma ptria espiritual com virtualidades psicaggicas, estimuladoras da expanso de um legado de porte universal. A emergncia definitiva de um estado de autognose dependeria da passagem para um estado ps-nacional27; mas seria a evocao de uma ptria transcendental bastante para a construo da Paz?

    22 Recorde-se que, para Julien Benda, que cita Spinoza, a paz , sobretudo, o amor a uma ideia de paz e, portanto, no tanto abandono da guerra mas conquista interior de um estado de alma. Ao intelectual est reservada a funo de desmascarar o pacifismo vulgar (do militar), o pacifismo mstico (do senso comum), o pacifismo falsamente patritico (do parlamento), rumo a um conjunto de valores transcendentes: Cest--dire sil leur declare que son royaume nest pas de ce monde, que cette absence de valeur pratique est prcisement ce qui fait la grandeur de son enseignement et que, pour la prosprit des royaumes qui, eux, sont de ce monde, cest la morale de Csar, et non la sienne, qui est la bonne. Avec cette position le clerc est crucifi, mais il est respect et sa parole hante la mmoire des hommes (Cf. BENDA, Julien La Trahison des Clercs. Paris: Grasset, 1927. p. 232-233).

    23 Apud RIBEIRO, Maria Manuela Tavares A Europa dos Intelectuais nos alvores do sculo XX, p. 118.24 Idem, ibidem, p. 116 e ss. Diga-se, no entanto, que, por exemplo, para Curtius, a Europa, estrutu-

    ralmente, estaria prxima de um todo nacional, porm, com clara prevalncia do eixo franco-germnico, quer a nvel poltico, quer a nvel cultural. Cf. SINOPOLI, Franca Il Mito della letteratura europea. Roma: Meltemi, 1999, p. 53.

    25 BLOCH, Ernst Le Principe Esprance, I. Paris: Gallimard, 1976, p. 237 e ss. Da articulao entre saber e coragem, a aco e o trabalho podem construir uma espcie de ideal concreto, como se se aferisse a possibilidade real de uma utopia. Esta atitude tem o nome, segundo o autor, de optimismo militante.

    26 BENDA, J. Le Discours la nation ..., p. 116. 27 Cf. MLLER, Jan-Werner Is Europatriotism possible? [05-02-2010]. Disponvel em WWW: .

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    Se Benda faz residir nos intelectuais como Fichte (Reden an die deutsche Nation) a argumentao fundadora dos nacionalismos, a hiptese de um europatriotismo teria sustentabilidade partindo do papel missionrio do clerc? Ou a possibilidade de um patriotismo de feio europeia deveria passar por um exerccio da sagesse (outro grande princpio utpico a par da sociabilidade) enquanto modo de crtica de ndole cvica? E no ser esta conscincia da crise, no da ideia de Europa que ainda no havia nascido, mas da sua possibilidade, a inadivel evidncia do fim do eurocentrismo?

    O fim da Histria ou fim do eurocentrismo?

    A construo da Europa coincide com o crescimento da auto-conscincia de que vive, se no o fim do mundo, pelo menos no fim de um mundo o eurocentrismo que, no contexto da sua secular mundividncia, parecia arrastar a proclamao do fim da histria. Por conseguinte, os esforos para se formar uma unio europeia logo a seguir II Guerra Mundial so indcio e confisso de uma impotncia, como aquela que resulta do convencimento de que as premissas em que a sua grandeza tinha radicado a gnese e consolidao dos estados-nao metamorfoseadas, em si e por si, impedem agora a sua prpria afirmao. Numa ordem internacional mais mundializada e global as regras passaram a ser ditadas pelos Estados-Nao-Continentes. Da tambm esta irresolvel tenso: entre o tempo econmico, presentista e pragmtico que, desde a dcada de 1950, tem determinado esse contrato sob o nome de unio, e um tempo outro que, imbudo de expectativa e esperana, reactualiza sonhos de concretizao mais harmoniosa e justa, na linha da tradio mais ecumnica e iluminista.

    Ao postularem o pensamento ocidental como universalizante e, por isso, capaz de sintetizar e assimilar as outras histrias em proveito da sua28, os autores do fim da histria posicionavam a Histria da Europa como o foco de irradiao de uma sociedade-mundo. E indubitvel que esta orientao cometeu um erro, de que um certo sculo XVIII tambm padeceu, imperdovel no sculo XX: o de se achar que os outros no tinham histria29 ou que a superao do seu atraso s seria possvel atravs da sua ocidentalizao. Da que a crise da Europa fosse pensada como a crise do mundo.

    Diga-se, no entanto, que, no aps segunda-guerra, esta conscincia do fim do eurocentrismo no se traduziu linearmente na reivindicao do fim da histria sobretudo porque a nova Europa era apresentada como um projecto em aberto, e no como o incio do fim da histria, como acontecia com o marxismo-leninismo sovitico, como, nos anos de 1930-1940, o neo-hegeliano Kojve chegou a sustentar. Da que, mesmo quando as estruturas econmico-polticas da nova Europa comearam a ter ps para andar, os prognsticos sobre o fim da histria de cariz demo-liberal tivessem o seu epicentro nos Estados Unidos, de que o caso de Francis Fukuyama (no por acaso discpulo daquele ltimo, ainda que com objectivos contrrios) exemplar. No trnsito em que a bipolaridade foi a pedra de toque das relaes internacionais, tambm no espanta que esta unio europeia passe a reclamar um papel de mediadora para o reequilbrio mundial, forma de garantir a unidade nas diversidades.

    28 CATROGA, Fernando Os Passos do homem como restolho do tempo , p. 248 e ss; AUFFRET, Dominique Alexandre Kojve. La philosophie, ltat, la fin de lHistoire. Paris: Grasset, 1990, p. 300 e ss.

    29 Cf. nota 4, p. 105.

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    Declarado o fim do eurocentrismo, a crise aberta, deixando vista do mundo uma tragdia dupla, torna inevitvel um bom luto do finis , to-s, de uma certa ideia de Europa. E se a I Guerra Mundial j tinha funcionado, para muitos pensadores e polticos, como uma dramtica experincia histrica que incentivava reviso do lugar da Europa no mundo, a II Guerra funciona como a exemplar e insuportvel revelao30 de que nada poderia voltar a ser como dantes. Em ambas se tinha visto que a racionalidade ocidental, que falava em nome da Luz, tambm era capaz de gerar monstros. Depois delas, no mais fez sentido pensar a histria da Europa como uma epopeia e compreende-se que tenha crescido uma m conscincia, no raro acompanhada de culpabilidade, mesmo que inocente31, e de um exerccio crtico e auto-crtico que, porm, se indica responsveis (o caso dos julgamentos de Nuremberga, altamente mediatizados) e perspectivas de futuro, no teve a fora bastante para evitar silncios e recalcamentos.

