etnomatemÁtica e transposiÇÃo didÁtica: uma …€¦ · sustentabilidade. os ventos sopram de...

16
EDUCAÇÃO MATEMÁTICA em Revista ISSN 2317-904X ETNOMATEMÁTICA E TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA: UMA EXPERIÊNCIA A PARTIR DE UM TRAPITXI DE CABO VERDE ETHNOMATHEMATICS AND DIDACTIC TRANSPOSITION: AN EXPERIENCE FROM A CAPE VERDE’S TRAPITXI Elcimar Simão Martins 1 João Philipe Macedo Braga 2 Alexandrino Moreira Lopes 3 Michel Lopes Granjeiro 4 Resumo Trapitxi é uma máquina semi-industrial utilizada para moer cana-de-açúcar no processo de fabricação de grogu (aguardente de cana-de-açúcar) em Cabo Verde. Por seu percurso histórico, que começa com a comercialização de homens escravizados na Ribeira Grande de Santiago, Cidade Velha, na ilha de Santiago, tornou-se um patrimônio material desse país. Voltado para o estudo da etnomatemática, o presente trabalho tem como objetivo investigar os conceitos matemáticos no trapitxi durante o seu movimento, na perspectiva de fortalecer o processo de ensino e aprendizagem, transpondo a didática eurocêntrica para criar novas possibilidades ao ensino secundário e superior em Cabo Verde. Metodologicamente, foi feita uma pesquisa de campo, num espaço com trapitxi em Cidade Velha. Os resultados evidenciam que os conhecimentos matemáticos podem analisar a eficiência da máquina, aumentando o seu desempenho, fortalecendo o processo de interdisciplinaridade e preservando a história e a cultura do povo cabo-verdiano. Palavras-chave: Trapitxi. Etnomatemática. Transposição Didática. Interdisciplinaridade. Cabo Verde. Abstract Trapitxi is a semi-industrial engine used to grind sugar cane in the production process of grogu (cane brandy) in Cape Verde. Due to its historical journey, which begins with the commercialization of enslaved men at Santiago’s Ribeira Grande, Cidade Velha, in the i sland of Santiago, it became material heritage of that country. Directed to the study of ethnomathematics, the present work aims to investigate the trapitxi’s mathematical concepts during its movement, in a perspective of streghening the process of teaching and learning, tranposing the eurocentric didactic to create new possibilities to secondary and college education in Cape Verde. Methodologically, a field research was carried out, in a space with trapitxi in Cidade Velha. The results highlighted that mathematical knowledge may analyze the engine’s efficiency, increasing its performance, reinforcing the interdisciplinarity process and preserving the history and the culture of Cape-Verdean people. 1 Prof. Dr., Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira /UNILAB, Redenção, Ceará, Brasil, [email protected] 2 Prof. Dr., Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira /UNILAB, Redenção, Ceará, Brasil, [email protected] 3 Mestrando em Sociobiodiversidade e Tecnologias Sustentáveis, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira/UNILAB, Redenção, Ceará, Brasil, [email protected] 4 Prof. Dr., Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira /UNILAB, Redenção, Ceará, Brasil, [email protected]

Upload: others

Post on 09-Jul-2020

3 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

EDUCAÇÃO MATEMÁTICA em Revista ISSN 2317-904X

ETNOMATEMÁTICA E TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA: UMA

EXPERIÊNCIA A PARTIR DE UM TRAPITXI DE CABO VERDE

ETHNOMATHEMATICS AND DIDACTIC TRANSPOSITION: AN EXPERIENCE

FROM A CAPE VERDE’S TRAPITXI

Elcimar Simão Martins1

João Philipe Macedo Braga2

Alexandrino Moreira Lopes3

Michel Lopes Granjeiro4

Resumo

Trapitxi é uma máquina semi-industrial utilizada para moer cana-de-açúcar no processo de

fabricação de grogu (aguardente de cana-de-açúcar) em Cabo Verde. Por seu percurso

histórico, que começa com a comercialização de homens escravizados na Ribeira Grande de

Santiago, Cidade Velha, na ilha de Santiago, tornou-se um patrimônio material desse país.

Voltado para o estudo da etnomatemática, o presente trabalho tem como objetivo investigar os

conceitos matemáticos no trapitxi durante o seu movimento, na perspectiva de fortalecer o

processo de ensino e aprendizagem, transpondo a didática eurocêntrica para criar novas

possibilidades ao ensino secundário e superior em Cabo Verde. Metodologicamente, foi feita

uma pesquisa de campo, num espaço com trapitxi em Cidade Velha. Os resultados

evidenciam que os conhecimentos matemáticos podem analisar a eficiência da máquina,

aumentando o seu desempenho, fortalecendo o processo de interdisciplinaridade e

preservando a história e a cultura do povo cabo-verdiano.

Palavras-chave: Trapitxi. Etnomatemática. Transposição Didática. Interdisciplinaridade.

Cabo Verde.

Abstract

Trapitxi is a semi-industrial engine used to grind sugar cane in the production process of

grogu (cane brandy) in Cape Verde. Due to its historical journey, which begins with the

commercialization of enslaved men at Santiago’s Ribeira Grande, Cidade Velha, in the island

of Santiago, it became material heritage of that country. Directed to the study of

ethnomathematics, the present work aims to investigate the trapitxi’s mathematical concepts

during its movement, in a perspective of streghening the process of teaching and learning,

tranposing the eurocentric didactic to create new possibilities to secondary and college

education in Cape Verde. Methodologically, a field research was carried out, in a space with

trapitxi in Cidade Velha. The results highlighted that mathematical knowledge may analyze

the engine’s efficiency, increasing its performance, reinforcing the interdisciplinarity process

and preserving the history and the culture of Cape-Verdean people.

