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TRANSCRIPT
Carlos Drummond de Andrade – Fazedor de homens
William Shakespeare – Coletânea escolhida
Giuseppe Guiaroni – A palavra querida
Manuel Bandeira – O inútil luar
Manuel Bandeira – Vou-me embora pra Pasárgada
Raquel de Queiroz – Telha de vidro
Giuseppe Guiaroni – A máquina de escrever
Giuseppe Guiaroni – Dia das mães
Carlos Drummond de Andrade - Resíduo
J. G. de Araújo Jorge – O verbo amar
J. G. de Araújo Jorge – Existo
Carlos Drummond de Andrade – Declaração em juízo
Vicente de Carvalho – Cair das folhas
Vicente de Carvalho – Velho Tema II
Álvares de Azevedo – Tristeza
Olegário Mariano – O enamorado das rosas
Olegário Mariano – As duas sombras
Mário de Sá Carneiro – Quase
Mário de Sá Carneiro - Dispersão
José Saramago – Não me peçam razões
Olavo Bilac - Remorso
Manoel Bandeira – Crepúsculo de Outono
J. G. de Araújo Jorge - Outono
Fernando Pessoa – Uma névoa de outono o ar raro vela
Cecília Meireles – Canção de Outono
Gregório de Matos – Coletânea escolhida – 9 (nove) poemas
Olavo Bilac – Velhas árvores
Jorge Luís Borges – El soneto Del vino
Pietro Gambore – Entre o céu e a terra
Henriqueta Lisboa – Coletânea escolhida
Nelson Mandela - Invictus
Emílio Moura - Canção
Cora Coralina – Não sei
Pablo Neruda – Três sonetos escolhidos
Fazedor de Homens
Todo homem é uma ilha... É bom ser uma ilha distante
tanto quanto é bom ser um homem.
Todo homem possui uma ponte pois é preciso sair da ilha, seguro.
A ponte de um homem é um braço estendido.
Todo homem é um mundo. O mundo roda no sistema egocêntrico
de suas realidades, pequenos alumbramentos,
medos e coragens.
E quando o homem encara o mundo e se depara - homem-mundo, mundo-homem,
volta à ilha: Todo homem ama sua ilha.
II
O homem faz o homem. E porque fez o homem, sem nem o
homem querer aufere direitos do homem. Diz a ele: Cresça!
E ele fica mais alto.
Diz ao homem: Trabalhe!
E ele usa o corpo. Diz ao homem: Viva! E ele respira e existe. Diz ao homem: Ame! E ele não sabe como.
Mas diz ao homem: Procrie! E ele faz homens.
Um dia ele morre.
Se a vida foi longa para viver - é curta para morrer -
porque o homem não fez, não escolheu, não pensou nada.
III
O que faz um homem diferente de outro homem é o que ele pensa.
O que o transforma, também, de um simples fazedor de homens,
num criador de homens.
Todo homem é uma vontade. E se deixa de ser vontade
teme a perda de sua posse. Todo homem é uma consciência.
Nela inclui o seu saber e a parte maior do não saber,
e se aceita o fato, é com ela que ele se entende.
Todo homem é seu corpo. E sabe dele em contraste com outro corpo,
tal é a sua medida. Como também, a medida de um homem é a sua carência:
porque é assim que ele se assume, porque é assim que ele se liberta.
Quanto mais ele precisa mais ele é maior. E dá.
Pede. Reivindica. Exige, quanto pode. Luta e sofre.
Todo homem quer deixar sua ilha.
Temeroso de ter que voltar um dia, entretanto, não destrói as pontes.
Enquanto isso, a ilha fica ali, só ilha. A ponte fica ali, só ponte.
E o homem fica ali, só homem.
Carlos Drummond de Andrade
Publicado no Jornal Última Hora (RJ) de 23/04/73
Título
Soneto 18 - Shakespeare
Devo igualar-te a um dia de verão? Mais afável e belo é o teu semblante: O vento esfolha Maio inda em botão,
Dura o termo estival um breve instante.
Muitas vezes a luz do céu calcina, Mas o áureo tom também perde a clareza:
De seu belo a beleza enfim declina, Ao léu ou pelas leis da Natureza.
Só teu verão eterno não se acaba Nem a posse de tua formosura;
De impor-te a sombra a Morte não se gaba Pois que esta estrofe eterna ao Tempo dura.
Enquanto houver viventes nesta lida, Há-de viver meu verso e te dar vida.
Se Nada Há de Novo
Se nada há de novo e tudo o que há já dantes era como agora é,
só ilusão a criação será: criar o já criado para quê?
Que alguém me mostre, sobre um livro antigo como quinhentas translações astrais, a tua imagem, na inscrição, no abrigo
do espírito em seus signos iniciais. Que eu saiba o que diria o velho mundo
deste milagre que é a tua forma; se te viram melhor, se me confundo,
se as translações seguem a mesma norma. Mas disto estou seguro: antigos textos
louvaram mais com bem menores pretextos.
William Shakespeare, in "Sonetos" Tradução de Carlos de Oliveira
A Noite não me Deu nenhum Sossego
Como voltar feliz ao meu trabalho
se a noite não me deu nenhum sossego?
A noite, o dia, cartas dum baralho
sempre trocadas neste jogo cego.
Eles dois, inimigos de mãos dadas,
me torturam, envolvem no seu cerco
de fadiga, de dúbias madrugadas:
e tu, quanto mais sofro mais te perco.
Digo ao dia que brilhas para ele,
que desfazes as nuvens do seu rosto;
digo à noite sem estrelas que és o mel
na sua pele escura: o oiro, o gosto.
Mas dia a dia alonga-se a jornada
e cada noite a noite é mais fechada.
William Shakespeare, in "Sonetos"
Tradução de Carlos de Oliveira
Meus Olhos Veem Melhor se os Vou Fechando
Meus olhos veem melhor se os vou fechando.
Viram coisas de dia e foi em vão,
mas quando durmo, em sonhos te fitando,
são escura luz que luz na escuridão.
Tu cuja sombra faz a sombra clara,
como em forma de sombras assombravas
ledo o claro dia em luz mais rara,
se em sombra a olhos sem visão brilhavas!
Que benção a meus olhos fora feita
vendo-te à viva luz do dia bem,
se a tua sombra em trevas imperfeita
a olhos sem visão no sono vem!
Vejo os dias quais noites não te vendo,
e as noites dias claros sonhos tendo.
William Shakespeare, in "Sonetos (43)"
Soneto 107
Medos, nem alma capaz de prever
Medos, nem alma capaz de prever
Os sonhos de porvir do mundo inteiro,
Podem o meu amor circunscrever,
Nem dar-lhe fado triste por certeiro.
A Lua seu eclipse superou,
Os agourentos de si podem rir,
A incerteza agora se firmou,
A paz proclama olivas no porvir.
Com o orvalho dos tempos refrescado
O meu amor a própria morte prende
E em meus versos vivo consagrado,
Enquanto as tribos mudas ela ofende.
Aqui encontrarás teu monumento,
E o bronze dos tiranos vai com o vento.
Soneto 54
Oh, como a beleza parece mais bela com o doce ornamento que a verdade produz!
A rosa tão bela, mas mais bela a julgamos Pelo doce aroma que nela seduz.
As rosas silvestres têm a cor tão profunda Quanto a tintura das rosas perfumadas,
Têm os mesmos espinhos e brincam tão vivamente Quando o sopro do verão expõe os botões velados;
Mas exibem-se apenas para si mesmas, Vivem esquecidas e murcham obscuras; Morrem sozinhas. As doces rosas, não;
De suas doces mortes surgem as mais doces essências.
e assim também a ti, a bela e adorável mocidade, Fenecido o frescor, revela em versos tua verdade.
Soneto 73
Em mim tu vês a época do estio
Em mim tu vês a época do estio
Na qual as folhas pendem, amarelas,
De ramos que se agitam contra o frio,
Coros onde cantaram aves belas.
Tu me vês no ocaso de um tal dia
Depois que o Sol no poente se enterra,
Quando depois que a noite o esvazia,
O outro eu da morte sela a terra.
Em mim tu vês o brilho da pira
Que nas cinzas de sua juventude
Como em leito de morte agora expira
Comido pelo que lhe deu saúde.
Visto isso, tens mais força para amar
E amar muito o que em breve vais deixar.
