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1 NORMA DA SILVA LOPES LÚCIA MARIA DE JESUS PARCERO CRISTINA DOS SANTOS CARVALHO (Organizadoras) ESTUDOS SOBRE A RELAÇÃO ENTRE LÍNGUA E SOCIEDADE ANAIS DO VI ENCONTRO DE SOCIOLINGUÍSTICA Produção do projeto VI Encontro de Sociolinguística Apoio Edital 2/2016 PPGEL/UNEB/Salvador, 2016

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1

NORMA DA SILVA LOPES

LÚCIA MARIA DE JESUS PARCERO

CRISTINA DOS SANTOS CARVALHO

(Organizadoras)

ESTUDOS SOBRE A RELAÇÃO ENTRE LÍNGUA

E SOCIEDADE

ANAIS DO VI ENCONTRO DE SOCIOLINGUÍSTICA

Produção do projeto VI Encontro de Sociolinguística

Apoio

Edital 2/2016

PPGEL/UNEB/Salvador, 2016

2

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

REITOR

José Bites De Carvalho

PRÓ-REITORA DE PÓS-GRADUAÇÃO

Tânia Maria Hetkowski

DIRETOR DO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA HUMANAS

Flávio Dias dos Santos Correia

COORDENADORA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE

LINGUAGENS

Márcia RIOS

COMISSÃO ORGANIZADORA DO VI ENCONTRO DE SOCIOLINGÍSTICA: O

PORTUGUÊS DO NORDESTE

Norma da Silva Lopes (UNEB - Presidente da Comissão)

Josane Moreira de Oliveira (Uefs)

Silvana Araújo (UEFS)

Raquel Freitag (UFS)

Jânia Ramos (UFMG)

COMISSÃO CIENTÍFICA

Cristina dos Santos Carvalho

Lígia Pellon de L Bulhões

Lúcia Maria de Jesus Parcero

Constância Maria Borges de Soza

3

Ficha Catalográfica elaborada pelo CDI/UNEB

BIBLIOTECÁRIA Hildete Santos Pita Costa/CRB737-5

Anais do VI Encontro de Sociolinguística: Estudos sobre a relação entre língua e sociedade( 6. : 2016 : Salvador. BA) Organizadores dos Anais Norma da Silva Lopes, Lúcia Maria de Jesus Parcero e Cristina dos Santos Carvalho -

Salvador. PPGEL, 2016

173p ISSN 2526 -0820

1. Sociolinguística 2 Língua 3 Sociedade. I Título .

CDD 410

4

APRESENTAÇÃO

O VI Encontro de Sociolinguística, promovido pela Universidade do Estado da Bahia

(UNEB), em parceira com a Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), a

Universidade Federal de Sergipe (UFS) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e

financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB), ocorreu na

UNEB – Campus I, nos dias 29 e 30 de setembro de 2016.

Abordando o tema O português do Nordeste: (para além das) fronteiras linguísticas,

o evento teve o objetivo de socializar pesquisas sociolinguísticas no sentido mais amplo do

termo, realizadas e em andamento em universidades brasileiras, sobre variedades faladas nos

estados nordestinos. Entre essas variedades, algumas enfocadas foram as da Bahia (Salvador e

cidades da Região do Semiárido e outras), de Sergipe e Piauí (Teresina). No entanto, o evento

também pretendeu propiciar debates mais gerais sobre a diversidade linguística e,

principalmente, sobre a diversidade do português brasileiro, seu reconhecimento e ensino, o

que motivou a proposição do subtítulo (para além das) fronteiras linguísticas.

Para discussão do tema proposto e de suas possíveis imbricações, a programação do

evento constou de conferências, mesas-redondas e sessões de comunicações individuais. As

questões teórico-metodológicas sobre língua ou ensino discutidas nessas atividades se

inseriram em diferentes vertentes da Sociolinguística (Variacionista, Interacional) ou foram

contempladas na interface da Sociolinguística com outros modelos teóricos, por exemplo,

Dialectologia e Funcionalismo, além de outras poucas pesquisas que estudaram a relação mais

ampla entre língua e sociedade.

