Ética fundamental

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Ética Fundamental Visão histórica do pensamento ético Introdução Breve história da ética Introdução: Ética e História As teorias éticas nascem e se desenvolvem em diferentes épocas e sociedades como respostas aos problemas apresentados pelas relações entre os homens, e, em particular pelo seu comportamento moral efetivo. Por isto, existe uma estreita vinculação entre os conceitos morais e a realidade humana social, sujeita historicamente à mudança. Por conseguinte, as doutrinas éticas não podem ser consideradas isoladamente, mas dentro de um processo de mudança e de sucessão que constitui propriamente a sua história. Ética e história relacionam-se duplamente: a) com a vida social e, dentro desta, com as morais concretas que são um dos seus aspectos; b) com a sua história própria, já que cada doutrina está em conexão com as anteriores (tomando posição contra elas ou integrando alguns problemas e soluções precedentes), ou com as doutrinas posteriores (prolongando-se ou enriquecendo-se nelas). A diversidade das teorias éticas As teorias éticas, diferentemente das morais concretas, não buscam de modo imediato responder a perguntas como “o que devemos fazer?”, “de que modo deveria organizar-se uma sociedade?”. 1

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Ética Fundamental

Visão histórica do pensamento ético

Introdução

Breve história da ética

Introdução: Ética e História

As teorias éticas nascem e se desenvolvem em diferentes épocas e sociedades como respostas aos problemas apresentados pelas relações entre os homens, e, em particular pelo seu comportamento moral efetivo.

Por isto, existe uma estreita vinculação entre os conceitos morais e a realidade humana social, sujeita historicamente à mudança.

Por conseguinte, as doutrinas éticas não podem ser consideradas isoladamente, mas dentro de um processo de mudança e de sucessão que constitui propriamente a sua história.

Ética e história relacionam-se duplamente:

a) com a vida social e, dentro desta, com as morais concretas que são um dos seus aspectos;

b) com a sua história própria, já que cada doutrina está em conexão com as anteriores (tomando posição contra elas ou integrando alguns problemas e soluções precedentes), ou com as doutrinas posteriores (prolongando-se ou enriquecendo-se nelas).

A diversidade das teorias éticas

As teorias éticas, diferentemente das morais concretas, não buscam de modo imediato responder a perguntas como “o que devemos fazer?”, “de que modo deveria organizar-se uma sociedade?”.

As teorias éticas respondem a estas perguntas: “por que existe moral?”, “quais motivos – se é que existem – justificam que continuemos a utilizar alguma concepção moral concreta para orientar nossas vidas?”, “quais motivos – se é que existem – avalizam a escolha de uma determinada concepção moral diante de outras concepções?”.

A diferença que observamos entre as diversas teorias éticas não provém, portanto, dos conceitos com que lidam, mas do modo como ordenam quanto a sua prioridade e dos métodos filosóficos que empregam.

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Vamos nos limitar a uma sucinta exposição de algumas das que tiveram e continuam a ter maior relevância histórica. Nós as agrupamos em três conjuntos que correspondem as três grandes fase da história da filosofia.

Primeira fase – Antiguidade clássica e a Idade Média – agrupamos as éticas que tiveram como base última de sustentação a pergunta pelo “ser”, isto é, pela verdadeira realidade das coisas, incluindo, as coisas humanas, como a moralidade.

Segunda fase – filosofia moderna – de Descartes até princípios do século XX, colocamos as éticas que nasceram na esteira da reflexão em torno da noção de “consciência” como novo ponto de partida filosófico.

Terceira fase – as éticas que fizeram eco da “virada linguística”. Própria da filosofia contemporânea: as que tomam como ponto de partida filosófico a existência da linguagem e da argumentação como fenômenos que mostram uma exigência de sentido.

Não seguimos uma ordem cronológica estrita, pois, em última instância, os três enfoques que, acabamos de mencionar se sobrepõem entre si à medida que vão surgindo na história.

Breve reflexão sobre o contexto cultural no surgiram as diferentes teorias.

A filosofia ocidental (como toda nossa cultura em geral) nasceu entre os antigos gregos, mas imediatamente se somou à herança grega o elemento latino, graças à assimilação que os romanos fizeram do grego, acrescentando àquele legado sua própria contribuição.

Posteriormente, com a expansão do cristianismo, o componente grego-latino de nossa cultura se enriqueceu com a contribuição oriental da sabedoria judaica – condensado no Antigo Testamento – e com a própria contribuição cristã reunida no Novo Testamento.

A cultura ocidental foi se configurando como uma cultura mestiça, na qual convivem elementos de procedência muito diferente.

Não se deveria perder esse fato de vista no momento de compreender as tensões que percorrem a história da filosofia em geral, e da Ética em particular.

A mestiçagem é fecunda e as tensões são condições de possibilidade de desenvolvimento.

Embora a história da Ética reúna uma diversidade de teorias, frequentemente contrapostas, isso não deve nos levar à ingênua conclusão de que qualquer uma delas poderia ser válida para nós – do século XXI – nem tampouco à desesperançada inferência de que nenhuma delas pode trazer para nada para a resolução de nossos problemas.

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A sucessão histórica das teorias revela é a enorme fecundidade de uma invenção grega – a Ética – que soube se adaptar aos problemas de cada época elaborando novos conceitos e esboçando novas soluções.

A questão que deve ocupar os éticos de hoje é a de perfilar novas teorias éticas que possamos considerar à altura de nosso tempo. Para tanto, pode ser útil o conhecimento das principais éticas do passado.

Texto compilado e disponibilizado: CORTINA, Adela e MARTINEZ Emilio Ética. S. Paulo : Loyola 2005, 66-80

1.1. A Idade Clássica e a Idade Média

Éticas da era do “Ser”

1. Antiguidade clássica e a Idade Média: Éticas da era do “ser”

1.1. Grécia Antiga

Os primeiros filósofos da antiga Grécia se perguntaram antes de tudo pelo ser das coisas, por sua “verdadeira realidade” ou sua “autêntica natureza”, já que muitas vezes “as aparências enganam”. Assim, alguns deles logo irão se perguntar em que consiste a verdadeira virtude do homem e a verdadeira noção de bem.

Antes do surgimento da filosofia, os gregos compartilhavam em grande medida as concepções de bem e de virtude presentes nos poemas homéricos: o bem era toda ação que beneficiava a própria comunidade, a virtude (areté) era toda capacidade plenamente desenvolvida – toda excelência – que permitia a quem a possuía se destacar em algo sobre os outros. Essa mentalidade se completava com o ideal de “ser o melhor” (aristós) no sentido de prestar os melhores serviços à comunidade a que alguém pertencia.

Desse modo, a moral vivida pelos gregos dos tempos pré-filosóficos já continha alguns conceitos (bem, virtude e comunidade) que logo seriam peças fundamentais das primeiras teorias éticas.

Os problemas éticos são objeto de uma atenção especial na filosofia grega exatamente quando se democratiza a vida política da antiga Grécia e particularmente de Atenas.

Ao naturalismo dos filósofos do primeiro período (os pré-socráticos), sucede uma preocupação com os problemas do homem, e, sobretudo, com os problemas políticos e morais.

As novas condições que se apresentam no século V a.C. em muitas cidades gregas, especialmente Atenas, com o triunfo da democracia sobre o domínio da velha aristocracia, com a democratização da vida política, com a criação de novas

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instituições eletivas e com o desenvolvimento de uma intensa vida pública, deram origem à filosofia política e moral.

As ideias de Sócrates, Platão e Aristóteles neste campo estão relacionados com a existência de uma comunidade democrática limitada e local (polis),

Ao passo que a filosofia dos estoicos e dos epicuristas surge quando este tipo de organização social já caducou e a relação do indivíduo e a comunidade se apresenta em outros termos.

1.1.1. Sócrates

Sócrates nasce em Atenas em 470 a.C.

Com exceção de uns poucos fragmentos de Heráclito e Xenófanes, encontramos entre os sofistas e Sócrates (século V a.C.) as primeiras reflexões filosóficas sobre questões morais.

Com relação aos sofistas, sabe-se que consideram a si mesmos mestres da virtude, concretamente a “virtude política” ou “excelência da gestão dos assuntos políticos”. Mas ao mesmo tempo suas doutrinas filosóficas defendem – ao que parece – posições individualistas e relativistas que de fato conduzem ao ceticismo ante a própria noção da virtude política.

Os sofistas alardeiam saber como educar os jovens para que cheguem a ser “bons cidadãos” e ao mesmo tempo negam a possibilidade de alcançar critérios seguros para saber em que consiste a boa cidadania.

Sócrates representa na história da filosofia a tentativa de estabelecer critérios para distinguir a verdadeira virtude da mera aparência de virtude. O que o preocupa é saber qual é a excelência própria do ser humano e, em consequência, de que modo deveríamos conduzir nossas vidas.

Os sofistas identificavam a excelência humana com o sucesso político – em um sistema democrático assembleista como o ateniense – como dependente em grande medida do domínio da eloquência, do domínio da arte de convencer por meio de artifícios retóricos.

Sócrates aposta na busca contínua da verdade por meio do diálogo e da reflexão. Não valoriza o domínio da retórica, mas deseja dar sua “modesta” contribuição à comunidade por intermédio da ironia e de perguntas críticas.

Embora não tenha deixado nenhuma obra escrita, os testemunhos de vários escritores da época nos permitiram reconstruir algumas das principais contribuições geralmente atribuídas a ele:

1. A excelência humana se revela antes de tudo na atitude de busca do verdadeiro bem

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- só quem chega a conhecer esse bem pode colocá-lo em prática. Em consequência, o primeiro passo para alcançar a perfeição moral é o abandono de atitudes dogmáticas e céticas – que são produto da preguiça – e a consequente adoção de uma atitude crítica que só se deixa convencer pelo melhor argumento:

- “Pouco importa que penses desta ou daquela maneira, posto que só examino a coisa mesma e um e outro seremos examinados igualmente: eu perguntando, tu respondendo” (Platão, Protágoras, 333c)

2. Como a verdade sobre o bem humano é uma meta que temos que perseguir continuamente, cabe perguntar-se se por acaso não será ilusório crer que a alcançamos a cada momento.

- A resposta de Sócrates é que a verdade habita no fundo de nós mesmos, e que podemos chegar a ela mediante a introspecção e o diálogo.

- Sócrates adotou como lema de sua vida: “Conhece-te a ti mesmo”. Desse modo, o autoconhecimento foi para ele o caminho apropriado para penetrar nos mistérios de todas as coisas, incluídas as questões morais.

- nesse processo de “iluminação da verdade” podemos nos ajudar muito uns aos outros, do mesmo modo que algumas pessoas ajudam as parturientes a dar à luz. Essa comparação serviu de base para que Sócrates desse o nome de maiêutica, arte de ajudar a parir – a seu próprio método de diálogo orientado para a busca da verdade.

- 3. Embora toda a verdade encontrada pela aplicação do método maiêutico seja provisória, possível de revisão, nunca fixada dogmaticamente, constitui não obstante um achado cuja validade ultrapassa as fronteiras da própria comunidade em que se vive.

- - Trata-se de verdades encontradas por alguns poucos estudiosos, mas que podem valer universalmente, como orientação para todos os homens, que em dado momento podem servir como instância crítica diante das normas da própria comunidade.

- 4. O objetivo último da busca da verdade não é a mera satisfação da curiosidade, mas a assimilação dos conhecimentos necessários para agir bem, e desse modo poder alcançar a excelência humana, a sabedoria; ou ainda, a felicidade ou, a vida boa.

- - Sócrates acredita que esses conceitos estão ligados entre si que, ao que tudo indica, afirma que ninguém que conheça realmente o verdadeiro bem pode agir mal. Essa doutrina se chama intelectualismo moral. Consiste em afirmar que quem age mal é na verdade um ignorante, pois se conhecesse o bem se sentiria inevitavelmente impelido a agir bem.

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- - Daí a importância da educação dos cidadãos como tarefa ética primordial, uma vez que só se contamos com cidadãos verdadeiramente sábios podemos esperar que eles sejam bons cidadãos.

- Para Sócrates, o saber fundamental é o saber a respeito do homem (“Conhece-te a ti mesmo”), que se caracteriza por sua vez, por estes três elementos:

1) é um conhecimento universalmente válido, contra o que sustentam os sofistas;

2) é, antes de tudo, conhecimento moral;

3) e é um conhecimento prático (conhecer para agir retamente).

A ética socrática é racionalista. Nela encontramos:

a) uma concepção do bem (como felicidade da alma) e do bom (como o útil para a felicidade);

b) a tese da virtude (areté) – capacidade radical e última do homem – como conhecimento, e do vício como ignorância (quem age mal é porque ignora o bem; por conseguinte, ninguém faz o mal voluntariamente) e

c) a virtude pode ser transmitida ou ensinada.

Para Sócrates, bondade, conhecimento e felicidade se entrelaçam estreitamente:

- O homem age retamente quando conhece o bem e, conhecendo-o, não pode deixar de praticá-lo; por outro lado, aspirando ao bem, sente-se dono de si mesmo e é feliz.

1.1.2. Platão

Platão nasce em Atenas em 427 a.C. e morre em 347 a.C..

A ética de Platão se relaciona intimamente com a sua filosofia política, porque para ele a polis é o terreno próprio da vida moral.

Em diversas passagens dos Diálogos platônicos podemos encontrar reflexões sobre a maior parte dos conceitos morais:

- a verdadeira moral deve ser um conhecimento que presida ao mesmo tempo a vida do indivíduo e a da comunidade, a do cidadão e da polis, é um conhecimento que orienta para alcançar a felicidade, mas o primeiro elemento desse conhecimento já nos informa que os seres humanos só podem ser felizes no seio de uma comunidade bem organizada.

Em consequência, o bom e o justo para o indivíduo não podem ser algo distinto do que se considere bom e justo para o bem comum, para alcançar ou manter a cidade feliz.

Platão, para chegar a essa cidade feliz na qual todos e cada um possam desfrutar sua própria felicidade, propõe um modelo ideal, uma utopia, um desenho perfeito elaborado pela razão e pela imaginação, destinado a servir de ponto de referência

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para todos aqueles que pretendem reformar os costumes e as instituições com o objetivo de melhorar a vida humana individual e social.

