eu e o meu clone

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Um conto de Pedro Miguel Gon

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Eu e o meu Clone

Relatório Anual de Segurança e Necessidade Clónica

1.Exmos. Senhores da Comissão Reguladora,

2.Dando cumprimento ao que exige a Lei de Base da Vida Clónica número 30/2080, venho por este relatório fazer prova de necessidade do meu ente clónico com o número de registo clínico 1707.PT.EU, declarando desde já que o seu trabalho de complementaridade pessoal foi inequivocamente determinante para o incremento da minha produtividade no ano transato.

3.Começo por agradecer ao Conselho de Administração da Strategic Thinking Universe, Co, a empresa em que trabalho, por ter assinado o Atestado de Necessidade do Ente Clónico sem o qual não poderia ter encomendado o meu clone. Não contesto, na verdade, a obrigatoriedade deste Atestado de Necessi ­ dade, apesar da complexidade e morosidade do processo, pois aceito que seja um instrumento fundamental para assegurar a objectividade na definição da Pessoa de Alto Rendimento (PAR). Só assim se pode prevenir o caos que já uma vez se instalou

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no início da era do clone, há não muitos anos atrás, uma altura em que todo e qualquer indivíduo podia ter um clone.

4.Quando penso que apenas há quarenta anos atrás uma Pessoa de Alto Rendimento, um PAR do Planeta, como eu, conforme atesta o certificado do Fundo Mundial da Inteligência em anexo, dizia, quando penso que um PAR do Planeta não tinha um clone ao seu dispor, fico perplexo com a quantidade de trabalho que era realizado. Seguramente que o esforço despendido para conseguir resultados de excepção tinha como custo a perda de qualidade de vida e bem­estar superior. Creio até que a inexistência de clones foi durante muito tempo um entrave para se atingir a máxima produtividade criativa dos PAR do Planeta e, ao mesmo tempo, a razão que explica a antiga incapacidade de produzir respostas para os grandes conflitos mundiais – especialmente por se perpetuarem incoerências inconscientes, que só agudizavam as diferenças e os conflitos. Hoje um clone é um elo fundamental na nossa sociedade, sem o qual não se consegue a qualidade de trabalho intelectual criativo de alta produtividade. Sem ele, qualquer trabalho excepcional significa o sacrifício do corpo, das rela­ções familiares e da comodidade da existência. Eu diria até que o clone é a característica máxima da nossa época.

5.Quando a clonagem humana se tornou uma realidade, as pessoas ganharam o hábito irreflectido de se duplicar para poderem ter um clone que fizesse tudo aquilo que não queriam fazer, como arrumar a casa, limpar a unidade de movi mento, realizar o aprovisionamento doméstico, realizar pequenas reparações de manutenção, em resumo, fazer as tarefas ridículas que ocupam tempo. Deste modo sobejava

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para o original mais tempo de ócio puramente hedonista. Lembro­me que se oferecia um clone pelo aniversário como se fosse uma camisa ou um relógio. Tudo se passava muito rápido, sem quaisquer trâmites legais, sobretudo desde que se inventou a técnica acelerativa da mitose, o que reduziu em mais de 60% o tempo de desenvolvimento e crescimento de um clone integral. Só este facto científico criou uma explosão demográfica inesperada nos países desenvolvidos, o que quase conduziu, num efeito de catadupa, as maiores economias mundiais a uma nova crise. Foi esse descontrolo demográfico que permitiu a alguns ecologistas defender que mais valia comprar vidas naturais em África e na Ásia do que mandar fazer clones para exercer funções de complementaridade pessoal. Mas isso não passou de um episódio anedótico. Hoje essa prática arbitrária já não existe e a criação de um clone obedece a imperativos de necessidade justificada perante o Fundo Mundial de Inteligência.