Contando com a participação de professores, pesquisadores, graduandos e pós-

graduandos de diferentes instituições de ensino superior, o Encontro de Sociolinguística, na

sua sexta edição, revelou-se um espaço profícuo à reflexão acerca de temáticas que envolvem

a relação entre língua e sociedade e, por conseguinte, à troca de experiências e conhecimentos

linguísticos. Visando ao compartilhamento dessas experiências e conhecimentos, estes Anais

reúnem trabalhos apresentados nas sessões de comunicações individuais, avaliados e aceitos

pela Comissão Científica do evento. Foram, então, publicados 14 trabalhos.

Fazemos-lhe um convite a uma interlocução com estes trabalhos!

Boa leitura!

Norma da Silva Lopes (UNEB)

Lúcia Maria de Jesus Parcero (UNEB)

Cristina dos Santos Carvalho (UNEB)

Organizadoras

5

SUMÁRIO

CAMBALHOTA, DA DIVERSÃO INFANTIL AO EXERCÍCIO

ACROBÁTICO: A PRODUTIVIDADE DAS VARIANTES

LEXICAIS DOS GRUPOS CIGANOS, DA BAHIA E DE

PERNAMBUCO

Geysa Andrade da Silva (UEFS)

Rita de Cássia Ribeiro Queiroz (UEFS; PPGEL/UNEB)

7

O ITEM ONDE EM PROCESSO DE MUDANÇA

ANÁLISE DE USOS EM REDAÇÕES DO VESTIBULAR/2013 DE

UMA UNIVERSIDADE EM SALVADOR

Ilana Guimarães de Souza (UNEB-PPGEL)

22

A VARIAÇÃO TU/VOCÊ NO PORTUGUÊS POPULAR FALADO

DE SALVADOR E AMARGOSA, NA BAHIA

Lorena Cristina Ribeiro Nascimento (PPGLinC-UFBA)

Marcela Moura Torres Paim (PPGLinC-UFBA)

31

CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSTITUIÇÃO IDENTITÁRIA

DOS TOPÔMINOS DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO

LITORAL NORTE E AGRESTE BAIANO

Ayesk de Jesus Machado (UNEB-PPGEL)

Maria da Conceição Reis Teixeira (UNEB-PPGEL)

46

A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NO ENSINO DE LÍNGUA

PORTUGUESA

Carlos Wilson J. Pedreira (MPLE/UFPB)

Prof. Dr. Dermeval da Hora (MPLE/UFPB)

Profa. Dra. Norma da Silva Lopes (UNEB-PPGEL)

56

EMPATIA COMO TRAÇO PARA FILIAÇÃO A COMUNIDADES

DE PRÁTICA GAYS EM SALVADOR (BA): CONSIDERAÇÕES

INICIAIS

Danniel da Silva Carvalho (UFBA/PPGLinC)

Rafael Gurgel Almeida (UFBA)

69

OS MANO, OS CARA, OS HOMI: CONCORDÂNCIA,

IDENTIDADE E CONSCIÊNCIA RACIAL

Fernanda de Oliveira Cerqueira (FAPESB/ PPGLinC / UFBA)

84

DIVERSIDADE LINGUÍSTICA DO ITEM LEXICAL

“AGUARDENTE”: UMA ANÁLISE A PARTIR DOS DADOS DO

PROJETO ALERS Ludinalva S. do Amor DIVINO (UFBA)

94

ALMA E ESPÍRITO: TERMOS DO ESPIRITISMO

Amilca Mª de Lima Fernandes (PPGEL/UNEB)

107

6

Celina Márcia de Souza Abbade (PPGEL/ UNEB)

FORMAS DE INDETERMINAÇÃO DO SUJEITO NA FALA DOS

SOTEROPOLITANOS: UM OLHAR SOBRE OS DADOS DO ALIB

Tassila Ferreira Vale Guimarães (PPGEL/ UNEB)

