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Carlos Drummond de Andrade Fazedor de homens William Shakespeare Coletânea escolhida Giuseppe Guiaroni A palavra querida Manuel Bandeira O inútil luar Manuel Bandeira Vou-me embora pra Pasárgada Raquel de Queiroz Telha de vidro Giuseppe Guiaroni A máquina de escrever Giuseppe Guiaroni Dia das mães Carlos Drummond de Andrade - Resíduo J. G. de Araújo Jorge O verbo amar J. G. de Araújo Jorge Existo Carlos Drummond de Andrade Declaração em juízo Vicente de Carvalho Cair das folhas Vicente de Carvalho Velho Tema II Álvares de Azevedo Tristeza Olegário Mariano O enamorado das rosas Olegário Mariano As duas sombras Mário de Sá Carneiro Quase Mário de Sá Carneiro - Dispersão José Saramago Não me peçam razões Olavo Bilac - Remorso Manoel Bandeira Crepúsculo de Outono J. G. de Araújo Jorge - Outono Fernando Pessoa Uma névoa de outono o ar raro vela Cecília Meireles Canção de Outono Gregório de Matos Coletânea escolhida 9 (nove) poemas Olavo Bilac Velhas árvores Jorge Luís Borges El soneto Del vino Pietro Gambore Entre o céu e a terra Henriqueta Lisboa Coletânea escolhida Nelson Mandela - Invictus Emílio Moura - Canção Cora Coralina Não sei Pablo Neruda Três sonetos escolhidos

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Carlos Drummond de Andrade – Fazedor de homens

William Shakespeare – Coletânea escolhida

Giuseppe Guiaroni – A palavra querida

Manuel Bandeira – O inútil luar

Manuel Bandeira – Vou-me embora pra Pasárgada

Raquel de Queiroz – Telha de vidro

Giuseppe Guiaroni – A máquina de escrever

Giuseppe Guiaroni – Dia das mães

Carlos Drummond de Andrade - Resíduo

J. G. de Araújo Jorge – O verbo amar

J. G. de Araújo Jorge – Existo

Carlos Drummond de Andrade – Declaração em juízo

Vicente de Carvalho – Cair das folhas

Vicente de Carvalho – Velho Tema II

Álvares de Azevedo – Tristeza

Olegário Mariano – O enamorado das rosas

Olegário Mariano – As duas sombras

Mário de Sá Carneiro – Quase

Mário de Sá Carneiro - Dispersão

José Saramago – Não me peçam razões

Olavo Bilac - Remorso

Manoel Bandeira – Crepúsculo de Outono

J. G. de Araújo Jorge - Outono

Fernando Pessoa – Uma névoa de outono o ar raro vela

Cecília Meireles – Canção de Outono

Gregório de Matos – Coletânea escolhida – 9 (nove) poemas

Olavo Bilac – Velhas árvores

Jorge Luís Borges – El soneto Del vino

Pietro Gambore – Entre o céu e a terra

Henriqueta Lisboa – Coletânea escolhida

Nelson Mandela - Invictus

Emílio Moura - Canção

Cora Coralina – Não sei

Pablo Neruda – Três sonetos escolhidos

Fazedor de Homens

Todo homem é uma ilha... É bom ser uma ilha distante

tanto quanto é bom ser um homem.

Todo homem possui uma ponte pois é preciso sair da ilha, seguro.

A ponte de um homem é um braço estendido.

Todo homem é um mundo. O mundo roda no sistema egocêntrico

de suas realidades, pequenos alumbramentos,

medos e coragens.

E quando o homem encara o mundo e se depara - homem-mundo, mundo-homem,

volta à ilha: Todo homem ama sua ilha.

II

O homem faz o homem. E porque fez o homem, sem nem o

homem querer aufere direitos do homem. Diz a ele: Cresça!

E ele fica mais alto.

Diz ao homem: Trabalhe!

E ele usa o corpo. Diz ao homem: Viva! E ele respira e existe. Diz ao homem: Ame! E ele não sabe como.

Mas diz ao homem: Procrie! E ele faz homens.

Um dia ele morre.

Se a vida foi longa para viver - é curta para morrer -

porque o homem não fez, não escolheu, não pensou nada.

III

O que faz um homem diferente de outro homem é o que ele pensa.

O que o transforma, também, de um simples fazedor de homens,

num criador de homens.

Todo homem é uma vontade. E se deixa de ser vontade

teme a perda de sua posse. Todo homem é uma consciência.

Nela inclui o seu saber e a parte maior do não saber,

e se aceita o fato, é com ela que ele se entende.

Todo homem é seu corpo. E sabe dele em contraste com outro corpo,

tal é a sua medida. Como também, a medida de um homem é a sua carência:

porque é assim que ele se assume, porque é assim que ele se liberta.

Quanto mais ele precisa mais ele é maior. E dá.

Pede. Reivindica. Exige, quanto pode. Luta e sofre.

Todo homem quer deixar sua ilha.

Temeroso de ter que voltar um dia, entretanto, não destrói as pontes.

Enquanto isso, a ilha fica ali, só ilha. A ponte fica ali, só ponte.

E o homem fica ali, só homem.

Carlos Drummond de Andrade

Publicado no Jornal Última Hora (RJ) de 23/04/73

Título

Soneto 18 - Shakespeare

Devo igualar-te a um dia de verão? Mais afável e belo é o teu semblante: O vento esfolha Maio inda em botão,

Dura o termo estival um breve instante.

Muitas vezes a luz do céu calcina, Mas o áureo tom também perde a clareza:

De seu belo a beleza enfim declina, Ao léu ou pelas leis da Natureza.

Só teu verão eterno não se acaba Nem a posse de tua formosura;

De impor-te a sombra a Morte não se gaba Pois que esta estrofe eterna ao Tempo dura.

Enquanto houver viventes nesta lida, Há-de viver meu verso e te dar vida.

Se Nada Há de Novo

Se nada há de novo e tudo o que há já dantes era como agora é,

só ilusão a criação será: criar o já criado para quê?

Que alguém me mostre, sobre um livro antigo como quinhentas translações astrais, a tua imagem, na inscrição, no abrigo

do espírito em seus signos iniciais. Que eu saiba o que diria o velho mundo

deste milagre que é a tua forma; se te viram melhor, se me confundo,

se as translações seguem a mesma norma. Mas disto estou seguro: antigos textos

louvaram mais com bem menores pretextos.

William Shakespeare, in "Sonetos" Tradução de Carlos de Oliveira

A Noite não me Deu nenhum Sossego

Como voltar feliz ao meu trabalho

se a noite não me deu nenhum sossego?

A noite, o dia, cartas dum baralho

sempre trocadas neste jogo cego.

Eles dois, inimigos de mãos dadas,

me torturam, envolvem no seu cerco

de fadiga, de dúbias madrugadas:

e tu, quanto mais sofro mais te perco.

Digo ao dia que brilhas para ele,

que desfazes as nuvens do seu rosto;

digo à noite sem estrelas que és o mel

na sua pele escura: o oiro, o gosto.

Mas dia a dia alonga-se a jornada

e cada noite a noite é mais fechada.

William Shakespeare, in "Sonetos"

Tradução de Carlos de Oliveira

Meus Olhos Veem Melhor se os Vou Fechando

Meus olhos veem melhor se os vou fechando.

Viram coisas de dia e foi em vão,

mas quando durmo, em sonhos te fitando,

são escura luz que luz na escuridão.

Tu cuja sombra faz a sombra clara,

como em forma de sombras assombravas

ledo o claro dia em luz mais rara,

se em sombra a olhos sem visão brilhavas!

Que benção a meus olhos fora feita

vendo-te à viva luz do dia bem,

se a tua sombra em trevas imperfeita

a olhos sem visão no sono vem!

Vejo os dias quais noites não te vendo,

e as noites dias claros sonhos tendo.

William Shakespeare, in "Sonetos (43)"

Soneto 107

Medos, nem alma capaz de prever

Medos, nem alma capaz de prever

Os sonhos de porvir do mundo inteiro,

Podem o meu amor circunscrever,

Nem dar-lhe fado triste por certeiro.

A Lua seu eclipse superou,

Os agourentos de si podem rir,

A incerteza agora se firmou,

A paz proclama olivas no porvir.

Com o orvalho dos tempos refrescado

O meu amor a própria morte prende

E em meus versos vivo consagrado,

Enquanto as tribos mudas ela ofende.

Aqui encontrarás teu monumento,

E o bronze dos tiranos vai com o vento.

Soneto 54

Oh, como a beleza parece mais bela com o doce ornamento que a verdade produz!

A rosa tão bela, mas mais bela a julgamos Pelo doce aroma que nela seduz.

As rosas silvestres têm a cor tão profunda Quanto a tintura das rosas perfumadas,

Têm os mesmos espinhos e brincam tão vivamente Quando o sopro do verão expõe os botões velados;

Mas exibem-se apenas para si mesmas, Vivem esquecidas e murcham obscuras; Morrem sozinhas. As doces rosas, não;

De suas doces mortes surgem as mais doces essências.

e assim também a ti, a bela e adorável mocidade, Fenecido o frescor, revela em versos tua verdade.