    No entanto, a tendncia pragmtica desta reconstruo passou a ser hegemnica e veio a traduzir-se na fundao de uma comunidade econmica, ainda sob o signo da euro-universalidade e como que actualizando, por ironia, as premissas do economicismo marxista apesar de declaradamente ser anti-sovitica. Com isso, os projectos que, como Benda e outros tinham defendido entre-guerras, valorizavam a utopia cultural (para quem o Optimismo deve resultar da Razo e no da Tcnica) foram sendo subalternizados. O economicismo seria, pois, a tentativa, no disfarada e derradeira, j no de regenerao mas de sobrevivncia. Forma de se dizer que no utilitarismo que a Europa se reconciliaria com a Histria deixada para trs. Em tempos marcadamente presentistas (por excelncia, o tempo da economia de mercado que acredita na sua auto-regulao), a esperana s poderia ser assegurada por uma eurotopia materializvel na auto-reproduo da ordem e esta escolhida como modelo de ruptura face ao passado e como soluo que acabaria por bloquear os excessos de utopia que a II Guerra Mundial, sobretudo no campo da esquerda poltica, tambm gerou. Assim, recolocando-se o Progresso material na ordem do dia32, trocava-se o utpico horizonte de um ainda-no sobrevalorizador da cultura e do esprito pelo primado de uma poltica pan-europeia subordinada economia.

    30 Assim se define a conscincia do trgico, pelo que a Segunda Guerra Mundial parece, metaforicamente, corresponder ao abandono divino, por um lado, e sempre nostalgia de um Todo perdido, a que o Homem ter pertencido, saldando-se a tragdia num momento de abominvel Verdade que se segue a uma fico da ordem (DOMENACH, Jean-Marie Le retour du tragique. Paris: Points-Seuils, 1967, p. 29) tal como a plasmou Stefan Zweig: Quando tento encontrar uma frmula prtica que descreva a poca na qual cresci, a poca que antecedeu a Primeira Guerra Mundial, penso ter encontrado a mais precisa se disser: foi o perodo ureo da segurana. Tudo na nossa democracia austraca quase milenar parecia construdo para durar sempre, sendo o prprio Estado o garante supremo dessa estabilidade (). Era-me demasiado doloroso lanar um ltimo olhar quele belo pas que, por culpa alheia, estava entregue a to terrvel devastao; a Europa parecia-me estar condenada morte devido sua prpria loucura, a Europa, a nossa santa ptria, o bero e o Prtenon da nossa civilizao ocidental (ZWEIG, S. O Mundo de ontem: recordaes de um europeu. Lisboa: Assrio & Alvim, 2005, p. 436)

    31 DOMENACH, Jean-Marie Le retour du tragique, p. 28. 32 Leia-se, no prembulo do Tratado que instituiu a CECA: (conscientes de que a Europa s se

    construir por meio de realizaes concretas que criem, antes de mais, uma solidariedade efectiva e por meio do estabelecimento de bases comuns de desenvolvimento econmico [16-02-2010]. Disponvel em WWW: .

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    Os desencontros da Razo

    Pode dizer-se que as novas ideias sobre a Europa so filhas da crise do eurocen-trismo, sentimento agudizado pelas guerras. Com efeito, esse foi o grande momento de problematizao do renascimento possvel da Europa, ou, talvez melhor, de vrias ideias sobre essa mesma Europa, como se em todas se tratasse de um rito inicitico propcio superao da experincia traumtica dos conflitos blicos. Com as teses sobre a culpabilidade alem33, a vocao solidria da Europa desconstruda. De facto, a culpa metafsica e poltica imputada aos alemes, no fundo, seria extensvel aos prprios vencedores, como alis havia j ficado patente no saldo da I Guerra Mundial, evidenciando uma crise de esprito (Jaspers) que passa, sobremaneira, pela impossibilidade de se expurgar o mais activo responsvel da condio do ser europeu. O que significa que o novo projecto partiria de um cenrio ambguo, sobretudo porque a Alemanha, mesmo que amnsica, teria de ser o principal motor da reconstruo do continente.

    Em suma, aps 1945, a Europa procurava um dilogo diferente: no plano interno, entre os inimigos de ontem, e, ao nvel externo, almejava criar as condies que lhe permitissem, mais cedo ou mais tarde, desempenhar um papel que seria o de mediadora consentida de um mundo, j no eurocntrico. Essa funo estava limitada, porm, por imposies econmicas e poltico-militares ligadas Guerra Fria e sua insero na zona de domnio de uma das grandes potncias que verdadeiramente saiu vitoriosa: os EUA. O que, consequentemente, implicava uma contraposio civilizacional, poltica e econmica ao outro mundo, polarizado pela URSS34. A criao de alianas polticas (NATO) e econmicas (CECA e seus continuadores) expressa a assuno da impotncia dos Estado-Nao europeus na nova ordem internacional, mas tambm, e simultaneamente, a certeza de que s atravs de formas associadas que matizassem e corrijam as suas velhas auto-suficincias, a Europa poderia recuperar a sua voz no concerto do mundo.

    Ao identificar-se os EUA como plo naturalmente traado para o global, reconhecia-se a Europa somente como uma das componentes do sistema que j no contaria com alternativas que lhe fossem exteriores, como se apreendeu da leitura da obra de F. Fukuyama, logo transformada num sucesso editorial e ideolgico. E, como este diagnstico se deu imediatamente antes da queda do muro de Berlim (1989) e do colapso dos regimes socialistas de Leste, deve perguntar-se que ideia resta para se poder pensar a Europa, uma vez que, enquanto absoluto espao mitificado em nome da Razo, ela chegara, com efeito, ao fim da sua histria, como se, de repente, ela tivesse ficado a Oriente do novo centro do Ocidente. Ou, dito de outra forma, que vnculo pode substituir a representao da Europa enquanto narrativa original, una e cosmopolita,

    33 Cf. nota 20, p. 110. 34 Cf. RAU, lisabeth du LIde dEurope , p. 135 e ss; REIS, Jos Governao e territrios na

    Europa: hipteses dobre um sub-federalismo europeu. In RIBEIRO, Maria Manuela Tavares Ideias de Europa: que fronteiras?. Coimbra: Quarteto, 2004, p. 13-27; sobre as consequncia da II Guerra Mundial, vide a sntese de MOREIRA, Adriano A Europa em formao (a crise do Atlntico). Lisboa: Universidade Tcnica de Lisboa, Instituto Superior de Cincias Sociais e Polticas, 2004, p. 170 e ss.

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    quando em causa passa a estar a sua integrao numa civilizao atlntica35, ou mesmo no sistema que fechou a historicidade e a possibilidade de o novo chegar.

    A Europa teria de partir da prpria crise do eurocentrismo para se poder resgatar. Como se, diante da falncia das ilaes prticas colhidas da sua filosofia e religio do lgos, o velho continente, atravs dos seus intelectuais, finalmente percebesse que no h razo crtica sem razo autocrtica, como tambm no existe a afirmao da suficincia do Eu sem o concomitante reconhecimento do Outro como um Outro Eu. Dialctica que, contudo, parece ter escapado a Benda, como se mostra atravs da sua contestao filosofia da alteridade de Gabriel Marcel.

    Dialctica essa que s valer face aos outros, se valer face aos outros que constroem internamente a sua identidade. Deve, no entanto, perguntar-se: ainda que o economicismo inicial tenha servido de alicerce a polticas de indiscutvel porte europeu (CEE), no continuar nas novas organizaes europeias, tornando fracas e frias as suas identidades?

    Da que, findo o sonho federalista, se assista tentativa de fazer emergir um patriotismo de outra ordem mas que responda ao entendimento que cada nao faz de si enquanto hiptese de pertena a um mesmo: o patriotismo constitucional36. Se urgncia de reenquadramento no mercado mundial se respondeu com a fundao de um mercado comum, ficava por cumprir a conquista de uma dimenso supranacional para, no fundo reactualizando a tendncia do pensamento sobre a Europa desde os primeiros passos do seu mito (Homero; Herdoto), encontrar um referente que resultasse do entendimento e equilbrio de todas as identidades para evitar o exacerbo de separatismos37. Neste sentido, o patriotismo constitucional (Habermas) definido como apego a uma comunidade poltico-jurdico, mas em que cada membro mantm o seu poder decisrio quanto aos seus interesses especficos38 foi o ltimo projecto filosfico-poltico avanado, nos finais da dcada de 1980 (ainda sob a necessidade de se expurgar a herana racista e nacionalista), para se preencher o dfice de sentimento comum entre europeus39.