Esse projeto utópico, que Platão expõe em A República, é ao mesmo tempo uma representação ampliada da alma humana. Quer expor em primeiro lugar sua visão da justiça para o estado, para compreender melhor o que ocorre na alma humana; ambas realidades, “têm a essência e a mesma estrutura”.

Platão defende uma concepção orgânica do Estado. Entende que o Estado é constituído por diversos estamentos que cumprem uma determinada função no interior do organismo social. Tais estamentos são formados:

1º) pelos governantes, que têm a função de administrar, vigiar e organizar a cidade com o objetivo de que esta alcance o bem que lhe é próprio;

2°) pelos guardiães ou defensores, que têm a missão de defender a cidade; e

3º) pelos produtores (camponeses e artesãos), que desenvolvem atividades econômicas.

Cada um desses estamentos tem que se caracterizar por uma virtude específica, por uma aptidão e uma disposição que lhes permitirão realizar sua tarefa adequadamente:

a) os governantes pela prudência, entendida como sabedoria que se aplica para alcançar o bem geral da cidade;

b) os guardiães ou defensores, pelo valor, como firmeza na defesa da cidade e no cumprimento das ordens dos governantes;

c) os produtores, pela moderação ou temperança, como autocontrole e harmonia na submissão voluntária à autoridade dos governantes para que se realize um desenvolvimento ordenado da produção econômica.

Por outro lado, também são três as espécies ou dimensões que Platão distingue na alma humana:

a) racional, o elemento superior e mais excelso, dotado de realidade autônoma e de vida própria, componente inteligente, com o qual o homem conhece, e que se caracteriza por sua capacidade de raciocínio;

b) irascível, a sede da decisão e da coragem, fenômenos nos quais predomina nossa vontade, e que fundamentam-se em uma força interior que colocamos em ação quando se produz um conflito entre a razão e os desejos instintivos;

c) apetite, também chamado de “parte concupiscível, com a qual nos referimos aos desejos, paixões e virtudes.

A virtude própria da alma racional é a sabedoria ou prudência. Esta seria entendida como um saber que se aplica para alcançar o bem geral do indivíduo, e que, portanto, permite a regulação de todas as ações do homem.

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A parte irascível da alma deve superar a dor e o sofrimento e sacrificar os prazeres quando necessário para cumprir com o que dita a razão, corresponde a ela, a virtude da fortaleza ou valor, entendida como perseverança e firmeza para seguir os comando da razão.

O apetite (parte concupiscível) tem como virtude própria a moderação ou temperança: a capacidade de se adequar à ordem imposta pela razão.

A virtude da justiça não tem assinalado um lugar determinado na cidade, como não o tem nas partes ou espécies da alma, ao contrário, apresenta-se como virtude que acolhe e harmoniza todo o conjunto da cidade e todos os elementos que constituem o indivíduo: consiste na harmonia e na perfeita coordenação com que cada estamento ou cada parte da alma cumpre e realiza a função especial que lhe corresponde, desenvolvendo-a segundo sua virtude específica. A alma desempenha o papel determinante, pois a essência e a raiz da justiça devem ser buscadas no interior do homem.

na teoria ética de Platão insiste na noção de um bem absoluto e objeto – o Bem – que, em sua qualidade de ideia suprema no mundo das ideias, constitui a razão última de tudo o que existe e de toda possibilidade de conhecimento. Na República, Platão explica de várias maneiras diferentes (na analogia do sol com o Bem e no mito da caverna) que o Bem é uma realidade em si mesmo, algo distinto e separado das coisas boas: justamente aquilo que faz com que as coisas boas sejam boas e justamente aquilo que impregna de inteligibilidade toda realidade permitindo que seja cognoscível para nós.

Platão afirma que só os que têm a capacidade e constância adequadas chegarão a se encontrar frente a frente com o Bem em si, de modo que essa experiência (encontro místico com o sobrenatural) lhes proporcionará um tipo de conhecimento superior, uma ciência do Bem que capacita quem a possui a governar com retidão e justiça os assuntos da pólis.

Esse tipo de pessoas seriam os governantes filósofos, e sua estatura moral não pode ser menos que a mais elevada, pois o conhecimento do Bem os impelirá irresistivelmente a agir bem: o intelectualismo moral socrático ainda está presente na ética apresentada na República.

Quanto às demais pessoas, que for falta de capacidades naturais não chegarem à contemplação do Bem, encontrarão o tipo de felicidade que lhe corresponde atendendo às capacidades que têm, sempre e quando, é claro, desempenharem cabalmente as virtudes próprias de função social.

Alma Justiça = Cidade

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Parte racional Prudência + Os governantes

Parte irascível Valor + Os guardiões

Parte concupiscível Moderação Os produtores

A ética de Platão, depende intimamente, como a sua política:

a) da sua concepção metafísica (dualismo do mundo sensível e do mundo das ideias permanentes, eternas, perfeitas e imutáveis, que constituem a verdadeira realidade do Bem, divindade, artífice ou demiurgo do mundo);

b) da sua doutrina da alma (princípio que anima ou move o homem e consta de três partes: razão, vontade e apetite; a razão que contempla e quer racionalmente é a parte superior, e o apetite, relacionado com as necessidades corporais, é a inferior).

Como o indivíduo por si só não pode aproximar-se da perfeição, torna-se necessário o Estado (polis).

O homem é bom enquanto bom cidadão.

A ideia do homem se realiza somente em comunidade.

A ética desemboca necessariamente na política.

1.1.3. Aristóteles

Aristóteles, de Estagira, Macedônia (384-322 a.C). Aristóteles se opõe ao dualismo ontológico de Platão.

A ética de Aristóteles está unida à sua filosofia política, para ele a comunidade social e política é o meio necessário da moral. Somente nela pode realizar-se o ideal da vida teórica na qual se baseia a felicidade. O homem enquanto tal só pode viver na polis; é por natureza um animal político-social.

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Aristóteles foi o primeiro filosofo a elaborar tratados sistemáticos de ética. O mais influente desses tratados, a Ética a Nicômano, continua a ser reconhecido como uma das obras-primas da filosofia moral.

Na Ética a Nicômano, Aristóteles apresenta a questão que constitui a chave de toda investigação ética:

- Qual é o fim último de todas as atividades humanas? Supondo que “toda arte e toda investigação, toda ação e toda escolha parecem tender a algum bem” (Ética a Nicômano, I, 1, 1094a),

- Imediatamente nos damos conta de que esses bens se subordinam uns aos outros, de modo que cabe pensar na possível existência de algum fim que todos desejamos por si mesmo, ficando os demais como meios para alcançá-lo. Esse fim não pode ser outro que a eudaimonia, a vida boa, a vida feliz.

Aristóteles se dispõe a investigar em consiste a verdadeira felicidade:

1) A vida feliz terá que ser um tipo de bem “perfeito”

- um bem busquemos por si mesmo, e não como meio para outra coisa; portanto, a ânsia de riquezas e de honras não pode ser a verdadeira felicidade, e não constituem a própria felicidade;

2) O autêntico fim último da vida humana teria de ser, “autossuficiente”,

- bastante desejável por si mesmo, de modo que aquele que o possua já não deseje mais nada, embora, é claro, isso não impeça que desfrute de outros bens.

3) O bem supremo do homem deverá consistir em algum tipo de atividade que lhe seja peculiar, sempre que tal atividade possa ser realizada de uma maneira excelente.

- O bem para cada tipo de seres consiste em cumprir adequadamente sua própria função, e nisso, como em todas outras coisas, Aristóteles considera que o homem não é uma exceção entre os seres naturais.

- A atividade que estamos procurando como chave do bem último do homem precisa poder ser desempenhada continuamente, pois do contrário dificilmente poderia tratar-se da mais representativa de um tipo de seres.

Em sua indagação sobre qual poderia ser a função própria do ser humano, Aristóteles nos recorda que todos temos uma missão a cumprir na própria comunidade, e que nosso dever moral é justamente desempenhar bem nosso papel nela. Para tanto, é preciso que cada um adquira as virtudes correspondentes a suas funções sociais.

Ele se pergunta se, além das funções próprias do trabalhador, do amigo, da mãe ou do artista, não haverá também uma função própria do ser humano como tal, porque nesse caso estaríamos em via de descobrir qual é a atividade que pode preencher nossos anseios de felicidade.

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A resposta oferecida por Aristóteles:

- A felicidade mais perfeita para o ser humano reside no exercício da inteligência teórica: na contemplação ou compreensão dos conhecimentos. De fato, trata-se de uma atividade prazerosa que não se deseja por outro motivo, senão por si mesma, cuja satisfação se encontra na própria realização da atividade,e que além disso pode ser realizada continuamente.

Aristóteles reconhece que o ideal de uma vida contemplativa contínua só é possível para os deuses:

- “O homem contemplativo, por ser homem, terá necessidade do bem-estar externo, já que nossa natureza não se basta a si mesma para a contemplação, mas necessita da saúde do corpo, do alimento e dos demais cuidados”. (Ética a Nicômano X,8,1178b)

Aristóteles admite que esse não é o único caminho para alcançar a felicidade,

- também que se pode ter acesso a ela mediante o exercício do entendimento prático, que consiste em dominar as paixões e conseguir uma relação amável e satisfatória com o mundo natural e social em que estamos integrados.

Nessa tarefa termos a ajuda das virtudes, que Aristóteles classifica da seguinte maneira:

A principal virtude dinoética é a prudência, que constitui a verdadeira “sabedoria prática”: ela nos permite deliberar corretamente, mostrando-nos o mais conveniente em cada momento para nossa vida (não o mais conveniente a curto prazo, mas o mais conveniente para uma vida boa em sua totalidade).

- A prudência facilita-nos o discernimento na tomada de decisões, guiando-nos para a obtenção de um equilíbrio entre o excesso e a falta, e é a guia das outras virtudes: a fortaleza ou coragem será, por exemplo, o termo médio entre a covardia e a temeridade, ser generoso será termo médio entre o esbanjamento e a mesquinhez etc.

O termo médio não é uma opção pela mediocridade, e sim pela perfeição, por exemplo, uma escultura perfeita será aquela em que não sobra nem falta nada, de modo similar, a posse de uma virtude qualquer significa que, nesse aspecto de nosso comportamento, não melhora possível, mas que alcançamos o hábito mais elevado.

Uma pessoa virtuosa será uma pessoa feliz, mas para tanto precisa viver em uma sociedade regida por boas leis.

- Porque o logos, essa capacidade que nos possibilita a vida contemplativa e a tomada de decisões prudente, também nos capacita para a vida social. Por isso a ética não pode desvincular-se da política: o maior bem individual, a felicidade, só é possível em uma pólis dotada de leis justas.

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A ética aristotélica afirma que existe moral porque os seres humanos buscam inevitavelmente a felicidade e para alcançar plenamente esse objetivo necessitam das orientações morais.

- A moral nos proporciona critérios racionais para averiguar que tipo de comportamentos, quais virtudes, que tipo de caráter moral é o adequado para essa finalidade.

Aristóteles entende a vida moral como um modo de “auto-realização” e por isso dizemos que a ética aristotélica pertence ao grupo de éticas eudemonistas, porque assim se aprecia melhor a diferença em relação a outras éticas que também postulam a felicidade como o objetivo da vida humana, mas a entendem como prazer (hedoné) e por isso são denominadas hedonistas. O prazer costuma ser entendido como uma satisfação de caráter sensível, enquanto a auto-realização pode comportar ações que nem sempre são prazerosas.

Virtudes dianoéticas ou intelectuais

Próprias do intelecto teórico

Inteligência (nous)

Ciência (episteme)

Sabedoria (sofia)

Próprias do intelecto prático

Prudência (frônesist)

Arte ou técnica (tekné)

Discrição (gnome)

Perspicácia (sínesis)

Bom conselho (euboulia)

Virtudes éticas ou do caráter Próprias do autodomínio

Fortaleza ou coragem (andreia)

Temperança ou moderação (sofrosine)

Pudor (aidos)

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Próprias das relações humanas

Justiça (dikaiosine)

Generosidade ou liberalidade (eleutheriotes)

Amabilidade (silia)

Veracidade (eletheia)

Bom humor (eutrapelia)

Afabilidade ou doçura (praotes)

Magnificência (megaloprepeia)

Magnanimidade (megalofilia)

1.2. Éticas do período helenista

Durante o período helenista, os gregos vivem momentos de confusão política e moral devido ao surgimento dos grandes impérios (Alexandre Magno; Império romano), que trazem consigo um afastamento dos cidadãos em relação aos centros de poder político, com a consequente perda do interesse do indivíduo pelos assuntos da polis, já que está perdeu o protagonismo de que desfrutava nos séculos anteriores.

Diante da desordem reinante, o estoicismo e o epicurismo reduzem a investigação ética à pergunta pela felicidade dos indivíduos, e ambas estão de acordo em afirmar, seguindo a tradição grega, que felicidade e sabedoria se identificam; destruída a confiança na polis (comunidade), “sábio” será agora “aquele que vive de acordo com a natureza”.

Os estoicos e epicuristas divergem quanto à maneira de entender o conceito de natureza, e em consequência também não estão de acordo quanto ao ideal de homem sábio.

1.2.1. Epicurismo

O epicurismo é uma ética hedonista, isto é, uma explicação da moral em termos de busca da felicidade entendida como prazer, como satisfação do caráter sensível.

Epicuro de Samos (341-270) afirma que, se o que move nossa conduta é a busca do prazer, será sábio:

- quem for capaz de calcular corretamente quais atividades nos proporcionam maior prazer e menor sofrimento,

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- quem conseguir levar a sua vida calculando a intensidade e a duração dos prazeres, desfrutando dos que têm menos consequências dolorosas e dividindo-os com moderação ao longo da existência.

São duas as condições que tornam possível a verdadeira sabedoria e a autêntica felicidade: o prazer e o entendimento reflexivo.