Soneto 73

Em mim tu vês a época do estio

Em mim tu vês a época do estio

Na qual as folhas pendem, amarelas,

De ramos que se agitam contra o frio,

Coros onde cantaram aves belas.

Tu me vês no ocaso de um tal dia

Depois que o Sol no poente se enterra,

Quando depois que a noite o esvazia,

O outro eu da morte sela a terra.

Em mim tu vês o brilho da pira

Que nas cinzas de sua juventude

Como em leito de morte agora expira

Comido pelo que lhe deu saúde.

Visto isso, tens mais força para amar

E amar muito o que em breve vais deixar.

William Shakespeare

Resumo

William Shakespeare foi um poeta e dramaturgo inglês, tido como o maior escritor do idioma inglês e o mais

influente dramaturgo do mundo. É chamado frequentemente de poeta nacional da Inglaterra e de "Bardo do

Avon" (ou simplesmente The Bard, "O Bardo").

Nasceu em 26 de abril de 1564 em Stratford-upon-Avon onde também foi criado.

Foi um poeta e dramaturgo respeitado em sua própria época, mas sua reputação só viria a atingir o nível

em que se encontra hoje no século XIX. Os românticos, especialmente, aclamaram a genialidade de

Shakespeare, e os vitorianos idolatraram-no como um herói, com uma reverência que George Bernard

Shaw chamava de "bardolatria". No século XX sua obra foi adotada e redescoberta repetidamente por

novos movimentos, tanto na academia e quanto na performance. Suas peças permanecem extremamente

populares hoje em dia , e são estudadas, encenadas e reinterpretadas constantemente, em diversos

contextos culturais e políticos, por todo o mundo.

William Shakespeare morreu em 23 de Abril de 1616, mesmo dia de seu aniversário.É bem conhecida a

coincidência das datas de morte de dois dos grandes escritores da humanidade, Miguel de Cervantes e

William Shakespeare, ambos com data de falecimento em 23 de Abril de 1616. Porém, é importante notar

que o Calendário gregoriano já era utilizado na Espanha desde o século XVI, enquanto que na Inglaterra

sua adoção somente ocorreu em 1751. Daí, em realidade, Miguel de Cervantes faleceu dez dias antes de

William Shakespeare.

Título

A palavra Querida...

Giuseppe Ghiaronni

A palavra "querida", está para a garganta, como o mel para a boca e a mulher para o olhar. Quando um santo do céu, se dirige a uma santa,

de face imaculada e expressão comovida, é assim, penso, que ele a deve chamar:

oh!querida!

Querida é um substantivo espiritual, é um nome. É um fio emocional de um ouro cristalino,

que se estende e que atrai um destino e um destino... Que alinhava e que enleia uma vida e uma vida.

Não é somente um modo de tratar, é um nome,

Assim como Izabel, Marina, Margarida... No entanto é mais que isso, é um nome divino,

que em si define um sonho, um sentimento e um bem.

Querida, não é só uma palavra, é alguém, alguém que tem a vida em nossa própria vida. Querida quer dizer eu mesmo e mais alguém...

oh! querida!

Querida é um adjetivo estranhamente feito de carinho, ciúme, adoração, ternura.

Ninguém dirá "querida" a uma mulher impura,

pois parte da expressão fica em ecos no peito daquele que a usou...

A expressão querida não é bem para ser falada, nem ouvida. É para que uma alma pense e outra a sinta.

Sempre será maldita uma mulher que minta, em silêncio atendendo a alguém que assim a chama,

se não se ouviu chamar, antes que ele falasse, por um tic no peito e um carinho na face,

se não é profundamente a querida que o ama!

Que cruel, que infiel esta mulher fingida, que se deixa chamar de querida e, não ama,

oh!querida!

Querida, quer dizer a que eu amo e estremeço, a que é a minha amante, a minha amiga e irmã,

conheço-a mais que a mim e a tudo que conheço, e com ela eu esqueço o ontem e o amanhã.

A palavra querida é a articulação do primeiro vagido instintivo e inconsciente.

É Deus na nossa boca e o céu na nossa frente,

é ter mundos no olhar, ter estrelas na mão, é ser um fio d´água e uma constelação...

é partilhar da grande Vida Universal, é viver, mas viver como anjo e animal, é encontrar o espaço e resumir a vida, é trilhar confiante uma senda perdida é ser quase divino é ser quase brutal,

é ter uma utopia entre a sala e o quintal é prender-te, sentir-te integrada, diluída em meus braços, em mim,

infiltrada em meus poros, depois que eu derrubei os gigantes e os toros da floresta do mundo e a transpus triunfante!

É te chamar "querida" e ver o teu semblante

transtornado de luz, uma luz comovida...

É chegares o ouvido ao meu peito anelante e ouvir meu coração dizer de instante em instante:

Oh! querida... querida...

Título

Manuel Bandeira

O inútil luar

É noite. A Lua, ardente e terna, Verte na solidão sombria

A sua imensa, a sua eterna Melancolia...

Dormem as sombras na alameda

Ao longo do ermo Piabanha. E dele um ruído vem de seda

Que se amarfanha. . .

No largo, sob os jambolanos, Procuro a sombra embalsamada.

(Noite, consolo dos humanos! Sombra sagrada!)

Um velho senta-se ao meu lado. Medita. Há no seu rosto uma ânsia . . .

Talvez se lembre aqui, coitado! De sua infância.

Ei-lo que saca de um papel . . . Dobra-o direito, ajusta as pontas,

E pensativo, a olhar o anel, Faz umas contas . . .

Com outro moço que se cala, Fala um de compleição raquítica. Presto atenção ao que ele fala:

— É de política.

Adiante uma senhora magra, Em ampla charpa que a modela, Lembra uma estátua de Tanagra.

E, junto dela,

Outra a entretém, a conversar: — "Mamãe não avisou se vinha.

Se ela vier, mando matar Uma galinha."

E embalde a Lua, ardente e terna, Verte na solidão sombria

A sua imensa, a sua eterna Melancolia . . .

Título

Manuel Bandeira

Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei

Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz

Lá a existência é uma aventura De tal modo inconseqüente

Que Joana a Louca de Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente

Da nora que eu nunca tive

E como farei ginástica Andarei de bicicleta

Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar!

E quando estiver cansado Deito na beira do rio

Mando chamar a mãe-d'água

Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino

Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo É outra civilização

Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático Tem alcalóide à vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der

Vontade de me matar — Lá sou amigo do rei —

Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada

Título

Telha de Vidro

Por Rachel de Queiroz

Quando a moça da cidade chegou veio morar na fazenda,

na casa velha... Tão velha!

Quem fez aquela casa foi o bisavô... Deram-lhe para dormir a camarinha,

uma alcova sem luzes, tão escura! mergulhada na tristura

de sua treva e de sua única portinha...

A moça não disse nada, mas mandou buscar na cidade

uma telha de vidro...

Queria que ficasse iluminada sua camarinha sem claridade...

Agora,

o quarto onde ela mora é o quarto mais alegre da fazenda,

tão claro que, ao meio dia, aparece uma renda de arabesco de sol nos ladrilhos

vermelhos, que — coitados — tão velhos

só hoje é que conhecem a luz doa dia...

A luz branca e fria também se mete às vezes pelo clarão

da telha milagrosa...

Ou alguma estrela audaciosa

careteia no espelho onde a moça se penteia.

Que linda camarinha! Era tão feia!

— Você me disse um dia que sua vida era toda escuridão

cinzenta, fria,

sem um luar, sem um clarão... Por que você na experimenta?

A moça foi tão vem sucedida...

Ponha uma telha de vidro em sua vida!

Título

Giuseppe Ghiaroni

A Máquina de Escrever

Mãe, se eu morrer de um repentino mal, vende meus bens a bem dos meus credores:

a fantasia de festivas cores que usei no derradeiro Carnaval.

Vende ese rádio que ganhei de prêmio por um concurso num jornal do povo, e aquele terno novo, ou quase novo,

com poucas manchas de café boêmio.

Vende também meus óculos antigos que me davam uns ares inocentes.

Já não precisarei de duas lentes para enxergar os corações amigos.

Vende , além das gravatas, do chapéu, meus sapatos rangentes. Sem ruído

é mais provável que eu alcance o Céu e logre penetrar despercebido.

Vende meu dente de ouro. O Paraíso requer apenas a expressão do olhar.

Já não precisarei do meu sorriso para um outro sorriso me enganar.

Vende meus olhos a um brechó qualquer que os guarde numa loja poeirenta, reluzindo na sombra pardacenta,

refletindo um semblante de mulher.

Vende tudo, ao findar a minha sorte, libertando minha alma pensativa

para ninguém chorar a minha morte sem realmente desejar que eu viva.

Pode vender meu próprio leito e roupa para pagar àqueles a quem devo.

Sim, vende tudo, minha mãe, mas poupa esta caduca máquina em que escrevo.