1 Prof. Dr., Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira /UNILAB, Redenção, Ceará,

Brasil, [email protected] 2 Prof. Dr., Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira /UNILAB, Redenção, Ceará,

Brasil, [email protected] 3 Mestrando em Sociobiodiversidade e Tecnologias Sustentáveis, Universidade da Integração Internacional da

Lusofonia Afro-Brasileira/UNILAB, Redenção, Ceará, Brasil, [email protected] 4 Prof. Dr., Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira /UNILAB, Redenção, Ceará,

Brasil, [email protected]

Educação Matemática em Revista, Brasília, v. 23, n. 60, p. 363-378, out./dez. 2018. 364

Keywords: Trapitxi. Ethnomathematics. Didactic Trasposition. Interdisciplinarity. Cape

Verde.

Introdução

A Etnomatemática tem um caráter político e antropológico, pois aproxima a

matemática de grupos que se identificam por tradições e objetivos que os singularizam, como

o povo africano, por exemplo. Nesse sentido, a ética e a busca pelo resgate da cultura e da

dignidade do ser humano tornam-se vitais (D´AMBROSIO, 2011). Etimologicamente, temos

etno, próprio ao grupo, à comunidade; matema, explica, aprende e tica, modos, estilo, o que

faz da Etnomatemática uma maneira de compreender e explicar fatos e fenômenos relativos a

determinada cultura.

A compreensão de que a Etnomatemática favorece o desenvolvimento de uma

proposta pedagógica que trabalha a matemática como algo vivo, situada em um espaço-tempo

real, além de favorecer a descolonização, nos impulsionou a desenvolver uma pesquisa com

um trapitxi 5 em Cabo Verde, na África. O Trapitxi é uma máquina artesanal ou semi-

industrial, que contém certa complexidade construtiva, utilizada para moer a cana de açúcar e

desenvolvida a partir do conhecimento tradicional do povo cabo-verdiano. Consiste em uma

estrutura fixa onde se encontra um conjunto de três cilindros, um recipiente e um braço para

rodar os cilindros. Ela é movida por animais, geralmente um boi, que é preso a uma das

extremidades do referido braço.

A pesquisa é de abordagem qualitativa, pois “[...] é focalizada no indivíduo, com toda

a sua complexidade, e na sua inserção e interação com o ambiente sociocultural e natural”

(D’AMBROSIO, 1996, p. 103). O estudo se utilizou de uma pesquisa de campo, realizada em

julho de 2017, num espaço com trapitxi situado em Ribeira Grande de Santiago, Cidade

Velha, na ilha de Santiago, Cabo Verde. Para tanto, seguimos a compreensão de Gonçalves

(2001, p. 67), ao afirmar que tal pesquisa busca “[...] a informação diretamente com a

população pesquisada. Ela exige do pesquisador um encontro mais direto. Nesse caso, o

pesquisador precisa ir ao espaço onde o fenômeno ocorre, ou ocorreu e reunir um conjunto de

informações a serem documentadas”. Utilizamos como estratégias de aproximação com a

realidade a observação e a entrevista com o proprietário do trapitxi, que foi gravada e,

posteriormente, transcrita.

5Grafia de acordo com o vocabulário crioulo de Cabo Verde, especificamente da ilha de Santiago.

Educação Matemática em Revista, Brasília, v. 23, n. 60, p. 363-378, out./dez. 2018. 365

Este trabalho tem como objetivo investigar os conceitos matemáticos no trapitxi

durante o seu movimento, na perspectiva de fortalecer o processo de ensino e aprendizagem,

transpondo a didática eurocêntrica para criar novas possibilidades ao ensino secundário e

superior em Cabo Verde. Além da Introdução e das Considerações finais, o artigo está

dividido em três seções, quais sejam: “Cabo Verde: entre estrelas e o Atlântico entoa o

cântico da liberdade”, que apresenta o lócus e o objeto da pesquisa; “Etnomatemática e

Transposição Didática”, que traz uma abordagem teórico-conceitual, enfatizando o caráter

multicultural da educação e as possibilidades de ensino e aprendizagem; e “A linguagem

matemática no trapitxi”, que aborda o estudo da Matemática por meio de uma aplicação

prática, estabelecendo um diálogo entre o local e o mundial.

Cabo Verde: entre estrelas e o Atlântico entoa o cântico da liberdade6

Cabo Verde é um país insular, situado no Oceano Atlântico, localizado numa distância

de 500 quilômetros da costa ocidental africana. O arquipélago é constituído geograficamente

por dez ilhas e oitos ilhéus, de origens vulcânicas, tendo o fator natureza como centro da sua

sustentabilidade. Os ventos sopram de forma que permite diferenciar as ilhas em dois grupos

de região, consoante a posição dos ventos alísios do Nordeste. O Barlavento reúne as ilhas de

Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, São Nicolau, Sal e Boa Vista; enquanto que o

Sotavento reúne as ilhas de Maio, Santiago7 (onde foi realizada a pesquisa), Fogo e Brava.

A superfície de Cabo Verde está demarcada por uma área total de 4.033 Km2 e tem

uma população de aproximadamente 600 mil habitantes dentro do seu território terrestre e de

quase um milhão na diáspora. A língua oficial é o português, mas o dialeto local é o crioulo8,

que é predominantemente falado em todas as ilhas.

O país dispõe de uma posição geográfica muito boa, pois fica no meio do Oceano

Atlântico. Em virtude das condições geográficas, tornou-se um ponto de parada estratégico

para o abastecimento de água e de alimentos e num entreposto comercial, inclusive de

africanos escravizados. Isso fez com que o país desempenhasse um papel importante para a

navegação marítima e aérea porque se situa no cruzamento que liga os três continentes

banhados pelo Atlântico: Europa, África e América.