O entendimento reflexivo nos permite distinguir várias classes de prazeres, correspondentes a diferentes tipos de desejos:

“Parte de nossos desejos são naturais, e outra parte são desejos inúteis, entre os naturais, alguns são necessários e outros não; e entre os necessários alguns o são para a felicidade, outros para o bem-estar do corpo e outros para a própria vida. Conhecendo bem esses tipos de desejos é possível relacionar toda escolha à saúde do corpo e à serenidade da alma, porque nisso consiste a vida feliz.

Pois agimos sempre não sofrer dor nem pesar, e uma vez que o consigamos já não precisamos de mais nada (...). Por isso, quando dizermos que o prazer é o objetivo final, não nos referimos aos prazeres dos pervertidos – como acreditam alguns que ignoram, não estão de acordo ou interpretam mal a nossa doutrina -, e sim a não sofrer dor no corpo nem estar perturbado na alma. Porque nem banquetes nem farras constantes (...) dão a felicidade, mas a sóbria reflexão que investiga às causas de toda escolha ou recusa e extirpa as falsas opiniões de que procede a grande perturbação que se apodera da alma” (Carta a Menesceu).

Epicuro distancia-se de um certo “hedonismo ingênuo” para propor como ideal de felicidade o desfrute moderado e tranquilo dos prazeres naturais, vinculados às verdadeiras necessidade do corpo e da alma.

1.2.2. Estoicismo

Sob essa denominação agrupam-se as doutrinas filosóficas de um amplo conjunto de autores gregos e romanos que viveram entre os séculos III a.C e II d.C.

Zenão de Cítio – o fundador desta corrente – abriu uma escola em Atenas em 306 a.C., a partir da qual foi se ampliando e consolidando-se uma filosofia que contou com figuras tão influentes como Posidônio, Sêneca, Epíteto e o imperador Marco Aurélio.

Sua influência histórica posterior foi enorme, tanto nas éticas modernas e contemporâneas como nas posições morais que muitas pessoas adotam na vida cotidiana.

Os estoicos julgaram necessário indagar em que consiste a ordem do universo para determinar qual, devia ser o comportamento correto dos seres humanos. Para tanto, serviram-se do pensamento de um autor muito anterior no tempo, Heráclito de Éfeso (séculos VI-V a.C.).

Para Heráclito, todo ser e todo acontecer devem ter seu fundamento em alguma razão e, como a série das razoes não pode ser infinita deve haver uma Razão primeira, comum, que será ao mesmo tempo a Lei que rege o Universo.

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Os estoicos adotam uma concepção cosmológica e afirmam que, uma vez que essa Razão Cósmica é a Lei Universal, tudo está submetido a ela: é o “destino”, “a fatalidade”, uma racionalidade misteriosa que se impõe sobre a vontade dos desuses e dos homens fazendo com que tudo aconteça fatalmente “tal como tinha de acontecer”.

Essa Razão Cósmica, esse “Logos”, é providente, ou seja, cuida de tudo o que existe. O fato de o homem acreditar no destino é a consequência obrigatória da investigação científica e não uma superstição.

Tal visão de mundo, tem como consequência lógica a resignação do homem diante do irremediável, como ocorria nas tragédias gregas, em que os personagens atuam como se fossem donos de si mesmos e tivessem a capacidade de evitar determinações do oráculo – da Razão Comum ou Lei Universal – e os que procuram agir contra a ordem eterna devem pagar seu erro por tentar fazê-lo.

A liberdade, nesse contexto, não é outra coisa que o conhecimento e a aceitação da necessidade que rege o Universo.

A proposta ética dos estoicos pode ser formulada assim: o sábio ideal é aquele que, sabendo que toda felicidade exterior depende do destino, procura garantir sua paz interior atingindo a insensibilidade diante do sofrimento e diante das opiniões dos outros.

A imperturbabilidade é o único caminho que leva à felicidade.

Com isso, começa-se a distinguir dois mundos ou âmbitos: o da liberdade interior, que depende de nós, e o mundo exterior, que fica fora de nossas possibilidades de ação e modificação.

O sábio estoico é o que consegue conquistar os bens internos e desprezar os externos, chegando a ser, nas palavras de Sêneca, “artífice da própria vida”.

Aparece aqui, embora ainda de uma forma embrionária, a concepção de liberdade como autonomia, que veremos se desenvolver com Agostinho e com Kant.

2.3. As éticas medievais

Ética medieval

A ética cristã – como a filosofia cristã em geral – parte de um conjunto de verdades reveladas a respeito de Deus, das relações do homem com o seu criador e do modo de vida prático que o homem deve seguir para obter a salvação.

O cristianismo não é uma filosofia, mas uma religião. Apesar disto, faz-se filosofia na Idade Média para esclarecer e justificar, lançando mão da razão, o domínio da verdades reveladas ou para abordar questões que derivam das questões teológicas.

A difusão do cristianismo na Europa do final do Império Romano e início da Idade Média implicou a incorporação progressiva de muitos elementos culturais

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provenientes da Bíblia judaica e dos primeiros escritos cristão, embora estes tenham sidos elaborados em sua maior parte em grego e latim e contenham grande quantidade de elementos próprios da mentalidade greco-latina.

Ao mesmo tempo, muitos dos pontos de referência culturais do mundo grego-latino foram abandonados para ser substituídos por conteúdos elaborados a partir da matriz judaico-cristã.

- Por exemplo, a educação moral das crianças já não podia continuar a propor como modelos a ser imitados os heróis da tradição Greco-latina, que deviam ser substituídos pelos personagens da “História Sagrada” e pela vida de Jesus e santos.

No entanto, as antigas narrativas não foram condenadas ao esquecimento, e qualquer pessoa culta da nova era cristã deveria conhecer os relatos de ambas as tradições, embora outorgasse a primazia moral aos relatos judaico-cristãos.

Tal mestiçagem empreendida no terreno da moral vivida também teve seu correlato no da moral pensada, no âmbito da Ética.

- De fato, já desde os primeiros esforço intelectuais dos cristãos para organizar as crenças e orientações morais vai se elaborando uma síntese nova que reúne conceitos e argumentos procedentes dos filósofos Greco-latinos e da herança judaico-cristã, mas a primeira das grandes contribuições dessa nova síntese é a obra de Agostinho de Tagaste.

2.3.1. Agostinho de Tagaste

A obra de Agostinho pertence cronologicamente à época romana, mas seu conteúdo inaugura em grande medida os temas e delineia os conceitos que irão presidir a discussão filosófica e teológica durante grande parte da Idade Média.

A ética de Agostinho não aparece sistematicamente exposta em nenhuma de suas obras, mas podemos nos aventurar a reconstruí-la da seguinte maneira:

- os grandes filósofos gregos estavam certos ao afirmar que a moral é um conjunto de orientações cuja função é ajudar os seres humanos a conseguir a vida feliz, mas não souberam encontrar a chave da felicidade humana; essa felicidade só pode ser encontrada (para Agostinho) no encontro amoroso com Deus-Pai que Jesus Cristo anunciou em seu Evangelho.

Porque a felicidade não é principalmente uma questão de conhecer, nem sequer conhecer a Ideia do bem (Platão, reservando essa experiência a alguns poucos eleitos pelo destino), mas é antes uma questão de amar, de desfrutar a relação amoroso com outra Pessoa que nos criou livres e que nos convida a aceitar sua amizade com o raro respeito de que possamos livremente rejeitar sua oferta.

Para Agostinho, existe moral porque precisamos encontrar o caminho de volta para nossa casa original, a Cidade de Deus, da qual nos extraviamos momentaneamente por ceder a certas tentações egoísta.

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- Deus, em sua infinita bondade, tomou a iniciativa de nos enviar uma ajuda decisiva: a sabedoria encarnada em seu próprio Filho Jesus Cristo e a assistência permanente de sua graça (de seu dom gratuito) para tonificar nossa vontade fraca.

Assim, os verdadeiros conteúdos da moral não podem ser outros a não ser os que estão contidos nos ensinamentos que Jesus Cristo nos legou por suas palavras e obras, ensinamentos que poderiam ser resumidos num único mandamento: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”.

O seguimento dessa moral é o único caminho da verdadeira felicidade, mas é um caminho aberto a qualquer ser humano, e não apenas aos mais capacitados intelectualmente.

Encontramo-nos diante de uma ética que introduz elementos de uma fé religiosa concreta no próprio núcleo de seus argumentos.

É congruente continuar a chamar esse constructo de ética? Ou se deveria prescindir de qualquer alusão a crenças religiosas em um sistema de filosofia moral?

Neste ponto temos de recordar a distinção entre “éticas de máximos” e “éticas de mínimos”.

- De acordo com a distinção, as éticas religiosas são realmente éticas, sempre que ofereçam sua correspondente explicação da moral, mas são éticas “de máximos”, pois contém elemento de convite à felicidade que não podem razoavelmente ser impostos a todo ser racional.

- Com a adoção de muitas dessas éticas de máximos é possível coincidir com outra éticas em certos conteúdos (alguns “mínimos” comuns) que permitiriam uma convivência harmoniosa de pessoas adeptas dessas éticas diferentes.

Agostinho:

- A purificação da alma, em Platão, e a sua ascensão libertadora até elevar-se à contemplação, transforma-se em Agostinho na elevação ascética até que culmina no êxtase místico ou felicidade.

- Agostinho se afasta do pensamento grego ao sublinhar o valor da experiência pessoa, da interioridade, da vontade e do amor.

A ética agostiniana se contrapõe ao racionalismo ético dos gregos.

2.3.2. Tomás de Aquino

Os escritos de Aristóteles permaneceram ignorados pela cultura ocidental durante vários séculos, até que os muçulmanos da corte de Bagdá foram informados de sua existência e ordenaram que fossem traduzidos para o árabe no século IX. A partir desse momento, eles se difundiram por todo o mundo árabe, provocando reações de admiração e de repulsa, dependendo dos casos.

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Entre os primeiros admiradores medievais da obra aristotélica é obrigatório citar três grandes autores: o muçulmano Averróis, o judeu Maimônides e o cristão Tomás de Aquino. Cada um deles elaborou uma teoria ética que representa a tentativa de conciliar as principais contribuições de Aristóteles com as crenças religiosas e morais do Corão, da Bíblia judaica e da Bíblia cristã. Comentaremos brevemente a síntese efetuada por Tomás de Aquino dada a enorme influência que ela exerceu sobre o pensamento ético posterior.

Tomás de Aquino dá prosseguimento à tradição ética eudemonistas ao considerar a felicidade o fim último da atividade humana: existe moral porque todos queremos ser felizes.

Também, dá sequencia à tradição das éticas teológicas iniciada por Agostinho, pois aceita a ideia, definida por este, de que só em Deus se pode encontrar a verdadeira meta que estamos procurando.

“O objeto da vontade é o bem universal, como o objeto do entendimento é a verdade universal. Daí se segue que nada pode aquietar a vontade do homem senão o bem universal, que não se encontra em nenhum bem criado a não ser apenas em Deus” (Suma Teológica, I-II, q.2, a.8)

A felicidade perfeita para o homem não é possível nesta vida, mas em outra vida futura e definitiva. Enquanto não chegar esse momento, o tipo de felicidade que mais se parece com aquela, segundo Tomás, é a que proporciona a contemplação da verdade, Deus, no entanto, não é só a fonte na qual o ser humano saciará sua sede mais radical, mas é também o “supremo monarca do universo”, pois Deus estabeleceu a lei eterna e dentro dela fixou os conteúdos gerais da verdadeira moral como lei natural.

“Como todas as coisas estão submetidas à Providencia divina e são reguladas e medidas pela lei eterna, é evidente que todas participam da lei eterna de alguma maneira, na medida em que pela impressão dessa lei tendem a seus próprios atos ou fins. A criatura racional, entre todas as outras, está submetida à Providencia de uma maneira especial, já que se faz participe dessa providência, sendo providente sobre si e para os outros. Participa, portanto, da razão eterna: esta a inclina naturalmente à ação devida e à meta, como se a luz da razão natural, pela qual discernimos o bem do mal – esse é o objetivo da lei natural – não fosse outra coisa que a impressão da luz divina. É, portanto, evidente, que a lei natural não é mais que a participação da lei eterna na criatura racional” (Suma Teológica, I-II, q.91,a 2).

Essa “lei natural” contém um primeiro princípio imperativo que deriva da própria noção de bem: “Deve fazer-se o bem e evitar o mal”. Mas em que consiste concretamente esse bem que se deve fazer?

- Encontramos as respostas nas inclinações naturais, uma vez que tudo o que a natureza colocou em nós procede em última instância da lei divina.

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- Em consequência, a lei natural nos ordena como tais como conservar a própria vida, satisfazer as necessidades corporais e atender às inclinações sociais e intelectuais.

Tomás acredita que todo ser humano compreende facilmente esses preceitos básicos, pois eles estão “naturalmente inculcados” em nós em forma de uma espécie de intuição ou “hábito que contém os preceitos da lei natural que recebe o nome de sindérese”.

A aplicação desses preceitos à circunstâncias concretas de cada ação é o que constitui a consciência, para Tomás a chave da vida moral cotidiana, pois a aplicação dos princípios, às diversas situações não pode ser mecânica, mas criativa e razoável: afinal de contas nossa semelhança com Deus também se manifesta na criatividade.

A ética tomista coincide nos seus traços gerais com a de Aristóteles.

Para Tomás, Deus é o bem objetivo ou fim supremo, cuja posse causa felicidade, que é um bem subjetivo (diferente de Aristóteles para quem a felicidade é o bem último). A contemplação, o conhecimento (como visão de Deus) é o meio adequado para alcançar a felicidade.

Texto compilado e disponibilizado: CORTINA, Adela e MARTINEZ Emilio Ética. S.Paulo : Loyola 2005, 51-66.

2.4. Éticas da Filosofia moderna (Descartes até princípios do século XX):

Éticas da era da “consciência”

Ética moderna

Embora não seja fácil reduzir as múltiplas e varias visões éticas deste período a um denominador comum, podemos destacar a sua tendência antropocêntrica (em contraste com a ética teocêntrica e teológica da Idade Média) que atinge seu ponto culminante na ética de Kant

A ética antropocêntrica

A ética moderna cultiva na sociedade que sucede à sociedade da Idade Média e se caracteriza por uma série de mudanças em todas as ordens: ruptura radical e profunda com os valores da Idade Média.