Mas poupa a minha amiga de horas mortas, de teclas bambas,tique-taque incerto. De ano em ano, manda-a ao conserto e unta de azeite as suas peças tortas.

Vende todas as grandes pequenezas que eram meu humílimo tesouro,

mas não! ainda que ofereçam ouro, não venda o meu filtro de tristezas!

Quanta vez esta máquina afugenta meus fantasmas da dúvida e do mal,

ela que é minha rude ferramenta, o meu doce instrumento musical.

Bate rangendo, numa espécie de asma, mas cada vez que bate é um grão de trigo. Quando eu morrer, quem a levar consigo

há de levar consigo o meu fantasma.

Pois será para ela uma tortura sentir nas bambas eclas solitárias um bando de dez unhas usurárias

a datilografar uma fatura.

Deixa-a morrer também quando eu morrer; deixa-a calar numa quietude extrema,

à espera do meu último poema que as palavras não dão para fazer.

Conserva-a, minha mãe, no velho lar, conservando os meus íntimos instantes,

e, nas noites de lua, não te espantes quando as teclas baterem devagar.

Título

Giuseppe Ghiaroni

Dia das Mães

Mãe! eu volto a te ver na antiga sala

onde uma noite te deixei sem fala dizendo adeus como quem vai morrer.

E me viste sumir pela neblina, porque a sina das mães é esta sina: amar, cuidar, criar, depois... perder.

Perder o filho é como achar a morte. Perder o filho quando, grande e forte,

já podia ampará-la e compensá-la. Mas nesse instante uma mulher bonita, sorrindo, o rouba, e a velha mãe aflita

ainda se volta para abençoá-la

Assim parti, e nos abençoaste. Fui esquecer o bem que me ensinaste,

fui para o mundo me deseducar. E tu ficaste num silêncio frio,

olhando o leito que eu deixei vazio, cantando uma cantiga de ninar.

Hoje volto coberto de poeira e te encontro quietinha na cadeira,

a cabeça pendida sobre o peito. Quero beijar-te a fronte, e não me atrevo.

Quero acordar-te, mas não sei se devo, não sinto que me caiba este direito.

O direito de dar-te este desgosto, de te mostrar nas rugas do meu rosto

toda a miséria que me aconteceu. E quando vires e expressão horrível da minha máscara irreconhecível,

minha voz rouca murmurar: ''Sou eu!"

Eu bebi na taberna dos cretinos, eu brandi o punhal dos assassinos, eu andei pelo braço dos canalhas.

Eu fui jogral em todas as comédias, eu fui vilão em todas as tragédias,

eu fui covarde em todas as batalhas.

Eu te esqueci: as mães são esquecidas. Vivi a vida, vivi muitas vidas,

e só agora, quando chego ao fim, traído pela última esperança,

e só agora quando a dor me alcança lembro quem nunca se esqueceu de mim.

Não! Eu devo voltar, ser esquecido. Mas que foi? De repente ouço um ruído;

a cadeira rangeu; é tarde agora! Minha mãe se levanta abrindo os braços

e, me envolvendo num milhão de abraços, rendendo graças, diz: "Meu filho!", e chora.

E chora e treme como fala e ri, e parece que Deus entrou aqui,

em vez de o último dos condenados. E o seu pranto rolando em minha face quase é como se o Céu me perdoasse,

me limpasse de todos os pecados.

Mãe! Nos teus braços eu me transfiguro. Lembro que fui criança, que fui puro.

Sim, tenho mãe! E esta ventura é tanta que eu compreendo o que significa: o filho é pobre, mas a mãe é rica!

O filho é homem, mas a mãe é santa!

Santa que eu fiz envelhecer sofrendo, mas que me beija como agradecendo

toda a dor que por mim lhe foi causada. Dos mundos onde andei nada te trouxe,

mas tu me olhas num olhar tão doce que , nada tendo, não te falta nada.

Dia das Mães! É o dia da bondade

maior que todo o mal da humanidade

purificada num amor fecundo.

Por mais que o homem seja um mesquinho,

enquanto a Mãe cantar junto a um bercinho

cantará a esperança para o mundo!

Título

Resíduo

Carlos Drummond de Andrade

De tudo ficou um pouco Do meu medo. Do teu asco. Dos gritos gagos. Da rosa

ficou um pouco Ficou um pouco de luz

captada no chapéu. Nos olhos do rufião

de ternura ficou um pouco (muito pouco).

Pouco ficou deste pó de que teu branco sapato se cobriu. Ficaram poucas roupas, poucos véus rotos

pouco, pouco, muito pouco. Mas de tudo fica um pouco.

Da ponte bombardeada, de duas folhas de grama,

do maço - vazio - de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco. Fica um pouco de teu queixo

no queixo de tua filha. De teu áspero silêncio

um pouco ficou, um pouco nos muros zangados,

nas folhas, mudas, que sobem. Ficou um pouco de tudo

no pires de porcelana, dragão partido, flor branca,

ficou um pouco de ruga na vossa testa,

retrato. Se de tudo fica um pouco,

mas por que não ficaria um pouco de mim? no trem que leva ao norte, no barco,

nos anúncios de jornal, um pouco de mim em Londres,

um pouco de mim algures? na consoante?

no poço? Um pouco fica oscilando na embocadura dos rios

e os peixes não o evitam, um pouco: não está nos livros.

De tudo fica um pouco. Não muito: de uma torneira pinga esta gota absurda, meio sal e meio álcool, salta esta perna de rã, este vidro de relógio

partido em mil esperanças, este pescoço de cisne, este segredo infantil...

De tudo ficou um pouco: de mim; de ti; de Abelardo. Cabelo na minha manga, de tudo ficou um pouco;

vento nas orelhas minhas, simplório arroto, gemido de víscera inconformada, e minúsculos artefatos:

campânula, alvéolo, cápsula de revólver... de aspirina. De tudo ficou um pouco. E de tudo fica um pouco.

Oh abre os vidros de loção e abafa

o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco, e sob as ondas ritmadas

e sob as nuvens e os ventos e sob as pontes e sob os túneis

e sob as labaredas e sob o sarcasmo e sob a gosma e sob o vômito

e sob o soluço, o cárcere, o esquecido e sob os espetáculos e sob a morte escarlate

e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes

e sob tu mesmo e sob teus pés já duros e sob os gonzos da família e da classe,

fica sempre um pouco de tudo.

Às vezes um botão. Às vezes um rato.

Título

O verbo amar JG de Araujo Jorge

Te amei: era de longe que te olhava e de longe me olhavas vagamente...

Ah, quanta coisa nesse tempo a gente sente, que a alma da gente faz escrava.

Te amava: como inquieto adolescente, tremendo ao te enlaçar, e te enlaçava

adivinhando esse mistério ardente do mundo, em cada beijo que te dava.

Te amo: e ao te amar assim vou conjugando

os tempos todos desse amor, enquanto segue a vida, vivendo, e eu, vou te amando...

Te amar: é mais que em verbo é a minha lei,

e é por ti que o repito no meu canto: te amei, te amava, te amo e te amarei!

(Poema de JG de Araujo Jorge do livro -Bazar de Ritmos- 1935)

Título

"Existo" JG de Araujo Jorge

Seu amor me fez real, e me deu sentido da alegria de ser, total, completamente...

Fez de um pobre poeta em sonhos consumido alguém que tem nas mãos um mundo! e sofre, e sente!

Seu amor foi a vida a irromper da semente de um velho coração cansado e ressequido, o verde que voltou ao ramo nu, pendente, a imprevisível flor, o fruto inconcebido...

Seu amor foi milagre a cantar pelo chão como a água, no agreste, a acenar ao viajante

a esperança, o prazer, a vida, a salvação...

Passo a existir, quem sabe ? apenas porque amei... E ela existe talvez, a partir deste instante

porque ela e o seu amor... em versos transformei!

Título

Declaração em juízo

Carlos Drummond de Andrade

Peço desculpas de ser o sobrevivente.

Não por longo tempo, é claro, tranquilizem-se.

Mas devo confessar, reconhecer que sou sobrevivente.

Se é triste/cômico ficar sentado na plateia

quando o espetáculo acabou e fecha-se o teatro,

mais triste/grotesco é permanecer no palco, ator único, sem papel,

quando o público já virou as costas e somente baratas circulam no farelo.

Reparem: não tenho culpa. Não fiz nada para ser

sobrevivente. Não roguei aos altos poderes

que me conservassem tanto tempo. Não matei nenhum dos companheiros.

Se não saí violentamente, se me deixei ficar ficar ficar, foi sem segunda intenção.

Largaram-me aqui, eis tudo, e lá se foram todos, um a um, sem prevenir, sem me acenar,

sem dizer adeus, todos se foram. (houve os que requintaram no silêncio).

Não me queixo. Nem os censuro. Decerto não houve propósito

de me deixar entregue a mim mesmo, perplexo, desentranhado.