    35 Cf. CATROGA, Fernando Os Passos do Homem como restolho do tempo. ..., p. 256. 36 Cf. DERRIDA, Jacques; HABERMAS, Jrgen. Europe: plaidoyer pour une politique extrieure commune

    [05-02-2010]. Disponvel em WWW: ; CATROGA, Fernando Ptria, Nao, Nacionalismo. In TORGAL, Lus Reis; PIMENTA, Fernando Tavares; SOUSA, Julio Soares Comunidades Imaginadas. Nao e Nacionalismos em frica. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2008, p. 9-39; DUFOUR, Frdrick-Guillaume Habermas. Patriotisme Constitutionnel et nationalisme. Qubec: Liber, 2001.

    37 HABERMAS; DERRIDA art. cit.38 Cf. NICOLAIDIS, Kalypso Notre demo-cratie europenne. La constellation transnationale a

    lhorizon du patriotisme constitutionelle. Politique Europenne. Le patriotisme constitutionnel et lUnion europenne. dir. de Olivier Costa et Paul Magnette. N 19 (Printemps 2006) p. 46.

    39 De onde esta consequncia s aparentemente paradoxal: na Europa, nas ltimas dcadas do sculo XX e incios do seguinte, surgiram mais Estados-Nao do que em todo o sculo XIX, mesmo que isso tenha sido feito em nome da assuno, real ou imaginada, de autonomias polticas outrora existentes. Por outro lado, no seio de alguns Estados, activos movimentos autonomistas e nacionalistas, ditos perifricos, tm ganho expresso, atravs de reivindicaes vo do regionalismo e do reconhecimento do seu estatuto de nao cultural, at luta pela sua separao do Estado central. Cf. A coexistncia dos sentimentos de pertena, Colquio Da virtude e fortuna da Repblica ao republicanismo ps-nacional, realizado a 30 de Setembro de 2010, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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    Mas, se a existncia de uma constituio para a EU corresponder oficializao de uma comunidade poltica de interesses e de estratgias (para poder integrar a hegemonia ocidental dos EUA)40, um patriotismo, democrtico, firmado na lei fundamental, implicaria o reconhecimento do cidado enquanto porta-voz de um Eu simultaneamente individual, tnico e nacional, mas dentro de e subordinado a imperativos cvicos universais. O que, necessariamente, descobre pluralidades de ordem cultural, dentro do espao da Unio Europeia, e debilidades de projectos comuns41, no seio dos quais conceitos como os de democracia, cidadania e esfera pblica42, pensados a uma escala europeia, reclamam uma reviso. Esta, idealmente feita luz de um constitucionalismo que faa uma Europa de pequenas comunidades e demoi-cracias conviver com a necessidade de expresso poltica atravs de mecanismos de tipo estatal.

    Todavia, pensar uma Unio Europeia como tendo por corolrio do seu suporte econmico um instrumento de ordem mais simblica do que utilitria, no ser mais um movimento do eterno retorno da utopia europeia? Mais do que confrontar-se com diferenas demarcadas (nacionais), uma Constituio ter de aceitar os grandes desafios do presente: garantir a coexistncia de culturas dentro de cada nao e tornar uma democracia europeia transversal numa poca em que a cidadania europeia s ser possvel se for multmoda. Como se o talento cosmopolita da Europa tivesse sofrido uma inverso irnica e o universalismo deixasse de significar apenas expanso para fora, mas, sobretudo, um projecto migrante e vrio intra-muros e no qual o constitucionalismo cimentasse, atravs da deliberao cvica, uma participao alargada internamente universal.

    A aporia europeia como centro da cosmoplis

    Reitera-se, assim, a impossibilidade de a Europa ser casa e apenas poder ser sentida como cosmos para continuar a funo antiga da hospitalidade (e, portanto, lugar de casa temporria mas amiga). O que, em ltima anlise, significa que as naes europeias esto prontas para estabelecer entre si laos de proximidade mas no de domesticidade43. Talvez assim se explique por que motivo o intelectual tenha assumido, desde sempre, a voz da Europa e j tenha sido escolhido o caf como paisagem comum num espao de horizontes to diversos44. Forma de se defender que a Europa, tambm nas suas metamorfoses institucionais, como a Unio Europeia, pretende ser, poltica e poeticamente, dia-logo(s).

    O que implica pensar a Europa sob o signo da hospitalidade enquanto condio para que o cosmopolitismo se concretize tambm este condio para o cumprimento da soluo transnacional proposta por J. Habermas. E se tal no exclui a ponderao da irresoluta dicotomia guerra/paz, a verdade que permite, tendo em vista as mais recentes teorias polticas concebidas para resolver o impasse europeu (a saber, o j referido patriotismo constitucional), equacionar o presente da Europa no mbito da sua

    40 Cf. DERRIDA, Jacques; HABERMAS, Jrgen Europe: plaidoyer pour une politique.41 Vide MLLER, Jan-Werner Constitutional patriotism. Princeton; Oxford: Princeton University

    Press, 2007, p. 93 e ss. 42 Cf. NICOLAIDIS, Kalypso Notre demo-cratie europenne; NANZ, Patricia Europolis.

    Constitutional patriotism beyond the nation-state. Manchester University Press, 2006.43 BILBENY, Norbert La Identidad cosmopolita. Los limites del patriotismo en la era global. Barcelona:

    Kairs, 2007, p. 154 e ss. 44 STEINER, George A Ideia de Europa, p. 26 e ss.

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    gnese agnica: entre o dilogo e o conflito. Em primeiro lugar, porque uma poltica da hospitalidade que uma poltica da amizade45 , no pode nunca ser perspectivada como tendo por objectivo prtico o estabelecimento de um estado de coisas nico e passvel de ser confundido com o Estado estvel e improgressivo a que, em ltima instncia, as concepes de paz aportam.

    Nesta ordem de ideias, o tipo de universalismo que est em causa quando se fala em hospitalidade ou mesmo em amizade no subsume diversidades, na medida em que, etimolgica e praticamente, o que uma possvel histria de ambos os conceitos admite antes a sua converso naquilo a que Kant chamou de estado cosmopoltico universal. Com efeito, se comummente aceite a instrumentalizao da paz quer enquanto motivao do conflito, quer soluo deste, a verdade que a dinmica cosmopolis deve pressupor quer uma relao de reciprocidade, quer uma relao de igualdade que, no caso em apreo, se traduz na capacidade equitativa de dilogo.