6Verso do Hino de Cabo Verde. 7 Ilha mais populosa de Cabo verde e é nela que está situada a capital do país, Cidade da Praia. 8 É uma língua originária do Arquipélago de Cabo Verde. A língua crioula, de base lexical portuguesa, é a língua

materna de quase todos os cabo-verdianos e é ainda usada como segunda língua por descendentes de cabo-

verdianos em outras partes do mundo.

Educação Matemática em Revista, Brasília, v. 23, n. 60, p. 363-378, out./dez. 2018. 366

Cabo Verde desfrutou de vários privilégios das forças coloniais, posto que foi

beneficiado em nível político e socioeconômico em relação às outras colônias do Portugal.

Nesse sentido, afirma Cabral et al. (2012, p. 3): “foi nestas ilhas atlânticas que surgiu o

primeiro centro urbano colonial nos trópicos, a vila/cidade da Ribeira Grande, espaço

dominado por reinóis, onde a Câmara Municipal exerce o poder local, progressivamente

participado pelos ‘filhos da terra’ (mestiços)”. O arquipélago é conhecido como um país que

não possui riquezas naturais, mas é rico em homens e mulheres, que trabalham e lutam pela

sua soberania e por melhores condições de vida.

O povo cabo-verdiano é caracterizado pela morabeza 9 , traduzida pela harmonia,

simplicidade, amizade, hospitalidade, boa convivência e cordialidade, que se expressa no seu

comportamento. Cabo Verde e Brasil possuem muitas semelhanças, no que diz respeito às

vivências culturais, devido ao trânsito na época de tráfico de escravos e à comercialização de

produtos naturais, explorados pelos colonizadores. Por ser um lugar estratégico, recebia

muitos navegadores que vinham do Brasil e que deixaram muitos traços e influências na

cultura local dos povos das ilhas (MADEIRA, 2015).

Esta pesquisa foi realizada na localidade de Cidade Velha, no município de Ribeira

Grande de Santiago, situado em Santiago, a maior ilha do arquipélago de Cabo Verde, com

uma área aproximada de 991 km2 e uma população de duzentos e sessenta e sete mil

habitantes. A Cidade da Praia, capital do país, está localizada nessa ilha que, por sua vez, tem

a maior infraestrutura e população do país.

Num contexto histórico mais aprofundado, Cidade Velha possui uma importância

enorme pelo fato de ser o primeiro ponto de Cabo Verde visto pelos portugueses e onde se

deu o desembarque dos primeiros marinheiros. De acordo com Brásio (1962), a abundância

de água e as facilidades para a agricultura foram determinantes para a escolha deste local

como centro do povoamento. À época, em uma estratégia de controle do comércio, foi

construída uma grande fortaleza que ficava em cima das águas do mar e servia para controlar

toda a região.

Após a ocupação da região portuária e dos arredores da ribeira, a cidade expandiu-se

para um nível mais elevado e foi dividida em dois patamares, dando origem à cidade baixa,

cujas funções principais eram atividades portuárias e comerciais, enquanto que na alta as

atividades eram religiosas e defensivas. As duas partes eram interligadas por ruas íngremes e

tortuosas (PIRES, 2007).

9Grafia de acordo com o vocabulário crioulo de Cabo Verde.

Educação Matemática em Revista, Brasília, v. 23, n. 60, p. 363-378, out./dez. 2018. 367

Com tanto avanço e protagonismo, Cidade Velha começou a ter importância em nível

internacional, tornando-se atrativa para outros navegadores que viajavam por altos mares a

procura de riquezas. Desde então, Cidade Velha começa a sofrer vários atentados e ataques,

tanto dos piratas internos como dos piratas internacionais, cobiçando a riqueza da Coroa

Portuguesa (RODRIGUES, 2010). Após esses acontecidos, os portugueses passaram a ter

menos interesse pelo local, traçaram outros planos e deixaram de investir em Ribeira Grande

de Santiago. Foi nesse período que os mulatos, descendentes de africanos e europeus,

considerados a segunda elite de Cidade Velha, dominaram a região.

Segundo Cabral et al. (2012), nesse contexto de liderança na ilha de Santiago, com o

passar do tempo, surgiu a terceira classe de elites de Ribeira Grande, considerada como os

filhos da terra, ou seja, os que nasceram em Cabo Verde. Àquela altura, essa classe liderou a

ilha com o apoio dos chamados vadios, africanos que já se encontravam nas ilhas antes dos

portugueses, mas que nunca foram dominados pelos colonos.

Com tamanho acontecimento, que ficou registrado na história da humanidade, Cidade

Velha guarda memórias e monumentos que registram parte da civilização humana, retrato da

integração entre os homens que compunham continentes diferentes. É nessa localidade que

encontramos o trapitxi, alvo de nossa pesquisa.

Figura 1 – Imagem real do Trapitxi

Fonte: Arquivo da pesquisa (2017).

Educação Matemática em Revista, Brasília, v. 23, n. 60, p. 363-378, out./dez. 2018. 368

A Figura 1 retrata um trapitxi, de propriedade do senhor Armando Monteiro Semedo,

uma máquina destinada a moer cana de açúcar, que é composta por uma estrutura fixa com

três cilindros, um recipiente e um braço para fazer rodar os cilindros. De acordo com Sanches

(2005, p. 73):

Acerca do trapiche tradicional de Cabo Verde, no que se refere ao pessoal necessário

para trabalhar no mesmo, necessita-se de, no mínimo, quatro pessoas; uma para

colocar a cana no trapiche, a segunda para redireccionar a cana de maneira que ela

passe também entre o segundo e terceiro cilindro, outro indivíduo para acompanhar

os animais “o que panta os bois” e por último, um responsável pelo abastecimento a

mesa do trapiche com a cana já preparada, o qual deve assumir ainda a função de

transportá-la para área de laboração.