Não cuidaram que um sobraria, foi isso. Tornei, tornaram-me

sobre - vivente. Se admiram de eu estar vivo, esclareço: estou sobrevivo. viver, propriamente, não vivi

senão em projeto. Adiamento. Calendário do ano próximo. jamais percebi estar vivendo

quando em volta viviam quantos! Quanto. Alguma vez os invejei.

Outras, sentia pena de tanta vida que se exauria no viver enquanto o não viver,

o sobreviver duravam, perdurando. e me punha a um canto, à espera,

contraditória e simplesmente, de chegar a hora de também viver.

Não chegou. Digo que não. Tudo foram ensaios,

testes, ilustrações. a verdadeira vida sorria longe, indecifrável. Desisti.

Recolhi-me cada vez mais, concha à concha. Agora sou sobrevivente.

Sobrevivente incomoda mais que fantasma. Sei a mim mesmo

incomodo-me. O reflexo é uma prova feroz.

Por mais que me esconda, projeto-me, devolvo-me, provoco-me. não adianta ameaçar-me.

Volto sempre, todas as manhãs me volto, viravolto

com exatidão de carteiro que distribui más notícias. O dia todo é dia

de verificar o meu fenômeno. Estou onde não estão

minhas raízes, meu caminho onde sobrei,

insistente, reiterado, aflitivo sobrevivente

da vida que ainda não vivi, juro por deus e o diabo, não vivi.

Tudo confessado, que pena me será aplicada, ou perdão? Desconfio nada pode ser feito

a meu favor ou contra, nem há técnica de fazer, desfazer

o infeito infazível. Se sou sobrevivente, sou sobrevivente. Cumpre reconhecer-me esta qualidade

que finalmente o é. Sou o único, entendem?

De um grupo muito antigo de que não há memória nas calçadas

e nos vídeos. Único a permanecer, a dormir,

a jantar, a urinar, a tropeçar, até mesmo a sorrir

em rápidas ocasiões, mas garanto que sorrio, como neste momento estou sorrindo

de ser - delícia? - sobrevivente. É esperar apenas, está bem?

Que passe o tempo de sobrevivência e tudo se resolve sem escândalo

ante a justiça indiferente. Acabo de notar, e sem surpresa:

não me ouvem no sentido de entender, nem importa que um sobrevivente

venha contar seu caso, defender-se ou acusar-se, é tudo a mesma

nenhuma coisa, e branca.

Fonte: Blog Café Brasil 01.11.2011

Título

CAIR DAS FOLHAS

Vicente de Carvalho*

“Deixa-me, fonte”! Dizia A flôr, tonta de terror.

E a fonte, sonora e fria, Cantava, levando a flor.

“Deixa-me, deixa-me, fonte!””

Dizia a flor a chorar:

“Eu fui nascida no monte... “Não me leves para o mar”.

E a fonte, 29olo2929 e fria,

Com um sussurro zombador, Por sobre a areia corria,

Corria levando a flôr.

“Ai, balanços do meu galho, “Balanços do berço meu;

“Ai, claras gotas de orvalho “Caídas do azul do céu!...”

Chorava a flor, e gemia,

Branca, branca de terror,

E a fonte sonora e fria, Rolava, levando a flor.

“Adeus, sombra das ramadas,

“Cantigas do rouxinol; “Ai, festa das madrugadas,

“Doçuras do pôr do sol;

“Caricia das brizas leves “Que abrem rasgões de luar...

“Fonte, fonte, não me leves, “Não me leves para o mar!...”

*

As correntezas da vida

E os restos do meu amor Resvalam numa descida

Como a da fonte e da flor...

POEMAS E CANÇÕES (SEGUNDA EDIÇÃO)

Porto: Livraria Chardon, 1909 250 p. 18 cmx 12 cm.

(Conservamos a ortografia antiga, original)

*Vicente Augusto de Carvalho, o “Poeta do Mar”, nasceu em Santos (SP),

em 05/04/1866, lá faleceu no dia 22/04/1924. Poeta, contista, advogado, jornalista, político e magistrado. Foi grande artista do verso, da fase criadora

do Parnasianismo. Ocupou a Cadeira 29 da Academia Brasileira de Letras, tendo sido eleito em 1º de maio de 1909, na sucessão de Artur Azevedo.

Título

Velho Tema II

Vicente de Carvalho

Eu cantarei de amor tão fortemente Com tal celeuma e com tamanhos brados

Que afinal teus ouvidos, dominados, Hão de à força escutar quanto eu sustente.

Quero que meu amor se te apresente

- Não andrajoso e mendigando agrados, Mas tal como é: risonho e sem cuidados,

Muito de altivo, um tanto de insolente.

Nem ele mais a desejar se atreve

Do que merece: eu te amo, e o meu desejo Apenas cobra um bem que se me deve.

Clamo, e não gemo; avanço, e não rastejo;

E vou de olhos enxutos e alma leve À galharda conquista do teu beijo.

Título

TRISTEZA

Álvares de Azevedo*

Eu deixo a vida como deixa o tédio Do deserto o poente caminheiro;

Como as horas de um longo pesadelo Que se desfaz ao dobre de um sineiro;

Como um desterro de minha alma errante, Onde o fogo insensato a consumia...

Só levo uma saudade — é desses tempos Que amorosa ilusão embelecia.

Só levo uma saudade — é dessas sombras Que eu sentia velar nas noites minhas...

De ti, ó minha mãe, pobre coitada, Que por minha tristeza te definhas!

Descansem o meu leito solitário Na floresta dos homens esquecida,

À sombra de uma cruz — e escrevam nela: Foi poeta, sonhou e amou na vida...

(Do livro: “Antologia Nacional”, Livraria Francisco Alves, 1963, RJ)

*Álvares de Azevedo (1831-1852) foi um poeta, escritor e contista, da segunda geração

romântica brasileira. Suas poesias retratam o seu mundo interior. É conhecido como “o

poeta da dúvida”.A figura da mulher aparece em seus versos, ora como um anjo, ora

como um ser fatal, mas sempre inacessível. Álvares de Azevedo é Patrono da cadeira nº

2, da Academia Brasileira de Letras.

Título

O enamorado das rosas

Olegário Mariano*

Toda manhã, ao sol, cabelo ao vento,

Ouvindo a água da fonte que murmura,

Rego as minhas roseiras com ternura,

Que água lhes dando, dou-lhes força e alento.

Cada um tem um suave movimento

Quando a chamar minha atenção procura

E mal desabrochada na espessura,

Manda-me um gesto de agradecimento.

Se cultivei amores às mancheias,

Culpa não cabe às minhas mãos piedosas

Que eles passassem para mãos alheias.

Hoje, esquecendo ingratidões mesquinhas,

Alimento a ilusão de que essas rosas,

Ao menos essas rosas, sejam minhas.

*Olegário Mariano Carneiro da Cunha, poeta, diplomata, deputado federal e constituinte, nasceu no Poço da

Panela, arrabalde da cidade do Recife, estado de Pernambuco, no dia 24 de março, no mesmo ano da

Proclamação da República, em 1889. Segundo os biógrafos da Academia Brasileira de Letras, da qual foi

membro, “sua poesia lírica é simples, correntia, de fundo romântico, pertinente à fase do sincretismo

parnasiano-simbolista de transição para o Modernismo. Ficou conhecido como o “poeta das cigarras”, por

causa de um de seus temas prediletos e considerado o último poeta romântico brasileiro.

Título

As duas sombras

Olegário Mariano

Na encruzilhada silenciosa do Destino,

Quando as estrelas se multiplicam,

Duas sombras errantes se encontram .

A primeira falou : - Nasci de um beijo.

De luz, sou força, vida, alma, esplendor.

Toda a ânsia do Universo...Eu sou o Amor.

O mundo sinto 34olo3434a a meus pés...

Sou Delírio...Loucura...E tu, quem és?

Eu nasci de uma lágrima. Sou flama.

Do teu incêndio que devora...

Vivo, dos olhos tristes de quem ama,

Para os olhos nevoentos de quem chora.

Dizem que ao mundo vim para ser boa.

Para dar do meu sangue a quem queira.

Sou a saudade, a tua companheira

Que punge, que consola e que perdoa...

Na encruzilhada silenciosa do Destino

As duas sombras se abraçaram.

E desde então, nunca mais se

separaram.··.

Título

QUASE

Mário de Sá carneiro*

Um pouco mais de sol — eu era brasa.

Um pouco mais de azul — eu era além.

Para atingir, faltou-me um golpe de asa...

Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído

Num baixo mar enganador d’espuma;

E o grande sonho despertado em bruma,

O grande sonho — ó dor! — quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,

Quase o princípio e o fim — quase a expansão...

Mas na minh’alma tudo se derrama...

Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...

— Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... —

Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,

Asa que se elançou, mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...

Templos aonde nunca pus um altar...

Rios que perdi sem os levar ao mar...

Título

Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...

Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;

E mãos de herói, sem fé, acobardadas,

Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,

Tudo encetei e nada possuí...

Hoje, de mim, só resta o desencanto

Das coisas que beijei mas não vivi...

Dispersão

Perdi-me dentro de mim Porque eu era labirinto

E hoje, quando me sinto. É com saudades de mim.