    Portanto, o cosmopolitismo postulado por Julien Benda, sintetizando o esprito europeu, abreviava um direito alienvel e europeu mobilidade e hospitalidade, fazendo do territrio um espao transfronteirio, na medida em que estaria instalado numa suprarealidade a prpria Europa. O autor de La Trahison des Clercs defendia, assim, sem dar nome abolio do nacional enquanto facto de separao (porque lhe faltou a experincia do segundo ps-guerra), uma valorao comunicativa do ser-se europeu enquanto elemento compensatrio dos nacionalismos e do afastamento dos povos face a uma universalidade praticada como premissa da Europa e enquanto condio do conhecimento. No seu mais lato sentido, a cultura seria, pois, a chave redentora de um povo que a Histria teria cindido, mas que o reconhecimento de uma origem filosfica comum poderia irmanar de novo. Desta feita, no apenas a Europa pensada como uma casa-me, como isso mesmo pressupor pens-la enquanto guardi de uma tica da hospitalidade46. Estamos, pois, diante da postulao de um eurocentrismo de esprito cujo fito a totalidade47 e que tem como ponto de partida a assuno de que o seu centro far dos outros um conjunto de mundos ligados por uma educao para a hospitalidade sendo o cosmopolitismo a sua prtica e o seu tecto o europesmo. Todavia, o necessrio

    45 DERRIDA, J. Politics of Friendship. London; New York: Verso, 2005. 46 DERRIDA, J. Cosmopolitas de todos os pases, mais um esforo!. Coimbra: Minerva, 2001, p. 43 e ss:

    A hospitalidade a prpria cultura e no uma tica entre as outras. Na medida em que ela diz respeito ao ethos, a saber, morada, casa prpria, ao lugar da residncia familiar assim como ao modo de nela estar, ao modo de se relacionar consigo e com os outros, com os outros como os seus ou como com estrangeiros, a tica a hospitalidade, ela de parte a parte co-extensiva com a experincia da hospitalidade, seja qual for o modo como se a abra ou se a limite.

    47 Cf. Nous parlerons plutt dun eurocentrisme philosophique qui se tient derrire la conqute europene du monde et se bat avec les armes particulires des mots et de lesprit. Cet eurocentrisme desprit accomplit le miracle de commencer par le propre, de traverser ltranger pour finalement aboutir au tout. La pure et simple appropriation au moyen dun logos auquel, la longue, aucun sens ne reste tranger. Mme lhermneutique de Gadamer, pourtant ouverte lexprience, persiste dans le but de supprimer le caractre dtranget et rendre possible lappropriation (WALDENFELS, Bernhard Topographie de ltranger. tudes pour une phnomnologie de ltranger. 1. Paris: Van Dieren, 2009, p. 98-99). Vide tambm, a este propsito, CRPON, Marc Altrits de lEurope. Paris: Galile, 2006, sobretudo o captulo Le souci de lme, hritage de lEurope (p. 153-178), no qual o autor identifica como marca da auto-reflexividade do pensamento europeu no o sentimento de decadncia mas a fenomenologia como ltima filosofia da Europa onde a crtica do declnio a sua possvel sobrevivncia.

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    reconhecimento pressupe uma pr-compreenso do outro em funo de um critrio de paridade facto que o sonho eurocntrico de Benda oblitera. Crente numa Europa que, sendo vanguarda, condutora do mundo e demiurga de uma metalinguagem familiar e comum, o mundo representado no pode s-lo concentricamente.

    Assumir esta tautolgica tica, se, por um lado, obriga a pensar o outro como estrangeiro logo, como realidade exterior e como potencial hostis , obriga tambm a admitir que, levado s ltimas consequncias, o cosmopolitismo defendido enquanto possibilidade de cidadania mundial, num espao comunicativo sem fronteiras, cerceia as virtualidades da prpria hospitalidade j que elimina casas e, por conseguinte, ptrias48. O que, finalmente, desloca a crise da ideia de Europa para a inevitabilidade da crtica ao cosmopolitismo abstracto enquanto sintoma da crise da razo europeia. E mesmo tendo em vista as metamorfoses que o conceito de cosmopolitismo sofreu desde a Antiguidade Clssica at aos dias de hoje49, permanece sempre imutvel a paradoxal considerao do hspede como uma identidade demarcvel e intromissora, de estatuto temporrio e precrio, no obstante a obrigao de aceder ao direito de visita50 prova da considerao do cosmopolitismo enquanto estatuto daquele que cidado do mundo, logo, devedor do direito de hospitalidade 51.

    Ora, se esta parece ser uma premissa para que a cosmopolis seja paulatinamente formada, deve sopesar-se a excepcionalidade que a lei universal do ser-se hospitaleiro52 acabaria por sempre activar, rompendo, assim, com princpios universais que seriam apangio do cosmopolitismo (desde a sua mais antiga verso estica at sua teorizao actual), bem como a iniludvel percepo do cariz bipolar da existncia humana organizada nas suas escalas colectiva, estatal e mundial53.

    48 No por acaso e J. Derrida sublinha-o precisamente no mbito do dever e do direito de/ hospitalidade que E. Kant desenvolve o seu Sobre um pretenso direito de mentir por humanidade (1797), segundo o qual o dever de hospitalidade pode ser violado em nome da verdade, o que, em ltima anlise, significa que o hspede e tem por condio o ser estrangeiro: Com efeito, o indivduo no aqui livre para escolher, porque a veracidade (quando ele obrigado a falar) um dever incondicionado ( KANT, E. A Paz perptua, p. 192); DERRIDA, J. Da Hospitalidade. Braga: Palimage, 2003, p. 57 e ss.

    49 Cf. DERRIDA, J. Cosmopolitas de todos os pases , particularmente, p. 46 e ss.50 No existe nenhum direito de hspede sobre o qual se possa basear esta pretenso (para tal seria

    preciso um contrato especialmente generoso para dele fazer um hspede por certo tempo), mas um direito de visita, que assiste todos os homens para se apresentarem sociedade, em virtude do direito da propriedade comum da superfcie da Terra, sobre a qual, enquanto superfcie esfrica, os homens no podem estender at ao infinito, mas devem suportar-se uns aos outros, pois originariamente ningum tem mais direito do que outro a estar num determinado lugar da Terra.( KANT, E. A Paz Perptua , p. 148).

    51 Idem, ibidem, p. 148 e ss. 52 E recorde-se que, nos seus usos clssicos, hospitalitas diz respeito quer qualidade de quem recebe,

    quer qualidade do que estrangeiro, forasteiro: Recte etiam a Theophrasto est laudata hospitalitas; est enim, ut mihi quidem videtur, valde decorum patere domus hominum illustrium hospitibus illustribus, idque etiam rei publicae est ornamento, homines externos hoc liberalitatis genere in urbe nostra non egere. (CCERO De Officiis, 2, 64). Da mesma forma, os termos hospiticida e o que assassina o hspede ou o estrangeiro.

    53 Cf. ARON, Raymon War and Peace. A theory of international relations. New Brunswick; New Jersey: Transaction Publishers, 2003, particularmente o captulo V, On multipolar systems and bipolar systems, p. 125 e ss.; O estado de paz entre os homens que vivem juntos no um estado de natureza (status naturalis), o qual antes um estado de Guerra, isto , um estado em que, embora no exista sempre uma exploso das hostilidades, h sempre, no entanto, uma ameaa constant (KANT, E. A Paz perptua, p. 136-137).

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    Partindo, pois, do princpio que o estado natural da Humanidade a hostilidade latente e no a paz , ento o dever de hospitalidade, ao ser configurado como lei natural que, no entanto, marca a passagem do animal ao social54, admite nas suas razes filosficas a universalidade da lei tendo por base um princpio bipolar: o de que sob esta se esconde a assuno da vulnerabilidade do outro. Com efeito, e porque a cosmopolis a condio para a paz, tambm sob um projecto pacifista de felicidade universal se encontra sempre velado o tambm antigo direito de defesa: face ao outro e em favor do outro.