William Shakespeare
Resumo
William Shakespeare foi um poeta e dramaturgo inglês, tido como o maior escritor do idioma inglês e o mais
influente dramaturgo do mundo. É chamado frequentemente de poeta nacional da Inglaterra e de "Bardo do
Avon" (ou simplesmente The Bard, "O Bardo").
Nasceu em 26 de abril de 1564 em Stratford-upon-Avon onde também foi criado.
Foi um poeta e dramaturgo respeitado em sua própria época, mas sua reputação só viria a atingir o nível
em que se encontra hoje no século XIX. Os românticos, especialmente, aclamaram a genialidade de
Shakespeare, e os vitorianos idolatraram-no como um herói, com uma reverência que George Bernard
Shaw chamava de "bardolatria". No século XX sua obra foi adotada e redescoberta repetidamente por
novos movimentos, tanto na academia e quanto na performance. Suas peças permanecem extremamente
populares hoje em dia , e são estudadas, encenadas e reinterpretadas constantemente, em diversos
contextos culturais e políticos, por todo o mundo.
William Shakespeare morreu em 23 de Abril de 1616, mesmo dia de seu aniversário.É bem conhecida a
coincidência das datas de morte de dois dos grandes escritores da humanidade, Miguel de Cervantes e
William Shakespeare, ambos com data de falecimento em 23 de Abril de 1616. Porém, é importante notar
que o Calendário gregoriano já era utilizado na Espanha desde o século XVI, enquanto que na Inglaterra
sua adoção somente ocorreu em 1751. Daí, em realidade, Miguel de Cervantes faleceu dez dias antes de
William Shakespeare.
Título
A palavra Querida...
Giuseppe Ghiaronni
A palavra "querida", está para a garganta, como o mel para a boca e a mulher para o olhar. Quando um santo do céu, se dirige a uma santa,
de face imaculada e expressão comovida, é assim, penso, que ele a deve chamar:
oh!querida!
Querida é um substantivo espiritual, é um nome. É um fio emocional de um ouro cristalino,
que se estende e que atrai um destino e um destino... Que alinhava e que enleia uma vida e uma vida.
Não é somente um modo de tratar, é um nome,
Assim como Izabel, Marina, Margarida... No entanto é mais que isso, é um nome divino,
que em si define um sonho, um sentimento e um bem.
Querida, não é só uma palavra, é alguém, alguém que tem a vida em nossa própria vida. Querida quer dizer eu mesmo e mais alguém...
oh! querida!
Querida é um adjetivo estranhamente feito de carinho, ciúme, adoração, ternura.
Ninguém dirá "querida" a uma mulher impura,
pois parte da expressão fica em ecos no peito daquele que a usou...
A expressão querida não é bem para ser falada, nem ouvida. É para que uma alma pense e outra a sinta.
Sempre será maldita uma mulher que minta, em silêncio atendendo a alguém que assim a chama,
se não se ouviu chamar, antes que ele falasse, por um tic no peito e um carinho na face,
se não é profundamente a querida que o ama!
Que cruel, que infiel esta mulher fingida, que se deixa chamar de querida e, não ama,
oh!querida!
Querida, quer dizer a que eu amo e estremeço, a que é a minha amante, a minha amiga e irmã,
conheço-a mais que a mim e a tudo que conheço, e com ela eu esqueço o ontem e o amanhã.
A palavra querida é a articulação do primeiro vagido instintivo e inconsciente.
É Deus na nossa boca e o céu na nossa frente,
é ter mundos no olhar, ter estrelas na mão, é ser um fio d´água e uma constelação...
é partilhar da grande Vida Universal, é viver, mas viver como anjo e animal, é encontrar o espaço e resumir a vida, é trilhar confiante uma senda perdida é ser quase divino é ser quase brutal,
é ter uma utopia entre a sala e o quintal é prender-te, sentir-te integrada, diluída em meus braços, em mim,
infiltrada em meus poros, depois que eu derrubei os gigantes e os toros da floresta do mundo e a transpus triunfante!
É te chamar "querida" e ver o teu semblante
transtornado de luz, uma luz comovida...
É chegares o ouvido ao meu peito anelante e ouvir meu coração dizer de instante em instante:
Oh! querida... querida...
Título
Manuel Bandeira
O inútil luar
É noite. A Lua, ardente e terna, Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna Melancolia...
Dormem as sombras na alameda
Ao longo do ermo Piabanha. E dele um ruído vem de seda
Que se amarfanha. . .
No largo, sob os jambolanos, Procuro a sombra embalsamada.
(Noite, consolo dos humanos! Sombra sagrada!)
Um velho senta-se ao meu lado. Medita. Há no seu rosto uma ânsia . . .
Talvez se lembre aqui, coitado! De sua infância.
Ei-lo que saca de um papel . . . Dobra-o direito, ajusta as pontas,
E pensativo, a olhar o anel, Faz umas contas . . .
Com outro moço que se cala, Fala um de compleição raquítica. Presto atenção ao que ele fala:
— É de política.
Adiante uma senhora magra, Em ampla charpa que a modela, Lembra uma estátua de Tanagra.
E, junto dela,
Outra a entretém, a conversar: — "Mamãe não avisou se vinha.
Se ela vier, mando matar Uma galinha."
E embalde a Lua, ardente e terna, Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna Melancolia . . .
Título
Manuel Bandeira
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente
Da nora que eu nunca tive
E como farei ginástica Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo É outra civilização
Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático Tem alcalóide à vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der
Vontade de me matar — Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Título
Telha de Vidro
Por Rachel de Queiroz
Quando a moça da cidade chegou veio morar na fazenda,
na casa velha... Tão velha!
Quem fez aquela casa foi o bisavô... Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura! mergulhada na tristura
de sua treva e de sua única portinha...
A moça não disse nada, mas mandou buscar na cidade
uma telha de vidro...
Queria que ficasse iluminada sua camarinha sem claridade...
Agora,
o quarto onde ela mora é o quarto mais alegre da fazenda,
tão claro que, ao meio dia, aparece uma renda de arabesco de sol nos ladrilhos
vermelhos, que — coitados — tão velhos
só hoje é que conhecem a luz doa dia...
A luz branca e fria também se mete às vezes pelo clarão
da telha milagrosa...
Ou alguma estrela audaciosa
careteia no espelho onde a moça se penteia.
Que linda camarinha! Era tão feia!
— Você me disse um dia que sua vida era toda escuridão
cinzenta, fria,
sem um luar, sem um clarão... Por que você na experimenta?
A moça foi tão vem sucedida...
Ponha uma telha de vidro em sua vida!
Título
Giuseppe Ghiaroni
A Máquina de Escrever
Mãe, se eu morrer de um repentino mal, vende meus bens a bem dos meus credores:
a fantasia de festivas cores que usei no derradeiro Carnaval.
Vende ese rádio que ganhei de prêmio por um concurso num jornal do povo, e aquele terno novo, ou quase novo,
com poucas manchas de café boêmio.
Vende também meus óculos antigos que me davam uns ares inocentes.
Já não precisarei de duas lentes para enxergar os corações amigos.
Vende , além das gravatas, do chapéu, meus sapatos rangentes. Sem ruído
é mais provável que eu alcance o Céu e logre penetrar despercebido.
Vende meu dente de ouro. O Paraíso requer apenas a expressão do olhar.
Já não precisarei do meu sorriso para um outro sorriso me enganar.
Vende meus olhos a um brechó qualquer que os guarde numa loja poeirenta, reluzindo na sombra pardacenta,
refletindo um semblante de mulher.
Vende tudo, ao findar a minha sorte, libertando minha alma pensativa
para ninguém chorar a minha morte sem realmente desejar que eu viva.
Pode vender meu próprio leito e roupa para pagar àqueles a quem devo.
Sim, vende tudo, minha mãe, mas poupa esta caduca máquina em que escrevo.
Mas poupa a minha amiga de horas mortas, de teclas bambas,tique-taque incerto. De ano em ano, manda-a ao conserto e unta de azeite as suas peças tortas.
Vende todas as grandes pequenezas que eram meu humílimo tesouro,
mas não! ainda que ofereçam ouro, não venda o meu filtro de tristezas!
Quanta vez esta máquina afugenta meus fantasmas da dúvida e do mal,
ela que é minha rude ferramenta, o meu doce instrumento musical.
Bate rangendo, numa espécie de asma, mas cada vez que bate é um grão de trigo. Quando eu morrer, quem a levar consigo
há de levar consigo o meu fantasma.