Passei pela minha vida

Um astro doido a sonhar, Na ânsia de ultrapassar,

Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem, Não tenho amanhã nem hoje: O tempo que aos outros foge Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris

Lembra-me o desaparecido Que sentia comovido

Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família, É bem-estar, é singeleza, E os que olham a beleza

Não têm bem-estar nem família).

Pobre moço das ânsias... Tu, sim, tu eras alguém! E foi por isso também

Que me abismastes nas ânsias.

A grande ave doirada Bateu asas para os céus Mas fechou-se saciada

Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante, Assim me choro a mim mesmo:

Eu fui amante inconstante Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro

Nem as linhas que protejo: Se me olho a um espelho, erro Não me acho no que projeto.

Regresso dentro de mim Mas nada me fala, nada!

Tenho a alma amortalhada, Sequinha dentro de mim.

Não perdi a minha alma, Fiquei com ela, perdida. Assim eu choro, da vida,

Eu nunca vi... mas recordo

A sua boca doirada E o seu corpo esmaecido,

Em um hálito perdido Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades

São do que nunca enlacei. Ai, como eu tenho saudades Dos sonhos que sonhei!... )

E sinto que a minha morte —

Minha dispersão total — Existe lá longe, ao norte,

Numa grande capital.

Vejo o meu último dia Pintado em rolos de fumo,

E todo azul-de-agonia Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,

Eu beijo as minhas mãos brancas... Sou amor e piedade

Em face dessas mãos brancas. . .

Tristes mãos longas e lindas Que eram feitas pra se dar Ninguém mas quis apertar

Tristes mãos longas e lindas

Eu tenho pena de mim, Pobre menino ideal... Que me faltou afinal?

Um elo? Um rastro?... Ai de mim!

Desceu-me n’alma o crepúsculo; Eu fui alguém que passou. Serei, mas já não me sou;

Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal Me penetrou vagamente A difundir-me dormente Em, uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,

E, louco, não enlouqueço... A hora foge vivida

Eu sigo-a, mas permaneço ..

.

*Mário de Sá Carneiro foi poeta, contista e ficcionista português, um dos grandes expoentes do modernismo em Portugal e um dos mais reputados membros da Geração d’Orpheu. Nasceu em Lisboa no dia 19 de Maio de 1890 e faleceu em Paris, em 26 de Abril de 1916. Época /Gênero literário: Modernismo Magnum opus¹: Céu em Fogo ¹Magnum opus, em latim, significa grande obra. Refere-se à melhor, mais popular ou

renomada obra de um artista

Título

Não me Peçam Razões

José Saramago

Não me peçam razões, que não as tenho, Ou darei quantas queiram: bem sabemos Que razões são palavras, todas nascem Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda

A força de maré que me enche o peito, Este estar mal no mundo e nesta lei: Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,

Deste modo de amar e destruir: Quando a noite é de mais é que amanhece

A cor de primavera que há-de vir.

José Saramago, in “Os Poemas Possíveis”

Título

Remorso

Olavo Bilac

Às vezes, uma dor me desespera... Nestas ânsias e dúvidas em que ando. Cismo e padeço, neste outono, quando

Calculo o que perdi na primavera.

Versos e amores sufoquei calando, Sem os gozar numa explosão sincera...

Ah! Mais cem vidas! Com que ardor quisera Mais viver, mais penar e amar cantando!

Sinto o que desperdicei na juventude;

Choro, neste começo de velhice, Mártir da hipocrisia ou da virtude,

Os beijos que não tive por tolice,

Por timidez o que sofrer não pude, E por pudor os versos que não disse!

Título

Crepúsculo de Outono

Manoel Bandeira

O crepúsculo cai, manso como uma benção. Dir-se-á que o rio chora a prisão de seu leito...

As grandes mãos da sombra evangélicas pensam As feridas que a vida abriu em cada peito.

O outono amarelece e despoja os lariços. Um corvo passa e grasna, e deixa esparso no ar

O terror augural de encantos e feitiços. As flores morrem. Toda a relva entra a murchar.

Os pinheiros, porém viçam, e serão breve Todo o verde que a vista espairecendo vejas, Mais negros sobre a alvura unânime da neve,

Altos e espirituais como flechas de igrejas.

Um sino plange. A sua voz ritma o murmúrio Do rio, e isso parece a voz da solidão.

E essa voz enche o vale...o horizonte purpúreo... Consoladora como um divino perdão.

O sol fundiu a neve. A folhagem vermelha Reponta. Apenas há, nos barrancos retortos, Flocos, que a luz do poente extática semelha A um rebanho infeliz de cordeirinhos mortos.

A sombra casa os sons numa grave harmonia. E tamanha esperança e uma tão grande paz

Avultam do clarão que cinge a serrania, Como se houvesse aurora e o mar cantando atrás.

Título

Outono

J. G. de Araújo Jorge

O outono já chegou – aos arrufos do vento

as folhas num desmaio embalam-se pelo ar...

- vão caindo... caindo... uma a uma, em desalento e uma a uma, lentamente, vão no chão pousar...

O céu perdeu o azul – vestiu-se de cinzento e envolveu na neblina a luz baça do luar...

- na alameda onde vou, de momento a momento, há um gemido de folha a cair e a expirar...

O arvoredo transpira as carícias dos ninhos, e o vento a cirandar na curva das estradas

eleva o folhareu no espaço em redemoinhos...

Há um córrego a levar as folhas secas em bando... - e à aragem que soluça entre as ramas curvadas, parece que o arvoredo em coro está chorando!...

Título

Uma névoa de Outono o ar raro vela

Fernando Pessoa

(5-11-1932)

Uma névoa de Outono o ar raro vela, Cores de meia-cor pairam no céu. O que indistintamente se revela,

Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono. Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.

Mas entre mim e ver há um grande sono. De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual, Mas se for outro, porque é amanhã,

Terei outra verdade, universal, E será como esta.

Título

CANÇÃO DE OUTONO

Cecília Meireles

Perdoa-me, folha seca, não posso cuidar de ti.

Vim para amar neste mundo, e até do amor me perdi.

De que serviu tecer flores

pelas areias do chão, se havia gente dormindo sobre o próprio coração?

E não pude levantá-la! Choro pelo que não fiz. E pela minha fraqueza

é que sou triste e infeliz. Perdoa-me, folha seca!

Meus olhos sem força estão velando e rogando aqueles

que não se levantarão...

Tu és a folha de outono voante pelo jardim.

Deixo-te a minha saudade - a melhor parte de mim. Certa de que tudo é vão.

Que tudo é menos que o vento, menos que as folhas do chão...

Título

COLETÂNEA ESCOLHIDA DE GREGÓRIO DE MATOS

Inconstância dos bens do mundo Gregório de Matos

Nasce o Sol e não dura mais que um dia, Depois da Luz, se segue a noite escura, Em tristes sombras morre a formosura,

Em contínuas tristezas, a alegria.

Porém, se acaba o Sol, por que nascia?

Se é tão formosa a Luz, por que não dura?

Como a beleza assim se transfigura?

Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza,

Na formosura não se dê constância,

E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo, enfim, pela ignorância,

Pois tem, qualquer dos bens, por natureza

Firmeza somente na inconstância.

Soneto Sobre a Bahia Gregório de Matos

A cada canto um grande conselheiro.

Que nos quer governar cabana, e vinha, não sabem governar sua cozinha, e podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um frequentado olheiro, que a vida do vizinho, e da vizinha

pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha, para a levar à Praça, e ao Terreiro. Muitos mulatos desavergonhados,

trazidos pelos pés os homens nobres, posta nas palmas toda a picardia. Estupendas usuras nos mercados,

todos, os que não furtam, muito pobres, e eis aqui a cidade da Bahia

Buscando a Cristo Gregório de Matos

A vós correndo vou, braços sagrados,

Nessa cruz sacrossanta descobertos

Que, para receber-me, estais abertos,

E, por não castigar-me, estais cravados.

A vós, divinos olhos, eclipsados

De tanto sangue e lágrimas abertos,

Pois, para perdoar-me, estais despertos,

E, por não condenar-me, estais fechados.

A vós, pregados pés, por não deixar-me,

A vós, sangue vertido, para ungir-me,

A vós, cabeça baixa, p’ra chamar-me

A vós, lado patente, quero unir-me,

A vós, cravos preciosos, quero atar-me,

Para ficar unido, atado e firme.

Epílogos Juízo anatômico da Bahia

Gregório de Matos

Que falta nesta cidade?................Verdade

Que mais por sua desonra?...........Honra

Falta mais que se lhe ponha..........Vergonha.

O demo a viver se exponha,

Por mais que a fama a exalta,

numa cidade, onde falta

Verdade, Honra, Vergonha.

Quem a pôs neste socrócio*?..........Negócio

Quem causa tal perdição?.............Ambição

E o maior desta loucura?...............Usura.

Notável desventura de um povo néscio, e sandeu,

que não sabe, que o perdeu

Negócio, Ambição, Usura.

