Ética e estética | manoel de oliveira, público 20_09_2012

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PÚBLICO, QUI 20 SET 2012 | CULTURA | 25 Manoel de Oliveira chegou a São Bento para exclamar “E viva o cinema!” PEDRO CUNHA Ouviu a presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves, dizer da dificuldade de “escolher palavras para definir a arte, a perfeição”. Ou- viu-a: “E é de perfeição que aqui se fala”. Assunção Esteves dirigia-se ao cineasta Manoel de Oliveira, home- nageado ontem no Salão Nobre do Palácio de São Bento, na abertura da nova sessão legislativa. Oliveira não se alongou. Disse o essencial: “E viva o cinema!” Oliveira, 103 anos, entrou no salão apoiado na bengala e de braço da- do com Assunção Esteves. Ouviu-a quando referiu como estética e ética se unem nos seus filmes, preâmbulo para afirmar: “também a política se liga com a ética, como a estética se liga com a ética, com a diferença de a arte poder ser indiferente aos crí- ticos, mas a política não”. Perante cerca de 200 pessoas, onde se encontravam Eduardo Lou- renço, Maria Barroso, Pilar del Rio, Io Apoloni e Glória de Matos, o ex- ministro da Cultura Pedro Roseta, o secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas, ou Luís Miguel Cintra e Leonor Silveira, intimamente ligados ao cinema do homenageado, Oliveira tomaria da palavra e, frágil mas convicto, foi breve: “Neste tem- po de crise que atravessamos, econo- mizarei nas palavras para agradecer à Assembleia da República esta gran- de honra que me concedeu. Muito obrigado”. Ergueu depois a voz para esta frase simples que, para ele, será tudo: “E viva o cinema!” Ricardo Trêpa, actor e neto do Oli- veira, diria, citado pela Lusa, que a homenagem foi importante para o realizador, em convalescença da crise cardíaca que o levou a ser internado em Julho. “Dá-lhe força para conti- nuar a filmar.” Dificilmente haveria timing mais perfeito para a homena- gem, tendo em conta que nela se in- cluiu a exibição de O Gebo e a Sombra, que chega às salas a 11 de Outubro. Um filme sobre pobreza: “Resta saber se vimos a este mundo para sermos felizes”, questiona-se nele. Raul Brandão escreveu a peça te- atral O Gebo e a Sombra em 1923. Po- rém, como escreveu Vasco Câmara no PÚBLICO, citando Luís Miguel Cintra, de Brandão para Oliveira “uma peça sobre a pobreza passou a ser um filme ‘sobre o poder do di- nheiro’”, o que torna o filme “mais actual” do que o texto de Brandão. Bem a propósito, a Cinemateca Francesa, que exibe actualmente uma integral do cineasta, iniciada a 6 de Setembro, classifica-o como “autor de uma obra de uma moder- nidade radical”. Oliveira não esteve em Paris no início da retrospectiva e, um dia antes, não comparecera à sessão que apresentou O Gebo e a Sombra em Veneza. Esteve ontem em São Bento. Quarta-feira, no PÚ- BLICO, Assunção Esteves descrevia a iniciativa como “uma homenagem a Manoel de Oliveira, mas também ao cinema português”. Ninguém o sim- bolizará como o realizador nascido a 11 de Dezembro de 1908, treze anos após os Lumière apresentarem uma novidade chamada Cinematógrafo. Oliveira foi, como actor, compincha de Vasco Santana em A Canção de Lisboa, esteve sintonizado com as vanguardas em Douro Faina Flu- vial(1931), e foi, antes da actividade fulgurante mantida desde a década de 1970, cineasta popular no senti- do mais nobre do termo (falamos de Aniki Bóbó, de 1942, aquele que será o seu filme mais conhecido em Por- tugal). Obra que fez prosseguir a ce- lebração nas escadarias da AR, onde algumas dezenas seguiram os passos de Carlinhos pelas ruas do Porto. Em Maio, a Plataforma do Cine- ma tinha levado àquele mesmo lo- cal uma sessão que alertava para o perigo de o ver desaparecer num contexto de crise profunda. Ontem, viu-se ali um pequeno excerto, em forma de filme, de uma vida imensa que paira sobre o cinema português como figura tutelar. “Nestes tempos de crise” Manoel de Oliveira quis economizar nas palavras. As suas declarações foram breves. O verdadeiro discurso chegou depois, em O Gebo e a Sombra, o seu novo filme Homenagem Mário Lopes FOTÓGRAFO À homenagem no Salão Nobre do Palácio de São Bento seguiu-se a exibição de Aniki Bóbó nas escadarias do Parlamento

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Manoel Oliveira "referiu como estética e éticase unem nos seus filmes, preâmbulo para afirmar: “também a política se liga com a ética, como a estética se liga com a ética, com a diferença de a arte poder ser indiferente aos críticos, mas a política não”.