Pois será para ela uma tortura sentir nas bambas eclas solitárias um bando de dez unhas usurárias
a datilografar uma fatura.
Deixa-a morrer também quando eu morrer; deixa-a calar numa quietude extrema,
à espera do meu último poema que as palavras não dão para fazer.
Conserva-a, minha mãe, no velho lar, conservando os meus íntimos instantes,
e, nas noites de lua, não te espantes quando as teclas baterem devagar.
Título
Giuseppe Ghiaroni
Dia das Mães
Mãe! eu volto a te ver na antiga sala
onde uma noite te deixei sem fala dizendo adeus como quem vai morrer.
E me viste sumir pela neblina, porque a sina das mães é esta sina: amar, cuidar, criar, depois... perder.
Perder o filho é como achar a morte. Perder o filho quando, grande e forte,
já podia ampará-la e compensá-la. Mas nesse instante uma mulher bonita, sorrindo, o rouba, e a velha mãe aflita
ainda se volta para abençoá-la
Assim parti, e nos abençoaste. Fui esquecer o bem que me ensinaste,
fui para o mundo me deseducar. E tu ficaste num silêncio frio,
olhando o leito que eu deixei vazio, cantando uma cantiga de ninar.
Hoje volto coberto de poeira e te encontro quietinha na cadeira,
a cabeça pendida sobre o peito. Quero beijar-te a fronte, e não me atrevo.
Quero acordar-te, mas não sei se devo, não sinto que me caiba este direito.
O direito de dar-te este desgosto, de te mostrar nas rugas do meu rosto
toda a miséria que me aconteceu. E quando vires e expressão horrível da minha máscara irreconhecível,
minha voz rouca murmurar: ''Sou eu!"
Eu bebi na taberna dos cretinos, eu brandi o punhal dos assassinos, eu andei pelo braço dos canalhas.
Eu fui jogral em todas as comédias, eu fui vilão em todas as tragédias,
eu fui covarde em todas as batalhas.
Eu te esqueci: as mães são esquecidas. Vivi a vida, vivi muitas vidas,
e só agora, quando chego ao fim, traído pela última esperança,
e só agora quando a dor me alcança lembro quem nunca se esqueceu de mim.
Não! Eu devo voltar, ser esquecido. Mas que foi? De repente ouço um ruído;
a cadeira rangeu; é tarde agora! Minha mãe se levanta abrindo os braços
e, me envolvendo num milhão de abraços, rendendo graças, diz: "Meu filho!", e chora.
E chora e treme como fala e ri, e parece que Deus entrou aqui,
em vez de o último dos condenados. E o seu pranto rolando em minha face quase é como se o Céu me perdoasse,
me limpasse de todos os pecados.
Mãe! Nos teus braços eu me transfiguro. Lembro que fui criança, que fui puro.
Sim, tenho mãe! E esta ventura é tanta que eu compreendo o que significa: o filho é pobre, mas a mãe é rica!
O filho é homem, mas a mãe é santa!
Santa que eu fiz envelhecer sofrendo, mas que me beija como agradecendo
toda a dor que por mim lhe foi causada. Dos mundos onde andei nada te trouxe,
mas tu me olhas num olhar tão doce que , nada tendo, não te falta nada.
Dia das Mães! É o dia da bondade
maior que todo o mal da humanidade
purificada num amor fecundo.
Por mais que o homem seja um mesquinho,
enquanto a Mãe cantar junto a um bercinho
cantará a esperança para o mundo!
Título
Resíduo
Carlos Drummond de Andrade
De tudo ficou um pouco Do meu medo. Do teu asco. Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco Ficou um pouco de luz
captada no chapéu. Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco (muito pouco).
Pouco ficou deste pó de que teu branco sapato se cobriu. Ficaram poucas roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco. Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada, de duas folhas de grama,
do maço - vazio - de cigarros, ficou um pouco.
Pois de tudo fica um pouco. Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha. De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem. Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana, dragão partido, flor branca,
ficou um pouco de ruga na vossa testa,
retrato. Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria um pouco de mim? no trem que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal, um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures? na consoante?
no poço? Um pouco fica oscilando na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam, um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco. Não muito: de uma torneira pinga esta gota absurda, meio sal e meio álcool, salta esta perna de rã, este vidro de relógio
partido em mil esperanças, este pescoço de cisne, este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco: de mim; de ti; de Abelardo. Cabelo na minha manga, de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas, simplório arroto, gemido de víscera inconformada, e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula de revólver... de aspirina. De tudo ficou um pouco. E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.
Mas de tudo, terrível, fica um pouco, e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.
Título
O verbo amar JG de Araujo Jorge
Te amei: era de longe que te olhava e de longe me olhavas vagamente...
Ah, quanta coisa nesse tempo a gente sente, que a alma da gente faz escrava.
Te amava: como inquieto adolescente, tremendo ao te enlaçar, e te enlaçava
adivinhando esse mistério ardente do mundo, em cada beijo que te dava.
Te amo: e ao te amar assim vou conjugando
os tempos todos desse amor, enquanto segue a vida, vivendo, e eu, vou te amando...
Te amar: é mais que em verbo é a minha lei,
e é por ti que o repito no meu canto: te amei, te amava, te amo e te amarei!
(Poema de JG de Araujo Jorge do livro -Bazar de Ritmos- 1935)
Título
"Existo" JG de Araujo Jorge
Seu amor me fez real, e me deu sentido da alegria de ser, total, completamente...
Fez de um pobre poeta em sonhos consumido alguém que tem nas mãos um mundo! e sofre, e sente!
Seu amor foi a vida a irromper da semente de um velho coração cansado e ressequido, o verde que voltou ao ramo nu, pendente, a imprevisível flor, o fruto inconcebido...
Seu amor foi milagre a cantar pelo chão como a água, no agreste, a acenar ao viajante
a esperança, o prazer, a vida, a salvação...
Passo a existir, quem sabe ? apenas porque amei... E ela existe talvez, a partir deste instante
porque ela e o seu amor... em versos transformei!
Título
Declaração em juízo
Carlos Drummond de Andrade
Peço desculpas de ser o sobrevivente.
Não por longo tempo, é claro, tranquilizem-se.
Mas devo confessar, reconhecer que sou sobrevivente.
Se é triste/cômico ficar sentado na plateia
quando o espetáculo acabou e fecha-se o teatro,
mais triste/grotesco é permanecer no palco, ator único, sem papel,
quando o público já virou as costas e somente baratas circulam no farelo.
Reparem: não tenho culpa. Não fiz nada para ser
sobrevivente. Não roguei aos altos poderes
que me conservassem tanto tempo. Não matei nenhum dos companheiros.
Se não saí violentamente, se me deixei ficar ficar ficar, foi sem segunda intenção.
Largaram-me aqui, eis tudo, e lá se foram todos, um a um, sem prevenir, sem me acenar,
sem dizer adeus, todos se foram. (houve os que requintaram no silêncio).
Não me queixo. Nem os censuro. Decerto não houve propósito
de me deixar entregue a mim mesmo, perplexo, desentranhado.
Não cuidaram que um sobraria, foi isso. Tornei, tornaram-me
sobre - vivente. Se admiram de eu estar vivo, esclareço: estou sobrevivo. viver, propriamente, não vivi
senão em projeto. Adiamento. Calendário do ano próximo. jamais percebi estar vivendo
quando em volta viviam quantos! Quanto. Alguma vez os invejei.
Outras, sentia pena de tanta vida que se exauria no viver enquanto o não viver,
o sobreviver duravam, perdurando. e me punha a um canto, à espera,
contraditória e simplesmente, de chegar a hora de também viver.
Não chegou. Digo que não. Tudo foram ensaios,
testes, ilustrações. a verdadeira vida sorria longe, indecifrável. Desisti.
Recolhi-me cada vez mais, concha à concha. Agora sou sobrevivente.
Sobrevivente incomoda mais que fantasma. Sei a mim mesmo
incomodo-me. O reflexo é uma prova feroz.
Por mais que me esconda, projeto-me, devolvo-me, provoco-me. não adianta ameaçar-me.
Volto sempre, todas as manhãs me volto, viravolto
com exatidão de carteiro que distribui más notícias. O dia todo é dia
de verificar o meu fenômeno. Estou onde não estão
minhas raízes, meu caminho onde sobrei,
insistente, reiterado, aflitivo sobrevivente
da vida que ainda não vivi, juro por deus e o diabo, não vivi.