Quais são os seus doces objetos?....Pretos

Tem outros bens mais maciços?.....Mestiços

Quais destes lhe são mais gratos?...Mulatos.

Dou ao demo os insensatos,

dou ao demo a gente asnal,

que estima por cabedal

Pretos, Mestiços, Mulatos.

Quem faz os círios* mesquinhos?...Meirinhos

Quem faz as farinhas tardas?.........Guardas

Quem as tem nos aposentos?.........Sargentos.

Os círios lá vêm aos centos,

e a terra fica esfaimando,

porque os vão atravessando

Meirinhos, Guardas, Sargentos.

E que justiça a resguarda?.............Bastarda

É grátis distribuída?.....................Vendida

Que tem, que a todos assusta?.......Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa,

o que El-Rei nos dá de graça,

que anda a justiça na praça

Bastarda, Vendida, Injusta.

Que vai pela clerezia?..................Simonia*

E pelos membros da Igreja?..........Inveja

Cuidei, que mais se lhe punha?.....Unha.

Sazonada caramunha*!

enfim que na Santa Sé

o que se pratica, é

Simoni*, Inveja, Unha*.

E nos frades há manqueiras*?.........Freiras

Em que ocupam os serões?............Sermões

Não se ocupam em disputas?.........Putas.

Com palavras dissolutas

me concluís na verdade,

que as lidas todas de um Frade

são Freiras, Sermões, e Putas.

O açúcar já se acabou?..................Baixou

E o dinheiro se extinguiu?.............Subiu

Logo já convalesceu?.....................Morreu.

À Bahia aconteceu

o que a um doente acontece,

cai na cama, o mal lhe cresce,

Baixou, Subiu, e Morreu.

A Câmara não acode?...................Não pode

Pois não tem todo o poder?...........Não quer

É que o governo a convence?........Não vence.

Que haverá que tal pense,

que uma Câmara tão nobre

por ver-se mísera, e pobre

Não pode, não quer, não vence.

*Interpretação de alguns vocábulos:

Socrócio – emplastro, alivio, bálsamo ( o poeta usou-o no sentido antitético, irônico).

Círios – sacos de farinha (a grafia correta é sírios).

Simonia – venda de coisas sagradas.

Unha – roubalheira, avareza, tirania, opressão.

Caramunha – lamentação experiente.

Manqueiras – vícios, defeitos.

1. Gregório de Matos Guerra (Salvador, 23 de dezembro de 1636¹

– Recife, 26 de novembro de 1695),

alcunhado de Boca do Inferno ou Boca de Brasa, foi um advogado e poeta do Brasil colônia. É considerado o maior poeta barroco do Brasil e o mais importante poeta satírico da literatura em língua portuguesa, no período.

¹Por haver divergências a respeito da data de nascimento de Gregório de Matos, foi adotado a utilizada pelo pesquisador Fernando da Rocha Peres, no livro de sua autoria Gregório de Mattos e Guerra: Uma Revisão Biográfica e em nota biográfica publicada no site da Universidade Federal da Bahia/UFBA (http://www.ufba.br/~gmg/gregorio.html)

Título

Velhas Árvores

Olavo Bilac

Olha estas velhas árvores, mais belas

Do que as árvores novas, mais amigas:

Tanto mais belas quanto mais antigas,

Vencedoras da idade e das procelas...

O homem, a fera, e o inseto, à sombra delas

Vivem, livres de fomes e fadigas;

E em seus galhos abrigam-se as cantigas

E os amores das aves tagarelas.

Não choremos, amigo, a mocidade!

Envelheçamos rindo! Envelheçamos

Como as árvores fortes envelhecem:

Na glória da alegria e da bondade,

Agasalhando os pássaros nos ramos,

Dando sombra e consolo aos que padecem!

Olavo Bilac, in “Poesias”

Título

Soneto al vino

Jorge Luis Borges*

¿Quase qué reino, quase qué siglo, bajo qué silenciosa conjunción de 51ol astros, quase qué secreto 51ol

que 51o mármol no quase salvado, surgió 51o valerosa y singular 51olo de inventar 51o 51olo5151a?

Quase otoños de oro 51o inventaron. El vino fluye rojo a 51o largo de 51ol generaciones

como 51o 51ol 51ol tiempo y quase 51o 51olo51 camino nos prodiga su música, su fuego y 51ol leones.

Quase 51o noche 51ol júbilo o quase 51o jornada adversa exalta 51o 51olo5151a o mitiga 51o espanto

y 51o ditirambo nuevo que este 51ol 51o canto

otrora 51o cantaron 51o árabe y 51o persa. Vino, enséñame 51o arte de ver mi propia historia

como si ésta ya fuera ceniza quase 51o 51olo5151a.

*Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo (Buenos Aires, 24 de agosto de 1899 — Genebra, 14 de

junho de 1986) foi um escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino.

Título

Entre o Céu e a Terra

Encontraram-se um dia uma lágrima, uma estrela, uma pérola e um orvalho:

Falou primeiro a estrela:

Quem diria que eu tivesse o trabalho de descer das alturas luminosas para vir conversar com vocês três? Não sabem que sou mais alta que as nuvens,

e que minha altivez fulgura entre mil chamas radiosas na infinita amplidão ? Não é a minha existência transitória. Desde que existe o mundo, acendo o

firmamento por entre o universal deslumbramento. Qual de vocês terá tamanha glória,

se não passam do chão ?

Mas respondeu a pérola vaidosa:

Quem te dará valor entre milhões de lâmpadas no espaço ?

Tu não passas de um grão de explendor metido na poeira do infinito.

Ninguém se lembra de te por no braço, enquanto eu, lá no fundo dos oceanos sou buscada e vendida aos soberanos

para enfeitar com minha limpidez “A Coroa dos Reis”. Vivo no colo explendido dos nobres,

e sobre o rico seio das Rainhas. Não como tu que sob o olhar dos pobres

poetas vagabundos te encaminhas...

Valho mais que tu, e mais ainda valho do que um simples orvalho e uma lágrima,

pois ambos gotas d’água sem o mínimo valor

Disse o orvalho com mágoa.

Nenhuma de vocês tem esse encanto de transformar-se em gozo na boca imaculada de uma flor.

Eu venho lá de cima, radiante

nos braços da alvorada para cobrir de beijos uma rosa

que se sente tão doce nesse instante que vale a pena vê-la tão ditosa, E trazer riso ao coração da terra

“engolfada no pranto”

Eis como sou feliz... Ou na campina ou no cimo da serra

sou sempre uma esperança cristalina nos lábios sorridentes de uma flor.

Calou-se o orvalho. E a lágrima coitada! Esta nada dizia...

E que responde tu ? E ela rolada nada ousava falar...

Porém sublime, com calma respondeu:

Sou o perdão no crime e a vibração no amor

bailo no olhar risonho da alegria moro no olhar tristíssimo da dor

sou a alma da saudade e da harmonia sou até estribilho

na lira soluçante dos poetas... sou oração no pito dos ascetas,

sou relíquia de mãe em coração de filho, sou lembrança de filho em coração de mãe.

Não vivo sobre seios perfumosos

e colos orgulhosos na ostentação efêmera do luxo...

Porém, penetro o espírito do mundo: seja do rei, do sábio mais profundo,

do rústico mais vil, do pecador, do santo e até na face do Senhor

Um dia já rolei...

Eu, lágrima, pequena, penetrei no coração de Deus,

e fiz estremecer e abrir-se extasiado o pórtico dos Céus !

Não sei quantos pecados já lavei...

A lágrima calou-se humildemente... Deslumbrado

O Silêncio a tudo isto contemplou Serenamente

Na vastidão vazia A estrela se ocultou

por detrás duma nuvem... e chorava... A pérola desce à profundez dos mares

E chorava também... O orvalho tremulando sobre a relva...

Também chorava...

E a lágrima SORRIA !!!

Autor: Pietro Gambore

Título

Coletânea escolhida de Henriqueta Lisboa*

Quando tenhas de vir

Quando tenhas de vir, Amor, que escolhas o recanto mais vago, a hora mais linda.

Pesam ao galho verde tantas folhas e estou ansiosa pela tua vinda.

Quando tenhas de vir, escolhe o instante em que a tristeza paire, leve no ar.

Ao crepúsculo, a sós, o olhar distante, é quando a gente principia a amar. Soem teus passos harmonicamente.

Insinua-te aos poucos. Sombra e calma. Tenho horror que tu chegues de repente,

e não encontres alma na minha alma. Que eu fique sem saber quando é que vieste,

quando é que a luz se fez ao nosso olhar. Seja assim como a nevoa azul-celeste onde á curva do 55ol se une a do mar.

Fecho os olhos á espera... Desce a tarde. Está sereno o parque, envolto em bruma.

Perpassa a brisa sem fazer alarde, sem assustar no ramo ave nenhuma.

Seja assim nosso enlevo... Manso quase imperceptível para o derredor.

Que ande musica ou verso em cada phrase, para que eu possa comprehender melhor. E enquanto as flores dormem, sem saber

que doce aroma trescalando então, que me desperte brandamente o ser um beijo suave sobre a minha mão.