118

ELEMENTOS PERSUASIVOS DO DISCURSO RETÓRICO DO

PRESIDENTE MICHEL TEMER

Fredson Augusto Silva Oliveira (PPGEL/ UNEB)

128

UMA OBSERVAÇÃO DA PUBLICIDADE NO SEGMENTO DE

ESTÉTICA FEMININA: ESTUDO DE CASO EM UMA EMPRESA

BAIANA

Alessandra Lopes Fontoura (PPGEL/ UNEB)

152

TRÊS VARIÁVEIS EM OBSERVAÇÃO EM SALVADOR

Norma da Silva Lopes (PPGEL/ UNEB)

Caroline Pereira Bomfim (UNEB)

Rebeca Lorena Carrilho Magalhães de Deus (UNEB)

Taise Rocha dos Santos (PPGEL/ UNEB)

158

7

CAMBALHOTA, DA DIVERSÃO INFANTIL AO EXERCÍCIO ACROBÁTICO: A

PRODUTIVIDADE DAS VARIANTES LEXICAIS DOS GRUPOS CIGANOS, DA

BAHIA E DE PERNAMBUCO.

Geysa Andrade da Silva1

Rita de Cássia Ribeiro Queiroz2

RESUMO: O léxico representa um patrimônio cultural de uma sociedade, ratifica traços do

uso da língua por um grupo social. Por esse viés, a análise lexical consegue contribuir para a

compreensão de aspectos da cultura popular e, portanto, evidenciar folclore e tradições,

característicos de determinados grupos sociais. A partir das respostas fornecidas pelos ciganos

informantes da pesquisa realizada nos estados da Bahia e de Pernambuco, para a pergunta 155

do Questionário Semântico-lexical do Projeto Atlas Linguístico do Brasil (Projeto ALiB),

área semântica dos jogos e diversões infantis, foram analisadas as designações para

“cambalhota” que estão vinculadas a brincadeira, seja como atividade lúdica da primeira

infância ou atividades avançadas acompanhadas por educadores ou treinadores na arte da

acrobacia e que permeiam o repertório dos ciganos de cada região. Esse estudo teve como

objetivo a análise diatópica, diageracional, diassexual e léxico-semântica do recorte do

vocabulário selecionado; pode-se observar, assim, dentre outros aspectos, a produtividade das

variantes e a questão regional evidenciada na sua diversidade; a manifestação da visão de

mundo do falante, baseado na idade e no sexo/gênero nas designações fornecidas pelo grupo

étnico; além da análise dessas variantes do ponto de vista semântico-lexical. Para tanto, os

itens lexicais encontrados foram também analisados com base em pesquisas a dicionários:

Houaiss (2009), Ferreira (2010), Aulete (2012), além de recorrer-se a Nascentes (1988). A

pesquisa demonstrou que a brincadeira conserva-se nos estados pesquisados, com um total de

88,88% de respostas válidas, revelado pelas escolhas lexicais dos falantes. Em súmula, a

pesquisa baseada na lexicologia e sociolinguística contribuiu para o conhecimento das

variantes léxico-regionais dos falantes, investigando ainda as motivações sócio-históricas que

as influenciaram, especificamente da cambalhota que, por sua vez, revela aspectos de uma

dimensão que se inicia na infância como diversão, mas pode se estender à vida adulta como

exercício acrobático.

Palavras-chave: Sociolinguística. Lexicologia. Ciganos. Cambalhota.

1 Introdução

Objetiva-se com o texto apresentar os resultados parciais alcançados a partir da

pesquisa de Mestrado em Estudos Linguísticos, realizada na Universidade Estadual de Feira

1Profª. auxiliar do Departamento de Ciências Humanas da Universidade do Estado da Bahia – UNEB – CAMPUS IV –

Jacobina -BA , Brasil. Especialista em Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa (1988) pela Universidade

Estadual de Feira de Santana. E-mail: [email protected]. 2Profª plena do Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS. Doutora em Filologia

e Língua Portuguesa (2002) pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected].