Segundo Armando Monteiro Semedo, proprietário do local onde foi desenvolvida a

pesquisa, trapitxi não é uma simples máquina. Para ele, trapitxi significa muito mais,

é algo que tem a ver com a questão espiritual, com a memória de nossos

antepassados, que lutaram e resgataram a nossa forma de viver e de construir a nossa

própria identidade, com o sacrifício dos nossos trabalhos. É parte da minha vida, é

aqui, junto com ela que eu vivo. Estando junto com ela me sinto feliz. Trapitxi me

empodera, me faz acreditar que, eu como homem, posso fazer alguma coisa,

contribuindo para o desenvolvimento do meu país. (Trecho da entrevista gravada)

A fala do senhor Semedo dialoga com Rosa e Orey (2012, p. 867) quando afirmam

que “[...] os membros dos grupos culturais têm a própria interpretação de sua cultura,

denominada abordagem êmica, em oposição à interpretação dos pesquisadores e investiga-

dores, denominada abordagem ética”. Tal posicionamento desafia pesquisadores ao exercício

do olhar a partir da perspectiva de como os sujeitos de um grupo cultural compreendem suas

próprias manifestações.

Em perspectiva semelhante, D´Ambrosio (2011) revela a essência da Etnomatemática,

qual seja, contribuir para a reflexão sobre a descolonização, empoderando o subordinando,

contribuindo para a sua autonomia, restaurando a sua dignidade e valorizando as suas raízes, a

exemplo da cultura do Trapitxi.

Etnomatemática e Transposição Didática

A busca de conhecimento singulariza historicamente a humanidade, pois desde

quando iniciou o processo de domínio e transformação da natureza, ela garantiu a sua

reprodução social, transmitindo gradativamente, valores e hábitos de geração a geração. Nesse

percurso, o eurocentrismo tem assumido centralidade nos processos formativos, implicando

em uma compreensão distorcida de nossas raízes, que prioriza a representação do branco,

Educação Matemática em Revista, Brasília, v. 23, n. 60, p. 363-378, out./dez. 2018. 369

europeu, como único sujeito que compôs a nossa história, subalternizando, ou mesmo

negando, as contribuições de outras etnias. Essa imposição naturalizada se faz presente,

conscientemente ou não, nas reproduções cotidianas, no autoritarismo presente na sociedade e

que se expressa no currículo escolar também:

O eurocentrismo não é exclusivamente, portanto, a perspectiva cognitiva dos

europeus, ou apenas dos dominantes do capitalismo mundial, mas também do

conjunto dos educados sob sua hegemonia. E embora isso implique um componente

etnocêntrico, este não o explica, nem é a sua fonte principal de sentido. Trata-se da

perspectiva cognitiva durante o longo tempo do conjunto do mundo eurocentrado do

capitalismo colonial/moderno e que naturaliza a experiência dos indivíduos neste

padrão de poder. Ou seja, fá-las entender como naturais, consequentemente como

dadas, não susceptíves de ser questionadas. (QUIJANO, 2009, p. 74-75, grifos no

original)

É preciso, portanto, dialogar com Freire (2001) e pensar em uma educação libertadora,

assentada na prática dialógica, que se opõe às abordagens autoritárias, compreendidas como

absolutas e impregnadas de preconceito. Tal processo convida à mudança dos currículos,

impulsionando o diálogo entre multiculturalismo e educação, viabilizando a convivência com

a diversidade cultural nos diversos espaços sociais. Nessa perspectiva, D´Ambrosio (2011, p.

83) compreende a matemática como:

uma estratégia desenvolvida pela espécie humana ao longo de sua história para

explicar, para entender, para manejar e conviver com a realidade sensível,

perceptível, e com o seu imaginário, naturalmente dentro de um contexto natural e

cultural. Isso se dá da mesma maneira com as técnicas, as artes, as religiões e as

ciências em geral.

Tal compreensão permite uma aproximação com a educação multicultural crítica,

propícia ao combate das injustiças sociais, para que grupos oprimidos tenham reconhecimento

público, promovendo o respeito mútuo e a tolerância, proporcionando o entendimento de que

as estruturas socioeconômicas e políticas reproduzem as desigualdades, beneficiando uns e

prejudicando outros (SANTOMÉ, 2008). D´Ambrosio (1994, p. 94) revela uma preocupação

com a Etnomatemática:

Assim estamos focalizando nossa atenção na geração de uma forma de

conhecimento que vai permitir a um indivíduo reconhecer formas, figuras,

propriedades das figuras, quantificar grupamentos (conjuntos) de objetos, pessoas,

animais, árvores, relacionar os elementos desses conjuntos, ordená-los, classificá-los

e assim poder tratar de situações que se apresentam ao indivíduo, resolver problemas

associados a essas situações, criar modelos que permitam definir estratégias de ação.

E consequentemente explicar, entender, conviver com sua realidade. As situações,

os problemas, as ações requeridas são obviamente parte de um contexto natural,

social e cultural. A esse conhecimento chamamos Etnomatemática.

Educação Matemática em Revista, Brasília, v. 23, n. 60, p. 363-378, out./dez. 2018. 370

É preciso compreender que a Etnomatemática não rejeita a matemática acadêmica

e/ou o conhecimento moderno, mas com ética, solidariedade, respeito e cooperação busca ir

até as raízes, numa perspectiva holística de educação. Sobre esse aspecto, Rosa e Orey (2012,

p. 876) asseveram que:

Um currículo matemático escolar baseado na perspectiva da etnomatemática

combina os elementos-chave do conhecimento local com os da academia em uma

abordagem dialética, permitindo que os alunos gerenciem a produção do

conhecimento e dos sistemas de informações extraídas da própria realidade, e

apliquem criativamente esse conhecimento em outras situações.