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PÚBLICO, QUI 20 SET 2012 | CULTURA | 25

Manoel de Oliveira chegou a São Bento para exclamar “E viva o cinema!”

PEDRO CUNHA

Ouviu a presidente da Assembleia da

República, Assunção Esteves, dizer

da difi culdade de “escolher palavras

para defi nir a arte, a perfeição”. Ou-

viu-a: “E é de perfeição que aqui se

fala”. Assunção Esteves dirigia-se ao

cineasta Manoel de Oliveira, home-

nageado ontem no Salão Nobre do

Palácio de São Bento, na abertura da

nova sessão legislativa. Oliveira não

se alongou. Disse o essencial: “E viva

o cinema!”

Oliveira, 103 anos, entrou no salão

apoiado na bengala e de braço da-

do com Assunção Esteves. Ouviu-a

quando referiu como estética e ética

se unem nos seus fi lmes, preâmbulo

para afi rmar: “também a política se

liga com a ética, como a estética se

liga com a ética, com a diferença de

a arte poder ser indiferente aos crí-

ticos, mas a política não”.

Perante cerca de 200 pessoas,

onde se encontravam Eduardo Lou-

renço, Maria Barroso, Pilar del Rio,

Io Apoloni e Glória de Matos, o ex-

ministro da Cultura Pedro Roseta,

o secretário de Estado da Cultura,

Francisco José Viegas, ou Luís Miguel

Cintra e Leonor Silveira, intimamente

ligados ao cinema do homenageado,

Oliveira tomaria da palavra e, frágil

mas convicto, foi breve: “Neste tem-

po de crise que atravessamos, econo-

mizarei nas palavras para agradecer

à Assembleia da República esta gran-

de honra que me concedeu. Muito

obrigado”. Ergueu depois a voz para

esta frase simples que, para ele, será

tudo: “E viva o cinema!”

Ricardo Trêpa, actor e neto do Oli-

veira, diria, citado pela Lusa, que a

homenagem foi importante para o

realizador, em convalescença da crise

cardíaca que o levou a ser internado

em Julho. “Dá-lhe força para conti-

nuar a fi lmar.” Difi cilmente haveria

timing mais perfeito para a homena-

gem, tendo em conta que nela se in-

cluiu a exibição de O Gebo e a Sombra,

que chega às salas a 11 de Outubro.

Um fi lme sobre pobreza: “Resta saber

se vimos a este mundo para sermos

felizes”, questiona-se nele.

Raul Brandão escreveu a peça te-

atral O Gebo e a Sombra em 1923. Po-

rém, como escreveu Vasco Câmara

no PÚBLICO, citando Luís Miguel

Cintra, de Brandão para Oliveira

“uma peça sobre a pobreza passou

a ser um fi lme ‘sobre o poder do di-

nheiro’”, o que torna o fi lme “mais

actual” do que o texto de Brandão.

Bem a propósito, a Cinemateca

Francesa, que exibe actualmente

uma integral do cineasta, iniciada

a 6 de Setembro, classifi ca-o como

“autor de uma obra de uma moder-

nidade radical”. Oliveira não esteve

em Paris no início da retrospectiva

e, um dia antes, não comparecera

à sessão que apresentou O Gebo e a

Sombra em Veneza. Esteve ontem

em São Bento. Quarta-feira, no PÚ-

BLICO, Assunção Esteves descrevia a

iniciativa como “uma homenagem a

Manoel de Oliveira, mas também ao

cinema português”. Ninguém o sim-

bolizará como o realizador nascido a

11 de Dezembro de 1908, treze anos

após os Lumière apresentarem uma

novidade chamada Cinematógrafo.

Oliveira foi, como actor, compincha

de Vasco Santana em A Canção de

Lisboa, esteve sintonizado com as

vanguardas em Douro Faina Flu-

vial(1931), e foi, antes da actividade

fulgurante mantida desde a década

de 1970, cineasta popular no senti-

do mais nobre do termo (falamos de

Aniki Bóbó, de 1942, aquele que será

o seu fi lme mais conhecido em Por-

tugal). Obra que fez prosseguir a ce-

lebração nas escadarias da AR, onde

algumas dezenas seguiram os passos

de Carlinhos pelas ruas do Porto.

Em Maio, a Plataforma do Cine-

ma tinha levado àquele mesmo lo-

cal uma sessão que alertava para o

perigo de o ver desaparecer num

contexto de crise profunda. Ontem,

viu-se ali um pequeno excerto, em

forma de fi lme, de uma vida imensa

que paira sobre o cinema português

como fi gura tutelar.

“Nestes tempos de crise” Manoel de Oliveira quis economizar nas palavras. As suas declarações foram breves. O verdadeiro discurso chegou depois, em O Gebo e a Sombra, o seu novo fi lme

HomenagemMário Lopes

FOTÓGRAFO

À homenagem no Salão Nobre do Palácio de São Bento seguiu-se a exibição de Aniki Bóbó nas escadarias do Parlamento