O ser humano adquire um valor pessoal, como ser espiritual, corpóreo, sensível, dotado de razão e de vontade. Sua natureza se revela na contemplação e na ação. O homem afirma seu valor em todos os campos: na ciência, na natureza, na arte.

O homem aparece como centro da política, da ciência, da arte e também da moral.

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Ao se transferir o centro de Deus (teocentrismo) para o homem (antropocentrismo), este acabará por apresentar-se como o absoluto, como criador e legislador em diferentes domínios, incluindo a moral.

A partir dos séculos XVI e XVII a filosofia moral entra em uma nova etapa: com a revolução científica, os contatos com grupos culturais muito afastados da Europa, as chamadas “guerras de religião”, a invenção da imprensa etc., ruptura com os valores da Idade Média: as visões de mundo tradicionais desmoronam e se torna patente a necessidade de elaborar novas concepções que permitam orientar-se nos diversos âmbitos da vida.

Nesse contexto de profunda crise cultural, a filosofia moderna começou a marcha renunciando ao antigo ponto de partida na pergunta sobre o ser das coisas, para partir agora da pergunta pelos conteúdos da consciência humana.

Naturalmente, o ponto de vista tradicional continuou a ser cultivado por parte de muitos autores, mas o novo ponto de vista foi abrindo caminho com crescente sucesso, dando lugar a grandes figuras da história da filosofia.

Descartes (século XVII) esboça claramente a tendência a basear a filosofia no homem, embora este ainda se conceba como um abstrato eu pensante;

Nos iluministas e materialistas franceses (século XVIII), a filosofia está a serviço para destruir os pilares ideológicos de mundo antigo (ordem feudal-absolutista) e de formar, mediante a ilustração, um novo homem em harmonia com a sua natureza racional.

Em Kant, o homem como consciência cognoscente ou moral é, antes de tudo, um ser ativo, criador e legislador, tanto no plano do conhecimento quanto no da moral.

Vemos que no mundo moderno tudo contribui para que a ética, libertada de seus pressupostos teológicos, seja antropocêntrica: tenha em seu centro e fundamento no ser humano.

- A ética de Kant é a mais perfeita expressão da ética moderna.

1. Hume: o sentimento moral

Hume procurou refutar o pensamento racionalista, ao qual acusava de dogmático por manter uma concepção da razão excessivamente idealizada e uma culpável ignorância sobre o que se relaciona com as paixões humanas.

Hume considera a razão ou o entendimento uma faculdade exclusivamente cognoscitiva, cujo âmbito de aplicação termina onde deixa de se propor a questão da verdade ou da falsidade dos juízos, os quais, por sua vez, só podem ser referir, em última instância, ao âmbito da experiência sensível.

Para Hume, o âmbito da moralidade é alheio à experiência sensível. A experiência sensível nos mostra “fatos”, mas a moralidade não é questão de fatos, e sim de

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sentimentos subjetivos de agrado ou desagrado que aparecem em nós no momento em que experimentamos os fatos objetivos.

Em consequência, Hume considera que o papel da razão no terreno moral concerne unicamente ao conhecimento do dado e à possibilidade de julgar a adequação dos meios ao objetivo de conseguir algum fim, mas é insuficiente para produzir efeitos práticos e incapaz de julgar a bondade ou maldade das ações.

“Parece evidente que a razão, em um sentido estrito, significando o discernimento da verdade e da falsidade, não pode nunca por si só ser um motivo para a vontade e não pode ter influência nenhuma a não ser na medida em que afete alguma paixão ou afecção. As relações abstratas de ideias são objeto de curiosidade, não de uma volição. E as questões de fato, como não são nem boas nem más, nem provocam desejo nem aversão, são totalmente indiferentes, e quer sejam conhecidas quer desconhecidas, quer sejam apreendidas errônea ou corretamente, não podem ser consideradas motivos para a ação” (Hume, Tratado de la naturaleza humana, 617)

Hume delega as funções morais a outras faculdades, as paixões e os sentimentos. Ao agir sobre a vontade, as paixões ou desejos são as fontes diretas e imediatas das ações,

- o erro dos racionalistas, e dos simples mortais, ao considerar que nossa conduta se rege pela razão, parte da crença errônea de que só somos movidos pelas paixões quando sofremos um arrebatamento emocional, ao passo que a suavidade e a tranquilidade emocional são atribuídas, sem mais nem menos, à razão. Quando pensamos desse modo, não levamos em conta que também existem paixões tranquilas, cuja ação sobre a vontade confundimos com a racionalidade.

Além disso, nossas paixões e ações não representam as coisas de uma determinada maneira, ou seja, não são questões de fato nem representam relações de ideias, mas simplesmente acontecem, existem, são executadas ou sentidas. Portanto, não guardam relação com a razão no que se refere a sua verdade ou a sua falsidade. Não é, portanto, à razão a faculdade encarregada de estabelecer os juízos morais.

Hume não está criticando somente os racionalistas a partir de sua concepção ética. Também dirige suas críticas contras as teorias éticas de base teológica ou religiosa, concretamente a obra Whoke Duty of man (O dever integral do homem), provavelmente escrita por Allestree. A propósito dela e do filosofo racionalista Wollaston, Hume denuncia o que passará à história como a falácia naturalista, que consiste em extrair juízos morais a partir de juízos fictícios, ou, o que é o mesmo, concluir um deve a partir de um é.

“Em todos os sistemas de moralidade que encontrei até agora sempre observei que o autor procede por algum tempo segundo a forma ordinária de raciocinar e estabelece a existência de Deus ou faz observações sobre os assuntos humanos. Mas de repente surpreendo-me ao ver que, em lugar de é e não é, os verbos de ligação usuais das

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proposições, não encontro nenhuma proposição que não esteja conectada com um deves ou não deves”

Apesar dessa denúncia, Hume não esclarece se a passagem de juízos de fato a juízos de dever moral é necessariamente incorreta, ou se essa incorreção acontece só em determinados casos, mas o certo é que ele mesmo realiza a transição do ser ao dever ser em uma filosofia moral, o que vale a adjetivação de “notavelmente incoerente”.

Para Hume nossas ações se produzem em virtude das paixões, que surgem em nós de modo inexplicável e estão orientadas para a consecução de fins propostos não pela razão, mas pelo sentimento.

- A bondade ou a maldade dessas ações depende do sentimento de agrado ou desagrado que provocam em nós, e o papel que a razão desempenha nelas vão além de ser o de nos proporcionar conhecimento da situação e da adequação ou não dos meios para conseguir os fins propostos pelo desejo. Por isso afirma:

“A razão é e só deve ser escrava das paixões, e não pode aspirar a nenhuma outra função que a de servir e obedecer a ela”

E, em outro momento:

“Ter consciência da virtude não é mais que sentir uma satisfação especial diante da contemplação de uma pessoa. O próprio sentimento constitui nosso elogio ou admiração”

Na visão de Hume, os fundamentos de nossas normas morais e de nossos juízos de valor são a utilidade e a simpatia:

- Quanto à utilidade: respeitamos as normas morais (como dadas) porque, se não o fizéssemos, se seguiriam maiores prejuízos que os que, em alguns casos, a obediência a essas normas produz.

- Quanto à simpatia, trata-se de um sentimento pelo qual as ações de outros ecoam em nós provocando a mesma aprovação ou a mesma censura que causaram nos afetados por elas, o que nos leva a reagir a situações que não nos afetam diretamente. Ela está na origem de uma virtude que Hume considera artificial, a virtude da justiça.

2. Kant

Kant, Koenigsberg (1724-1804), suas obras éticas fundamentais: Fundamentação da metafísica dos costumes (1785) e Crítica da razão prática (1788).

Kant tem consciência que revolucionou a filosofia e, por analogia com a revolução que Copérnico operou ao demonstrar que a terra gira ao redor do sol e não ao contrário.

Afirma Kant: no terreno do conhecimento, não é o sujeito que gira ao redor do objeto, mas o contrario.

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- O que o sujeito conhece é o produto de sua consciência. E a mesma coisa se verifica na moral: o sujeito, a consciência moral, dá a si mesmo a sua própria lei.

- O homem como sujeito cognoscente ou moral é ativo, criador e está no centro tanto do conhecimento quanto da moral.

Kant toma como ponto de partida da sua ética o factum (o fato) da moralidade.

- É um fato indiscutível, certamente, que o homem se sente responsável pelos seus atos e tem consciência do seu dever. Mas esta consciência obriga a supor que o homem é livre.

- Dado que o homem como sujeito empírico é determinado causalmente e a razão teórica nos diz que não pode ser livre,

- é preciso admitir, então, como um postulado da razão prática, a existência de um mundo da liberdade ao qual pertence o homem como ser moral.

O problema da moralidade exige que se proponha a questão do fundamento da bondade dos atos, ou em que consiste o bom.

Para Kant: o único bom em si mesmo, sem restrição, é uma boa vontade. A bondade de uma ação não se deve procurar em si mesma, mas na vontade com que se faz.

- Mas quando é que uma vontade é boa, ou como uma boa vontade age ou quer? É boa a vontade que age por puro respeito ao dever, sem razões outras a não ser o cumprimento do dever ou a sujeição a lei moral.

O mandamento ou dever que deve ser cumprido é incondicionado e absoluto;

- O que a boa vontade ordena é universal por sua forma e não tem um conteúdo concreto: refere-se a todos os homens em todo o tempo e em todas as circunstâncias e condições.

Kant chama de imperativo categórico a esse mandamento, formulando-o:

- “Age de maneira que possas querer que o motivo que te levou a agir se torne uma lei universal”.

Se o homem age por puro respeito ao dever e não obedece a outra lei a não ser a que ele dita a sua consciência moral, é – como ser racional puro ou pessoa moral – legislador de si mesmo.

Por isso, tomar o homem como meio para a Kant profundamente imoral, porque todos os homens são fins em si mesmo e, como tais – como pessoas morais -, formam parte do mundo da liberdade ou do reino dos fins.

Kant (antropocentrismo ético) empresta à moral o seu princípio mais alto, e o faz exatamente num mundo humano concreto no qual o homem, longe de ser um fim em si, é meio, instrumento ou objeto (mercadoria), e no qual, por outra parte, ainda não se verificam as condições reais, efetivas, para transformá-lo efetivamente em fim.

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Esta consciência de que não deve ser tratado como meio, e sim como fim, tem um profundo conteúdo humanista, moral, e inspira até hoje todos aqueles que desejam a realização deste princípio kantiano não já num mundo ideal, mas em nosso mundo real.

A ética kantiana é uma ética formal e autônoma.

- Por ser puramente formal, tem de postular um dever para todos os homens, independentemente da sua situação social e seja qual for o seu conteúdo concreto.

- Por ser autônoma (e opor-se assim às morais heterônomas nas quais a lei que rege a consciência vem de fora), aparece como a culminação da tendência antropocêntrica iniciada no Renascimento em oposição à ética medieval.

Por conceber o comportamento moral como pertencente a um sujeito autônomo e livre, ativo e criador, Kant é o ponto de partida de uma filosofia e de uma ética na qual o homem se define antes de tudo como ser ativo, produtor ou criador.

A Ética Kant

Na conclusão de sua Crítica da razão prática, Kant afirma: “Duas coisas enchem a alma de admiração e respeito, sempre novos e crescentes, com quanto mais frequência e aplicação a reflexão se ocupa: o céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim”.

Kant empreendeu um enorme esforço de reflexão em sua obra filosófica com o objetivo de estudar separadamente dois âmbitos que Aristóteles já distinguirá:

a) o âmbito teórico, correspondente ao que ocorre de fato no universo conforme sua própria dinâmica;

b) o âmbito do prático, correspondente ao que pode ocorrer por obra da vontade livre dos seres humanos.

Em ambos os terrenos é possível, para Kant, que a razão humana saia da ignorância e da superstição se a partir da filosofia se tomam medidas para disciplinar a reflexão sem se deixar levar por arrebatamentos ingênuos e irresponsáveis.

No âmbito prático, o ponto de partida para a reflexão é um fato de razão:

- o fato de que todos os humanos têm consciência de certos comandos que experimentam como incondicionados, isto é, como imperativos categóricos, todos temos consciência do dever de cumprir algum conjunto de regras, por mais que nem sempre tenhamos vontade cumpri-las; as inclinações naturais, como todos sabemos por experiência própria, podem ser tanto um bom aliado como um obstáculo, dependendo dos casos, para cumprir aquilo que a razão nos apresenta como um dever.

Nisso consiste a “virada copernicana” de Kant no âmbito prático: o ponto de partida da Ética não é o bem que desejamos como criaturas naturais, mas o dever que

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reconhecemos interiormente como criaturas racionais, porque o dever não é dedutível do bem, mas o bem próprio e específico da moral não consiste em outra coisa senão no cumprimento do dever.

Os imperativos categóricos são aqueles que mandam fazer algo incondicionalmente: “cumpra suas promessas”, “diga a verdade”, “socorra a quem está em perigo”, etc.. Tais imperativos não são ordens militares que nos mandem fazer algo “porque sim”, mas estão a serviço da preservação e da promoção daquilo que percebemos como valor absoluto: as pessoas, incluindo a si mesmo.

Os imperativos categóricos mandam realizar uma ação de modo universal e incondicionado, e sua forma lógica corresponde ao esquema: “você deve ou não deve fazer X”, diferentemente dos imperativos hipotéticos – que têm a forma “se você quer Y, então deve fazer X”,

A razão que justifica esses comandos é a própria humanidade do sujeito ao qual obrigam, ou seja, devemos ou não devemos fazer algo porque é próprio dos seres humanos fazê-lo ou não.

- Agir de acordo com as orientações que estabelecem, porém, só por medo do que dirão ou para não ser castigado supõe “rebaixar a humanidade de nossa pessoa” e agir de modo meramente “legal”, mas não moral, pois a verdadeira moralidade supõe um verdadeiro respeito pelos valores que estão implícitos na obediência aos imperativos categóricos.