Há, portanto, a possibilidade de uma correlação concreta entre conhecimento local e

científico, que pode favorecer uma leitura crítica do momento atual a partir de uma visão de

conjunto, interdisciplinar, pois:

A matemática faz parte da cultura e, portanto, deve ser um aprendizado em contexto

situado do particular ao universal. Para a população negra, em especial, é necessário

tornar o ensino da matemática vivo, respeitando a cultura local com base na história

e na cultura dos povos, quando e como vivem, como comem, como se vestem, como

rezam, como resolvem as questões cotidianas que envolvem os conhecimentos

matemáticos. (BRASIL, 2006, p. 194).

Assim, a Etnomatemática, na compreensão de Miarkra (2013, p. 2), traz à Matemática

uma apreensão “com sua dimensão cultural, discutindo o papel político da matemática e a

desnaturalização de uma concepção hegemônica de ciência matemática como aquela que

procede atemporalmente por meio de verdades que se mantêm ‘acima de qualquer suspeita’”.

Nesse sentido, há uma aproximação com a transposição didática, posto que, em diálogo com

os saberes tradicionais, busca transformar o conhecimento científico em conhecimento

escolar. Assim, o professor compreende a importância de focar em uma abordagem que

priorize a aprendizagem por parte dos estudantes.

Na compreensão de Chevallard (1991, p. 39), a transposição didática relaciona-se a:

Um conteúdo de saber que tenha sido definido como saber a ensinar, sofre, a partir

de então, um conjunto de transformações adaptativas que irão torná-lo apto a ocupar

um lugar entre os objetos de ensino. O ‘trabalho’ que faz de um objeto de saber a

ensinar, um objeto de ensino, é chamado de transposição didática.

A transposição didática, portanto, faz parte de um processo que abarca dois grandes

domínios: a ciência e a sala de aula. O desafio reside em transformar o conhecimento

científico, realizando diversas adaptações, para que se chegue a um objeto de ensino. Polidoro

e Stigar (2010, p. 154) compreendem a transposição didática como o modo “pelo qual

analisamos o movimento do saber sábio (aquele que os cientistas descobrem) para o saber a

Educação Matemática em Revista, Brasília, v. 23, n. 60, p. 363-378, out./dez. 2018. 371

ensinar (aquele que está nos livros didáticos) e, por este, ao saber ensinado (aquele que

realmente acontece em sala de aula)”.

Nesse contexto, a etnomatemática pode facilitar e potencializar os processos de

transposição didática. Em particular, na transposição entre o saber científico e o saber

pedagógico, por meio da construção de materiais didáticos que respeitem e valorizem a

realidade sociocultural e os conhecimentos prévios dos discentes.

Franco e Pimenta (2016, p. 547-548) afirmam que é preciso compreender o ensino

como prática social que contempla “[...] múltiplas articulações entre professores, alunos,

instituição e comunidade, impregnadas pelos contextos socioculturais a que pertencem,

formando um jogo de múltiplas confluências que se multideterminam num determinado

tempo e espaço social [...]”. A multidimensionalidade da Didática, portanto, pode trazer para

o centro do debate as necessárias articulações entre diversidade cultural, conhecimento local e

científico, saberes disciplinares e projeto político pedagógico das escolas, em um processo de

reflexão crítica sobre o ensino e a aprendizagem.

Baeza Araya (2015) propõe uma ressignificação da Didática, partindo da expansão de

seu próprio conceito a dimensões que considerem os aspectos socioculturais e políticos do

ensino, sobretudo as necessidades dos estudantes. Diálogo semelhante é proposto por Rosa e

Orey (2012, p. 877), ao valorizarem que os docentes deem um novo sentido ao que ensinam,

compreendendo que “o conhecimento adquirido é centrado, localizado, orientado e

fundamentado no perfil cultural dos alunos, pois visa equipá-los para serem cidadãos

produtivos local e globalmente”.

Dentro dessa concepção, buscamos trabalhar a matemática a partir de uma

contextualização com o trapitxi, colocando em prática a interdisciplinaridade, para que

estudantes, em especial, os cabo-verdianos entendam conceitos matemáticos e físicos em

diálogo com a história e a cultura de Cabo Verde, deixando vivas a memória e as práticas dos

antigos homens das ilhas, pois é necessário, “nu tem ki finka nos raiz”10.

A linguagem matemática no trapitxi

A Matemática é uma Ciência formal e fechada porque cria seus próprios problemas,

elabora teorias para resolvê-los e verifica se as teorias elaboradas explicam os problemas

criados, sem depender de nenhuma outra Ciência para iniciar o trabalho e/ou para chegar às

suas conclusões. Entretanto, a Matemática é a linguagem necessária tanto para as questões das

10Vocabulário crioulo da ilha de Santiago, Cabo verde, que significa lutar para afirmar a sua identidade.

Educação Matemática em Revista, Brasília, v. 23, n. 60, p. 363-378, out./dez. 2018. 372

Ciências Naturais (como, por exemplo, na Física, para descrever o movimento de um objeto),

como para alguns problemas das Ciências Sociais (como, por exemplo, na Geografia, para

estudar o comportamento populacional de uma região) e como tal está presente em vários

momentos do nosso dia a dia.

De fato, a função mais importante da Matemática (em qualquer Ciência) é o papel que

ela desempenha na expressão de modelos científicos, isso porque coletar dados a partir de

observações e tirar informações a partir dos dados coletados, bem como prever os

acontecimentos na natureza, geralmente requer que sejam utilizados modelos matemáticos.