6.A nossa sociedade tornou­se consideravelmente mais exigente em termos de qualidade, tanto nos serviços gerais como nas funções específicas, ou mesmo nas simples manifestações humanas. Hoje não interessa uma manifestação qualquer. As manifestações vulgares pertencem ao domínio do privado; ao domínio público só devem aceder as manifestações criativas, os trabalhos de excepção. Tal exigência é quase inumana. Daí a necessidade do clone, para assegurar que nós, seres humanos, continuamos humanos mas com a competência da inteligência artificial em temáticas em que a inteligência artificial não se pode manifestar senão enquanto instrumento: política, ética, justiça, arte, poemática, filosofância e investigação cientifica são áreas adversas à inteligência artificial stricto senso. Esse limite inumano torna­se possível com a complementaridade

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pessoal de um clone, e a verdade é que as conquistas culturais conseguidas na era do clone são uma prova disto mesmo.

7.Se não fosse a Lei de Base da Vida Clónica, nomeadamente, o artigo da Especialidade dos Entes Clónicos, a proliferação arbitrária dos clones teria continuado. A lei obriga que seja a própria pessoa clonada a solicitar a clonagem, pedido que está sujeito a uma sólida fundamentação, normalmente apoiada por um Atestado de Necessidade do Ente Clónico que só alguma organização credível e reconhecida pelo Fundo Mundial de Inteligência pode passar, pelo que, no fundo, só os PAR do planeta chegam a solicitar a concepção de um clone. Ou seja, a existência de um clone justifica­se no exercício de funções de complementaridade pessoal a um PAR do planeta. Hoje os profissionais biogenéticos obedecem a um código deontológico muito rigoroso que se coaduna com a necessidade de controlo da actividade clónica, inicialmente imposto por pressão do Fundo Mundial da Inteligência, mas que hoje é voluntariamente e conscienciosamente seguido. Uma dessas regras é o sigilo do processo clónico: só o clonado e a empresa contratada sabem da existência do clone. Nesse aspecto, a Escola Central de Instrução de Clones, de que sou, por mero acaso, accionista, funciona muito bem, pois todo o serviço de programação e condicionamento foi concebido de modo a obedecer à necessidade de sigilo. Outras pessoas não se preocupam com isso e revelam, às vezes por necessidade profissional, a existência do seu clone.

8.Um pequeno aparte. Creio que estamos todos de acordo se disser que este procedimento de sigilo passou a ser uma regra base desde que a presidência dos EUA mandou um clone

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do Presidente, e não o próprio, para uma cimeira política na China, enquanto que o verdadeiro Presidente foi pescar no Mariland. Bom, quando a imprensa americana divulgou, em cima do acontecimento, que quando todos pensavam que o presidente estava na China ele se encontrava a pescar trutas, os chineses sentiram­se ultrajados e exigiram a retractação, o que gerou um conflito diplomático muito grave. Foi um conflito muito mais grave do que aquele de há meses, quando um satélite americano destruiu acidentalmente o protótipo do primeiro satélite militar chinês dois minutos depois de ter entrado em órbita.

9.É verdade que ainda há muitas vozes públicas a defender a liberalização dos clones, mas toda a polémica assenta no esquecimento das consequências da proliferação arbitrária dos clones. A opinião pública em geral já não se recorda do caos que apareceu do nada no breve espaço de dez anos. Um caos pleno de situações absurdas. Havia pessoas que mal tinham como se sustentar a si mesmas e que também tinham que sustentar um clone que lhes havia sido oferecido. Para mais, um clone sem qualquer preparação para trabalhar ou para fazer a básica complementaridade pessoal, porque não fora instruído convenientemente durante o crescimento, já que resultara de uma brincadeira de alguém, um impulso, e não um projecto pensado em benefício do clonado e seu clone. Muitos clones foram abandonados, gerando uma vaga incontrolável de delinquentes e vagabundos, e outros ficaram órfãos por suicídio dos originais. O excesso de clones inúteis e a incapacidade de se autosustentarem conduziu à abertura de inúmeros lares apoiados pelo estado, especialmente nos países desenvolvidos, chegando­se ao ponto de haver pensões e subsídios para os clones órfãos nos países com governos

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de tendência socialista. Em alguns países a precariedade dos clones conduziu­os a situações de escravidão que ainda hoje se discutem, pois não é totalmente transparente a relação entre alguns clones e os seus originais. Pelo menos hoje é proibido uma pessoa ser responsável legal de um clone de outrém, ou pode ver­se acusada de escravização.