Tudo confessado, que pena me será aplicada, ou perdão? Desconfio nada pode ser feito
a meu favor ou contra, nem há técnica de fazer, desfazer
o infeito infazível. Se sou sobrevivente, sou sobrevivente. Cumpre reconhecer-me esta qualidade
que finalmente o é. Sou o único, entendem?
De um grupo muito antigo de que não há memória nas calçadas
e nos vídeos. Único a permanecer, a dormir,
a jantar, a urinar, a tropeçar, até mesmo a sorrir
em rápidas ocasiões, mas garanto que sorrio, como neste momento estou sorrindo
de ser - delícia? - sobrevivente. É esperar apenas, está bem?
Que passe o tempo de sobrevivência e tudo se resolve sem escândalo
ante a justiça indiferente. Acabo de notar, e sem surpresa:
não me ouvem no sentido de entender, nem importa que um sobrevivente
venha contar seu caso, defender-se ou acusar-se, é tudo a mesma
nenhuma coisa, e branca.
Fonte: Blog Café Brasil 01.11.2011
Título
CAIR DAS FOLHAS
Vicente de Carvalho*
“Deixa-me, fonte”! Dizia A flôr, tonta de terror.
E a fonte, sonora e fria, Cantava, levando a flor.
“Deixa-me, deixa-me, fonte!””
Dizia a flor a chorar:
“Eu fui nascida no monte... “Não me leves para o mar”.
E a fonte, 29olo2929 e fria,
Com um sussurro zombador, Por sobre a areia corria,
Corria levando a flôr.
“Ai, balanços do meu galho, “Balanços do berço meu;
“Ai, claras gotas de orvalho “Caídas do azul do céu!...”
Chorava a flor, e gemia,
Branca, branca de terror,
E a fonte sonora e fria, Rolava, levando a flor.
“Adeus, sombra das ramadas,
“Cantigas do rouxinol; “Ai, festa das madrugadas,
“Doçuras do pôr do sol;
“Caricia das brizas leves “Que abrem rasgões de luar...
“Fonte, fonte, não me leves, “Não me leves para o mar!...”
*
As correntezas da vida
E os restos do meu amor Resvalam numa descida
Como a da fonte e da flor...
POEMAS E CANÇÕES (SEGUNDA EDIÇÃO)
Porto: Livraria Chardon, 1909 250 p. 18 cmx 12 cm.
(Conservamos a ortografia antiga, original)
*Vicente Augusto de Carvalho, o “Poeta do Mar”, nasceu em Santos (SP),
em 05/04/1866, lá faleceu no dia 22/04/1924. Poeta, contista, advogado, jornalista, político e magistrado. Foi grande artista do verso, da fase criadora
do Parnasianismo. Ocupou a Cadeira 29 da Academia Brasileira de Letras, tendo sido eleito em 1º de maio de 1909, na sucessão de Artur Azevedo.
Título
Velho Tema II
Vicente de Carvalho
Eu cantarei de amor tão fortemente Com tal celeuma e com tamanhos brados
Que afinal teus ouvidos, dominados, Hão de à força escutar quanto eu sustente.
Quero que meu amor se te apresente
- Não andrajoso e mendigando agrados, Mas tal como é: risonho e sem cuidados,
Muito de altivo, um tanto de insolente.
Nem ele mais a desejar se atreve
Do que merece: eu te amo, e o meu desejo Apenas cobra um bem que se me deve.
Clamo, e não gemo; avanço, e não rastejo;
E vou de olhos enxutos e alma leve À galharda conquista do teu beijo.
Título
TRISTEZA
Álvares de Azevedo*
Eu deixo a vida como deixa o tédio Do deserto o poente caminheiro;
Como as horas de um longo pesadelo Que se desfaz ao dobre de um sineiro;
Como um desterro de minha alma errante, Onde o fogo insensato a consumia...
Só levo uma saudade — é desses tempos Que amorosa ilusão embelecia.
Só levo uma saudade — é dessas sombras Que eu sentia velar nas noites minhas...
De ti, ó minha mãe, pobre coitada, Que por minha tristeza te definhas!
Descansem o meu leito solitário Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz — e escrevam nela: Foi poeta, sonhou e amou na vida...
(Do livro: “Antologia Nacional”, Livraria Francisco Alves, 1963, RJ)
*Álvares de Azevedo (1831-1852) foi um poeta, escritor e contista, da segunda geração
romântica brasileira. Suas poesias retratam o seu mundo interior. É conhecido como “o
poeta da dúvida”.A figura da mulher aparece em seus versos, ora como um anjo, ora
como um ser fatal, mas sempre inacessível. Álvares de Azevedo é Patrono da cadeira nº
2, da Academia Brasileira de Letras.
Título
O enamorado das rosas
Olegário Mariano*
Toda manhã, ao sol, cabelo ao vento,
Ouvindo a água da fonte que murmura,
Rego as minhas roseiras com ternura,
Que água lhes dando, dou-lhes força e alento.
Cada um tem um suave movimento
Quando a chamar minha atenção procura
E mal desabrochada na espessura,
Manda-me um gesto de agradecimento.
Se cultivei amores às mancheias,
Culpa não cabe às minhas mãos piedosas
Que eles passassem para mãos alheias.
Hoje, esquecendo ingratidões mesquinhas,
Alimento a ilusão de que essas rosas,
Ao menos essas rosas, sejam minhas.
*Olegário Mariano Carneiro da Cunha, poeta, diplomata, deputado federal e constituinte, nasceu no Poço da
Panela, arrabalde da cidade do Recife, estado de Pernambuco, no dia 24 de março, no mesmo ano da
Proclamação da República, em 1889. Segundo os biógrafos da Academia Brasileira de Letras, da qual foi
membro, “sua poesia lírica é simples, correntia, de fundo romântico, pertinente à fase do sincretismo
parnasiano-simbolista de transição para o Modernismo. Ficou conhecido como o “poeta das cigarras”, por
causa de um de seus temas prediletos e considerado o último poeta romântico brasileiro.
Título
As duas sombras
Olegário Mariano
Na encruzilhada silenciosa do Destino,
Quando as estrelas se multiplicam,
Duas sombras errantes se encontram .
A primeira falou : - Nasci de um beijo.
De luz, sou força, vida, alma, esplendor.
Toda a ânsia do Universo...Eu sou o Amor.
O mundo sinto 34olo3434a a meus pés...
Sou Delírio...Loucura...E tu, quem és?
Eu nasci de uma lágrima. Sou flama.
Do teu incêndio que devora...
Vivo, dos olhos tristes de quem ama,
Para os olhos nevoentos de quem chora.
Dizem que ao mundo vim para ser boa.
Para dar do meu sangue a quem queira.
Sou a saudade, a tua companheira
Que punge, que consola e que perdoa...
Na encruzilhada silenciosa do Destino
As duas sombras se abraçaram.
E desde então, nunca mais se
separaram.··.
Título
QUASE
Mário de Sá carneiro*
Um pouco mais de sol — eu era brasa.
Um pouco mais de azul — eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d’espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho — ó dor! — quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim — quase a expansão...
Mas na minh’alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo... e tudo errou...
— Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... —
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou, mas não voou...
Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Título
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
Dispersão
Perdi-me dentro de mim Porque eu era labirinto
E hoje, quando me sinto. É com saudades de mim.
Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar, Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...
Para mim é sempre ontem, Não tenho amanhã nem hoje: O tempo que aos outros foge Cai sobre mim feito ontem.
(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:
Porque um domingo é família, É bem-estar, é singeleza, E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).
Pobre moço das ânsias... Tu, sim, tu eras alguém! E foi por isso também
Que me abismastes nas ânsias.
A grande ave doirada Bateu asas para os céus Mas fechou-se saciada
Ao ver que ganhava os céus.
Como se chora um amante, Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante Que se traiu a si mesmo.
Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que protejo: Se me olho a um espelho, erro Não me acho no que projeto.
Regresso dentro de mim Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada, Sequinha dentro de mim.
Não perdi a minha alma, Fiquei com ela, perdida. Assim eu choro, da vida,
Eu nunca vi... mas recordo
A sua boca doirada E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido Que vem na tarde doirada.
(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei. Ai, como eu tenho saudades Dos sonhos que sonhei!... )
E sinto que a minha morte —
Minha dispersão total — Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.