Por esse motivo, não faz sentido uma Ciência ser exata sem que exista um mínimo de

Matemática em suas teorias.

Apesar disso, a realidade vivida pelos estudantes em sala de aula, na maioria dos

casos, é uma apresentação da Matemática como um conteúdo totalmente abstrato, sem

conexão aparente com o mundo real, o que acaba contribuindo para o analfabetismo científico

dos jovens (CHASSOT, 2003). Nesse sentido, o estudo da Matemática por meio de aplicações

práticas, respeitando a realidade sociocultural do indivíduo, tem grande potencial de despertar

no discente uma visão mais matemática do mundo.

Os professores revelam dificuldade em fazer a transposição didática dos conteúdos,

transformando o conhecimento científico em conhecimento escolar, de modo que o que foi

ensinado possa ser aprendido pelos estudantes. Para isso, é necessário analisar, selecionar e

inter-relacionar o conhecimento científico, dando a ele uma relevância e um julgamento de

valor, adequando-o às reais possibilidades cognitivas dos estudantes (MENEZES et al., 2001).

O caso do trapitxi permite que sejam trabalhados conceitos matemáticos tanto na escola como

na universidade, em diálogo com o conhecimento matemático local.

Em se tratando da Educação Básica/Ensino Básico e Secundário, os primeiros

conceitos matemáticos que podem ser trabalhados no trapitxi são, por exemplo, os conceitos

de ângulo, circunferência, raio, comprimento de arco e radiano, que são fundamentais no

estudo da Geometria e da Trigonometria e que, muitas vezes, são de difícil assimilação por

parte dos alunos. De fato, quando o boi coloca o trapitxi em movimento, ele executa um

movimento circular, já que sua distância ao centro da máquina, onde se mói a cana-de-açúcar,

permanece inalterada. Durante o funcionamento da máquina, o professor pode mostrar que as

pegadas do boi irão formar uma circunferência e, ao marcar a posição do boi em um instante

inicial e depois observar a posição do animal em um instante posterior, será possível abordar

o conceito de ângulo, θ, descrito pelo boi. Com a posição do animal conhecida em diferentes

Educação Matemática em Revista, Brasília, v. 23, n. 60, p. 363-378, out./dez. 2018. 373

instantes de tempo, o professor pode mostrar que é possível medir com materiais de baixo

custo (fita métrica flexível, por exemplo) a variação angular que o boi descreveu através

da expressão (GIOVANNI; BONJORNO, 2005):

onde R é o raio da circunferência, no caso o comprimento do braço do trapitxi e o arco

correspondente à distância percorrida pelo boi ao descrever esse ângulo. Nesse experimento,

pode ser medido em radianos, portanto esse é um ótimo momento para o professor

esclarecer o significado de 1 rad que será o ângulo descrito pelo boi quando ele se deslocar

um comprimento exatamente igual ao braço do trapitxi. Essa maneira de expor os conteúdos

matemáticos apresenta os conceitos geométricos abstratos de uma forma mais acessível aos

discentes, tornando-os mais simples de entender.

Em se tratando de Ensino Superior, diversos conceitos fundamentais, como: derivada,

integral e produto vetorial também podem ser explorados no funcionamento do trapitxi por

meio de suas aplicações em Física, especificamente no estudo do movimento circular, cuja

descrição matemática pode ser feita apenas por meio da determinação do ângulo que a haste

de madeira faz com uma origem estabelecida no ponto de partida do boi em função do tempo

, ou seja, por meio de uma função contínua . A taxa de variação dessa função no

tempo, isto é, sua derivada, é o que se define como velocidade angular instantânea

(WALKER et al., 2012):

cuja derivada, por sua vez, define a aceleração angular instantânea (WALKER, et al. 2012):

Aqui o professor pode destacar a interpretação da derivada como a taxa de variação de

uma função que, por outro lado, pode representar uma infinidade de grandezas, mostrando,

portanto, que onde há variação de uma grandeza, há também ali o conceito de derivada. Além

disso, é possível aproveitar o movimento do trapitxi para discutir o significado do limite que

aparece na definição da derivada e obter uma medida aproximada da velocidade angular

média , definida por (WALKER, et al., 2012):

Educação Matemática em Revista, Brasília, v. 23, n. 60, p. 363-378, out./dez. 2018. 374

Ademais, por meio de um experimento com materiais de fácil acesso (utilizando

apenas fita métrica, cronômetro e béquer) é possível verificar qual a relação entre e a taxa

de produção do grogu. Para isso, basta fazer com que o boi se desloque com diferentes

velocidades e construir um gráfico que relacione a produção da bebida com a velocidade do

animal. Ao realizar essa atividade, os alunos vão perceber como é possível matematizar os

fenômenos do seu dia a dia, possibilitando um maior interesse pela disciplina, bem como uma

valorização do conhecimento local.

Segundo Nussenzveig (2002), para que um corpo rígido ganhe aceleração angular , é

necessária a aplicação de um torque definido pelo seguinte produto vetorial

onde é o vetor que parte do eixo de rotação (o centro do trapitxi) e vai até o ponto onde a

força está sendo aplicada (a extremidade do braço do trapitxi onde se encontra o boi). Por ser

definido através de um produto vetorial, o módulo do torque pode ser calculado através da

expressão:

que possui valor máximo se e será zero se ou . Essa conclusão pode ser

ilustrada pelo professor pedindo para que seus alunos tentem colocar a máquina em

movimento, puxando ou empurrando o braço do trapitxi radialmente. Naturalmente, é

impossível colocar a máquina em movimento dessa forma, ou seja, não haverá torque

diferente de zero quando e forem paralelos, o que deixa claro que o produto vetorial entre

vetores com a mesma direção é sempre nulo.