    Ao considerar-se o estrangeiro como alteridade desconhecida e, particularmente, segundo o cnone tico muito em virtude da diferena lingustica (diferenciao que, correctamente ou no, continua a ser factor de demarcao identitria), a possibilidade dialgica ficava inviabilizada, ou, pelo menos, limitada. Forma de se dizer que o dever de hospitalidade, se passava pela aceitao da diferena, no implicava nem o conhecimento, nem a simpatia em suma, a amizade. De onde se infere que para a sobrevivncia da cosmopolis enquanto rede de relaes recprocas e anuladoras de bilateralidades, dependente da existncia de uma trama de hospitalidades, nenhum critrio de ordem subjectiva deve ser invocado.

    Se, por um lado, tal pode significar que o hspede facilmente se torna num refm, num preso, e, por conseguinte, num inimigo logo, num plo antagnico ao estado de coisas inicial , deve, pois, sublinhar-se que a lei subjacente ao pacto implcito selado a partir do momento em que o hospes passa o limiar da casa, se tem j em si inscrita a sua prpria transgresso, permite uma leitura heternoma do prprio cosmopolitismo. Tanto mais que a designao do outro como inimigo assimila destruindo a circunstncia do estrangeiro55. Desta feita, para que ele se consubstancie, ter-se- de proceder neutralizao da soberania daquele que hspede, por sua vez, sempre potencial questionador da soberania que encontra, o que enviesa uma das comuns premissas que caracterizam o cosmpolitismo e que a habitabilidade que exercita. Ao cosmopolita no interessa o pas institucional e turstico, mas sim os espaos de convivialidade nos quais ele pode experienciar o outro. E se daqui se infere que hospitalidade e habitabilidade no podem sobrepor-se, precisamente na medida em que a primeira pressupe a conservao da diferena, como condio para ser exercida56.

    Europa: a impossvel casa de duas portas

    Partindo, pois, do princpio que o cosmopolita aquele que se incorpora na diversidade sem que esta o agrida e sem que o novo represente uma ameaa para a

    54 Um exemplo antigo do exposto encontra-se na diferena de costumes existente entre os Ciclopes e os Feaces, sendo os segundos, diante da aportao ilha de Ulisses e da sua tripulao, cultivadores da hospitalidade e da piedade. Cf. LAUNDERVILLE, Dale Piety and Politics. The Dynamics of royal authority in Homeric Greece, Biblical Israel, and Old Babylonian Mesopotamia. Michigan: Eerdmans Publishing, 2003, p. 114 e ss.

    55 WALDENFELS, Bernhard Topographie de ltranger, 59. 56 No h hospitalidade (pas dhospitalit), em sentido clssico, sem soberania do si (soi) sobre a

    sua prpria casa (chez-soi), mas como tambm no h hospitalidade sem finitude, a soberania no pode exercer-se seno filtrando, escolhendo, excluindo e violentando, portanto. A injustia, uma certa injustia, um certo perjrio mesmo, comea imediatamente, desde o limiar do direito hospitalidade. (DERRIDA, J. Da Hospitalidade, p. 53)

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    sua integridade enquanto estrangeiro57, deve perguntar-se, pois, o que significa uma Europa que se supe ser uma maison commune, expresso consagrada por Mikhal Gorbatchev no seu discurso a 6 de Julho de 1989, em Estrasburgo58. O seu conceito de casa comum radicaria numa Europa na qual as divergncias devem estar ao servio da unio e devia constituir o estado sucedneo da ciso europeia em blocos. Uma casa, pois, em que fossem salvaguardados interesses nacionais (quer socialmente, quer politicamente), e cuja construo fosse assente num critrio de perenidade que contrastasse com o carcter provisrio da chamada Cortina de Ferro. Trata-se, portanto, de um espao para o futuro (la maison commune, un concept davenir59), aberto e que se opusesse, terica e operativamente, artificialidade da diviso da Europa desenhada no rescaldo da II Guerra Mundial, apresentando os alicerces comuns europeus. No estando em causa a vontade de finalmente descobrir uma identidade europeia, indubitvel que a expresso casa comum obrigaria considerao de uma memria colectiva (no qual a Unio Sovitica devia ser includa)60 e, sobretudo, ao estabelecimento de uma poltica pan-europeia61, diante da qual cada nao no seria ilibada da responsabilidade individual face ao estado da Europa mas que deveria responder como voz de um todo no tocante a interesses e necessidades de ordem poltica.

    Faziam da Europa uma casa os seguintes pressupostos: a sua experincia de ambas as guerras mundiais e, por conseguinte, a conscincia acerca da urgncia de evitar a todo o custo a emergncia de um novo conflito; uma longa experincia a nvel das relaes internacionais; um potencial econmico e industrial mpar capaz de beneficiar todas as naes europeias; uma partilhada herana histrico-cultural. Com efeito, veja-se que a historicidade e a cultura cientfica acabam por ser os fautores desse desejado lar europeu isto , memria e tcnica tendo por cenrio incondicional a cooperao poltica. O resultado seria a fundao de novas relaes globais. O princpio da Europa como um grande domus, respeitador da sua histria e dos seus lares logo, da sua memria e da sua economia passaria pela assuno da responsabilidade europeia sobre o terceiro mundo e, segundo o lder sovitico, pela aco conjunta entre EUA e as naes europeias, no numa lgica de confronto, mas de entreajuda, sobretudo em favor de um futuro benfico para o mundo mas no menos em virtude dos laos histricos entre as duas potncias. No entanto, culturalmente, a Europa devia ser defendida do invasor do outro Ocidente62.

    57 Cf. BILBENY, Norbert La Identidad cosmopolita Barcelona: Kairs, 2007, p. 9 e ss. 58 Vide GORBATCHEV, Mikhal Plaidoyer pour une maison commune. In Politique interna-

    tionale. N 68 (t 1995) p. 101-112. [26/04/2010]. Disponvel em WWW: .

    59 Idem, ibidem, s/p. 60 Idem, Perestroka. Novo pensamento para o nosso pas e para o mundo. Lisboa: Crculo de Leitores,

    1991, p. 217 e ss. 61 Idem, ibidem, p. 222 e ss. 62 Idem, ibidem, p. 236: Existe um velho mito grego sobre o rapto da Europa. Esta lenda fantstica

    tornou-se, repentinamente, actual. evidente que a Europa, como noo geogrfica, permanecer no seu lugar. Contudo, por vezes, temos a impresso de que a poltica independente dos pases ocidentais foi raptada e est a ser afastada atravs do oceano; de que os interesses nacionais foram postos de lado, sob o pretexto de velar pela segurana. Uma sria ameaa paira sobre a cultura europeia, ameaa que tem a sua origem numa investida da cultura de massas, vinda do outro lado do Atlntico.

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    A casa europeia deveria ser capaz, pois, de activar uma cosmopoltica pautada pela hospitalidade e no pela habitabilidade63. E se este facto denuncia uma estratgia defensiva que aparentemente aplaude a consumao do ideal de uma porvindoura constituio cosmopolita iluminista (que fazia de todo o lugar uma casa e, por isso, um complemento da paz perptua64), a verdade que ela inibe a condio do estran-geiro que o seu potencial enquanto perturbador da ordem domstica ao colocar nos pressupostos da recepo do outro a demarcao hostil do que lcito ou ilcito permitir quele que chega. Dir-se-ia, pois, que no apenas para a Alemanha nazi ou para o socialismo stalinista o cosmopolitismo representava65, mais do que tudo, uma filosofia que impossibilitava a definio patritica, e, por conseguinte, levava a uma diluio dos sentimentos de pertena, perigosa para os regimes totalitaristas e autrcicos. De onde se conclui, pois, que a casa sonhada por M. Gorbatchev deve ser, acima de tudo, o lugar de segurana para as identidades que compem a coeso europeia, o que significa que esta casa patriota e no cosmopolita66 e que hostil podendo vir a ser hospitaleira.