Naturalmente, agir contra tais imperativos é totalmente imoral, ainda que possa nos levar ao prazer ou à felicidade, já que as condutas que eles recomendam ou proíbem são as que a razão considera próprias ou impróprias de seres humanos.

Como a razão pode nos ajudar a descobrir quais são os verdadeiros imperativos categóricos e assim distingui-los dos que apenas parecem sê-lo?

Kant adverte que os imperativos morais se acham já presentes na vida cotidiana, não são uma invenção dos filósofos.

- A missão da ética é descobrir as características formais que tais imperativos devem possuir para que percebamos neles a forma da razão e que, portanto, são normas morais.

- Kant propõe para descobrir essas características formais um procedimento que expõe mediante o que denomina “as formulações do imperativo categórico”.

De acordo com esse procedimento, cada vez que desejarmos saber se uma máxima pode ser considerada uma “lei moral”, teremos de nos perguntar se reúne as seguintes características, próprias da razão:

1) Universalidade: “aja apenas de acordo com uma máxima que você possa querer, ao mesmo tempo, que se torne lei universal”.

- Será lei moral aquela que, a meu ver, todos deveríamos cumprir.

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2) Referir-se a seres que são fins em si mesmos: “aja de tal modo que você trate a humanidade, tanto em sua pessoa como na de qualquer outro, sempre como um fim ao mesmo tempo e nunca apenas como um meio”.

- Será lei moral a que obrigue respeitar os seres que têm um valor absoluto (são valiosos em si e não para outra coisa) e que são fins em si mesmos, e não simples meios. Os únicos seres que podemos considerar que são fins em si são os seres racionais, pois só eles mostram a dignidade de seres livres.

3) Valor como norma para uma legislação universal em um reino dos fins: “Aja por máximas de um membro legislador universal em um possível reino dos fins”.

- Para que uma máxima seja lei moral, é preciso que possa vigorar como lei em um reino futuro em que todos os seres racionais, chegarão realmente a se tratar uns aos outros como fins e nunca como meios.

Ao obedecer a imperativos morais, uma pessoa não só mostra o respeito que outros merecem, mas também o respeito e a estima por si mesma.

- A chave dos comandos morais autênticos é que podem ser pensados como se fossem leis universalmente cumpridas sem que isso implique nenhuma incoerência.

- Ao obedecer tais comandos, estamos obedecendo a nós mesmos, uma vez que não se trata de comandos impostos a partir de fora, mas reconhecidos em consciência por nós próprios.

A liberdade como autonomia:

- A capacidade de que cada um possa chegar a se orientar pelas normas que sua própria consciência reconhece como universais, é a razão pela qual reconhecemos os seres humanos um valor absoluto que não reconhecemos às outras coisas que existem no mundo, e por isso as pessoas não têm preço, mas dignidade.

Para Kant, a liberdade como possibilidade de decidir por si mesmo é a qualidade humana mais surpreendente.

- Por causa dela, o ser humano já não pode ser considerado uma coisa a mais, um objeto intercambiável por outros objetos, mas deve ser visto como o protagonista de sua própria vida, de modo que precisará ser tratado como alguém, e não como algo, como um fim, e não como um meio, como uma pessoa, e não como um objeto.

Kant em um momento histórico em que a física newtoniana parece demonstrar que no mundo físico não há lugar para a liberdade: no universo tudo funciona de uma maneira mecânica, de acordo com leis eternas que regem inexoravelmente todos os fenômenos, incluindo os que afetam a vida humana.

Kant – se pergunta – como podemos ter certeza de que realmente possuímos essa qualidade tão surpreendente que é chamamos de liberdade?

A resposta é que a afirmação da liberdade é um postulado da razão, uma suposição que não procede da ciência, mas é perfeitamente compatível com o que ela nos

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ensina. Kant dedica sua obra Crítica da Razão Pura à demonstração dessa compatibilidade.

- Temos de supor que realmente somos capazes de decidir por nós mesmos, seguindo as diretrizes de nossa própria razão, apesar das pressões que exercem sobre nós os instintos biológicos, as forças sociais e os condicionamentos de todos os tipos.

- Cada pessoa deve ter a possibilidade de exercer sua própria soberania racional sobre seus próprios atos, pois do contrário não seriam necessárias as convicções morais, já que nem sequer poderíamos tentar segui-las.

Se pensamos como seres que temos certa capacidade de decisão, então é lógico que precisamos nos guiar por algumas normas e certos critérios para agir, e por isso os adotamos.

A existência de orientações morais leva-nos ao conhecimento da liberdade, ao passo que a existência da liberdade é razão de ser das próprias orientações morais.

Kant afirma que o bem próprio da moral consiste em chegar a ter uma boa vontade, ou seja, uma disposição permanente para conduzir a própria vida obedecendo a imperativos categóricos, pois são os únicos que nos garantem uma verdadeira liberdade diante dos próprios medos, dos instintos e de qualquer outro fato alheio à própria autodeterminação pela razão.

“Compreenderemos melhor o que significa o conceito de boa vontade se tomamos consciência de que as pessoas podem ser muito úteis e competentes profissionalmente e ao mesmo tempo más moralmente. Quando agimos movidos por interesse, benefício próprio, vaidade, etc., não estamos obedecendo ao imperativo da razão pratica, mas cedendo terreno ao instinto; em contrapartida, pode-se ser boa pessoa e ignorante, incompetente, pouco educada etc, uma vez que a bondade moral não reside na competência profissional, nem no título acadêmico, nem, em geral, nas características que se costumam considerar úteis, mas apenas na boa vontade de quem age com respeito à dignidade das pessoas.

Naturalmente, isso não significa que alguém que descuida voluntariamente de sua formação cultural e técnica ou de seus modos deva ser considerado uma boa pessoa, pois esse descuido iria de encontro ao imperativo racional de acrescentar o respeito por si mesmo e pelos demais”.

“Boa vontade” é a de quem deseja cumprir o dever moral por respeito a seu próprio compromisso com a dignidade das pessoas.

A celebre expressão kantiana de que é preciso cumprir “o dever pelo dever”, significa que “o moral é agir de acordo com os ditames da minha própria consciência, pois se trata de respeitar minha decisão de proteger a dignidade humana”.

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Para Kant, o bem moral não reside, na felicidade, como havia afirmado a maioria das éticas tradicionais, mas em conduzir-se pela autonomia, em construir corretamente a própria vida.

Para Kant, o bem moral não é o bem supremo: este só pode ser entendido como a união entre o bem moral e a felicidade que aspiramos por natureza.

- Mas a razão humana não pode nos oferecer nenhuma garantia de que alguma vez possamos alcançar esse bem supremo: nesse ponto, a única coisa que a razão pode fazer é nos remeter à fé religiosa.

“Dessa maneira, a lei moral, pelo conceito de supremo bem, como objeto e fim da razão prática, leva à religião, ou seja, aos conhecimentos de todos os deveres como comandos divinos, não como sanções, isto é, ordens arbitrárias e por si mesmo contingentes de uma vontade estranha, mas como leis essenciais de toda vontade livre por si mesma, que, no entanto, devem ser consideradas comando do ser supremo, porque não podemos esperar o supremo bem (...) mais que de uma vontade moralmente perfeita (santa e boa), e ao mesmo tempo todo-poderosa, e, por conseguinte, mediante uma concordância com essa vontade” (Crítica da razão pratica, liv 2, cap II, par. V.).

A razão não leva necessariamente à incredulidade religiosa, mas também pouco a uma demonstração científica da existência de Deus.

A razão leva é a afirmar a necessidade de estar abertos à esperança de que Deus exista, isto é, a afirmar a existência de Deus como outro postulado da razão, e não como uma certeza absoluta.

A solução de Kant equivale a dizer que não é possível demonstrar racionalmente que há um ser onipotente que pode garantir a felicidade dos que se tornem dignos dela, mas que a razão não se opõe em nada a essa possibilidade, e sim, ao contrário, a exige como mais uma das condições que proporcionam coerência à moralidade em seu conjunto. Porque se Deus existir, poderá tornar-se realidade e o bem supremo de que as pessoas boas alcancem a felicidade que merecem, mesmo que para tanto seja necessário um terceiro postulado da razão: a imortalidade da alma.

Mas, enquanto não chega a outra vida, já nesta é possível ir transformando a vida individual e social de maneira que todos sejamos cada vez mais pessoas melhores; para tanto Kant afirma a necessidade de constituir na história uma “comunidade ética” ou uma “sociedade justa”.

Desse modo, a ética kantiana aponta em última instância para uma progressiva reforma política que deve levar nosso mundo a superar o pior dos males – a guerra – com a justa instauração de uma “paz perpétua” para todos os povos da terra.

3. A ética material dos valores

A ética material dos valores iniciada por Max Scheler, início do século XX, contrasta com a ética kantiana.

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Scheler, em O formalismo na ética e A ética material dos valores, se propõe a superar o que considera errôneo da proposta kantiana mediante uma teoria alternativa que aproveita as potencialidades do método fenomenológico, iniciado por Edmund Husserl.

Segundo Scheler, Kant incorreu no mesmo erro que os filósofos empiristas, erro que consiste, em afirmar a existência de apenas dois tipos de faculdades no ser humano: a razão, que proporciona a priori só formas nos âmbitos teórico e prático e, por isso, atinge universalidade e incondicionalidade; e a sensibilidade, que é capaz de conhecimentos particulares e condicionados, isto é, de conteúdos, mas sempre a posteriori.

- Tais pressupostos forçaram Kant a se apoiar na razão pois a moral demanda universalidade e incondicionalidade, isto é, apriorismo.

Max Scheler afirma que, além da razão e da sensibilidade, o espírito humano é dotado de uma “intuição emocional”, que realiza atos que não são dependentes do pensamento puro racional nem da sensibilidade subjetiva, mas que alcançam o estatuto de conhecimento a priori.

- Portanto, pode ser abandonada a identificação do a priori com a racionalidade e do material com a sensibilidade, pois preferir, odiar, estimar, amar etc., não são atos sensíveis nem racionais, mas emocionais, que nos proporcionam a priori conteúdos materiais não-sensíveis.

Não parece muito adequado à natureza dos valores perguntar o que são, pois os valores não são, mas valem ou pretendem valer.

- Ao afirmar que não são, não se deseja dizer que são ficções inventadas pelos seres humanos, mas que não podem ser entendidos como coisas ou maneiras de ser das coisas.

- Também não é correto identificar os valores com o agradável, nem com o desejável ou desejado, nem com o útil; com relação ao primeiro, algo nos agrada porque se nos apresenta como valioso e não o contrário.

- Quanto a sua identificação com o desejado ou com o desejável, ou com ambos ao mesmo tempo, é também incorreta, pois o desejo é um ato sentimento e apetitivo variável em sua intensidade, ao passo que o valioso é reconhecido sempre como tal, sem oscilações no que se refere a essa qualidade.

- No que se refere a sua identificação com o útil, é preciso dizer que é igualmente errônea, pois, embora haja valores úteis, estes são um tipo, mas não esgotam o termo e, desde logo, não é a eles que nos referimos no âmbito da ética.

Os valores são qualidades dotadas de conteúdo, independentes tanto de nossos estados de espírito subjetivos como das coisas, as quais são denominadas “bens” precisamente por ser portadoras de tais qualidades, e precisam de um sujeito dotado de intuição emocional que as capte.

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- Não é o sujeito que cria o valor presente em um objeto, nem o valor depende do objeto que o sustenta.

Em torno dos valores girarão os outros elementos da teoria ética: o bem e o dever.

Na teoria de Scheler afirma-se uma ciência pura dos valores, uma axiologia pura, que se sustenta em três princípios:

1) Todos os valores são negativos ou positivos.

2) Valor e dever são relacionados, pois a captação de um valor não realizado é acompanhada pelo dever de realizá-lo.

3) Nossa preferência por um valor e não por outro verifica-se porque nossa intuição emocional capta os valores já hierarquizados. A vontade de realizar um valor moral superior em vez de um inferior constitui o bem moral, e seu contrário é o mal. Não existem valores especificamente morais.

Esse modelo ético foi seguido e ampliado por pensadores como Nicoli Hartmann, Hans Reiner, Dietrich von HildeBrand e Ortega y Gasset, que chamou a intuição moral de “estimativa” e inclui os valores morais na hierarquia objetiva, diferentemente de Scheler.

4. O Utilitarismo

O utilitarismo constitui uma forma renovada de hedonismo clássico, mas agora aparece no mundo moderno graças a autores anglo-saxões e adota um caráter social ausente no clássico.

O utilitarismo pode ser considerado hedonista porque afirma que o que impele os homens a agir é a busca do prazer, mas considera que todos temos alguns sentimentos sociais, entre os quais se destaca o da simpatia, que nos levam a perceber que os outros também desejam alcançar tal prazer.

O objetivo da moral é atingir a máxima felicidade, ou seja, o maior prazer para o maior número de ser vivos.

- Portanto, diante de qualquer escolha, atuará corretamente do ponto de vista moral aquele que optar pela ação que proporcione “a maior felicidade ao maior número”.

Esse princípio da moralidade é, ao mesmo tempo, o critério de decidir racionalmente. Em sua aplicação à vida em sociedade, esse princípio esteve e continua a estar na origem do desenvolvimento da economia do bem-estar e de muitas melhorias sociais.

Foi um importante tratadista do Direito Penal, Cesari Beccaria, que em seu livro Dos delitos e das penas (1764) formulou pela primeira vez o princípio da “máxima felicidade possível para o maior número possível de pessoas”, mas fundamentalmente Jeremy Bentham (1748-1832), John S. Mill (1806-1876) e Henry Sigdwick (1838-1900) são considerados clássicos do utilitarismo.

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No século XX ele continuou a fazer parte do pensamento ético em pensadores como Urmson, Smart, Brandt, Lyons e nas chamadas “teorias econômicas da democracia”.

A) Jeremy Bentham

Jeremy Bentham expôs uma “aritmética dos prazeres”, que se apoia em dois princípios:

1) O prazer pode ser medido, porque todos os prazeres são qualitativamente iguais. A partir de critérios de intensidade, duração, proximidade e segurança, é possível calcular a maior quantidade de prazer;

2) Diferentes pessoas podem comparar seus prazeres entre si para conseguir um máximo total de prazer.