8

de Santana. A pesquisa fundamenta-se na Lexicologia e na interface da Sociolinguística e

Dialetologia, com enfoque nas lexias usadas pelos informantes de comunidades ciganas de

mesorregiões da Bahia e de Pernambuco. A questão que motivou o estudo foi a seguinte: O

léxico produzido pelas comunidades ciganas da Mesorregião do Centro-Norte Baiano

(microrregião de Jacobina, nas cidades de Jacobina e Miguel Calmon) e da Mesorregião do

Sertão de Pernambuco (Flores, na microrregião do Pajeú, e Ouricuri, na microrregião de

Araripina), observado a partir do Questionário Semântico-lexical do Atlas Linguístico do

Brasil do – ALiB, com base no jogos e diversões infantis, fornece dados que marcam a

variação lexical do povo cigano? Aqui, tem-se um recorte da pesquisa, a análise e o resultado

de uma das questões trabalhadas, especificamente a QSL 155 - “Como se chama a brincadeira

em que se gira o corpo sobre a cabeça e acaba sentado?” (COMITÊ... 2001, p.34).

Estabeleceram-se os objetivos seguintes para a pesquisa: (i) examinar os dados de

variação lexical a partir das obras lexicográficas Houaiss (2009), Ferreira (2010), Aulete

(2012) para averiguar se as lexias encontradas estão ou não dicionarizadas e se possuem

identificação com a brincadeira em questão; (ii) identificar possíveis variações dialetais nas

comunidades pesquisadas; (iii) verificar a influência de possíveis fatores socioculturais -

variação diassexual, diageracional, diastrática, entre outras – nas escolhas realizadas pelos

falantes; (iv) identificar traços da cultura dos ciganos enquanto grupo étnico.

Como afirma Ribeiro (2014), o léxico referente a jogos e brincadeiras infantis é muito

rico e diversificado e pouco difundido, por isso mesmo constitui-se uma área de estudo

instigante.

2 Breves considerações teóricas

O léxico, entre outras funções, nomeia seres e objetos e todo o repertório de uma

língua; marca não apenas o percurso do conhecimento humano sobre o universo, mas serve

também para, através da identificação de semelhanças e /ou traços distintivos – desse léxico –

estabelecer a identidade do indivíduo.

O léxico não está cristalizado, e por isso mesmo, circula na língua viva dos falantes, é

fonte inesgotável de possíveis combinações nessa mesma língua. Ao selecionar uma

determinada lexia, deixa-se de fazê-lo a tantas outras do eixo paradigmático, concretamente,

traz-se para o contexto da fala/escrita toda a carga semântica projetada naquela escolha.

9

Borges, apud Herrera (2015), revela que é a necessidade dos usuários da língua, no

seu dia-a-dia, que faz desenvolver o léxico, dinâmico e flexível com as relações no mundo

[...] suponho que uma nação desenvolve as palavras de que precisa, o que equivale

a dizer que uma língua não é, como o dicionário nos leva a crer, invenção de

acadêmicos ou filólogos. Pelo contrário foi desenvolvida ao longo do tempo,

durante muito tempo por camponeses, pescadores, caçadores, por cavaleiros. Não

veio das bibliotecas, veio dos campos, do mar, dos rios, da noite, da madrugada.

(BORGES, 2000, p. 69-70 apud HERRERA, 2015, p. 508)

A busca de pertencimento é, portanto, delimitada pelo léxico. Torna-se uma

possibilidade entre os fenômenos identitários que produzem efeitos pela e na língua. Fruto de

inúmeras reflexões e visualizadas por vários ângulos, inúmeras serão as faces do léxico e da

identidade, isso porque estudiosos diversos e suas questões norteiam nossas observações e

pesquisas.

