eugénio de andrade

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AUTOR DO MÊS EUGÉNIO DE ANDRADE 1 (1923- 2005) "Sou filho de camponeses, passei a infância numa daquelas aldeias da Beira Baixa que prolongam o Alentejo e, desde pequeno, de abundante só conheci o sol e a água. Nesse tempo, que só não foi de pobreza por estar cheio de amor vigilante e sem fadiga da minha mãe, aprendi que poucas coisas há absolutamente necessárias. São essas coisas que os meus versos amam e exaltam. A terra e a água, a luz e o vento consubstanciaram-se para dar corpo a todo o amor de que a minha poesia é capaz. As minhas raízes mergulham desde a infância no mundo mais elementar. Guardo desse tempo o gosto por uma arquitectura extremamente clara e despida, que os meus poemas tanto se têm empenhado em reflectir; o amor pela brancura da cal, a que se mistura 1 Poeta português, Eugénio de Andrade, pseudónimo de José Fontinhas, nasceu a 19 de janeiro de 1923 no Fundão, e faleceu a 13 de junho de 2005, no Porto

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Autor do mês da Biblioteca da Escola Secundária Francisco de Holanda.

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Page 1: Eugénio de andrade

AUTOR DO MÊS

EUGÉNIO DE ANDRADE1 (1923- 2005)

"Sou filho de camponeses, passei a infância numa

daquelas aldeias da Beira Baixa que prolongam o

Alentejo e, desde pequeno, de abundante só

conheci o sol e a água. Nesse tempo, que só não

foi de pobreza por estar cheio de amor vigilante e

sem fadiga da minha mãe, aprendi que poucas

coisas há absolutamente necessárias. São essas coisas que os meus versos amam e

exaltam. A terra e a água, a luz e o vento consubstanciaram-se para dar corpo a todo

o amor de que a minha poesia é capaz.

As minhas raízes mergulham desde a infância no mundo mais elementar. Guardo desse

tempo o gosto por uma arquitectura extremamente clara e despida, que os meus poemas

tanto se têm empenhado em reflectir; o amor pela brancura da cal, a que se mistura

1 Poeta português, Eugénio de Andrade, pseudónimo de José Fontinhas, nasceu a 19 de janeiro de 1923 no Fundão, e faleceu a 13 de junho de 2005, no Porto

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AUTOR DO MÊS

invariavelmente, no meu espírito, o canto duro das cigarras; uma preferência pela

linguagem falada, quase reduzida às palavras nuas e limpas de um cerimonial arcaico - o

da comunicação das necessidades primeiras do corpo e da alma. Dessa infância trouxe

também o desprezo pelo luxo, que nas suas múltiplas formas é sempre uma degradação;

a plenitude dos instantes em que o ser mergulha inteiro nas suas águas, talvez porque

então o mundo não estava dividido, a luz, cindida, o bem e o mal compartimentados; e

ainda uma repugnância por todos os dualismos, tão do gosto da cultura ocidental,

sobretudo por aqueles que conduzem à mineralização do desejo num coração de homem.

A pureza, de que tanto se tem falado a propósito da minha poesia, é simplesmente

paixão, paixão pelas coisas da terra, na sua forma mais ardente e ainda não

consumada"2

Eugénio de Andrade

2 http://bibliomanias.no.sapo.pt/in_memoriamEA.htm

Page 3: Eugénio de andrade

AUTOR DO MÊS

Page 4: Eugénio de andrade

AUTOR DO MÊS

Page 5: Eugénio de andrade

AUTOR DO MÊS

“PEQUENO CADERNO DO ORIENTE”3

JARDIM DE LOU LIM IEOC

Deste jardim o que levo comigo

é um ramo de bambu para servir

de espelho ao resto dos meus dias.

Desenho de Carlos Marreiros

3 “Pequeno Caderno do Oriente” foi escrito em Macau pelo poeta Eugénio de Andrade, durante uma visita de alguns dias a Macau e à China, em Outubro de 1990. Carlos Marreiros fez as ilustrações para a edição deste “Caderno” especial da RC, em Novembro de 1993.”

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AUTOR DO MÊS

PEDRA PROFUNDA

No ar imóvel a pedra começa.

Sou-lhe fiel pelo seu aroma.

Vim de longe para tocar o fogo

da sua geometria sem fronteiras.

Pedra ferida, pedra acariciada.

Pedra profunda. Subindo alto.

Desenho de Carlos Marreiros

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TEMPLO DA BARRA

O verde dos bambus mais altos é azul

ou então é o céu que pousa nos seus ramos.

Desenho de Carlos Marreiros

Page 8: Eugénio de andrade

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BALANÇA

No prato da balança um verso basta

para pesar no outro a minha vida.

Desenho de Carlos Marreiros

Page 9: Eugénio de andrade

AUTOR DO MÊS

Onde me levas, rio que cantei Onde me levas, rio que cantei, esperança destes olhos que molhei de pura solidão e desencanto? Onde me leva?, que me custa tanto. Não quero que conduzas ao silêncio duma noite maior e mais completa. com anjos tristes a medir os gestos da hora mais contrária e mais secreta. Deixa-me na terra de sabor amargo como o coração dos frutos bravos. pátria minha de fundos desenganos, mas com sonhos, com prantos, com espasmos. Canção, vai para além de quanto escrevo e rasga esta sombra que me cerca. Há outra fase na vida transbordante: que seja nessa face que me perca.

Eugénio de Andrade

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AUTOR DO MÊS

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Page 11: Eugénio de andrade

AUTOR DO MÊS

Foi para ti que criei as rosas. Foi para ti que criei as rosas. Foi para ti que lhes dei perfume. Para ti rasguei ribeiros e dei às romãs a cor do lume.

Hoje roubei todas as rosas dos jardins Hoje roubei todas as rosas dos jardins e cheguei ao pé de ti de mãos vazias.

Eugénio de Andrade

Page 12: Eugénio de andrade

AUTOR DO MÊS

Adeus

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor, e o que nos ficou não chega para afastar o frio de quatro paredes. Gastámos tudo menos o silêncio. Gastámos os olhos com o sal das lágrimas, gastámos as mãos à força de as apertarmos, gastámos o relógio e as pedras das esquinas em esperas inúteis. Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada. Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro; era como se todas as coisas fossem minhas: quanto mais te dava mais tinha para te dar. Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes. E eu acreditava. Acreditava, porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis. Mas isso era no tempo dos segredos, era no tempo em que o teu corpo era um aquário, era no tempo em que os meus olhos eram realmente peixes verdes. Hoje são apenas os meus olhos. É pouco mas é verdade, uns olhos como todos os outros. Sh

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Page 13: Eugénio de andrade

AUTOR DO MÊS

Já gastámos as palavras. Quando agora digo: meu amor, já não se passa absolutamente nada. E no entanto, antes das palavras gastas, tenho a certeza de que todas as coisas estremeciam só de murmurar o teu nome no silêncio do meu coração. Não temos já nada para dar. Dentro de ti não há nada que me peça água. O passado é inútil como um trapo. E já te disse: as palavras estão gastas. Adeus.

Eugénio de Andrade

Shini

chi M

aruy

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