B) J. S, Mill

J. S, Mill rejeita esses princípios e afirma que os prazeres não se diferenciam quantitativa e sim qualitativamente, de modo que há prazeres inferiores e superiores. Só as pessoas que experimentarem prazeres de ambos os tipos estão legitimadas para proceder a sua qualificação, e essas pessoas sempre mostram sua preferência pelos prazeres intelectuais e morais.

É o que leva Mill a concluir que “é melhor ser um Sócrates insatisfeito que um porco satisfeito”. A seu ver, é evidente que os seres humanos, para ser felizes, precisam de mais variedade e qualidade de bens que o resto dos animais.

A forma como Mill concebe o utilitarismo foi qualificada de “idealista”, uma vez que supervaloriza os sentimentos sociais como fonte de prazer a ponto de garantir que, nas infelizes condições de nosso mundo, a ética utilitarista pode convencer uma pessoa da obrigação moral de renunciar a sua felicidade individual em favor da

felicidade comum. Nas últimas décadas, entre os adeptos do utilitarismo sobressaiu

uma importante distinção ente duas versões da filosofia moral:

1) O utilitarismo do ato, que exige julgar a moralidade das ações caso a caso, atendendo às consequências previsíveis de cada alternativa;

2) O utilitarismo da regra, que recomenda ajustar nossas ações às regras habituais, já consideradas morais pela comprovada utilidade geral de suas consequências. Desse modo, poupamos energias e aproveitamos a experiência vivida.

5. As Éticas do Movimento Socialista

Entendemos por “socialismo” toda uma tradição de pensamento político que fundamenta suas propostas de reforma na prioridade que seus autores outorgam à realização de certos valores morais, particularmente a justiça social.

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Desse modo, é possível falar de “éticas socialistas” na medida em que as teorias políticas dessa tradição costumam trazer consigo alguns pressupostos éticos muito concretos.

Embora as teorias socialistas tenham nascido propriamente no século XIX, na época em que o movimento operário lutava para sair da miséria, o certo é que tais teorias contam com importantes procedentes ao longo de toda a história de nossa cultura.

Nesse sentido, seria preciso citar, entre outras contribuições, a dos autores de utopias, isto é, descrições de sociedades imaginárias nas quais a vida social e econômica se organizou de maneira muito diferente da que de fato ocorre nas sociedades existentes. O Renascimento é a época de maior florescimento desses relatos utópicos que logo teriam notável influência no pensamento ético e político posterior: T. Morus (Utopia), Bacon (Nova Atlântida), Campanella (Cidade do Sol) são alguns dos principais expoentes dessa corrente.

5.1. Socialismo Utópico e Anarquismo

a) Socialismo utópico

No início do século XIX, os fundadores do chamado socialismo utópico (Saint-Simon, Owen e Fourier) denunciam a penosa experiência de abuso a que se encontra submetida a classe operaria nos países nos quais está em curso a revolução industrial. Em consequência, esses autores apelam para a consciência moral de todas as pessoas implicadas e propõem reformas profundas na maneira de organizar a economia, a política e a educação.

Entendem que uma sociedade próspera e justa precisa aproveitar os avanços da técnica moderna e ao mesmo tempo eliminar as desigualdades econômicas que permitem que alguns poucos vivam na opulência à custa de que a maioria viva na miséria.

Insistem na necessidade de abolir, ou ao menos restringir radicalmente, a propriedade privada dos meios de produção.

Não acreditam que uma rebelião violenta dos trabalhadores seja o caminho para alcançar a nova sociedade: reivindicam o diálogo, o testemunho moral dado por experiências justas que eles mesmos promoveram (cooperativas, fábricas-modelo, os “falanstérios” de Fourier etc.) e sobretudo a necessidade de uma educação cuidadosa que inculque nas novas gerações as virtudes necessárias para a solidariedade.

b) Socialismo libertário ou anarquismo

Na segunda metade do século XIX e princípios do século XX situam-se os clássicos do socialismo libertário ou anarquismo (Proudhon, Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Abade de Santillán, etc.). Para eles a reflexão ética é, antes de tudo, uma proposta de realização da justiça, mas está só resultará de uma mudança profunda das pessoas e das estruturas sociais, com especial atenção para a abolição do Estado.

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Afirmam que a sociedade justa precisa abolir para sempre todo tipo de opressão (submissão a um governo e a alguns poderes que impedem que os seres humanos sejam donos de suas próprias vidas) e de exploração (apropriação injusta por parte do capitalista dos benefícios produzidos pelo trabalhador).

Identificam a justiça com um modelo de sociedade solidário, autogestionário e federalista, que só poderá se tornar realidade mediante a luta organizada dos trabalhadores empreendida pelos próprios trabalhadores.

Em suma, não parece fora do propósito afirmar que tanto o socialismo utópico como o anarquismo supõem uma certa radicalização dos ideais morais do Iluminismo (liberdade, igualdade, solidariedade), que por sua vez se fundamentam nas propostas morais da tradição judaico-cristã.

Sob esse ponto de vista, as diferentes versões desse tipo de ética podem ser interpretadas como outras tentativas de busca das mediações políticas e econômicas necessárias para realizar aqueles valores morais com toda a extensão e toda a profundidade que for possível.

5.2. Marx e o marxismo

Um dos críticos do marxismo, Karl Popper, afirmava:

“Embora O Capital seja principalmente, na verdade, um tratado de ética social, essas ideias éticas nunca se apresentam como tais. Elas são expressas apenas indiretamente, mas nem por isso com menos força, pois os passos intermediários se mostram evidentes. A meu ver, Marx evitou formular uma teoria moral explicita porque não gostava de sermões. (...) Para ele, os princípios de humanidade e decência eram algo que não podia ser questionados e deviam ser considerados ponto pacifico (...). Atacou aos moralistas porque viu neles os defensores servis de uma ordem social cuja imoralidade sentia intensamente”.

Podemos dizer que Marx não quis fazer uma ética, no entanto, o melhor legado da filosofia marxista talvez consista precisamente em constituir uma provocação moral em prol da justiça e da construção de uma utopia na qual todos os seres humanos cheguem a se sentir livres da dominação.

O saber marxista não pretende ser sabedoria moral, mas ciência da história que exclui qualquer tipo de juízos de valor.

- Não há nela separação entre o que é (objeto da ciência) e o que deve ser (objeto da moral): as leis ou tendências da história, descobertas pela ciência marxista, mostra que a utopia vai realizar-se graças ao desenvolvimento das forças produtivas e às contradições internas do sistema capitalista.

O marxismo como doutrina ética oferece uma explicação e uma crítica das morais do passado, ao mesmo tempo que se põe em evidência as bases teóricas e práticas de uma nova moral.

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Os fundamentos da teoria marxista da moral se encontram nas tentativas de Marx de recuperar também o homem concreto que se tinha transformado numa série de abstrações: em Hegel (como predicado da Idéia), em Stiner (como eu absoluto ou único) e em Feuerbach (como homem em geral).

Segundo Marx, o homem real é, em unidade indissolúvel, um ser espiritual e sensível natural e propriamente humano, teórico e prático, objetivo e subjetivo.

O homem é práxis: define-se como um ser produtor, transformador, criador; mediante o seu trabalho transforma a natureza externa, nela se plasma e, ao mesmo tempo, cria um mundo à sua medida, isto é, a medida de sua natureza humana. Esta objetivação do homem no mundo externo, pela qual produz um mundo de objeto úteis, corresponde à natureza de ser produtor, criador, que também se manifesta na arte e em outras atividades.

O homem é um ser social: Só ele produz, produzindo ao mesmo tempo determinadas relações sociais (relações de produção) sobre a s quais se elevam as demais relações humanas, sem excluir as que constituem a superestrutura ideológica da qual faz parte a moral.

O homem é um ser histórico: As várias relações que contrai uma determinada época constituem uma unidade ou formação econômico-social que muda historicamente sob o impulso de suas contradições internas e, particularmente, quando chega ao seu amadurecimento a contradição entre o desenvolvimento das forças produtoras e das relações de produção. Mudando a base econômica, muda também a superestrutura ideológica e a moral.

A história do homem (como história da produção material e da produção espiritual nas quais o homem produz a si mesmo) apresenta-se como um processo objetivo e inevitável, mas não fatal. São os homens que fazem a sua própria história, seja qual for o grau de consciência com a qual a realizam e de sua participação consciente nela.

Mas, em cada época histórica, o agente principal da mudança é a classe ou as classes cujos interesses coincidem com a marcha ascendente do movimento histórico.

Destas premissas, deduzem-se as seguintes teses fundamentais para a ética:

1) A moral, como toda forma de superestrutura ideológica, cumpre uma função social; a de sancionar as relações e condições de existência de acordo com os interesses da classe dominante. Nas sociedades divididas em classes antagônicas, a moral tem caráter de classe.

2) Até hoje existiram diferentes morais de classe, e inclusive numa mesma sociedade podem coexistir várias morais. Já que a cada classe corresponde uma moral partícular.

- Por isto, enquanto não se verifiquem as condições reais de uma moral universal, válida para toda a sociedade, não pode existir um sistema moral válido para todos os tempos e para todas as sociedades.

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- As tentativas de construir semelhante sistema no passado, ou de apresentar-se com tal universalidade, visavam a expressar uma forma universal interesses particulares.

3) a moral de cada sociedade, ou de cada classe, tem um caráter relativo, mas na medida em que nela ocorrem, junto com os seus elementos caducos, elementos vivos; as morais particulares se integram num processo de conquista de uma moral verdadeiramente humana e universal.

- A moral proletária é a moral de uma classe que está destinada historicamente a abolir a si mesma como classe, para ceder lugar a uma sociedade verdadeiramente humana; por isto, prepara também a passagem a uma moral universalmente humana.

4) A história está sujeita a uma necessidade objetiva, e as morais surgem nesse processo histórico necessário, o qual determina, por sua vez. A aparição delas. Os homens necessitam da moral como necessitam da produção; a necessidade da moral se explica pela função social que ela cumpre, de acordo com a estrutura social existente

5) Uma nova moral (que deixe de ser a expressão das relações sociais alienadas) torna-se necessária para regular as relações dos indivíduos, tanto em vista da transformação da velha sociedade, como em vista de garantir a unidade e a harmonia entres os membros da nova sociedade socialista.

- Dado que tanto a transformação da antiga ordem social como a construção e a conservação da nova exigem a participação consciente dos homens, a moral (com as novas virtudes) se transforma numa necessidade.

6) A necessidade da moral na transformação radical da sociedade não significa cair num moralismo (característico do socialismo utópico, que deseja esta transformação mediante uma via moral, apelando para os princípios de justiça ou para sentimentos morais).

- De fato, uma vez que se toma consciência de que o homem é o ser supremo para o homem, e de que este está humilhado e abandonado, a transformação das relações sócias, que o retém neste estado, converte-se para ele num imperativo categórico. Tal imperativo, certamente, não teria sentido se essa transformação ou restauração da dignidade humana fosse um processo automático e fatal.

- Portanto, a possibilidade de que a história tome outro rumo; se o homem não atua conscientemente como seu sujeito, coloca-lhe um problema moral.

7) O homem deve intervir na transformação da sociedade porque, sem a sua intervenção prática e consciente, pode verificar-se uma possibilidade que Marx entreviu a possibilidade de um retorno à barbárie, ou que o homem não possa subsistir como tal.

- Mas, por outro lado, toda tentativa de reduzir essa participação ao cumprimento de um imperativo moral ou de um ideal a margem das condições e possibilidades reais somente transformaria a moral naquilo que Marx chamou de “a impotência da ação”.

Texto compilado e disponibilizado: CORTINA, Adela e MARTINEZ Emilio Ética. S.Paulo : Loyola 2005, 66-80

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2.3. Éticas da Era da linguagem

1. Emotivismo

Desde finais do século XIX, assistimos a uma mudança no ponto de vista da reflexão filosófica: a chamada virada “linguística”, para fazer da linguagem seu principal centro do interesse.

G. E. Moore, em sua obra Principia Ethica (1903), é o primeiro pensador que se faz eco dessa virada no terreno da ética.

Enfrenta a tarefa de esclarecer as questões fundamentais da ética analisando a linguagem moral, questões que se centram todas elas em torno do significado do termo “bom”.

Moore empreendeu essa tarefa afirmando que só é possível apreender o bom por meio da intuição, uma vez que é uma noção indefinível, por ser simples e não pode resolver-se em outras mais simples que ela. Ao negar a possibilidade de definição do termo “bom”, negou também que ele possa ser conhecido por demonstração, o que lhe valeu a qualificação de intuicionista.

Essa posição apresenta, em princípio, duas dificuldades:

a) não explica o fato da argumentação moral, que continua a ocorrer não obstante todo intuicionismo ético,

b) não explica a razão pela qual os termos morais nos impelem a agir.

E aqui entrou em cena o emotivismo do século XX, como resposta às dificuldades mencionadas por parte da filosofia analítica.

O emotivismo, defendido por A. Ayer e Ch. L. Stevenson, afirma que os “enunciados” morais são apenas aparentes, pois a presença de um termo moral em uma proposição não acrescenta nenhum significado comprovável, mas é expressão da aprovação ou desaprovação de quem a formula.

Esses pseudo-enunciados têm dupla função:

a) expressar emoções subjetivas ou sentimentos e

b) influenciar os interlocutores com a pretensão de que adotem nossa atitude.

Na opinião de Stevenson, os juízos morais não pretendem descrever situações, mas provocar atitudes.

Se rejeitamos, por exemplo, o consumo de drogas, e afirmamos “o consumo de drogas é moralmente indefensável”, não fazemos mais que manifestar nosso sentimento de rejeição, e pretendemos influenciar os que nos escutam para que também o rejeitem.

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O emotivismo está muito difundido na atualidade; no entanto, observam-se nele duas graves insuficiências:

a) é incapaz de justificar o significado de alguns termos morais;

b) o fato da argumentação em matéria ética, insuficiência, esta última, que compartilha com o intuicionismo.