10.No início da era do clone eram mais violentas as disputas entre liberais e orientadores no que diz respeito ao controle sobre a actividade clónica. As empresas da indústria biogenética só tinham a ganhar com a democratização do clone. As regras pouco lhes importavam. Quantos mais vendessem melhor. Mas quando os problemas começaram a aparecer foi neces­sário regulamentar toda essa actividade. O caso mais bada­lado pelos media, e afinal o caso exemplar e paradigmático das tensões que percorrem a sociedade moderna, foi o conflito entre os californianos e o Fundo Mundial de Inteligência: os primeiros pretendiam a liberalização da vida clónica, o que era muito útil na criação de melhores profissionais para a indústria pornográfica; o Fundo Mundial de Inteligência pretendia prevenir precisamente as situações em que é difícil desmascarar a escravização do clone.

11.Naturalmente que os conflitos vividos fizeram emergir uma inédita reflexão sobre os Direitos Humanos. A questão de fundo, que ainda não recebe unanimidade de respostas, é saber se os clones são igualmente humanos ou se são outro tipo de humanos, ou melhor, saber se o humano clonado gera um outro tipo de humanidade ou se pertence à mesma. A declaração da Miss Venezuela no ano passado, «Eu não sou um clone!», para além de deselegante, é reveladora da tensão

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que se vive na sociedade desde o aparecimento massivo dos clones. Se a maior parte das pessoas não traduz essa tensão em reflexão, a verdade é que muitos pensadores se entregaram a tais reflexões como um novo filão da filosofância. Se um clone é uma aquisição intencional segundo um fim útil e específico, feita à imagem de um original que é uma personalidade assumida e reconhecida numa comunidade inteligente, e não propriamente o fortuito caso de combinação aleatória de gâmetas típico dos antigos nascimentos humanos, será a mesma substância essencial? São muitas as perguntas que se podem fazer. Nem eu que não sou muito atraído por estes campos de reflexão – prefiro os campos interdisciplinares da electrónica, informática, física e química – escapei. Será muito diferente um clone integral de um humano completamente ‘preenchido’ de componentes clonados? Qual a natureza da relação entre um original e o seu clone? Será aplicável o conceito de Pessoa ao clone fundado para complementaridade pessoal? Qual o papel dos humanos clonados no futuro da humanidade?

12.Corre actualmente uma larga discussão sobre se se deve corrigir a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Para mui­tos deveria passar a designar­se ‘Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Entidade Clónica’; para muitos outros apenas se deveria alterar o artigo 1º, passando a ser redigido do seguinte modo: «Todos os seres humanos e clones nascem livres e iguais em dignidade e em direitos»; mas para muitos outros dever­se­ia criar um artigo novo e específico para os clones, já que não cabem plenamente no espírito do artigo 1º. Apesar da polémica, a maioria dos PAR do planeta acolhem a entidade clónica no seio da humanidade, mas, surpreendentemente, alguns clones recusaram o estatuto

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de humanos e colocaram­se fora dos deveres inerentes a qualquer cidadão terrestre. Desde que os conflitos religiosos se amenizaram no planeta, os mais terríveis fora­da­lei dos últimos tempos têm sido clones que se sentem num mundo à parte e não têm qualquer vínculo sentimental com o planeta e os outros seres vivos. Quem não ouviu já falar de Ernesto Besto, o clone mais violento de todos os tempos?