Viver mudanças constantes, rápidas e permanentes é um fato nas sociedades

globalizadas, assegura Hall (2006). Isso causa um alto impacto sobre as identidades estáveis

do passado, ao mesmo tempo em que surgem novas possibilidades de articulações.

Sabemos hoje que as identidades culturais não são rígidas nem, muito menos,

imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de

identificação. [...] Identidades são, pois, identificações em curso (SOUSA

SANTOS, 2000, p.135).

O léxico será marca desta identidade. Os valores, crenças, costumes,

comportamento social, diversões de uma comunidade, entre tantos outros itens, manifestam-se

a partir do léxico,

[...] representa a janela através da qual uma comunidade pode ver o mundo, uma

vez que esse nível da língua é o que mais deixa transparecer os valores, as crenças,

os hábitos e os costumes de uma comunidade, como também, as inovações

tecnológicas, transformações socioeconômicas e políticas ocorridas em uma

sociedade. (OLIVEIRA; ISQUERDO, 2001. p.9).

A forma como a comunidade se organiza é fruto da consciência lexical dos seus

membros, que assim deixam transparecer uma relação direta entre léxico e cultura. O

patrimônio vocabular de uma comunidade linguística é, portanto, uma riqueza cultural

imaterial.

Esse acervo de palavras do idioma é estudado por um ramo da linguística

contemporânea – a Lexicologia; para Abbade (2011, p. 1333), “é uma ciência recente, mas os

10

estudos acerca das palavras remontam a Antiguidade Clássica”. A autora ainda relata que a

Lexicologia ficou em segundo plano durante muitos anos e que apenas “nos finais do século

XIX, com a marca triunfal da geografia linguística e consequentemente o florescimento da

Onomasiologia, o interesse linguístico passa pouco a pouco da investigação fonética para o

dos problemas lexicais” (ABBADE, 2011, 1333).

“Estudar o léxico de uma língua é abrir possibilidades de conhecer a história social do

povo que a utiliza” (ABBADE, 2011, p. 1332), já que a Lexicologia é, sem dúvida, uma

ciência que estuda uma cultura, um povo nos seus aspectos sociais, históricos, políticos,

econômicos e linguísticos também, além de estudar o léxico nas suas diversas relações com os

mais variados sistemas da língua.

A Lexicologia concebe suporte para os estudos lexicais de comunidades ciganas da

Bahia e de Pernambuco, baseados em extrato do QSL do ALiB, no ponto em que se faz

interdisciplinar com a Sociolinguística e a Dialetologia.

Acreditar que a língua seja um sistema unitário e invariável, que preserva uma

homogeneidade, é ter uma visão estruturalista desse objeto engendrada por Saussure. Mas, ao

longo das décadas, a língua se tornou um objeto de investigação de muitas teorias; em uma

delas, a investigação correlaciona grupos de fatores estruturais e os de natureza social no seio

da comunidade de fala. Surge, então, a Sociolinguística.

Em condições concretas de uso da língua, a variação é fato. Cabe à Sociolinguística

então, investigar o grau de mutabilidade ou de estabilidade dessa variação, uma vez que elas

são contextualizadas e têm origens e níveis diversos. A exemplo das variáveis externas, os

fatores podem ser inerentes ao indivíduo, propriamente sociais e até circunstanciais.

A homogeneidade da língua é um conto, um encanto, que não se sustenta como

modelo hegemônico, inevitavelmente supera-se o Estruturalismo e o desejo de Saussure de

manter a análise da língua como objeto invariável no seu desempenho efetivo (em uso), em

como a língua funciona. A Sociolinguística traz para esses estudos da gramática da

comunidade de fala o traço coletivo, focando na variação linguística dentro da interação

social. O objeto é o mesmo, muda-se a maneira de apreensão dele.

Para compreender essa estrutura incrivelmente complexa, é preciso aproximar esse

estudo lexical também para o meio da comunidade, já que o léxico vem entranhado de carga

sociocultural e regional. Assim não só a Sociolinguística, mas também a Dialetologia pode

contribuir intensamente com os estudos lexicais.