    Em ltima anlise, deve, pois, perguntar-se quais e em que condies existe num territrio pensado como uma unio (e cuja denominao Europa deixa adivinhar um outro tipo de razo fronteiria e de prtica hospitaleira) a vontade de uma hospitalidade incondicional 67 quando a prpria Unio define a impossibilidade de uma hospitalidade supra-nmica, que, radicalmente, define o hospes como um transgressor desinteressado.

    Ora, o descentramento em que a mundializao se revela inviabiliza a soberania do universal e obriga a um percurso de reconhecimento para que possa ser cumprida essa hospitalidade ilimitada j que a ddiva do chez-soi no pergunta mas inclui. O ocaso do eurocentrismo ser, pois, a constatao da Europa enquanto impossvel dialctica em si e para si, j que as tentativas para a sobrevivncia do protagonismo do velho continente se esgotaram (e se esgotam) na incapacidade para o inter-conhecimento68 entre os Estados-Nao que os momentos de crise expem. O desafio incontornvel , pois, o do reconhecimento de si e dos outros que politicamente so integrados

    63 Idem, ibidem, p. 237: A nossa ideia de lar comum europeu no significa, evidentemente, fechar as portas dele a quem quer que seja. certo que no gostaramos de ver algum dar pontaps nas portas do lar europeu e sentar-se cabeceira da mesa do apartamento de outra pessoa. Porm, isso j da exclusiva responsabilidade do proprietrio do apartamento. H anos atrs, os pases socialistas responderam positivamente participao dos Estados Unidos e do Canad no processo de Helsnquia .

    64 KANT E. op. cit., (antes do suplemento primeiro): a ideia de um direito cosmopolita no nenhuma representao fantstica e extravagante do direito, mas um complemento necessrio de cdigo no escrito, tanto do direito poltico como do direito das gentes, num direito pblico da humanidade em geral e, assim, um complemento da paz perptua, em cuja contnua aproximao possvel encontrar-se s sob esta condio.

    65 De facto, o Kosmopolit no s fazia parte dos grupos sociais perseguidos pelo nazismo, como tinha distintivo prprio nos campos de concentrao (cf. BILBENY, Norbert op. cit., p 37); sob as polticas anti-semitas de Staline, usar-se-ia, para designar os intelectuais judeus (mas no s), o eufemismo cosmopolita desenraizado.

    66 Cf. BILBENY, Norbert op. cit., p. 29 e ss. 67 DERRIDA, J. Da Hospitalidade, p. 61 e ss. 68 Vide GAUCHET, Mercel Les enjeux de la reconnaissance. In TRIGANO, Samuel LUniversel

    & la politique des identits. Paris: ditions de lclat, 2010, p. 13 e ss.

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    atravs de uma estrutura cosmopolita jurdica69. E se esta pretende ter a face de uma res publica domesticada, no menos verdade que para que o reconhecimento seja transmutado numa tica europeia, a manuteno das identidades (comeando pela constitucional), mais do que a subordinao a um instncia transnacional, condio primeira para o dilogo num espao pblico europeu.

    Falar-se, pois, na originalidade de uma Constituio europeia que, sobretudo, se deve a um sentido cosmopolita dos direitos fundamentais de um projecto por-vir70, se no deve escamotear o particularismo dentro do que foi j chamado de universalismo iterativo71, no pode perder de vista o seguinte: que a existncia de uma entidade poltica transnacional tender a uma uniformizao que, direccionada tambm para a cultura, subsumir a condio derradeira do reconhecimento: no apenas a diferena do outro mas a diferena de si. Ou correr-se- o risco de o verdadeiro factor de originalidade da Constituio ser a despersonalizao dos direitos o que transformar a poltica e a potica da hospitalidade numa espcie de relativismo absoluto que esvaziar as democracias europeias72. Deve, pois, ser esse o primado do pensar-se a Europa como hospes mas nunca como casa.

    desta forma que Jacques Derrida apresenta a sua resposta famosa declarao de Franois Mitterrand: A Europa reentra na sua histria e na sua geografia do mesmo modo que ns entramos em nossa casa73. Desta feita, salvaguarda-se a possibilidade do outro, circunstncia para que da tenso entre nacionalismo e cosmopolitismo (a disfarada disputa de toda a Histria da Europa) emerja um espao pblico no agressor das personae europeias. Acima de tudo, fez radicar na conscincia da finitude e do seu carcter aportico o estado da Europa a impossibilidade de um novo que recomece a partir de si, constatada que ficou a inexistncia de uma matriz74. O mesmo dizer que pensar a Europa como casa pressuporia olh-la como origem e no como occidente o que se descobre insuportvel na medida em que a smula de projectos europeus a prova de que ela no existe ainda75.

    Em ltima instncia, a tragdia do sculo XX contribui decisivamente para que a conscincia da perda conhea uma nova possibilidade para que a Europa se identifique. E se com isto parece regressar-se razo herderiana como se o avano pressupusesse sempre a perda , a verdade que o enfim auto-reconhecimento da Europa como cabo que deixara h muito de ser vanguarda para ser epifenmeno, permite que a

    69 Cf. FERRY, Jean-Marc La Rpublique crpusculaire. Comprendre le projet europen in sensu cosmopolitico. Paris: CERF, 2010, p. 151.

    70 Idem, ibidem, p. 124. 71 Idem, ibidem, p. 125. 72 Pelo contrrio, a democracia enquanto projeco permanente da esperana no futuro deve ser a

    espera sem horizonte de expectativas (Cf. DERRIDA, J. Spectres de Marx. L tat de la dette, le travail du deuil et la nouvelle Internationale. Paris: Galill, 1993, p. 111), como se de uma hospitalidade repartida se tratasse. Veja-se, tambm, BERNARDO, F. A tica da hospitalidade, segundo J. Derrida, ou o porvir do cosmopolitismo por vir a propsito das cidades-refgio, re-inventar a cidadania(ii). In Revista Filosfica de Coimbra. N 22 (2002) p. 421-446.

    73 In DERRIDA, Jacques O Outro Cabo. Coimbra: A Mar Arte, 1995, p. 96.74 Idem, ibidem, p. 97. 75 Ser a Europa, pois, um talvez, perguntamos sendo este, por definio, a certeza da possibilidade,

    mas tambm a certeza do seu adiamento? (Cf. DERRIDA, J. Politics of friendship, p. 50).

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    identidade europeia seja assumida como um mosaico de apropriaes e de assimilaes num plano de integridade cosmopolita e total. Em tal contexto, ela no poderia ser casa; somente uma diviso mais numa ordem superior, no seio da qual tambm ela desempenha um papel estrangeiro. O que significa que fora tambm totalitarista o sonho de ser sntese e motor da paz no mundo, ser alfa e mega da presena do Homem no mundo76. Mesmo quando, incapaz de projectar-se mais para fora de si, dentro das suas voluntrias fronteiras interiores que continua a fazer da metfora da casa o ltimo reduto de uma hospitalidade apagada e reduzida a um domus bancrio.