Henriqueta Lisboa, in “Senhorita X!...”: revista mensal, social e ilustrada, ano 1, n. 1, out. 1932.

Noturno

Meu pensamento em febre é uma lâmpada acesa a incendiar a noite.

Meus desejos irrequietos, à hora em que não há socorro,

dançam livres como libélulas em redor do fogo.

Publicado: Prisioneira da Noite (1941)

Do supérfluo

Também as cousas participam de nossa vida. Um livro. Uma rosa. Um trecho musical que nos devolve

a horas inaugurais. O crepúsculo acaso visto num país

que não sendo da terra evoca apenas a lembrança

de outra lembrança mais longínqua. O esboço tão-somente de um gesto

de ferina intenção. A graça de um retalho de lua

a pervagar num reposteiro A mesa sobre a qual me debruço

cada dia mais temerosa de meus próprios dizeres.

Tais cousas de íntimo domínio talvez sejam supérfluas.

No entanto que tenho a ver contigo

se não leste o livro que li não viste a rosa que plantei

nem contemplaste o pôr-do-sol à hora em que o amor se foi?

Que tens a ver comigo se dentro em ti não prevalecem as cousas — todavia supérfluas —

do meu intransferível patrimônio? - Henriqueta Lisboa, in “Pousada do Ser”, 1982.

Tempestade

— Menino, vem pra dentro. Olha a chuva lá na serra,

Olha como vem o vento!

— Ah! Como a chuva é bonita

E como o vento é valente!

— Não sejas doido, menino, Esse vento te carrega Essa chuva te derrete

— Eu não sou feito de açúcar

Para derreter na chuva. Eu tenho forças nas pernas Para lutar contra o vento!

E enquanto o vento soprava

E enquanto a chuva caia Que nem um pinto molhado

Teimoso como ele só.

Gosto de chuva com vento Gosto de vento com chuva!

Segredo

Andorinha no fio Escutou um segredo Foi à torre da Igreja. Cochichou com o sino.

E o sino bem alto 57olo57-dem 57olo57-dem 57olo57-dem 57olo57-dem! Toda a cidade Ficou sabendo.

Os lírios

Certa madrugada fria irei de cabelos soltos

ver como crescem os lírios.

Quero saber como crescem simples e belos — perfeitos! –

ao abandono dos campos.

Antes que o sol apareça, neblina rompe neblina

com vestes brancas, irei.

Irei no maior sigilo para que ninguém perceba

contendo a respiração.

Sobre a terra muito fria dobrando meus frios joelhos

farei perguntas à terra.

Depois de ouvir-lhe o segredo deitada por entre lírios adormecerei tranquila.

Em: Nova Lírica, Henriqueta Lisboa, Belo Horizonte, Imprensa Oficial: 1971.

Olhos tristes

Olhos mais tristes ainda do que os meus são esses olhos com que o olhar me fitas. Tenho a impressão que vais dizer adeus

este olhar de renúncias infinitas.

Todos os sonhos, que se fazem seus, tomam logo a expressão de almas aflitas. E até que, um dia, cegue à mão de Deus,

será o olhar de todas as desditas.

Assim parado a olhar-me, quase extinto, esse olhar que, de noite, é como o luar, vem da distância, bêbedo de absinto...

Este olhar, que me enleva e que me assombra,

vive curvado sob o meu olhar como um cipreste sobre a própria sombra.

Minha história romântica

No jardim do meu sonho, outr’ora, quando entrava na vida, ao resplendor de um sol de cereja,

tive a promessa de uma flor que despontava, na ilusão de quem vai possuir o que deseja.

E, ardente, do calor da minha alma que é lava fulgida, à luz do olhar que nunca mais se veja, tendo por humildade o pranto que eu chorava,

a flor se abriu, sorrindo, à sombra de uma igreja.

Uma tarde, porém, sinto que me envenena... E na volúpia de augmentar a própria pena,

espedaço-a nas mãos! Ó Dor, que me confortas!

Hoje, a sós no jardim, às horas lardas, quedo, vendo entre um gozo estranho e uma impressão de medo

boiarem na piscina umas pétalas mortas.

Henriqueta Lisboa, in “Fogo fátuo”, 1925

Azul profundo

Azul profundo, ó bela noite inefável dos

pensamentos de amor!

Ó estrela perfeita sobre o espesso horizonte!

Ó ternura dos lagos

refletindo montanhas!

Ó virginal dor da primavera derradeira!

Ó tesouro desconhecido por toda a eternidade!

Ó luz da solidão,

ó nostalgia, ó Deus!

- Henriqueta Lisboa, in “Azul profundo”, 1956.

Chuva

Chuva torrencial carregada de frutos. Chuva exausta

de longos braços pendentes.

Chuva nos campos da fatalidade

entregando bandeiras.

Música opulenta de rios que se despenham.

Durante noites e noites.

As criaturas estão à espera Protegidas pelas paredes

E a palavra — sol Unge todos os lábios.

Só eu na minha imensidade sem teto, só eu te suporto o peso,

só eu te sorvo esse gosto, de morte.

Chuva, plenitude amarga

de derrota.

Sinto que és retorno, corpo cansado de espírito,

corpo vencido, corpo

que se entrega pesadamente

à terra.

Henriqueta Lisboa, in “A face lívida”, 1945.

Expectativa

Neste instante em que espero uma palavra decisiva,

instante em que de pés e mãos acorrentada estou,

em que a maré montante de meu ser se comprime no ouvido à escuta,

em que meu coração em carne viva se expõe aos olhos dos abutres

num deserto de areia, — o silêncio é um punhal

que por um fio se pendura sobre meu ombro esquerdo.

E há uma eternidade

que nenhum vento sopra neste deserto!

Henriqueta Lisboa, in “Prisioneiro da noite”, 1941.

O poço

Com minhas frágeis e frias mãos

Cavei um poço no fundo do horto

da solidão Cavei um poço

mas bem profundo com minhas mãos.

Henriqueta Lisboa, in “A face lívida”, 1945.

O tempo é um fio

O tempo é um fio bastante frágil

Um fio fino que à toa escapa.

O tempo é um fio.

Tecei! Tecei! Rendas de bilro com gentileza.

Com mais empenho franças espessas. Malhas e redes

com mais astúcia.

O tempo é um fio que vale muito.

Franças espessas carregam frutos. Malhas e redes

apanham peixes.

O tempo é um fio por entre os dedos.

Escapa o fio, perdeu-se o tempo.

Lá vai o tempo

como um farrapo jogado à toa.

Mas ainda é tempo!

Soltai os potros

aos quatro ventos, mandai os servos

de um 61olo a outro, vencei escarpas,

voltai com o tempo que já se foi!...

Henriqueta Lisboa, in “Antologia Poética Nestlé”, [org. Vera Lúcia de Carvalho Marchezi, Ana Maria T.

Borgatto Teresinha Costa H. Bertin]. São Paulo: Fundação Nestlé de Cultura, 2002.

Ó noite

Ó noite, ensina-me o teu magno

segredo: iluminar da sombra.

Da sombra permitir

a visão mais profunda. Projetar pela sombra o roteiro dos astros.

Quanto mais te recolhes, ó noite, nos teus véus,

tanto mais fulgem as constelações.

Serás acaso humilde, generosa,

ou apenas criadora de beleza?

Ó noite, ensina-me o teu magno

segredo.

Henriqueta Lisboa, in “Azul profundo”, 1985.

Tesouros

Quero ser fruta macia

Doce, amarela, madura Para saciar a fome

Dos passarinhos Que ficam Famintos

Sem ter um ninho.

Quero ser fonte fresquinha, Descendo a pé da montanha

Sarando a sede Com beijos Aos litros,

E com fartura Toda secura das almas.

Quero ser chuva fininha

Caindo mansa Na horta

Fazer crescer, Bem viçosa,

O rabanete, agrião, Cenoura, batata doce. Cebolinha, caridade,

Chocolate de bombom.

Quero ser sol de tardinha Crepusculando

A toada Com café quente na trempe

Cheiro de biscoito frito E conversa Na soleira.

Até dar sono Na gente.

Quero ser plena portante

Dessa riqueza imensa Chamada

Simplicidade.

Presépio

Eu inda quero sentir O branco olor d’açucena Passar os olhos espertos Sobre o manto de flanela Azul, mesclado de tons

De um berço Com criança.

Eu inda quero escutar

O cantoninar sereno De uma Callas esquecida

Em bairro de classe média Esquentando a mamadeira

Nanar o neném Dormir.

Quero tecer sapatinho

De tricô em ponto-cruz Casaco, meia, futuro Enxoval de esperança Rosa, azul e amarelo.

Sete dias Cai o umbigo.

Por quê?

Porque há ais... Há sim longa fila

De espera.