De acordo com Cardoso (2010, p.26),

11

Apesar de “consideradas até certo ponto sinônimas”, dialetologia e

sociolinguística, ao se ocuparem da diversidade de usos da língua, atribuem um

caráter particular e individualizante no tratamento do seu objeto de estudo. [...] A

dialetologia, nada obstante considerar fatores sociais como elementos relevantes na

coleta e tratamento de dados, tem como base da sua descrição a localização

espacial dos fatos considerados, configura-se, dessa forma, como eminentemente

diatópica. A sociolinguística, ainda que estabeleça a intercomparação entre dados

diferenciados do ponto de vista espacial, centra-se na correlação entre os fatos

linguísticos e os fatores sociais, priorizando, dessa forma, as relações

sociolinguísticas.

A Dialetologia inclina seus estudos sobre os usos que os grupos de determinada região

fazem da língua, estuda os traços linguísticos no Brasil, por exemplo, vinculando o léxico a

distintos níveis da língua. Essa ciência propõe-se a investigar dentro do sistema linguístico

não só os aspectos variáveis de acordo com a variação geográfica e, por isso mesmo, Cardoso

(2010, p. 26) menciona que “a Dialetologia tem, assim, duas diretrizes, dois caminhos, no

exame do fenômeno linguístico, que se identificam nos estudos dialetais: a perspectiva

diatópica e o enfoque sociolinguístico”. É nesse ponto que se dá a interface.

3 A produtividade das variações lexicais em “cambalhota”

A brincadeira está presente desde a primeira infância, inicialmente em casa e depois se

estende para as aulas de recreação, passando pelas de Educação Física, chegando até a

ginástica acrobática ou mesmo a capoeira, artes marciais, natação (virada olímpica), dentre

vários outros.

Como atividade lúdica de iniciantes, a cambalhota dá-se em locais macios, geralmente

colchões e sofás de casa; em outras atividades acompanhadas por educadores ou treinadores,

Figura 1 – Desenho de criança iniciando o movimento virar cambalhota.

Fonte: Disponível em <http://viveapenas.blogspot.com.br/2011/04/cambalhota.html>. Acesso em 26 mai

2016.

12

ganha o apoio dos colchonetes, buscando a proteção de impactos e o ponto de partida são os

pés no chão; para os avançados na arte da acrobacia, a partida se dá com um impulso (pulo ou

uma pequena corrida) que lançará o corpo ao ar, fazendo uma volta de 180º sobre seu eixo.

Além de lúdica, a atividade proporciona ao desenvolvimento motor o equilíbrio, um

controle muscular, dá elasticidade à coluna e trabalha toda a circulação.

A pergunta 155 do QSL “Como se chama a brincadeira em que se gira o corpo sobre a

cabeça e acaba sentado?” (COMITÊ... 2001, p.34) apresentou um significativo número de

lexias para nomear o exercício de girar o corpo para frente e cair sentado.

A proposição da pergunta não apresentou problema de compreensão por parte dos

informantes. A atenção ao sema "cair sentado" gerou, por vezes, outras possibilidades de

respostas como capoeira, estrelinha, ginástica, mortal, pula-pula, variantes que não tratam

especificamente do movimento objeto da questão.

O Quadro 1, ‘Distribuição das lexias por localidade’, apresenta quais lexias

apareceram na pesquisa e em que cidade / estado. Através da análise do mesmo, podemos

relatar que “maria cumbunda” foi a única lexia que apareceu nos quatros municípios da

pesquisa, que a lexia cambalhota esteve presente em dois deles (assim como “maria cambota”,

“maria combona” e “pulo mortalho”), que as demais lexias tiveram realizações individuais e

que nos dois estados, três informantes não responderam a questão. No total, houve 18 lexias

diferentes para nomear o significado exposto na pesquisa.