Vejo o meu último dia Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia Em sombra e além me sumo.
Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas... Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas. . .
Tristes mãos longas e lindas Que eram feitas pra se dar Ninguém mas quis apertar
Tristes mãos longas e lindas
Eu tenho pena de mim, Pobre menino ideal... Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!
Desceu-me n’alma o crepúsculo; Eu fui alguém que passou. Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.
Álcool dum sono outonal Me penetrou vagamente A difundir-me dormente Em, uma bruma outonal.
Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço... A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço ..
.
*Mário de Sá Carneiro foi poeta, contista e ficcionista português, um dos grandes expoentes do modernismo em Portugal e um dos mais reputados membros da Geração d’Orpheu. Nasceu em Lisboa no dia 19 de Maio de 1890 e faleceu em Paris, em 26 de Abril de 1916. Época /Gênero literário: Modernismo Magnum opus¹: Céu em Fogo ¹Magnum opus, em latim, significa grande obra. Refere-se à melhor, mais popular ou
renomada obra de um artista
Título
Não me Peçam Razões
José Saramago
Não me peçam razões, que não as tenho, Ou darei quantas queiram: bem sabemos Que razões são palavras, todas nascem Da mansa hipocrisia que aprendemos.
Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito, Este estar mal no mundo e nesta lei: Não fiz a lei e o mundo não aceito.
Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir: Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.
José Saramago, in “Os Poemas Possíveis”
Título
Remorso
Olavo Bilac
Às vezes, uma dor me desespera... Nestas ânsias e dúvidas em que ando. Cismo e padeço, neste outono, quando
Calculo o que perdi na primavera.
Versos e amores sufoquei calando, Sem os gozar numa explosão sincera...
Ah! Mais cem vidas! Com que ardor quisera Mais viver, mais penar e amar cantando!
Sinto o que desperdicei na juventude;
Choro, neste começo de velhice, Mártir da hipocrisia ou da virtude,
Os beijos que não tive por tolice,
Por timidez o que sofrer não pude, E por pudor os versos que não disse!
Título
Crepúsculo de Outono
Manoel Bandeira
O crepúsculo cai, manso como uma benção. Dir-se-á que o rio chora a prisão de seu leito...
As grandes mãos da sombra evangélicas pensam As feridas que a vida abriu em cada peito.
O outono amarelece e despoja os lariços. Um corvo passa e grasna, e deixa esparso no ar
O terror augural de encantos e feitiços. As flores morrem. Toda a relva entra a murchar.
Os pinheiros, porém viçam, e serão breve Todo o verde que a vista espairecendo vejas, Mais negros sobre a alvura unânime da neve,
Altos e espirituais como flechas de igrejas.
Um sino plange. A sua voz ritma o murmúrio Do rio, e isso parece a voz da solidão.
E essa voz enche o vale...o horizonte purpúreo... Consoladora como um divino perdão.
O sol fundiu a neve. A folhagem vermelha Reponta. Apenas há, nos barrancos retortos, Flocos, que a luz do poente extática semelha A um rebanho infeliz de cordeirinhos mortos.
A sombra casa os sons numa grave harmonia. E tamanha esperança e uma tão grande paz
Avultam do clarão que cinge a serrania, Como se houvesse aurora e o mar cantando atrás.
Título
Outono
J. G. de Araújo Jorge
O outono já chegou – aos arrufos do vento
as folhas num desmaio embalam-se pelo ar...
- vão caindo... caindo... uma a uma, em desalento e uma a uma, lentamente, vão no chão pousar...
O céu perdeu o azul – vestiu-se de cinzento e envolveu na neblina a luz baça do luar...
- na alameda onde vou, de momento a momento, há um gemido de folha a cair e a expirar...
O arvoredo transpira as carícias dos ninhos, e o vento a cirandar na curva das estradas
eleva o folhareu no espaço em redemoinhos...
Há um córrego a levar as folhas secas em bando... - e à aragem que soluça entre as ramas curvadas, parece que o arvoredo em coro está chorando!...
Título
Uma névoa de Outono o ar raro vela
Fernando Pessoa
(5-11-1932)
Uma névoa de Outono o ar raro vela, Cores de meia-cor pairam no céu. O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.
Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono. Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono. De sentir é só a janela a que eu assomo.
Amanhã, se estiver um dia igual, Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal, E será como esta.
Título
CANÇÃO DE OUTONO
Cecília Meireles
Perdoa-me, folha seca, não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo, e até do amor me perdi.
De que serviu tecer flores
pelas areias do chão, se havia gente dormindo sobre o próprio coração?
E não pude levantá-la! Choro pelo que não fiz. E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz. Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força estão velando e rogando aqueles
que não se levantarão...
Tu és a folha de outono voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade - a melhor parte de mim. Certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento, menos que as folhas do chão...
Título
COLETÂNEA ESCOLHIDA DE GREGÓRIO DE MATOS
Inconstância dos bens do mundo Gregório de Matos
Nasce o Sol e não dura mais que um dia, Depois da Luz, se segue a noite escura, Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas, a alegria.
Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?
Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.
Começa o mundo, enfim, pela ignorância,
Pois tem, qualquer dos bens, por natureza
Firmeza somente na inconstância.
Soneto Sobre a Bahia Gregório de Matos
A cada canto um grande conselheiro.
Que nos quer governar cabana, e vinha, não sabem governar sua cozinha, e podem governar o mundo inteiro.
Em cada porta um frequentado olheiro, que a vida do vizinho, e da vizinha
pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha, para a levar à Praça, e ao Terreiro. Muitos mulatos desavergonhados,
trazidos pelos pés os homens nobres, posta nas palmas toda a picardia. Estupendas usuras nos mercados,
todos, os que não furtam, muito pobres, e eis aqui a cidade da Bahia
Buscando a Cristo Gregório de Matos
A vós correndo vou, braços sagrados,
Nessa cruz sacrossanta descobertos
Que, para receber-me, estais abertos,
E, por não castigar-me, estais cravados.
A vós, divinos olhos, eclipsados
De tanto sangue e lágrimas abertos,
Pois, para perdoar-me, estais despertos,
E, por não condenar-me, estais fechados.
A vós, pregados pés, por não deixar-me,
A vós, sangue vertido, para ungir-me,
A vós, cabeça baixa, p’ra chamar-me
A vós, lado patente, quero unir-me,
A vós, cravos preciosos, quero atar-me,
Para ficar unido, atado e firme.
Epílogos Juízo anatômico da Bahia
Gregório de Matos
Que falta nesta cidade?................Verdade
Que mais por sua desonra?...........Honra
Falta mais que se lhe ponha..........Vergonha.
O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
numa cidade, onde falta
Verdade, Honra, Vergonha.
Quem a pôs neste socrócio*?..........Negócio
Quem causa tal perdição?.............Ambição
E o maior desta loucura?...............Usura.
Notável desventura de um povo néscio, e sandeu,
que não sabe, que o perdeu
Negócio, Ambição, Usura.
Quais são os seus doces objetos?....Pretos
Tem outros bens mais maciços?.....Mestiços
Quais destes lhe são mais gratos?...Mulatos.
Dou ao demo os insensatos,
dou ao demo a gente asnal,
que estima por cabedal
Pretos, Mestiços, Mulatos.
Quem faz os círios* mesquinhos?...Meirinhos
Quem faz as farinhas tardas?.........Guardas
Quem as tem nos aposentos?.........Sargentos.
Os círios lá vêm aos centos,
e a terra fica esfaimando,
porque os vão atravessando
Meirinhos, Guardas, Sargentos.
E que justiça a resguarda?.............Bastarda
É grátis distribuída?.....................Vendida
Que tem, que a todos assusta?.......Injusta.
Valha-nos Deus, o que custa,
o que El-Rei nos dá de graça,
que anda a justiça na praça
Bastarda, Vendida, Injusta.
Que vai pela clerezia?..................Simonia*
E pelos membros da Igreja?..........Inveja
Cuidei, que mais se lhe punha?.....Unha.
Sazonada caramunha*!
enfim que na Santa Sé
o que se pratica, é
Simoni*, Inveja, Unha*.
E nos frades há manqueiras*?.........Freiras
Em que ocupam os serões?............Sermões
Não se ocupam em disputas?.........Putas.
Com palavras dissolutas
me concluís na verdade,
que as lidas todas de um Frade
são Freiras, Sermões, e Putas.