O módulo do torque se relaciona com a aceleração angular através da equação

(NUSSENZVEIG, 2002):

que é conhecida como Segunda Lei de Newton na forma angular (para o movimento circular),

onde é o momento de inércia do corpo que nos diz o quão difícil é imprimir uma aceleração

angular ao mesmo. Desse modo, desempenha um papel análogo ao da massa no

movimento de translação. O cálculo do momento de inércia é uma das aplicações do conceito

de integral e pode ser realizado por meio da expressão (WALKER et al., 2012):

Educação Matemática em Revista, Brasília, v. 23, n. 60, p. 363-378, out./dez. 2018. 375

que, no caso do trapitxi, supondo que a barra é retilínea com comprimento e possui uma

densidade linear de massa uniformemente distribuída, é dado por (NUSSENZVEIG, 2002):

Esse resultado indica que para o boi será mais fácil colocar a máquina em

funcionamento se o braço do trapitxi for menor e feito de materiais menos densos. Tal

conclusão pode ser utilizada pelos moradores locais para construir um trapitxi mais eficiente.

Para isso, eles podem utilizar os conhecimentos de seu grupo cultural para escolherem como

matéria-prima madeiras que sejam menos densas, mas que mesmo assim suportem a tração

animal.

A transmissão do movimento circular do boi para os cilindros de metal responsáveis

por moer a cana-de-açúcar é realizada por meio de engrenagens fixadas na parte superior

desses cilindros. Por estarem conectadas umas às outras e por terem os mesmos raios, essas

engrenagens rotacionam com a mesma velocidade angular, em módulo. Além disso, cilindros

vizinhos rotacionam em sentidos opostos. De um modo geral, o movimento de engrenagens

vizinhas (A e B), que rotacionam sem deslizar, se relacionam através da seguinte equação

(WALKER, et al., 2012):

que nos diz que a velocidade angular da engrenagem B é proporcional a velocidade angular

da engrenagem A, sendo a constante de proporcionalidade a razão entre os raios das

engrenagens. Desse modo, se a engrenagem A tiver o dobro do tamanho da B, então a

velocidade angular de B será o dobro da velocidade angular de A. Esse fato, também, pode

ser utilizado pelos construtores locais para aumentar a eficiência do trapitxi.

Por fim, uma última possibilidade de ganho de desempenho (eficiência) do trapitxi é a

utilização de um número maior de cilindros na moenda, como está ilustrada na Figura 2.

Nesse caso, mais pessoas poderiam trabalhar ao mesmo tempo aumentando, assim, a

produção do grogu. Essa melhoria pode ser facilmente implementada pelos moradores locais.

Para isso, basta a inclusão de dois novos eixos de rotação no trapitxi, conectados na sua parte

superior por engrenagens.

Educação Matemática em Revista, Brasília, v. 23, n. 60, p. 363-378, out./dez. 2018. 376

Figura 2 – Modelo de um novo trapitxi com cinco cilindros

Fonte: Elaborada por Igor Oscar Teixeira para a pesquisa.

Com essa explanação, percebe-se que o trapitxi, além da importância histórica para

Cabo Verde e para a produção do grogu, se mostra também como um excelente facilitador no

ensino de conceitos matemáticos fundamentais, podendo ser usado também para a abordagem

de conteúdos de Física, tornando as aulas mais interessantes. Por outro lado, vê-se que, por

meio da junção dos conhecimentos locais com os conhecimentos acadêmicos, respeitando a

tradição do povo de Cabo Verde, há possibilidade de melhorias na produção do grogu.

Considerações finais

O caráter político e antropológico da Etnomatemática aproxima a matemática de

grupos que se identificam por tradições que os singularizam, como o trapitxi para o povo

cabo-verdiano, em especial de Cidade Velha. A ética e o resgate da cultura favorece um

processo de humanização, que leva a várias dimensões, como a tolerância, o respeito, a

humildade, a esperança e uma abertura ao desafio de desenvolver novas aprendizagens,

quebrando o pensamento didático hegemônico e marcando um novo compromisso, que é

pedagógico, social, ético, político e, portanto, surge na perspectiva da horizontalidade.

Almejar que o interesse dos estudantes em aprender Matemática seja potencializado e

que seu aprendizado seja significativo deve sempre nos fazer buscar novas estratégias e

espaços-tempos de construção deste conhecimento. Trazer para o dia a dia dos discentes

conceitos e fórmulas que nos livros são abstratos e de difícil assimilação, pode fazer uma

grande diferença na vida escolar e acadêmica deles.

Educação Matemática em Revista, Brasília, v. 23, n. 60, p. 363-378, out./dez. 2018. 377

A etnomatemática por meio do trapitxi permite que sejam trabalhados na escola de

maneira mais próxima à realidade dos estudantes cabo-verdianos conceitos como ângulo,

circunferência, comprimento de arco e radiano. Na universidade, diversos conceitos

importantes usados nos cursos de Matemática, de Física e de Engenharia, tais como: derivada,

integral, produto vetorial e momento de inércia também podem ser exemplificados de forma

clara com o funcionamento desse equipamento. Tais estratégias, além de analisar a eficiência

da máquina, aumentando o seu desempenho, fortalecem o processo de interdisciplinaridade e

preservam a história e a cultura do povo cabo-verdiano por meio de uma relação dialógica

entre esses conhecimentos.

Referências

BAEZA ARAYA, A. La resignificación de la didáctica em el debate contemporáneo: un espacio de

lucha por el sujeto. In: BAEZA ARAYA, A.; RAMÍREZ MUGA, M.; GÓMEZ RÍOS, P.