    A frmula europeia cunhada pelo general Charles De Gaulle em 1953, A Europa, de Gibraltar aos Urais77, ainda que expresso contra o armamento da Europa aquando do veto francs sobre o tratado da Comunidade de Defesa Europeia (CED) e contra a ascenso imperialista dos EUA, acaba por resumir o que, no outro plo potestativo, Gorbatchev mais tarde haveria de defender: uma Europa que comeasse no Atlntico e terminasse na URSS servia um valor histrico e econmico e no um valor poltico, o que seria vlido tanto para os EUA, como para a Unio Sovitica78. Em ltima anlise, o outro americano e sovitico tornava irrealizvel um projecto europeu dentro do qual o presidente francs defendia a existncia de um conselho orgnico composto por chefes de governo, por uma assembleia deliberativa e, para legitimar decises comuns, previa o recurso a referendos no qual participasse une masse immense deuropens79, por si composta de povos. No limite, a Europa de De Gaulle uma Europa de casas concretas confederadas80 , caminho nico, segundo o General, para a construo de uma paz universal pela mo de uma Europa recolocada no centro estratgico do

    76 Cest une Europe qui sait aussi ce quil en coute de prtendre incarner, soi tout Seul, tous les droits de lhumanit et de dcider, de faon, unilatrale, du devenir du monde et que cette prtension est toujours aveugle et dvastatrice. Cest une Europe, enfin, qui ne paut plus oublier ce quelle doit aux autres cultures et combien cet hritage est complexe, avec ses pertes et ses mlanges (CRPON, Marc Altrits de lEurope, p. 95).

    77 Discurso de Charles de Gaulle proferido a 12 de Novembro de 1953, em Paris, meses depois do trmino da guerra na Coreia e pela conseguinte invectiva americana aos dirigentes europeus sobre a necessidade da existncia de um exrcito europeu subordinado aos EUA: Je savais bien que lEurope va de Gibraltar lOural. Et cest pourquoi, dailleurs, jai t Moscou aussi bien qu Londres ou Bruxelles. Et jai tabli des relations avec Madrid aussi bien quavec Ankara. Ceci, naturellement, sans prjudice du jugement que je pouvais porter sur tel ou tel rgime [27-04-2010]. Disponvel em WWW: . Recorde-se que o general De Gaulle se ops sempre criao da CED (Comunidade Europeia de Defesa).

    78 Idem, ibidem: Et ds lors que ce communisme entrait en ligne et se dressait comme une menace, la perspective changeait, tout au moins en ce qui concerne les tats-Unis dAmrique. Ceux-ci, reconnaissant, alors, leurs fautes, leurs erreurs, de Thran, de Yalta, de Postdam, sont venus proposer leur alliance conomique et militaire sous les vocables du plan Marshall et du pacte de lAtlantique nord. Cette alliance, il tait bon de laccepter, de la faire puisque nous tions menacs. Mais il fallait quelle fut une alliance. Linconsistance de notre rgime a fait en sorte quelle soit une espce de protectorat. Car quel autre nom peut-on donner, je vous le demande, un systme dans lequel la stratgie commune, y compris la dfense de la France, est remise entirement, en pratique, au commandant en chef amricain ?.

    79 Idem, ibidem. 80 Cf. Ferro, Marc De Gaulle et Kennedy. Espoir. N 6 (1974) [27-04-2010]. Disponvel em WWW:

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    mundo. Da que discursasse em Moscovo, anos mais tarde, precisamente a favor da segurana europeia da segurana das ptrias81.

    A situao poltica da Europa comunitria no rescaldo dos dois ps-guerras transforma-a em continente limtrofe face ao outro americano, asitico e africano , face ao seu outro eu o territrio sovitico , e, finalmente, face a um mltiplo eu ocidental, pontilhado e recortado a partir de um todo utpico, mas consagrado na(s) sua(s) individualidade(s). O que dela faz uma geografia inspita e avessa ao direito natural que o direito cosmopolita (como o Iluminismo o concebeu) deve ser, j que no apenas torna oblqua a aproximao do outro e com o outro atravs da permanente iminncia do conflito, como cimenta a sua paz numa estrutura bipolar necessria para evitar o rearmamento da Europa. A Cortina de Ferro correspondeu a uma super-estrutura concebida para o equilbrio das foras dos plos que, unificando internamente as duas Europas, evitasse o unilateralismo e, por conseguinte, um poder total. Mas tal significa tambm o sacrifcio da razo cosmopolita em favor quer da dependncia poltica, quer da excluso nacional.

    O que as conferncias de Yalta e Potsdam oficializam precisamente a necessidade da repartio do poder, ainda que o fim do conflito tenha relativizado (at certo ponto) essa dissonncia e ainda que essa bipolaridade acabe por empolar as divergncias ideolgicas, polticas e sociais, relativamente congeladas no perodo do conflito82. Forma cadente de selar os novos imperialismos sobre o cadver do velho imperialismo que teve no desfecho da guerra o incio da sua sepultura. E ser necessrio esperar a extino daquela bipolaridade, com a imploso de um dos seus plos, para que se assista a um novo reequacionamento das relaes da Europa com os outros e com a sua prpria pluralidade, afinal, uma realidade profunda passvel de metamorfoses.

    A emergncia de novas ou refundadas naes, na sequncia da queda do muro de Berlim e do poder sovitico, no s desenhou novas fronteiras, como veio provar a virtualidade metamrfica destas. Simultaneamente, o que se julgava extinto em definitivo (o Estado-Nao) ganhou novos protagonismos. No entanto, sinal dos tempos, estes mostrar-se-o abertos a baterem porta de casas comuns j em adiantado estado de construo. E se isto tambm criou pontos de ruptura e obrigou reavaliao das naes enquanto espaos modelados pelas Estado-Nao, revela tambm a caduci-dade de fronteiras interiores marcadas pela auto-suficincia nacionalista. Afinal, so Estados-Naes que, querendo reconstruir a sua casa, percebem que o faro melhor no interior da casa comum. E se tal consagra o Estado-Nao como unidade poltica que a II Guerra no ultrapassara, declara tambm at que ponto a casa europeia no e dificilmente ser um Estado-Nao.

    81 Charles De Gaulle: Nous avons aussi mettre en uvre successivement la dtente, lentente et la coopration dans notre Europe toute entire afin quelle se donne, elle-mme, sa propre scurit aprs tant de combats, de ruine et de dchirements. Il sagit, par-l, de faire en sorte que notre ancien continent, runi et non plus divis, reprenne le rle capital qui lui revient pour lquilibre, le progrs et la paix de lunivers [27-04-2010]. Disponvel em WWW: .

    82 Cf. ARON, R. op. cit., p. 550 e ss.

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    Radicalmente, e porque esta redefinio tem no leste europeu o seu lugar de maior comoo, aps a queda do Muro de Berlim continua a ser a Rssia a grande fronteira da outra Europa, manifestao de um cosmopolitismo deficitrio. Reduzidos a estrangeiros identificveis entre si, os Estados-Nao, ao sabor quer das polticas de integrao (Roma 1957; Maastricht 1992; Amesterdo 1997) quer do alastramento progressivo da mobilidade pessoal (Schengen, 1985, e respectivas rectificaes), partilham um espao que, segundo imperativos econmicos que impulsionam e regulam um ser europeu, tem nas alteraes ocorridas aps a queda do muro de Berlim (1989) a prova de uma perdida razo cosmopolita e do renascimento fantasmtico dos nacionalismos, repetindo o percurso da gnese e consolidao da nao no sculo XIX83. Quanto aos antigos Estados-Nao europeus, estes exibem diante do(s) outro(s) (europeu(s) e, fruto da mundializao) uma soberania nacional forada ao transnacional como condio de sobrevivncia. No apenas o Leste parece corresponder a um estado de stio perma-nente, obrigando a movimentos migratrios e activao de mecanismos de refgio que desafiam a capacidade de pr em prtica o inalienvel direito da hospitalidade, como a necessria insero numa nova ordem planetria impe que se questione a pertinncia da marca cosmopolita como smbolo de uma Europa, indubitavelmente, pensada como centro do mundo.