O açúcar já se acabou?..................Baixou
E o dinheiro se extinguiu?.............Subiu
Logo já convalesceu?.....................Morreu.
À Bahia aconteceu
o que a um doente acontece,
cai na cama, o mal lhe cresce,
Baixou, Subiu, e Morreu.
A Câmara não acode?...................Não pode
Pois não tem todo o poder?...........Não quer
É que o governo a convence?........Não vence.
Que haverá que tal pense,
que uma Câmara tão nobre
por ver-se mísera, e pobre
Não pode, não quer, não vence.
*Interpretação de alguns vocábulos:
Socrócio – emplastro, alivio, bálsamo ( o poeta usou-o no sentido antitético, irônico).
Círios – sacos de farinha (a grafia correta é sírios).
Simonia – venda de coisas sagradas.
Unha – roubalheira, avareza, tirania, opressão.
Caramunha – lamentação experiente.
Manqueiras – vícios, defeitos.
1. Gregório de Matos Guerra (Salvador, 23 de dezembro de 1636¹
– Recife, 26 de novembro de 1695),
alcunhado de Boca do Inferno ou Boca de Brasa, foi um advogado e poeta do Brasil colônia. É considerado o maior poeta barroco do Brasil e o mais importante poeta satírico da literatura em língua portuguesa, no período.
¹Por haver divergências a respeito da data de nascimento de Gregório de Matos, foi adotado a utilizada pelo pesquisador Fernando da Rocha Peres, no livro de sua autoria Gregório de Mattos e Guerra: Uma Revisão Biográfica e em nota biográfica publicada no site da Universidade Federal da Bahia/UFBA (http://www.ufba.br/~gmg/gregorio.html)
Título
Velhas Árvores
Olavo Bilac
Olha estas velhas árvores, mais belas
Do que as árvores novas, mais amigas:
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas...
O homem, a fera, e o inseto, à sombra delas
Vivem, livres de fomes e fadigas;
E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E os amores das aves tagarelas.
Não choremos, amigo, a mocidade!
Envelheçamos rindo! Envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem:
Na glória da alegria e da bondade,
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!
Olavo Bilac, in “Poesias”
Título
Soneto al vino
Jorge Luis Borges*
¿Quase qué reino, quase qué siglo, bajo qué silenciosa conjunción de 51ol astros, quase qué secreto 51ol
que 51o mármol no quase salvado, surgió 51o valerosa y singular 51olo de inventar 51o 51olo5151a?
Quase otoños de oro 51o inventaron. El vino fluye rojo a 51o largo de 51ol generaciones
como 51o 51ol 51ol tiempo y quase 51o 51olo51 camino nos prodiga su música, su fuego y 51ol leones.
Quase 51o noche 51ol júbilo o quase 51o jornada adversa exalta 51o 51olo5151a o mitiga 51o espanto
y 51o ditirambo nuevo que este 51ol 51o canto
otrora 51o cantaron 51o árabe y 51o persa. Vino, enséñame 51o arte de ver mi propia historia
como si ésta ya fuera ceniza quase 51o 51olo5151a.
*Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo (Buenos Aires, 24 de agosto de 1899 — Genebra, 14 de
junho de 1986) foi um escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino.
Título
Entre o Céu e a Terra
Encontraram-se um dia uma lágrima, uma estrela, uma pérola e um orvalho:
Falou primeiro a estrela:
Quem diria que eu tivesse o trabalho de descer das alturas luminosas para vir conversar com vocês três? Não sabem que sou mais alta que as nuvens,
e que minha altivez fulgura entre mil chamas radiosas na infinita amplidão ? Não é a minha existência transitória. Desde que existe o mundo, acendo o
firmamento por entre o universal deslumbramento. Qual de vocês terá tamanha glória,
se não passam do chão ?
Mas respondeu a pérola vaidosa:
Quem te dará valor entre milhões de lâmpadas no espaço ?
Tu não passas de um grão de explendor metido na poeira do infinito.
Ninguém se lembra de te por no braço, enquanto eu, lá no fundo dos oceanos sou buscada e vendida aos soberanos
para enfeitar com minha limpidez “A Coroa dos Reis”. Vivo no colo explendido dos nobres,
e sobre o rico seio das Rainhas. Não como tu que sob o olhar dos pobres
poetas vagabundos te encaminhas...
Valho mais que tu, e mais ainda valho do que um simples orvalho e uma lágrima,
pois ambos gotas d’água sem o mínimo valor
Disse o orvalho com mágoa.
Nenhuma de vocês tem esse encanto de transformar-se em gozo na boca imaculada de uma flor.
Eu venho lá de cima, radiante
nos braços da alvorada para cobrir de beijos uma rosa
que se sente tão doce nesse instante que vale a pena vê-la tão ditosa, E trazer riso ao coração da terra
“engolfada no pranto”
Eis como sou feliz... Ou na campina ou no cimo da serra
sou sempre uma esperança cristalina nos lábios sorridentes de uma flor.
Calou-se o orvalho. E a lágrima coitada! Esta nada dizia...
E que responde tu ? E ela rolada nada ousava falar...
Porém sublime, com calma respondeu:
Sou o perdão no crime e a vibração no amor
bailo no olhar risonho da alegria moro no olhar tristíssimo da dor
sou a alma da saudade e da harmonia sou até estribilho
na lira soluçante dos poetas... sou oração no pito dos ascetas,
sou relíquia de mãe em coração de filho, sou lembrança de filho em coração de mãe.
Não vivo sobre seios perfumosos
e colos orgulhosos na ostentação efêmera do luxo...
Porém, penetro o espírito do mundo: seja do rei, do sábio mais profundo,
do rústico mais vil, do pecador, do santo e até na face do Senhor
Um dia já rolei...
Eu, lágrima, pequena, penetrei no coração de Deus,
e fiz estremecer e abrir-se extasiado o pórtico dos Céus !
Não sei quantos pecados já lavei...
A lágrima calou-se humildemente... Deslumbrado
O Silêncio a tudo isto contemplou Serenamente
Na vastidão vazia A estrela se ocultou
por detrás duma nuvem... e chorava... A pérola desce à profundez dos mares
E chorava também... O orvalho tremulando sobre a relva...
Também chorava...
E a lágrima SORRIA !!!
Autor: Pietro Gambore
Título
Coletânea escolhida de Henriqueta Lisboa*
Quando tenhas de vir
Quando tenhas de vir, Amor, que escolhas o recanto mais vago, a hora mais linda.
Pesam ao galho verde tantas folhas e estou ansiosa pela tua vinda.
Quando tenhas de vir, escolhe o instante em que a tristeza paire, leve no ar.
Ao crepúsculo, a sós, o olhar distante, é quando a gente principia a amar. Soem teus passos harmonicamente.
Insinua-te aos poucos. Sombra e calma. Tenho horror que tu chegues de repente,
e não encontres alma na minha alma. Que eu fique sem saber quando é que vieste,
quando é que a luz se fez ao nosso olhar. Seja assim como a nevoa azul-celeste onde á curva do 55ol se une a do mar.
Fecho os olhos á espera... Desce a tarde. Está sereno o parque, envolto em bruma.
Perpassa a brisa sem fazer alarde, sem assustar no ramo ave nenhuma.
Seja assim nosso enlevo... Manso quase imperceptível para o derredor.
Que ande musica ou verso em cada phrase, para que eu possa comprehender melhor. E enquanto as flores dormem, sem saber
que doce aroma trescalando então, que me desperte brandamente o ser um beijo suave sobre a minha mão.
Henriqueta Lisboa, in “Senhorita X!...”: revista mensal, social e ilustrada, ano 1, n. 1, out. 1932.
Noturno
Meu pensamento em febre é uma lâmpada acesa a incendiar a noite.
Meus desejos irrequietos, à hora em que não há socorro,
dançam livres como libélulas em redor do fogo.
Publicado: Prisioneira da Noite (1941)
Do supérfluo
Também as cousas participam de nossa vida. Um livro. Uma rosa. Um trecho musical que nos devolve
a horas inaugurais. O crepúsculo acaso visto num país
que não sendo da terra evoca apenas a lembrança
de outra lembrança mais longínqua. O esboço tão-somente de um gesto
de ferina intenção. A graça de um retalho de lua
a pervagar num reposteiro A mesa sobre a qual me debruço
cada dia mais temerosa de meus próprios dizeres.