QUADRO 1 : Distribuição das lexias por localidade

Lexias

Bahia Pernambuco

Miguel

Calmon

Jacobina Flores Ouricuri

1. Cambalhota X X

2. Capoeira X

3. Estrelinha X

4. Ginasta X

5. Ginástica X

6. Má cambota X

7. Maria cambona X

8. Maria cambota X X

9. Maria combona X X

10. Maria combonda X

11. Maria combota X

12. Maria cumbuca X

13. Maria cumbunda X X X X

14. Mortal X

15. Pastelão quente X

16. Pula pula X

17. Pulo mortalho X X

18. Virar de bruço X

19. NR X X

13

Como primeira resposta, a lexia “cambalhota” só ocorreu em dois informantes

10Mf2c3 e 32Of1g; o primeiro, do sexo/gênero feminino, da cidade baiana de Miguel

Calmon, faixa 2 (39 anos); o segundo informante também é do sexo/gênero feminino, da

cidade pernambucana de Ouricuri, faixa 1 (29 anos) e apesar dos graus de escolaridade ser

Fundamental e Ensino Médio incompletos, não se pode atribuir a tal escolaridade o domínio

da lexia, uma vez que nas mesmas localidades encontram-se informantes com Ensino Médio

completo e até graduação incompleta que não usaram o termo para referirem-se à brincadeira.

Houve também outra informante – 10Mf2c - que usou a lexia cambalhota como segunda

resposta, antecedida da lexia “ginasta”.

A questão de cunho onomasiológico forneceu respostas e, diante dos dados, pode-se

analisar a variação linguística sob o ponto de vista léxico-semântico. Tais dados prestam-se

também para estudos da variação diastrática, diageracional e diassexual, além de outros

cruzados com informações da ficha informante. Buscando melhor entender essa variação

lexical que forneceu 18 lexias como resposta a QSL 155, organizaram-se as lexias

documentadas na amostra em agrupamentos lexicais (Quadro 02) conforme critérios baseado

em Ribeiro (2012):

(i) as variantes fônicas foram neutralizadas;

(ii) as lexias flexionadas em gênero e/ou número são agrupadas às formas sem

flexão;

(iii) simplificação da derivação por grau (diminutivo ou aumentativo) para

agrupamento às não flexionadas;

(iv) simplificação de lexias complexas em lexias simples - presença x ausência de

verbos de ação - optando-se pela retirada dos verbos de ação: “virar”, “pular”, “brincar”,

“dar”.

(v) definição de elemento aglutinador para simplificação.

3 Adota-se o seguinte padrão para identificação dos informantes: (i) número de 1 a 36 – considerando a

quantidade de informantes –; (ii) letras maiúsculas para mencionar as localidades – a saber, “M” para Miguel

Calmom –Ba, “J” para Jacobina-Ba, “F” para Flores-Pe e “O” para Ouricuri-PE; (iii) letras minúsculas para

diferenciar o sexo – “f’, feminino e “m”, masculino; (iv) números 1, 2, 3 para caracterizar as faixas etárias – 1.

18 a 30 anos, 2. 31 a 49 anos, 3. 50 a 65 anos; (v) letras de “a” a “j” para declarar o grau de escolaridade.

14

Quadro 02— Formas lexicais de cambalhota – agrupamentos

Agrupamentos lexicais

(rótulo) Itens lexicais agrupados

Cambalhota cambalhota

Cambota maria cambota; maria combota; má cambota

Combona maria combona

Cumbunda maria cumbunda, maria combonda

Ginástica ginástica, ginasta

Mortal mortal; pulo mortalho

OU

TR

AS

DE

SIG

NA

ÇÕ

ES

bruços virar de bruço

cambona maria cambona

capoeira capoeira

cumbuca maria cumbuca

estrelinha estrelinha

pastelão quente pastelão quente

pula-pula pula-pula

No total das variantes tidas como resposta à pergunta, 7 ficaram como outras

designações (todas as que não se enquadram nos agrupamentos e são respostas únicas) e 4

agrupamentos foram realizados, gerando um total de 13 variantes. A pesquisa lexicográfica

explica tais agrupamentos.