No que diz respeito à primeira insuficiência (é incapaz de justificar o significado de alguns termos morais), quando afirmamos “X é justo”, o predicado “justo” não manifesta uma noção subjetiva, nem relativa ao grupo, mas expressa a exigência de que todo ser humano o considere assim.

Quanto à segunda, (o fato da argumentação em matéria ética), ao argumentar por que consideramos algo justo, não só tentamos fazer com que os outros também o considerem justo, mas julgamos ter razões suficientes para convencer qualquer interlocutor racional.

Argumentar para tomar uma decisão ponderada não é o mesmo que tentar provocar psicologicamente uma atitude em outras pessoas, como acontece no caso da propaganda; com ela não se pretende dialogar com o interlocutor porque se suspeite que possa trazer razões que valham a pena, mas ganhar nossa causa mediante técnicas psicológicas, ou seja, não nos interessa em si mesma, com como meio para alcançar nossos fins.

Se a linguagem moral se subtraísse inteiramente a critérios intersubjetivos, não poderíamos manter mais que diálogos estratégicos, destinados a usar interlocutores como meios e não a considerá-los fins em si mesmos; a comunicação não seria possível, mas só a manipulação.

No entanto, muitos de nossos juízos morais pretendem ter universalidade intersubjetiva, e sua utilização para manipular constitui uma desnaturalização de tais juízos.

2. Prescritivismo

Iniciado por R, M, Hare em sua obra A linguagem da Moral (1952), o prescritivismo afirma, diante do emotivismo, que alguns termos do âmbito moral têm a pretensão de validade universal, afirmação que o torna herdeiro da ética kantiana

Para Hare a linguagem moral é uma linguagem valorativa, da qual interessa saber não tanto o que com ela se consegue, mas com o que fazemos quando a usamos, dada a diferença dessa linguagem com relação à propaganda.

A primeira característica da linguagem valorativa é que prescreve a conduta, a orienta aconselhando ou mandando, mas sempre com base em razões, que, em princípio, se originam nas características do assunto que se julga e que podem ser expressas por meio da linguagem descritiva.

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Para explicar por que algo é bom, é preciso descrever as características que o tornam apreciável e que sintonizam com o paradigma que se tem dele, de modo que se apresente como recomendável.

- Essa característica dos enunciados valorativos, de poder ser conectados com os descritivos, denomina-se superveniência, e para realizar essa conexão é preciso saber quais são os critérios dos interlocutores para considerar algo bom.

Os enunciados morais possuem outra característica que os diferencia de outros enunciados valorativos: o fato de serem universalizáveis, o que significa duas coisas:

1) Se se considera que algo é “bom”, tal predicado deve ser atribuído a tudo aquilo que tenha suas mesmas características, simplesmente por consistência lógica;

2) a razão que justifica a obrigação que alguém tem de fazer algo por considerá-lo bom é a razão que fundamenta, também, essa obrigação, ao menos em seus aspectos relevantes, para todas as pessoas que se encontrem em circunstancias parecidas, o que já nos leva à universalização do comando.

Depreende-se do mesmo modo que a inconsistência é uma falta lógica, a parcialidade é um defeito moral, pelo qual todo juízo moral suporá o reconhecimento do princípio de imparcialidade.

Hare expressa uma convicção defendida por grande número de eticistas universalistas: a imparcialidade é a perspectiva devida ao enunciar juízos morais, pois enunciar os deveres a partir do ponto de vista individual nos situa fora da objetividade e nos coloca na imoralidade, já que o “ponto de vista moral” e a obtenção da objetividade coincidem com a imparcialidade.

Portanto, nos juízos morais aparecem termos dotados da capacidade de exigir universalmente, como é o caso do “justo” e “bom”, embora o façam de maneira distinta, pois o “justo” exige o que deve ser feito em cada caso sob o ponto de vista da imparcialidade, ao passo que o “bom” se refere a diversas formas de vida, que podem ser boas, mas não exigíveis universalmente; daí se deduz que só é universalmente exigível o que é justo.

3. O formalismo dialógico: éticas procedimentais

Sócrates iniciou no Ocidente um modo de proceder no âmbito prático que perdurou ao longo de toda a história da ética e se expressa na atualidade, entre outros movimentos, no formalismo dialógico ou procedimental.

Continuadores do pensamento kantiano, os procedimentalistas afirmam que a tarefa da ética não é outra que a dimensão universalizável do fenômeno moral, dimensão que coincide com as normas acerca do que é justo, e não do que é bom.

Estamos diante de um modelo ético deontológico (dever).

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Os procedimentalistas , diferentemente de Kant, pensam que a comprovação da correção das normas por uma pessoa é insuficiente, e propõem que essa comprovação seja empreendida por todos os envolvidos pela norma em questão seguindo procedimentos racionais.

A questão que se apresenta imediatamente é sobre tais procedimentos, e houve duas respostas principais:

1) A “justiça como imparcialidade”, proposta por J. Rawls, a partir da qual se tentam fixar os princípios morais básicos mediante um raciocínio desenvolvido em um situação ideal de

negação denominada “posição origi 2) A ética do discurso de K. O. Apel e J. Habermas que

propõe, como procedimento para verificar a correção moral das normas, perguntar-se se tal norma seria aceitável para todos os envolvidos por ela, situados em uma possível “situação ideal de fala”, diálogo.

A) John Rawls: a justiça como imparcialidade

Rawls em Uma teoria da Justiça, sua famosa obra de 1971, esse pensador norte-americano, propõe entender os princípios morais básicos como se fossem produto de um hipotético acordo unânime entre pessoas iguais, racionais e livres que se achassem em uma situação muito especial, na qual não pudessem se deixar levar por interesses particulares e, ao mesmo tempo, dispusessem de toda a informação de caráter geral que fosse indispensável para adotar princípios de justiça adaptados às condições peculiares que a vida humana assume.

Rawls chama essa situação imaginária de “a posição original” e concebida por ele como uma forma gráfica, dramatizada, de expressar um raciocínio cujas premissas últimas são as convicções básicas que todos compartilhamos acerca das condições ideais que deveriam ser atendidas por uma negociação cuja finalidade fosse estabelecer alguns princípios morais fundamentais para reger a convivência e a cooperação mútua em uma sociedade moderna.

Tais convicções básicas (“juízos ponderados em equilíbrio reflexivo”) configuram uma espécie de “senso comum” em questões morais (recusa de todo tipo de discriminação em razão de sexo, raça, ideologia, etc., igualdade perante a lei, rejeição dos abusos e da violência injustificada etc.), que Rawls considera sólido e confiável, embora passível de revisão.

A noção de “equilíbrio reflexivo” significa que os juízos ponderados são aqueles que melhor expressam nosso sentido de justiça por se tratar de juízos que emitimos nas condições mais favoráveis possíveis, e que a partir deles obtemos alguns princípios de justiça cujas implicações, em certos casos, podem levar-nos a rever de novo nossos juízos e princípios que culmina em algum tipo de equilíbrio.

Na escolha dos princípios de justiça na posição original ninguém deveria aproveitar-se de sua força física, ou de seu talento, ou de seu dinheiro, ou de qualquer outra

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vantagem natural ou social para conseguir fazer que os princípios adotados pudessem favorecer determinados indivíduos em detrimento dos demais.

- Para que os interesses particulares dos “negociadores” não desvirtuem a situação da negociação afastando-a do ideal de imparcialidade.

Rawls propõe que imaginemos essas pessoas como se fossem envolvidas por um “véu de ignorância” que as impede de conhecer suas próprias características naturais e sociais, desconhecem qual será seu estado físico, seu sexo, seu grau de inteligência e de cultura, os traços psicológicos que terão, o tipo de família que a sorte lhes destinará, as crenças que irão manter. O projeto de vida que traçarão, etc..

“Esta condição expressa um dos juízos ponderados de que falamos antes: a convicção de que não seria justo dar um tratamento especial aos portadores de determinadas características naturais ou sociais. Imaginemos que vamos inventar um novo esporte chamado “futebol” e que os encarregados de redigir as regras do jogo fossem pessoas que cedessem à tentação da parcialidade a partir do conhecimento de suas próprias características e habilidades, de modo que alguns propõem que se um jogador tem mais de um metro e noventa de altura seus gols valerão dois pontos, ao passo que os que tiverem menor altura valerão apenas um ponto; alguns exigem que as equipes só poderão ser formadas por pessoas que possuam algum título de nobreza; outros pedem que os gols marcados pelas equipes de alta renda deverão valer três vezes mais que os marcados por equipes de economia modesta; outros podem pedir que não seja permitido que pessoas de certa raça participem das partidas oficiais etc..

Parece bastante evidente que esse monte de despropósitos já não é aceitável para pessoas de uma época como a nossa, já que o nível de consciência moral alcançado nos orienta para a rejeição racional de tais exigências como contrárias a nosso sentido de imparcialidade”.

Juntamente com o “véu da ignorância”, Rawls estipula que as partes contratantes na situação original não são capazes de dominar ou de coibir uns aos outros, e que ao mesmo tempo conhecem perfeitamente as condições gerais em que se desenvolve a vida humana (moderada escassez de bens, que ocorre a cooperação, mas também a competição entre as pessoas etc.) e dispõem também de amplos conhecimentos gerais sobre economia, sociologia, psicologia, etc.

Rawls considera que, dadas todas essas estipulações, as partes contratantes concordarão com a adoção destes princípios de justiça:

a) Toda pessoa tem igual direito a um esquema plenamente adequado de liberdade básicas iguais, que seja compatível com um esquema similar de liberdades para todos; e neste esquema de liberdade políticas iguais, e só elas, precisam ter valor equitativo garantido;

b) as desigualdades econômicas e sociais têm que satisfazer duas condições:

- primeira devem estar associadas a cargos e posições abertos a todos em condições de uma equitativa igualdade de oportunidades;

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- segunda, devem obter o máximo benefício dos membros menos privilegiados da sociedade.

O primeiro princípio (princípio de liberdade iguais) deve ter prioridade sobre o segundo (as desigualdades econômicas e sociais têm que satisfazer duas condições), e a primeira parte do segundo (princípio de justa igualdade de oportunidades) deve ter prioridade sobre a segunda parte dele (princípio de diferença), no sentido de que não seria moralmente correto suprimir nem reduzir as garantias expressas por (a) para fomentar (b), nem suprimir nem reduzir a primeira parte de (b) para fomentar sua segunda parte.

Expressa-se nessa norma de prioridades dizendo que os princípios estão colocados em uma ordem léxica. Mas por que estabeleceriam precisamente esses princípios, e precisamente nessa ordem de prioridade? Porque, por se tratar de uma situação de incerteza – devida ao véu de ignorância – os contratantes se comportam racionalmente se garantem que, qualquer que seja sua sorte na obtenção de dons naturais e de posições sociais, poderão desfrutar de determinados bens primários (as liberdades e os direitos básicos, as oportunidades iguais para todos, e os recursos econômicos e culturais indispensáveis para conservar a própria autoestima) para poder levar a termo, ainda que minimamente, qualquer projeto de vida que queiram definir para si mesmos.

Em síntese, a ética rawlsiana concebe os conteúdos morais que habitualmente aceitamos nas modernas sociedades pluralistas e democráticas como as conclusões de um procedimento dialógico entre pessoas concebidas como seres racionais e autônomos à maneira kantiana.

B) A ética do discurso

Nascida na década de 1970, essa ética propõe encarnar na sociedade os valores de liberdade, justiça e solidariedade por meio do diálogo, como único procedimento capaz de respeitar a individualidade das pessoas e, ao mesmo tempo, sua inegável dimensão solidária, porque em um diálogo precisamos contar com pessoas, mas também com a relação que existe entre elas, a qual para ser humanas, deve ser justa.

Esse diálogo nos permitirá questionar as normas vigentes em uma sociedade e distinguir quais são moralmente válidas, porque acreditamos realmente que humanizam.

Não é qualquer forma de diálogo que nos levará a distinguir o socialmente vigente do moralmente válido, por isto a ética discursiva tentará apresentar o procedimento dialógico para alcançar essa meta, e mostrar como o diálogo deveria funcionar nos diferentes âmbitos da vida social.

Por isso, divide sua tarefa em duas partes, uma dedicada a fundamentação (à descoberta do princípio ético) e outra à aplicação deste à vida cotidiana.

Parte A: Fundamentação do princípio ético

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Se para Kant o ponto de partida da ética era o fato da consciência do dever, agora partimos também de um fato: as pessoas argumentam sobre normas e se interessam em averiguar quais são moralmente corretas.

Nós argumentamos sobre a insubmissão e a desobediência civil, sobre a distribuição da riqueza, sobre a violência e sobre um amplo arco de questões que têm repercussões morais, e nessa argumentação podemos adotar duas atitudes distintas:

1) discutir por discutir, sem nenhum desejo de averiguar se podemos chegar a nos entender;

2) a de levar o diálogo a sério, porque o problema nos preocupa e queremos saber se podemos nos entender.

A primeira atitude (discutir por discutir) converte o diálogo em um absurdo, a segunda (diálogo sério) faz que o diálogo tenha sentido, como uma busca cooperativa da justiça e da correção.

Se Kant tentava encontrar os pressupostos que tornam racional a consciência do imperativo, a ética discursiva se esforça em descobrir os pressupostos que tornam racional a argumentação, que fazem dela uma atividade dotada de sentido, e em sua busca chega a conclusões como as seguintes: qualquer pessoa que pretende argumentar seriamente sobre normas tem que pressupor:

1) Que todos os seres capazes de se comunicar são interlocutores válidos – ou seja, pessoas – e que, portanto, quando, se dialoga sobre normas que os afetam, seus interesses devem ser levados em conta e defendidos, se possível por eles mesmos.

- Excluir a priori do diálogo qualquer pessoa afetada pela norma desvirtua o pretenso diálogo e o converte em uma pantomima. Por isso as reuniões de cúpula internacionais ou as conversações locais nas quais não participem todos os afetados nem se levam em conta seus interesses não passam de pantomimas.

2) Que nem todo diálogo nos permite descobrir se uma norma é correta, mas só o que se atém a algumas regras determinadas, que permitem celebrá-lo em condições de simetria entre os interlocutores. Damos a esse diálogo o nome de “discurso”.