Tais cousas de íntimo domínio talvez sejam supérfluas.
No entanto que tenho a ver contigo
se não leste o livro que li não viste a rosa que plantei
nem contemplaste o pôr-do-sol à hora em que o amor se foi?
Que tens a ver comigo se dentro em ti não prevalecem as cousas — todavia supérfluas —
do meu intransferível patrimônio? - Henriqueta Lisboa, in “Pousada do Ser”, 1982.
Tempestade
— Menino, vem pra dentro. Olha a chuva lá na serra,
Olha como vem o vento!
— Ah! Como a chuva é bonita
E como o vento é valente!
— Não sejas doido, menino, Esse vento te carrega Essa chuva te derrete
— Eu não sou feito de açúcar
Para derreter na chuva. Eu tenho forças nas pernas Para lutar contra o vento!
E enquanto o vento soprava
E enquanto a chuva caia Que nem um pinto molhado
Teimoso como ele só.
Gosto de chuva com vento Gosto de vento com chuva!
Segredo
Andorinha no fio Escutou um segredo Foi à torre da Igreja. Cochichou com o sino.
E o sino bem alto 57olo57-dem 57olo57-dem 57olo57-dem 57olo57-dem! Toda a cidade Ficou sabendo.
Os lírios
Certa madrugada fria irei de cabelos soltos
ver como crescem os lírios.
Quero saber como crescem simples e belos — perfeitos! –
ao abandono dos campos.
Antes que o sol apareça, neblina rompe neblina
com vestes brancas, irei.
Irei no maior sigilo para que ninguém perceba
contendo a respiração.
Sobre a terra muito fria dobrando meus frios joelhos
farei perguntas à terra.
Depois de ouvir-lhe o segredo deitada por entre lírios adormecerei tranquila.
Em: Nova Lírica, Henriqueta Lisboa, Belo Horizonte, Imprensa Oficial: 1971.
Olhos tristes
Olhos mais tristes ainda do que os meus são esses olhos com que o olhar me fitas. Tenho a impressão que vais dizer adeus
este olhar de renúncias infinitas.
Todos os sonhos, que se fazem seus, tomam logo a expressão de almas aflitas. E até que, um dia, cegue à mão de Deus,
será o olhar de todas as desditas.
Assim parado a olhar-me, quase extinto, esse olhar que, de noite, é como o luar, vem da distância, bêbedo de absinto...
Este olhar, que me enleva e que me assombra,
vive curvado sob o meu olhar como um cipreste sobre a própria sombra.
Minha história romântica
No jardim do meu sonho, outr’ora, quando entrava na vida, ao resplendor de um sol de cereja,
tive a promessa de uma flor que despontava, na ilusão de quem vai possuir o que deseja.
E, ardente, do calor da minha alma que é lava fulgida, à luz do olhar que nunca mais se veja, tendo por humildade o pranto que eu chorava,
a flor se abriu, sorrindo, à sombra de uma igreja.
Uma tarde, porém, sinto que me envenena... E na volúpia de augmentar a própria pena,
espedaço-a nas mãos! Ó Dor, que me confortas!
Hoje, a sós no jardim, às horas lardas, quedo, vendo entre um gozo estranho e uma impressão de medo
boiarem na piscina umas pétalas mortas.
Henriqueta Lisboa, in “Fogo fátuo”, 1925
Azul profundo
Azul profundo, ó bela noite inefável dos
pensamentos de amor!
Ó estrela perfeita sobre o espesso horizonte!
Ó ternura dos lagos
refletindo montanhas!
Ó virginal dor da primavera derradeira!
Ó tesouro desconhecido por toda a eternidade!
Ó luz da solidão,
ó nostalgia, ó Deus!
- Henriqueta Lisboa, in “Azul profundo”, 1956.
Chuva
Chuva torrencial carregada de frutos. Chuva exausta
de longos braços pendentes.
Chuva nos campos da fatalidade
entregando bandeiras.
Música opulenta de rios que se despenham.
Durante noites e noites.
As criaturas estão à espera Protegidas pelas paredes
E a palavra — sol Unge todos os lábios.
Só eu na minha imensidade sem teto, só eu te suporto o peso,
só eu te sorvo esse gosto, de morte.
Chuva, plenitude amarga
de derrota.
Sinto que és retorno, corpo cansado de espírito,
corpo vencido, corpo
que se entrega pesadamente
à terra.
Henriqueta Lisboa, in “A face lívida”, 1945.
Expectativa
Neste instante em que espero uma palavra decisiva,
instante em que de pés e mãos acorrentada estou,
em que a maré montante de meu ser se comprime no ouvido à escuta,
em que meu coração em carne viva se expõe aos olhos dos abutres
num deserto de areia, — o silêncio é um punhal
que por um fio se pendura sobre meu ombro esquerdo.
E há uma eternidade
que nenhum vento sopra neste deserto!
Henriqueta Lisboa, in “Prisioneiro da noite”, 1941.
O poço
Com minhas frágeis e frias mãos
Cavei um poço no fundo do horto
da solidão Cavei um poço
mas bem profundo com minhas mãos.
Henriqueta Lisboa, in “A face lívida”, 1945.
O tempo é um fio
O tempo é um fio bastante frágil
Um fio fino que à toa escapa.
O tempo é um fio.
Tecei! Tecei! Rendas de bilro com gentileza.
Com mais empenho franças espessas. Malhas e redes
com mais astúcia.
O tempo é um fio que vale muito.
Franças espessas carregam frutos. Malhas e redes
apanham peixes.
O tempo é um fio por entre os dedos.
Escapa o fio, perdeu-se o tempo.
Lá vai o tempo
como um farrapo jogado à toa.
Mas ainda é tempo!
Soltai os potros
aos quatro ventos, mandai os servos
de um 61olo a outro, vencei escarpas,
voltai com o tempo que já se foi!...
Henriqueta Lisboa, in “Antologia Poética Nestlé”, [org. Vera Lúcia de Carvalho Marchezi, Ana Maria T.
Borgatto Teresinha Costa H. Bertin]. São Paulo: Fundação Nestlé de Cultura, 2002.
Ó noite
Ó noite, ensina-me o teu magno
segredo: iluminar da sombra.
Da sombra permitir
a visão mais profunda. Projetar pela sombra o roteiro dos astros.
Quanto mais te recolhes, ó noite, nos teus véus,
tanto mais fulgem as constelações.
Serás acaso humilde, generosa,
ou apenas criadora de beleza?
Ó noite, ensina-me o teu magno
segredo.
Henriqueta Lisboa, in “Azul profundo”, 1985.
Tesouros
Quero ser fruta macia
Doce, amarela, madura Para saciar a fome
Dos passarinhos Que ficam Famintos
Sem ter um ninho.
Quero ser fonte fresquinha, Descendo a pé da montanha
Sarando a sede Com beijos Aos litros,
E com fartura Toda secura das almas.
Quero ser chuva fininha
Caindo mansa Na horta
Fazer crescer, Bem viçosa,
O rabanete, agrião, Cenoura, batata doce. Cebolinha, caridade,
Chocolate de bombom.
Quero ser sol de tardinha Crepusculando
A toada Com café quente na trempe
Cheiro de biscoito frito E conversa Na soleira.
Até dar sono Na gente.
Quero ser plena portante
Dessa riqueza imensa Chamada
Simplicidade.
Presépio
Eu inda quero sentir O branco olor d’açucena Passar os olhos espertos Sobre o manto de flanela Azul, mesclado de tons
De um berço Com criança.
Eu inda quero escutar
O cantoninar sereno De uma Callas esquecida
Em bairro de classe média Esquentando a mamadeira
Nanar o neném Dormir.
Quero tecer sapatinho
De tricô em ponto-cruz Casaco, meia, futuro Enxoval de esperança Rosa, azul e amarelo.
Sete dias Cai o umbigo.
Por quê?
Porque há ais... Há sim longa fila
De espera.
E nela
Serpenteante
De tão longa Está um rapaz formoso, A bela moça prendada,
No velho brota bondade, Uma menininha linda
Com vestidinho engomado,
Seres querendo ser. Que não conseguem nem ser
Já que ninguém mais quer ser Josés e Marias ou Marias A montar rudes presépios
De deixar vir para o mundo O Menino de Amor
Um pouco viver Mesmo que um dia
Morrer Crucificado...