Acercamientos a la Didáctica desde la perspectiva del sujeto: experiencias de cambio e indagación

con profesores. Santiago: Ediciones de Pantalón Corto, 2015.

BRASIL. Ministério da Educação. Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-

Raciais. Brasília: SECAD, 2006.

BRÁSIO, A. Descobrimento, povoamento, evangelização do arquipélago de Cabo Verde. In: Stvdia /

Centro de Estudos Históricos Ultramarinos. - Nº10 (Julho 1962), p. 49-97

CABRAL, I.; SANTOS, M. E. M.; SOARES, M. J.; TORRÃO, M. M. F. (2012).Cabo Verde, uma

experiência colonial acelerada (Séculos XVI-XVII). Portal do Conhecimento Cabo Verde.

Disponível em: <http://www.portaldoconhecimento.gov.cv/> Acesso em: 31 out. 2017.

CHASSOT, A. Alfabetização Científica: questões e desafios para a educação. 3. ed. Ijuí: Unijuí,

2003.

CHEVALLARD, Y. La Transposition Didactique. Grenoble: La Pensée sauvage, 1991.

D´AMBROSIO, U. A etnomatemática no processo de construção de uma escola indígena. Em

Aberto, Brasília, ano 14, n.63, jul./set. 1994, p. 93-99.

______. Educação Matemática: da Teoria à Prática. Campinas: Papirus, 1996.

______. Etnomatemática: elo entre as tradições e a modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

FRANCO, M. A. S.; PIMENTA, S. G. Didática Multidimensional: por uma

sistematização conceitual. In: Educ. Soc., Campinas, v. 37, nº. 135, p.539-553, abr.-

jun., 2016.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 31. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.

GIOVANNI, J. R.; BONJORNO, J. R. Matemática Completa. 2. ed. São Paulo: FTD, 2005.

Educação Matemática em Revista, Brasília, v. 23, n. 60, p. 363-378, out./dez. 2018. 378

GONÇALVES, E. P. Iniciação à pesquisa científica. Campinas: Alínea, 2001.

MADEIRA, J. P. C. B. Nação e Identidade: A Singularidade de Cabo Verde. 2015. Tese

(Doutoramento) Instituto Superior de Ciências sociais e Políticas. Universidade de Lisboa. Lisboa,

2015. Disponível em: <https://www.repository.utl.pt> Acesso em: 31 out. 2017.

MENEZES, E. T.; SANTOS, T. H. Verbete transposição didática. Dicionário Interativo da

Educação Brasileira - Educabrasil. São Paulo: Midiamix, 2001. Disponível em:

<http://www.educabrasil.com.br/transposicao-didatica/>. Acesso em: 08 mar. 2018.

MIARKA, R. Em Busca da Dimensão Teórica da Etnomatemática.In: I CONGRESO DE

EDUCATION MATEMÁTICA DE AMÉRICA CENTRAL Y EL CARIBE. Santo Domingo,

República Dominicana, 2013, Anais/Acta I CEMACYC. Disponível em:

http://www.sbem.com.br/enem2016/anais/pdf/7247_4306_ID.pdf. Acesso em: 12 fev. 2018.

NUSSENZVEIG, H. M. Curso de Física Básica. Mecânica. Volume 1. São Paulo: Blucher, 2002.

PIRES, F. J. M. R. Da Cidade da Ribeira Grande à Cidade Velha em Cabo Verde: Análise

Histórico-Formal do Espaço Urbano Séc. XV – Séc. XVIII. Câmara Municipal da Praia 2004. 2004.

223 f. Tese (Doutorado) - Curso de História, Universidade de Cabo Verde, Praia, 2004. Disponível

em: <www.portaldoconhecimento.gov.cv/>. Acesso em: 06 set. 2017.

POLIDORO, L. F.; STIGAR, R. A Transposição Didática: a passagem do saber científico para o saber

escolar. Ciberteologia: Revista de Teologia e Cultura, [S.i], v. 1, n. 27, p.153-159, jan. 2010.

Disponível em: <http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/index.php/notas/a-transposicao-

didatica-a-passagem-do-saber-cientifico-para-o-saber-escolar/>. Acesso em: 17 out. 2017.

QUIJANO, A. Colonialidade do Poder e Classificação Social. In: SANTOS, B. S; MENEZES, M. P.

(Org.). Epistemologias do sul. Coimbra: Almedina, 2009.

RODRIGUES, A. S. Gestão do Patrimônio Cultural – O caso do Sitio Histórico da Cidade Velha.

2010. 67 f. TCC (Graduação) - Curso de Curso de Licenciatura em História. Departamento das

Ciências Sociais e Humanas, Universidade de Cabo Verde, Praia, 2010. Disponível em:

<http://www.portaldoconhecimento.gov.cv>. Acesso em: 10 set. 2017.

ROSA, M.; OREY, D. C. O campo de pesquisa em etnomodelagem: as abordagens êmica, ética e

dialética. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 38, n. 04, p. 865-879, out./dez. 2012.

SANCHES, C. R. A cana-de-açúcar em Cabo Verde: Cultivo, Transformação e Comercialização.

Praia, outubro de 2005, 160 p. (Dissertação de Mestrado em História Contemporânea, Instituto

Superior de Educação da Universidade Portucalense).

SANTOMÉ, J. T. Multiculturalismo Anti-Racista. Porto: Profedições, 2008.

WALKER, J.; HALLIDAY, D.; RESNICK, R. Fundamentos de Física. Mecânica. Volume 1. 9 ed.

São Paulo: LTC, 2012.

Recebido em: 10 de maio de 2018.

Aprovado em: 01 de agosto de 2018.