E nela

Serpenteante

De tão longa Está um rapaz formoso, A bela moça prendada,

No velho brota bondade, Uma menininha linda

Com vestidinho engomado,

Seres querendo ser. Que não conseguem nem ser

Já que ninguém mais quer ser Josés e Marias ou Marias A montar rudes presépios

De deixar vir para o mundo O Menino de Amor

Um pouco viver Mesmo que um dia

Morrer Crucificado...

Horizonte

Alma em suspiro pelo encontro

do que fica sempre mais longe

Em Reverberações (1976)

*Henriqueta Lisboa

Henriqueta Lisboa (1901-1985), poeta mineira considerada pela crítica um dos grandes nomes da lírica modernista, dedicou-se à poesia, ensaios e traduções. Nasceu em Lambari, Minas Gerais, em 15 de julho de 1901 formou-se normalista pelo Colégio Sion de Campanha, MG, e, em 1924, mudou-se para o Rio de Janeiro.

Henriqueta manteve-se sempre atuante no diálogo com os escritores e intelectuais de sua geração e angariou muitos leitores ilustres durante sua vida, dentre eles Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles e Gabriela Mistral.

Sobre sua poesia, Drummond nos deixou o seguinte testemunho: “Não haverá, em nosso acervo poético, instantes mais altos do que os atingidos por este tímido e esquivo poeta.”

Foi a primeira mulher eleita para a Academia Mineira de Letras em 1963, onde ocupou a cadeira de nº 26. Sua poesia tornou-se conhecida no exterior, sendo traduzida em várias línguas, como o francês, inglês, italiano, espanhol, alemão e latim.

Henriqueta faleceu em Belo Horizonte, no dia 9 de outubro de 1985. Seu Centenário foi comemorado ao longo do ano de 2002.

OBS.: Conservamos a linguagem original de todos os poemas

Título

Invictus, o poema que terá inspirado Nelson Mandela

" (...) Não importa o quão estreito seja o portão

e quão repleta de castigos seja a sentença,

eu sou o dono do meu destino,

eu sou o capitão da minha alma "

É difícil mensurar quantas vezes esses versos foram repetidos na literatura, no cinema ou em

discursos inspiradores.

Mais de um século após ser escrito, o poema "Invictus", do britânico William Ernest Henley

continua fascinando e influenciando pessoas em todo o mundo. Certamente, Henley, o mais velho

de seis filhos, não imaginou que tanto tempo depois suas palavras - escritas em 1875 - inspirariam

um personagem importante da história não só da África, mas mundial: Nelson Mandela.

Quando aprisionado em Robben Island, onde cumpria pena de trabalhos forçados, o líder sul-

africano, símbolo da luta contra o Apartheid, encontrou nas palavras de Henley a esperança e a

força necessárias para manter-se vivo. Mandela conta que toda vez que começava a esmorecer, lia

e relia o texto, em busca de um "companheiro" para a dor. O professor de literatura inglesa

Marion Hoctor, em entrevista a CNN, explicou que o poema representa o humanismo secular, o

espírito da época vitoriana, a ascensão de Darwin e as ciências como um desafio ao pensamento

tradicional e criacionismo.

"Invictus" é a inspiração para o filme homónimo, de Clint Eastwood. Em outro momento de

protagonismo, os versos do inglês foram as últimas palavras de Timothy McVeigh, soldado

americano condenado à morte por ataque terrorista que deixou 168 mortos na cidade de

Oklahoma, Estados Unidos. Leia na íntegra o poema original, em inglês e a respectiva tradução para português.

Invictus

Out of the night that covers me,

Black as the pit from pole to pole,

I thank whatever gods may be

For my unconquerable soul.

In the fell clutch of circumstance

I have not winced nor cried aloud.

Under the bludgeonings of chance

My head is bloody, but unbowed.

Beyond this place of wrath and tears

Looms but the Horror of the shade,

And yet the menace of the years

Finds and shall find me unafraid.

It matters not how strait the gate,

How charged with punishment the scroll,

I am the master of my fate:

I am the captain of my soul.

Invictus

Dentro da noite que me rodeia

Negra como um poço de lado a lado

Agradeço aos deuses que existem

por minha alma indomável

Sob as garras cruéis das circunstâncias

eu não tremo e nem me desespero

Sob os duros golpes do acaso

Minha cabeça sangra, mas continua erguida

Mais além deste lugar de lágrimas e ira,

Jazem os horrores da sombra.

Mas a ameaça dos anos,

Me encontra e me encontrará, sem medo.

Não importa quão estreito o portão

Quão repleta de castigo a sentença,

Eu sou o senhor de meu destino

Eu sou o capitão de minha alma.

Fonte (SIC): http://www.vivaviver.com.br/boa_leitura/invictus_o_poema_que_inspirou_nelson_mandela/1266/

Transcrição integral: Poeta Eugênio de Sá

Título

Canção

Emilio Moura*

Viver não dói. O que dói

é a vida que se não vive.

Tanto mais bela sonhada,

quanto mais triste perdida.

Viver não dói. O que dói

é o tempo, essa força onírica

em que se criam os mitos

que o próprio tempo devora.

Viver não dói. O que dói

é essa estranha lucidez,

misto de fome e de sede

com que tudo devoramos.

Viver não dói. O que dói,

ferindo fundo, ferindo,

é a distância infinita

entre a vida que se pensa

e o pensamento vivido.

Que tudo o mais é perdido.

*Poeta mineiro, nascido na cidade de Dores do Indaiá em 1902. Foi Integrante do grupo de modernistas mineiros que

ajudaram a revolucionar a literatura brasileira na década de 1920. A amizade com Drummond perdurou até a sua morte

e Drummond despediu-se dele escrevendo: Corredor ou caverna ou túnel ou presídio, não importa. Uma luz violeta vai

seguir-me: a saudade de Emílio Moura".

Título

Não sei - Cora Coralina*

Não sei ... se a vida é curta

ou longa demais pra nós,

Mas sei que nada do que vivemos tem sentido,

se não tocamos o coração das pessoas.

Muitas vezes basta ser:

Colo que acolhe,

Braço que envolve,

Palavra que conforta,

Silêncio que respeita.

Alegria que contagia,

Lágrima que corre,

Olhar que acaricia,

Desejo que sacia,

Amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo,

é o que dá sentido à vida.

É o que faz com que ela

não seja curta,

nem longa demais

Mas que seja intensa

Verdadeira, pura ...

Enquanto durar.

*Cora Coralina, pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, foi uma poetisa e contista

brasileira. Considerada uma das principais escritoras brasileiras, ela teve seu primeiro livro

publicado em junho de 1965, quando já tinha quase 76 anos de idade. Nasceu em 20 de agosto de

1889 e faleceu em 10 de abril de 1985 aos 95 anos de idade

“Mesmo quando tudo parece desabar, cabe a mim decidir

entre rir ou chorar, ir ou ficar, desistir ou lutar; porque

descobri, no caminho incerto da vida, que o mais importante é

o decidir.”

“Se a gente cresce com os golpes duros da vida, também

podemos crescer com os toques suaves na alma.”

Título

SONETO

Tradução de Thiago de Mello

Não te quero a não ser porque te quero

e de te querer a não te querer chego

e de te esperar quando não te espero

passa meu coração do frio ao fogo.

Só te quero porque é a ti quem quero,

sem fim te odeio, e com ódio te peço,

e a medida do amor meu, viageiro,

é não te ver e amar-te como um cego.

Talvez consuma a luz de janeiro,

seu raio cruel, meu coração inteiro,

de mim roubando a chave do sossego.

Nessa história só eu morro

e morrerei de amor porque te quero,

porque te quero, amor, a sangue e fogo.

(De Cien sonetos de amor)

SONETO

Tradução de Thiago de Mello

Pensei morrer, senti de perto o frio,

e de quanto vivi só a ti eu deixava:

tua boca era o meu dia e minha noite terrestres

e tua pele a república fundada por meus beijos.

Nesse instante se terminaram os livros,

a amizade, os tesouros sem trégua acumulados,

a casa transparente que tu e eu construímos:

tudo deixou de ser, menos os teus olhos.

Porque o amor, enquanto a vida nos acossa,

é simplesmente uma onda alta sobre as ondas

mas ai quando a morte nos vem tocar a porta

só existe teu olhar para tanto vazio,

só a tua claridade para não seguir sendo,

somente o teu amor para encerrar a sombra.

(De Cien sonetos de amor)

Soneto XLIII

Um sinal teu busco em todas as outras,

no brusco, ondulante rio das mulheres,

tranças, olhos apenas submergidos,

pés claros que resvalam navegando na espuma.

De repente me parece que diviso tuas unhas

oblongas, fugitivas, sobrinhas de uma cerejeira,

e outra vez é teu pelo que passa e me parece

ver arder na água teu retrato de fogueira.

Olhei, mas nenhuma levava teu latejo,

tua luz, a greda escura que trouxeste do bosque,

nenhuma teve tuas mínimas orelhas.

Tu és total e breve, de todas és uma,

e assim contigo vou percorrendo e amando

um amplo Mississipi de estuário feminino.

Cem Sonetos de Amor – tradução de Carlos Nejar. Rio Grande do Sul: L & PM, 1979, p. 55

Título