    Ora, a argumentao anacrnica que serve a busca de um molde identitrio que, paulatinamente, desage num povo europeu (para que se pense de forma justa uma identidade constitucional para a Europa) e que sucessivamente aponta a necessidade da fomentao de uma identidade europeia baseada numa origem comum, numa Histria comum, num futuro comum, cimenta num passado impossivelmente consciente a matriz de uma realidade a encontrar. Alm do mais, esta tarefa estreitada pela continuidade das soberanias nacionais (mesmo que com poderes mais reduzidos) e pela padronizao planetria agentes dos paradoxos do cosmopolitismo. A tal ponto que a concepo do prprio cosmopolitismo, numa perspectiva realista, deve ser pensada inclusivamente em relao ao prprio internacionalismo84, pressupondo mnimos universalistas (que dizem respeito, sobretudo, aos direitos humanos). No entanto, e porque tambm este ponto de partida deve ser capaz de integrar sem tornar irrealizvel a diferena (e para que possa ser possvel invocar a interculturalidade como uma benesse da mundializao de pessoas e de bens e a prpria diferena como produtora de mecanismos reguladores), preciso perguntar se um nacionalismo cosmopolita85, ainda que fornecendo as garantias da diferena (mesmo que isso implique a violao da liberdade individual),

    83 Cf. HABERMAS, J. Aprs ltat-nation. Une nouvelle constellation politique. Paris: Fayard, 1998, particularmente captulos Au-del de ltat-nation? e La constellation post-nationale et lavenir de la dmocratie; LWY, Michael Patries ou planets: nationalismes et internationalisms de Marx nos jours. Paris: Pages deux, 1997, p. 93 e ss.; FERRY, Jean-Marc Du politique au-del des nations. In Politique Europene, Le patriotisme constitutionnel et lUnion europenne. Paris: LHarmattan. N 19 (printemps 2006) p. 5-20.

    84 Cf. BECK, Ulrich The Cosmopolitan vision. Polity, 2006, p. 48 e ss. O autor integra a teorizao do chamado cosmopolitismo realista (por oposio ao idealismo cosmopolita) enquanto problemtica da segunda modernidade, sendo imperativo perguntar-se qual a reaco possvel das sociedades diferena e fronteira diante de crises globais, o que acaba por indiciar precisamente o carcter incluso do realismo cosmopolita, ele prprio efeito da cosmopolitanizao da realidade.

    85 Cf. BECK, Ulrich op. cit., p. 49.

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    no ser evidncia de uma cosmopolitizao falhada do espao europeu. E isto porque, se pode encaixar na sua natureza paradoxal o nacional, dificilmente poder ponderar o patritico86.

    O pressuposto segundo o qual as sociedades so sujeitos antropomrficos e que levar mesmo Franois Mitterrand, Robert Schumann ou Jacques Delors a declarar, em unssono e reflectindo o princpio esssencialista que deveria arquitectar as polticas eleitas, que LEurope a besoin dune me significa a recuperao, em nome de uma ideia ps-nacional, da viso metafsica que, desde Herder, os fundamentadores da ideia de nao reivindicaram para esta. Assim, se a partir dos incios do sculo XIX, se inquiria sobre o carcter, a ndole, a alma da nao, como justificao e validade das identidades dos estados-nao, a arquitectura ecumnica da Europa projecta a necessidade de se construrem mitologias que, para narrarem a Europa como uma entidade que existiria antes de existir, reproduzem a gramtica tpica do discurso tnico-cultural que est na base das mitologias nacionais. A saber: a necessidade de se pressupor um mito fundador, postulado que, todavia, para no ficar rfo, implicar a descrio de um percurso que aponte para o cumprimento de uma vocao ou, talvez, de um destino que, tem sido apresentado como a concretizao do Europeu como homem cosmopolita que alguns identificaram tendo por matriz cultural a figura de Ulisses87.

    Ulisses ou o ainda no do cosmopolitismo europeu

    O mito de Ulisses, ao exigir, se no uma concepo cclica do tempo, pelo menos, a ideia de regresso como chave, obrigatoriamente limitado na sua capacidade para ser fundacional de uma ideia de Europa a ser moldada atravs das categorias e expectativas que caracterizam o historicismo, o cientificismo e a tecnocracia modernos. Por outro lado, revela-se invivel que uma figura que est sob o signo da mesura possa ser o prottipo de uma civilizao que busca o novo e cuja techn esteve sempre sob a gide da desmesura e da superao e que, num contexto antropolgico e optimista, tende para a Revoluo. Com efeito, a Europa ou o que sempre nela fora o embate da fronteira afirmou-se assente na crena de que atravs da virt controlaria o destino podendo alter-lo.

    A ser lcita a comparao do Europeu (o que pressupe a existncia de uma cultura homognea que materialize a ideia de povo) com Ulisses, ser precisamente em virtude do seu carcter patriota. De facto, o heri da Odisseia (bem como as suas releituras posteriores), signo no de uma dispora em nome individual mas antes

    86 Para a clarificao detalhada de patriotismo e nacionalismo, vide CATROGA,Fernando Ptria, Nao, Nacionalismo. In TORGAL, Lus Reis; PIMENTA, Fernando Tavares; SOUSA, Julio Soares (coord.) Comunidades Imaginadas. Nao e Nacionalismos em frica. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2008, p. 9-39. Sobre a crtica que David Held e Ulrich Beck levam a cabo sobre o cosmopolitismo velho, leia-se a j citada obra de BILBENY, N. La Identidad cosmopolita. Los lmites del patriotism en la era global, particularmente o captulo El nomadismo global, p. 61-72.

    87 TREBITSCH, Michel Ulysse lEuropen. In BACHOUD, Andre; CUESTA, Josefina; TREBITSCH, Michel (dir.) Les Intellectuels et lEurope de 1945 nos jours. Actes du Colloque International, Universit de Salamanque. Paris: Publications Universitaires Denis Diderot, 2000, p. 183-193.

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    de uma firme demarcao identitria de-fronte do outro, o que se traduz quer na incapacidade de permanecer e de habitar o lugar da alteridade, quer no seu estado constante de estrangeiro de costas voltadas para os lugares aos quais chega, no pode ser considerado um cosmopolita. Ele no um nmada global88, j que a sua ptria fora sempre uma nica e localizada: taca, qual estava circunscrita a sua possibilidade de habitar o mundo e cuja memria exclua dos demais lugares a condio de casa. Com efeito, entre as foras da hostilidade e da hospitalidade, a sua identidade mantm-se fiel a uma paisagem, identificada com o passado e com o futuro, cujas recordao e projeco, respectivamente, fazem do sujeito um narcisista de vocao patritica, cuja identidade abreviada no presente em viagem e salvaguardada por um horizonte de esperana somente possvel na medida em que se fiel