13.Temo ter deixado alongadas neste relatório algumas conside­rações desnecessárias, mas isso deve­se ao entusiasmo de um primeiro relatório anual e confesso que tenho dificuldade em reprimir estas divagações. Estou, claramente, entusiasmado com a eficácia de complementaridade pessoal prestada pelo meu clone, o que me permitiu ser uma Pessoa de Alto Rendimento em sentido pleno, e assim contribuir com o meu trabalho criativo para o bem­estar da comunidade. Acredito que a clonagem para efeitos de complementaridade pessoal deve continuar, pois está­se a contribuir para uma revolução qualitativa da nossa civilização. A listagem objectiva que faz a prova do meu incremento produtivo apresenta­se em anexo, segundo documento disponibilizado pela Strategic Thinking Universe, Co – atenção que alguma informação encontra­se criptada (por designar segredos industriais protegidos) ao abrigo do disposto no ponto sete do artigo 23 da Lei de Base da Vida Clónica número 30/2080.

14.A complementaridade pessoal de um clone equivale a ter uma alma gémea com quem falar, discutir e reflectir. É como ter um cérebro suplementar que examina e rectifica exausti­vamente a validade dos raciocínios, duplicando as possibi­lidades da criatividade. É a possibilidade de encontrar veredas

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criativas que, sem a interacção íntima do diálogo sincero, não seriam descobertas. É a pureza verbalizada dos raciocínios desmascarados de todo o preconceito secretamente aceite. É o alicerce da coragem da frontalidade autêntica e integral. Se um Descartes, um Kant, um Newton, um Einstein, um Heidegger ou um Hawkings tivesse tido um clone de complementaridade pessoal, o quão diferente seria a história da humanidade! Agora cabe­nos a nós, os novos PAR do Planeta, acelerar as descobertas e a verdade. Os últimos idola estão a ser tombados.

15.Para além do usufruto integral das minhas capacidades e competências intelectuais, o meu clone permite­me também um laço de amizade ímpar. Sei que para muitos PAR a relação com o clone não chega à amizade e mantêm com ele uma distância profissional; mas para mim, o meu clone é muito mais que um instrumento intelectual. Chegámos a um estádio de amizade íntimo e tranquilo. Quase, temo, paternal. Sinto­me sempre animado no trabalho. E, pela primeira vez na vida, não me sinto sozinho.

16.Há um outro aspecto vantajoso no facto de ter um ente clónico em casa. Reconheço que em certos casos de urgência médica não há nada melhor que ter um clone. O meu superior hierárquico na empresa teve um súbito e grave problema de fígado, mas conseguiu salvar­se sem mazelas transplantando o fígado do clone. Deste modo ganhou tempo para esperar pelo crescimento natural, não celularmente acelerado, de um órgão novo apto a durar até ao fim da sua vida. Ainda para mais quando sabemos que os órgãos viscerais fabricados em laboratório através do emprego de nanobots ainda não

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são suficientemente fiáveis para garantir os altos padrões de qualidade que tem o órgão feito por clonagem terapêutica. Hoje está bem de saúde. Assim, dispor de um clone em que o sangue e os órgãos vitais são perfeitamente compatíveis dá uma tranquilidade que não tem preço.

17.Nestes anos mais recentes já apareceram alguns clones revelando competência independente da complementaridade pessoal. Por um lado, não me parece bem, pois a função mais importante de um clone é a complementaridade pessoal dos PAR do Planeta, mas, por outro, acho interessante, porque é revelador das profundas mutações sociais vividas, assumindo um clone o papel de protagonista principal. A recente nomeação para os Óscares de Holywood de um actor clone é algo de significativo. Sendo o clone de uma velha actriz, teve o privilégio de ser formado com toda a sabedoria do original, ao ponto de chegar a ser criativo e autonomizar­se face ao original. Além disso, há outra faceta significativa no campo da teoria da informação: depois do desenvolvimento do cérebro; depois do desenvolvimento da linguagem; depois da invenção dos sistemas informáticos; agora aparece o clone como a única possibilidade de “guardar” informação viva que nenhum texto, nenhum vídeo ou imagem, nenhum sistema informático poderia registar. O clone como veículo de transmissão de parte substancial da subjectividade artística que antes se perdia (porque era única e intransmissível).