As regras do discurso são fundamentalmente as seguintes:

- Qualquer sujeito capaz de linguagem e de ação pode participar no discurso;

- Qualquer um pode problematizar qualquer afirmação;

- Qualquer um pode introduzir no discurso qualquer afirmação;

- Qualquer um pode expressar suas posições, seus desejos e suas necessidades;

- Não se pode impedir nenhum falante de fazer valer seus direitos, estabelecidos nas regras anteriores, mediante coação interna ou externa ao discurso (J. Habermas, consciência moral e ação comunicativa)

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3) Para comprovar, depois do discurso, se a norma é correta, é preciso se ater a dois princípios:

a) o princípio de universalização, que é uma reformulação dialógica do imperativo kantiano da universalidade, e afirma o seguinte:

- “Uma norma será válida quando todos os afetados por ela puderem aceitar livremente as conseqüências e os efeitos secundários que se seguirão, previsivelmente, de seu cumprimento geral para a satisfação dos interesses de cada um”.

b) o princípio da ética do discurso, segundo o qual “só podem pretender ter validade as normas que encontram (ou poderiam encontrar) aceitação por parte de todos os afetados, como participantes de um discurso prático”.

A norma só será declarada correta se todos os afetados por ela estiverem de acordo em dar-lhe seu consentimento, porque satisfaz não os interesses de um grupo ou de um indivíduo, mas interesses universalizáveis.

Com isso, o acordo ou o consenso a que chegarmos diferirá totalmente dos pactos estratégicos, das negociações.

- Porque em uma negociação os interlocutores se instrumentalizam reciprocamente para que cada um alcance suas metas individuais, ao passo que em um diálogo que se apreciam reciprocamente como interlocutores igualmente capacitados, e tratam de chegar a um acordo que satisfaça interesses universalizáveis.

A meta da negociação é o pacto de interesses particulares; a meta do diálogo, a satisfação de interesses universalizáveis, e por isso a racionalidade dos pactos é racionalidade instrumental, ao passo que racionalidade presente nos diálogos é comunicativa.

Parte B: ética aplicada

O discurso que acabamos de descrever é um discurso ideal, bem diferente dos diálogos reais, que costumam acontecer em condições de assimetria e coação, e nos quais os participantes não visam satisfazer interesse universalizáveis, e sim interesses individuais e de grupo.

No entanto, qualquer pessoa que argumenta seriamente sobre a correção de normas morais pressupõe que esse discurso ideal é possível e necessário, e por isso a situação ideal de fala a que nos referimos é uma idéia reguladora, ou seja, uma meta para nossos diálogos reais e um critério para criticá-los quando não se ajustam ao ideal.

É necessário, levar a sério, nas diferentes esferas da vida social, a idéia de que todas as pessoas são interlocutores válidos, que devem ser levadas em conta nas decisões que as afetam, de modo que possam participar delas mediante um diálogo celebrado nas condições o mais próximo possível da simetria, e que serão decisões moralmente corretas, não as que sejam tomadas por maioria, mas aquelas em que todos e cada

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um dos afetados estejam dispostos a dar seu consentimento, porque satisfazem a interesses universalizáveis.

Uma aplicação semelhante dá lugar à chamada “ética aplicada”, que hoje em dia cobre os seguintes âmbitos: bioética ou ética médica, ética da empresa, ética econômica, ética da informação, genÉtica, ética da ciência e da tecnologia, ética ecológica, ética da política e ética das profissões.

4. Comunitarismo Desde princípios dos anos 1980, o uso do termo “comunitarismo” difundiu-se entre os estudiosos da ética, especialmente no âmbito anglo-saxão.

Certos filósofos da moral e da política, como A. MacInture, Ch. Taylor, M. Sandel, M. Walzer e B. Baer são freqüentemente qualificados como comunitaristas por parte de outros estudiosos, sem que eles mesmo tenham aceito explicitamente semelhante qualificação.

São autores muito diferentes em vários aspectos, mas pode-se encontrar neles um certo “ar familiar” na medida em que todos elaboraram críticas ao individualismo contemporâneo e insistiram no valor dos vínculos comunitários como fonte da identidade pessoal.

Estamos diante de uma denominação genérica que abarca em seu seio autores muito heterogêneos, tanto no que diz respeito às fontes de inspiração (Aristóteles, Hegel, etc.) como na posição (conservadores, reformistas, radicais, etc.).

Em princípio, o comunitarismo ético contemporâneo constitui uma contraposição ao liberalismo, ou ao menos a certas variantes dele que produzem efeitos considerados indesejáveis: individualismo não-solidário, desapego afetivo, desvalorização dos laços interpessoais, perda de identidade cultural, etc..

Allen Buchanan resumiu as críticas comunitaristas ao pensamento liberal em cinco pontos:

1) Os liberais desvalorizam, negligenciam e boicotam os compromissos com a própria comunidade, comunidade que é um ingrediente insubstituível na vida boa dos seres humanos:

2) O liberalismo menospreza a vida política, pois contempla a associação política com um bem puramente instrumental, e por isso ignora a importância fundamental da participação da comunidade política para a vida boa das pessoas;

3) O pensamento liberal não dá conta da importância de algumas obrigações e de certos compromissos – aqueles que não são escolhidos ou contraídos explicitamente por um contrato ou por uma promessa -, tais como as obrigações familiares e as de apoio à própria comunidade ou ao próprio país.

4) O liberalismo pressupõe uma concepção defeituosa da pessoa, porque não é capaz de reconhecer que o sujeito humano está “instalado” nos compromissos e nos valores comunitários, que constituem parcialmente, e que não são objeto de nenhuma escolha;

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5) A filosofia liberal exalta erroneamente a virtude da justiça como “a primeira virtude das instituições sociais” e não se dá conta de que, no melhor dos casos, a justiça é uma virtude reparadora, só necessária em circunstâncias em que se perdeu a virtude mais elevada da comunidade.

Essas críticas que os comunitaristas fizeram às teorias liberais foram aceitas em grande medida pelos mais relevantes teóricos do liberalismo dos últimos anos, como J. Rawls e R. Dworkim. R. Rorty e J. Raz, entre outros.

De fato, a evolução interna do pensamento de alguns deles, particularmente de Rawls, geralmente considerado o paradigma do novo liberalismo ético. Não obstante, como assinalaram Mulhall e Swift, uma análise detalhada dos textos comunitaristas mostra que a maior parte das idéias que se rejeitam neles também seriam rejeitadas pela maioria dos liberais.

Michael Walzer considera que os argumentos críticos que esgrimem (discutir com pericia e sutileza) os autores considerados comunitaristas contra o liberalismo contemporâneo são, na verdade, argumentos recorrentes, que nãos deixam de estar em voga periodicamente para expressar o descontentamento que aparece nas sociedades liberais quando se alcança nelas certo grau de desarraigamento das pessoas em relação às comunidades familiares e locais.

- O comunitarismo não seria outra coisa senão um traço intermitente do próprio liberalismo, um sinal de alarme que se dispara de tempos em tempos para corrigir certas conseqüências indesejáveis que aparecem inevitavelmente na longa marcha da humanidade em busca de um mundo menos alienante.

Os comunistaristas expõem dois principais argumentos contra o liberalismo:

1º) Defende que a teoria política liberal representa a pratica social liberal, ou seja, consagra a teoria um modelo associal de sociedade, uma sociedade em que vivem indivíduos radicalmente isolados, egoístas, racionais, homens e mulheres protegidos e divididos por seus direitos inalienáveis que visam garantir seu próprio egoísmo.

- Esse argumento é repetido com diversas variantes por todos os comunitarismos contemporâneos.

2º) Sustenta que a teoria liberal desfigura a vida real.

- O mundo não é nem pode ser como os liberais dizem que é: homens e mulheres desvinculados de qualquer tipo de laço social, literalmente sem compromissos, cada um só é único inventor de sua própria vida, sem critérios nem padrões comuns para guiar a invenção.

- Não existem essas figuras míticas, cada um nasce de pais determinados; em seguida tem amigos, parentes, vizinhos, colegas de trabalho, correligionários e concidadãos; todos esses vínculos na verdade não são escolhidos, mas transmitidos e herdados; em conseqüência, os indivíduos reais são seres comunitários que nada têm a ver com a imagem que o liberalismo nos transmite deles.

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Para Walzer, ambos os argumentos são mutuamente inconsistentes, cada um deles é parcialmente correto.

O primeiro (modelo associal) é verdadeiro em boa medida em sociedades como as ocidentais, em que os indivíduos estão continuamente se separando uns dos outros, movendo-se de acordo com uma ou com várias das quatro mobilidades seguintes:

1) A mobilidade geográfica (nos mudamos com tanta freqüência que a comunidade de lugar se torna mais difícil, o desapego mais fácil);

2) A mobilidade social (a maioria dos filhos não estão na mesma situação social que tiveram os pais, com tudo o que isso implica de perda de costumes, normas e modos de vida);

3) A mobilidade de matrimonial (altíssimas taxas de separações, divórcios e novas núpcias, com suas conseqüências);

4) A mobilidade política (continuas mudanças no seguimento de lideres, partidos e ideologias políticas, com o conseqüente risco de instabilidade institucional).

Além disso, os efeitos atomizadores dessas quatro mobilidades seriam potencializadas outros fatores, como o avanço dos conhecimentos e desenvolvimento tecnológico.

O liberalismo seria o respaldo teórico e a justificação de todos esse contínuo movimento.

- Na visão liberal, as quatro mobilidades representam a consagração da liberdade e a busca da felicidade (privada ou pessoal).

- Concebido desse modo, o liberalismo é um credo genuinamente popular.

- Qualquer esforço para reduzir a mobilidade nas quatro áreas descritas exigiria uma repressão maciça e severa por parte do poder estatal.

Para o comunitarismo as mobilidades refletem um sentimento de perda dos vínculos comunais, e essa perda é real. As pessoas nem sempre deixam seu bairro ou sua cidade natal de um modo voluntário e feliz.

- Mover-se pode ser uma aventura pessoal em nossas mitologias culturais em vigor, mas freqüentemente constitui um trauma na vida real.

Na opinião de Walzer, o segundo argumento (que todos nós somos realmente, em última instância, seres comunitários) é verdadeiro, mas de significação incerta: os vínculos de lugar, de classe social ou de status, de família, e até as simpatias políticas, sobrevivem em certa medida às quatro mobilidades.

- Além disso, parece claro que essas mobilidades não nos afastam tanto uns dos outros de modo a impedir que nos falemos ou nos entendamos.

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A crítica comunitarista tende a esquecer que se trata de uma tradição liberal, que utiliza um vocabulário de direitos individuais (associação voluntária, pluralismo, tolerância, separação, privacidade, liberdade de expressão, oportunidades aberta aos talentos, etc.) que já consideramos ineludível.

Então, até que ponto tem sentido argumentar que o liberalismo nos impede de contrair ou de preservar os vínculos que nos mantêm unidos?

A resposta de Walzer é que tem sentido, sim, porque o liberalismo é uma doutrina estranha, que parece boicotar-se continuamente a si mesma, despreza suas próprias tradições e que produz em cada geração renovadas esperanças de uma liberdade absoluta, tanto na sociedade como na história, grande parte da teoria política liberal, desde Locke até Rawls, é um esforço para estabelecer e consolidar a doutrina e assim pôr fim à interminável liberação liberal.

Para Walzer, a correção comunitarista do liberalismo não pode trazer outra coisa (dado seu escasso caráter de alternativa global para os valores liberais) que um fortalecimento seletivo desses mesmos valores:

- uma vez que nenhum modelo de comunidade pré-liberal ou antiliberal possui o atrativo suficiente para aspirar a substituir esse mundo de indivíduos portadores de direitos, que se associam voluntariamente, que se expressam livremente etc.,

- seria bom que o corretivo comunitarista nos ensinasse a todos a ver-nos como seres sociais, como produtos históricos dos valores liberais e como constituídos em parte por esses mesmos valores.

A polêmica entre comunitaristas e liberais mostra a necessidade de se afastar de certos extremismos se se deseja fazer justiça à realidade da pessoas e aos projetos de libertação que elas mantém.

- Um extremo recusável seria constituído por certas versões do liberalismo que apresentam uma visão da pessoa como um ser concebível à margem de todo tipo de compromissos com a comunidade que a rodeia, como se fosse possível configurar uma identidade pessoal sem a solidariedade continuada dos que nos ajudam a crescer desde a mais tenra infância, proporcionando-nos toda a bagagem material e cultural de que se necessita para alcançar uma vida humana que mereça esse nome.

- O outro extremo igualmente detestável é constituído por dois de tipos de coletivismo:

a) Posições etnocêntricas que confundem o fato de que toda pessoa cresça em uma determinada comunidade concreta com o imperativo de servir incondicionalmente aos interesses de tal comunidade sob pena de perder todo tipo de identidade pessoal.

b) Posições coletivistas que consagram uma determinada visão excludente do mundo social e político como única alternativa ao malfadado “individualismo burguês”.

Tanto uns como outros simplificam excessivamente as coisas, ignorando aspectos fundamentais da vida humana.

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- Por um lado, se contraímos uma dívida de gratidão com as comunidades em que nascemos, também é certo que essa dívida não deve nos hipotecar a ponto de não podermos escolher racionalmente outras formas de identificação pessoal que possamos chegar a considerar mais adequadas.

- Por outro lado, se o conceito liberal, em alguns casos, pode dar lugar a certo tipo de individualismo desprovido de solidariedade, não parece que um coletivismo totalitário seja o melhor remédio para essa enfermidade.

Em síntese, podemos dizer que o comunitarismo contemporâneo ajuda-nos, em geral, a refletir sobre os riscos que traz consigo a aceitação acrítica da visão liberal da vida humana, mas não pretende uma total impugnação de tal visão, salvo naqueles autores cuja proposta alternativa cai no extremo oposto de propugnar uma aceitação acrítica das próprias comunidades em que se nasce.

Texto compilado e disponibilizado: CORTINA, Adela e MARTINEZ Emilio Ética. S.Paulo : Loyola 2005, 80-99.

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