Horizonte
Alma em suspiro pelo encontro
do que fica sempre mais longe
Em Reverberações (1976)
*Henriqueta Lisboa
Henriqueta Lisboa (1901-1985), poeta mineira considerada pela crítica um dos grandes nomes da lírica modernista, dedicou-se à poesia, ensaios e traduções. Nasceu em Lambari, Minas Gerais, em 15 de julho de 1901 formou-se normalista pelo Colégio Sion de Campanha, MG, e, em 1924, mudou-se para o Rio de Janeiro.
Henriqueta manteve-se sempre atuante no diálogo com os escritores e intelectuais de sua geração e angariou muitos leitores ilustres durante sua vida, dentre eles Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles e Gabriela Mistral.
Sobre sua poesia, Drummond nos deixou o seguinte testemunho: “Não haverá, em nosso acervo poético, instantes mais altos do que os atingidos por este tímido e esquivo poeta.”
Foi a primeira mulher eleita para a Academia Mineira de Letras em 1963, onde ocupou a cadeira de nº 26. Sua poesia tornou-se conhecida no exterior, sendo traduzida em várias línguas, como o francês, inglês, italiano, espanhol, alemão e latim.
Henriqueta faleceu em Belo Horizonte, no dia 9 de outubro de 1985. Seu Centenário foi comemorado ao longo do ano de 2002.
OBS.: Conservamos a linguagem original de todos os poemas
Título
Invictus, o poema que terá inspirado Nelson Mandela
" (...) Não importa o quão estreito seja o portão
e quão repleta de castigos seja a sentença,
eu sou o dono do meu destino,
eu sou o capitão da minha alma "
É difícil mensurar quantas vezes esses versos foram repetidos na literatura, no cinema ou em
discursos inspiradores.
Mais de um século após ser escrito, o poema "Invictus", do britânico William Ernest Henley
continua fascinando e influenciando pessoas em todo o mundo. Certamente, Henley, o mais velho
de seis filhos, não imaginou que tanto tempo depois suas palavras - escritas em 1875 - inspirariam
um personagem importante da história não só da África, mas mundial: Nelson Mandela.
Quando aprisionado em Robben Island, onde cumpria pena de trabalhos forçados, o líder sul-
africano, símbolo da luta contra o Apartheid, encontrou nas palavras de Henley a esperança e a
força necessárias para manter-se vivo. Mandela conta que toda vez que começava a esmorecer, lia
e relia o texto, em busca de um "companheiro" para a dor. O professor de literatura inglesa
Marion Hoctor, em entrevista a CNN, explicou que o poema representa o humanismo secular, o
espírito da época vitoriana, a ascensão de Darwin e as ciências como um desafio ao pensamento
tradicional e criacionismo.
"Invictus" é a inspiração para o filme homónimo, de Clint Eastwood. Em outro momento de
protagonismo, os versos do inglês foram as últimas palavras de Timothy McVeigh, soldado
americano condenado à morte por ataque terrorista que deixou 168 mortos na cidade de
Oklahoma, Estados Unidos. Leia na íntegra o poema original, em inglês e a respectiva tradução para português.
Invictus
Out of the night that covers me,
Black as the pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.
In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.
Beyond this place of wrath and tears
Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds and shall find me unafraid.
It matters not how strait the gate,
How charged with punishment the scroll,
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul.
Invictus
Dentro da noite que me rodeia
Negra como um poço de lado a lado
Agradeço aos deuses que existem
por minha alma indomável
Sob as garras cruéis das circunstâncias
eu não tremo e nem me desespero
Sob os duros golpes do acaso
Minha cabeça sangra, mas continua erguida
Mais além deste lugar de lágrimas e ira,
Jazem os horrores da sombra.
Mas a ameaça dos anos,
Me encontra e me encontrará, sem medo.
Não importa quão estreito o portão
Quão repleta de castigo a sentença,
Eu sou o senhor de meu destino
Eu sou o capitão de minha alma.
Fonte (SIC): http://www.vivaviver.com.br/boa_leitura/invictus_o_poema_que_inspirou_nelson_mandela/1266/
Transcrição integral: Poeta Eugênio de Sá
Título
Canção
Emilio Moura*
Viver não dói. O que dói
é a vida que se não vive.
Tanto mais bela sonhada,
quanto mais triste perdida.
Viver não dói. O que dói
é o tempo, essa força onírica
em que se criam os mitos
que o próprio tempo devora.
Viver não dói. O que dói
é essa estranha lucidez,
misto de fome e de sede
com que tudo devoramos.
Viver não dói. O que dói,
ferindo fundo, ferindo,
é a distância infinita
entre a vida que se pensa
e o pensamento vivido.
Que tudo o mais é perdido.
*Poeta mineiro, nascido na cidade de Dores do Indaiá em 1902. Foi Integrante do grupo de modernistas mineiros que
ajudaram a revolucionar a literatura brasileira na década de 1920. A amizade com Drummond perdurou até a sua morte
e Drummond despediu-se dele escrevendo: Corredor ou caverna ou túnel ou presídio, não importa. Uma luz violeta vai
seguir-me: a saudade de Emílio Moura".
Título
Não sei - Cora Coralina*
Não sei ... se a vida é curta
ou longa demais pra nós,
Mas sei que nada do que vivemos tem sentido,
se não tocamos o coração das pessoas.
Muitas vezes basta ser:
Colo que acolhe,
Braço que envolve,
Palavra que conforta,
Silêncio que respeita.
Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
Olhar que acaricia,
Desejo que sacia,
Amor que promove.
E isso não é coisa de outro mundo,
é o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela
não seja curta,
nem longa demais
Mas que seja intensa
Verdadeira, pura ...
Enquanto durar.
*Cora Coralina, pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, foi uma poetisa e contista
brasileira. Considerada uma das principais escritoras brasileiras, ela teve seu primeiro livro
publicado em junho de 1965, quando já tinha quase 76 anos de idade. Nasceu em 20 de agosto de
1889 e faleceu em 10 de abril de 1985 aos 95 anos de idade
“Mesmo quando tudo parece desabar, cabe a mim decidir
entre rir ou chorar, ir ou ficar, desistir ou lutar; porque
descobri, no caminho incerto da vida, que o mais importante é
o decidir.”
“Se a gente cresce com os golpes duros da vida, também
podemos crescer com os toques suaves na alma.”
Título
SONETO
Tradução de Thiago de Mello
Não te quero a não ser porque te quero
e de te querer a não te querer chego
e de te esperar quando não te espero
passa meu coração do frio ao fogo.
Só te quero porque é a ti quem quero,
sem fim te odeio, e com ódio te peço,
e a medida do amor meu, viageiro,
é não te ver e amar-te como um cego.
Talvez consuma a luz de janeiro,
seu raio cruel, meu coração inteiro,
de mim roubando a chave do sossego.
Nessa história só eu morro
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero, amor, a sangue e fogo.
(De Cien sonetos de amor)
SONETO
Tradução de Thiago de Mello
Pensei morrer, senti de perto o frio,
e de quanto vivi só a ti eu deixava:
tua boca era o meu dia e minha noite terrestres
e tua pele a república fundada por meus beijos.
Nesse instante se terminaram os livros,
a amizade, os tesouros sem trégua acumulados,
a casa transparente que tu e eu construímos:
tudo deixou de ser, menos os teus olhos.
Porque o amor, enquanto a vida nos acossa,
é simplesmente uma onda alta sobre as ondas
mas ai quando a morte nos vem tocar a porta
só existe teu olhar para tanto vazio,
só a tua claridade para não seguir sendo,
somente o teu amor para encerrar a sombra.
(De Cien sonetos de amor)
Soneto XLIII
Um sinal teu busco em todas as outras,
no brusco, ondulante rio das mulheres,
tranças, olhos apenas submergidos,
pés claros que resvalam navegando na espuma.
De repente me parece que diviso tuas unhas
oblongas, fugitivas, sobrinhas de uma cerejeira,
e outra vez é teu pelo que passa e me parece
ver arder na água teu retrato de fogueira.
Olhei, mas nenhuma levava teu latejo,
tua luz, a greda escura que trouxeste do bosque,
nenhuma teve tuas mínimas orelhas.
Tu és total e breve, de todas és uma,
e assim contigo vou percorrendo e amando
um amplo Mississipi de estuário feminino.
Cem Sonetos de Amor – tradução de Carlos Nejar. Rio Grande do Sul: L & PM, 1979, p. 55
Título