18.Tendo considerado os bons resultados, necessito ainda, de acordo com a alínea c) do artigo 7 da Lei de Bases da Vida Clónica, analisar os principais inconvenientes ou aspectos negativos, se os houver, que envolvem a circunstância da

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entidade clónica. De facto, apesar dos avanços registados desde o início da Especialidade dos Entes Clónicos, noto que há ainda alguns problemas, que adiante passarei a precisar, e que requerem solução pensada.

19.Nós, os originais titulares dos clones, somos aconselhados a manter com eles relações de proximidade, incluindo­os no círculo familiar, de modo a proporcionar­lhes um clima emocional estável. Mas verifico que muitas vezes isso não chega. Parece que há alguns aspectos de desequilíbrio psíquico irreversível num clone que é difícil de prever e de controlar. O meu clone, por exemplo, é muito depressivo. Se não o convido para se sentar comigo a tomar o chá das cinco, ele fica muito melindrado. Se recebo um velho amigo em casa, um daqueles que conheci na infância, ele recusa­se a aparecer. Isto parece indicar que a técnica de manipulação cerebral neuro­ ­behaviorista ainda não está suficientemente apurada, pois os clones ainda não estão imunes às circunstâncias de intensidade emocional. Outro exemplo: quando o meu filho nasceu, o meu clone estava tão agitado que parecia que ele é que era o pai, acabou por se descontrolar e teve que ser hospitalizado, o que me criou uma situação de dupla preocupação. Sugiro que a Comissão Reguladora da Vida Clónica faça chegar junto dos cientistas estas preocupações.

20.Incluiria ainda, como aspectos negativos, algumas conse­quências ético­sociais do aparecimento do clone. Noto que está a desenvolver­se um sistema de hipocrisia organizada que não se descose quando aparece o clone em vez do original. Muitas pessoas passaram a usar o seu clone para se fazerem representar nas circunstâncias sociais mais incómodas, o que

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inclui as exéquias fúnebres e cerimónias aborrecidas. Ouvi dizer que alguém teve a ousadia de incluir a presença em tribunal, o que me parece excessivo. Não posso pactuar com essa situação. Na verdade, em certas ocasiões resta sempre a dúvida se estaremos a falar com um original ou com um clone. Parece­ ­me que um clone serve para secundarizar profissionalmente um PAR do Planeta e não para substituí­lo. Na minha vida social, vou onde quero e quando não quero não vou; não é o meu clone que vai em meu lugar. Aliás, por vezes levo o meu clone comigo em algumas situações sociais, pois acredito que lhe faz bem à auto­estima.

21.Há também uma consequência perversa deste “uso“ clandes­tino dos clones em situações sociais. Muitas vezes os originais vêem­se obrigados a criar pequenos gestos secretos, que os clones ignoram, para que pessoas íntimas saibam se estão diante do autêntico ou se diante do clone. O próprio original sente necessidade destes sinais para se distinguir do clone. Na verdade, é demasiado fácil a confusão e nem sempre é nítido quem se confunde com quem: é o clone que se confunde com o original ou o original que se confunde com o clone? Em suma, qual a personalidade líder nessas díades?

22.Ainda gostaria de fazer referência a outro aspecto que consi­dero negativo. Todo o processo de aquisição de um clone é muito dispendioso para um tempo de vida útil tão curto. A vida inicial de um clone é tão acelerada, pelo processo acelerativo da mitose, que depois em adulto não há desaceleração suficiente do processo celular, o que quer dizer que o clone acaba por morrer muito cedo, ao fim de dez ou doze anos. O que é uma pena. Imagino que os nossos cientistas estarão

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precisamente a tentar resolver essa questão, por isso dispenso­ ­me de recomendar.

23.Esta situação é tanto mais grave uma vez que começam a aparecer notícias de casos de originais devastados pela morte do seu clone. Este será, talvez, um problema grave no futuro próximo se não houver cuidado em alargar a longevidade do ente clónico ou de preparar devidamente a perda. Também isso me preocupa a mim. Todas essas notícias fizeram­me pensar no meu clone e reflectir sobre a sua verdadeira importância para mim. Tenho carinho pelo meu clone. Creio que se me fosse retirado o Atestado de Necessidade do Ente Clónico me empenharia, com todas as minhas forças, para me opor à sua subtracção como determina o ponto dois do artigo 209 da Lei de Base da Vida Clónica. E se morresse subitamente ficaria devastado; mal posso pensar nisso. Um clone não é família; mas é muito íntimo.

24.Outro tipo de problemas tem a ver com a preparação das entidades oficiais e mesmo das autoridades civis. Há alguns dias atrás, andava com o meu clone na rua e um agente da polícia abordou­nos, perguntando, “quem é o original?”, com o dedo apontado para nós. Eu e o meu clone entreolhamo­ ­nos. Parece­me despropositado que depois de tantos anos a polícia ainda não tenha adoptado um protocolo mais educado. A pergunta em si, e o modo como foi feita, é ofensiva. É de uma indelicadeza atroz obrigar alguém, em público, declarar­ ­se clone ou declarar­se original.

25.São raros os clones que vivem para lá da morte do seu original titular, mas por vezes isso acontece. Sabemos até de algumas

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fraudes, com grandes danos, que ocorreram ao assumir o ente clónico a identidade social do original falecido. Por isso os familiares dos PAR do Planeta que têm entes clónicos são tão vigilantes. Um desses raros casos em que um ente clónico sobreviveu ao seu original é o terceiro clone do multimilionário Andrew Gates IV nos EUA, que herdou legalmente a fortuna do original para desconcerto dos filhos e netos do falecido. É verdade que esse clone não sobreviverá muitos mais anos, acabando por se resolver naturalmente o problema, uma vez que os clones não têm o direito legal de regular em testamento o destino dos seus bens. Mas esse clone em particular é suficientemente poderoso para forçar a alterações ou para servir de precedente. O que é certo é que alguns opinion-makers americanos já começaram a abordar a questão defendendo a naturalidade do sucedido.

26. Não queria deixar concluído o meu relatório sem um comen­tário à recente tragédia que nos abalou a todos. O suicídio do pluri­galardoado PAR do Planeta, Hans Ernest Galardo. As rela ções de paixão entre o original e o seu próprio clone nunca tinham sido pensadas antes. Acho que foi absolutamente inesperado. Para mim especialmente, que lidei diariamente com ele na empresa, ao ponto de lhe dever o apoio incondicional na obtenção do Atestado de Necessidade do Ente Clónico, e cuja relação com o clone foi para muitos uma inspiração de humanidade e de eficácia. Por outras palavras, ele e o seu clone eram o melhor exemplo da equipa cooperativa. Nunca ninguém imaginou que a paixão de um clone por outrem pudesse partir o coração do original. Acho que isto nos obriga, mais uma vez, a reflectir sobre as profundas mudanças por que a nossa sociedade está a passar.

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27. Procurando concluir, declaro que desde que tenho o meu clone comigo me sinto muito mais dono de mim mesmo; sinto­me mais confiante; menos sozinho; sinto que me ultrapassei sem deixar de ser eu; sinto um contentamento que intensifica o prazer de estar vivo e que reforça o sentido da minha existência.

28. Quanto ao consignado no artigo 33º da Lei de Base da Vida Clónica, que exige uma declaração explicita e obrigatória no relatório sobre a possibilidade ou necessidade de subtracção do ente clónico, a minha resposta é, obviamente, a rejeição liminar dessa subtracção.

Lucas OrdepPAR do Planeta

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