A pesquisa em dicionários de língua portuguesa visa conhecer, das lexias encontradas

na amostra, aquelas registradas para a brincadeira que compõem a área semântica do QSL,

instrumento deste trabalho.

Cambalhota está registrada nas três obras utilizadas na pesquisa e aqui nesta seção tais

significados e os das demais variantes serão apresentados na seguinte ordem: Aulete (2012),

Ferreira (2010) e Houaiss (2009).

“Movimento em que se gira o corpo sobre a própria cabeça, apoiando ou não as mãos

no chão ou em qualquer superfície sólida” Aulete (2012, p. 145); no entanto, não há

referência ao “cair sentado” descrito na QSL 155, o mesmo também vai acontecer nas demais

obras consultadas. O autor registra “cambota” e “cabriola” como outras acepções possíveis, e

destas, “cambota” está presente nos dados da Bahia e é remissiva a “cambalhota”.

15

Ferreira (2010, p. 398) trata do mesmo movimento que gira o corpo sobre a cabeça e

acrescenta “voltando a posição normal”, cita ainda acepções como “cabriola” e “catrâmbias”,

porém não faz referência a “cambota”. Essas lexias não aparecem na pesquisa.

“Bagaço”, “cabriola” e “cambota”, por sua vez, são lexias apresentadas por Houaiss

(2009, p. 375) para o “movimento ou exercício em que se faz o corpo girar para a frente ou

para trás, com ou sem apoio em qualquer superfície, realizando uma revolução em que os pés

passam por cima da cabeça e voltam a tocar o chão”. Bagaço também não apareceu na fala

dos informantes.

“Cambalhota” é um item lexical que representa apenas 4,16% na produtividade da

Bahia e 8,33% de Pernambuco, e na distribuição geral da pesquisa atinge 5,55%, não sendo,

assim, a lexia mais produtiva, conforme nos revelam a Tabela 1 e a Tabela 2.

TABELA 1 - Distribuição do item lexical “cambalhota” por produtividade na Bahia

Através da leitura dos dados estatísticos, observa-se que, na Bahia, o número de lexias

para nomear “cambalhota” é mais expressivo que em Pernambuco e que os sujeitos do

trabalho acadêmico, colaboradores desta pesquisa, para nomear a brincadeira, fizeram uso das

variantes, associando-as a outras lexias, formando lexias compostas (maria ..., pulo mortal,

pastelão quente, virar de bruços, pula-pula). Tais itens foram desmembrados e passaram a ser

representados por um elemento aglutinador após análise dos verbetes.

ESTADO

LEXIAS AGRUPADAS

VALOR

ABSOLUTO

VALOR

RELATIVO

BAHIA

maria cambota /

maria combota /

má cambota

6

25 %

maria combona 6 25 %

maria combonda /

maria cumbunda

3

12,5 %

pulo mortalho/

mortal

2

8,33 %

Ginástica

ginasta

2

8,33 %

Cambalhota 1 4,16 %

maria cambona 1 4,16 %

nenhuma resposta /

não sabe

1

4,16 %

pastelão quente 1 4,16 %

virar de bruço 1 4,16 %

16

TABELA 2 - Distribuição do item lexical “cambalhota” por produtividade em

Pernambuco

As respostas válidas atingem um valor absoluto de 33, apenas 3 informantes não

responderam à questão (8,33%), assim tem-se um total de 91,66% de respostas válidas

demonstrando ser uma brincadeira bem conhecida no cotidiano das crianças. Apesar de, em

alguns casos, os informantes misturarem as lexias, como em estrelinha que, na verdade,

refere-se a outro movimento acrobático.

Tabela 3 - Respostas obtidas versus não obtidas no corpus total

Respostas

Total

absoluto

Total

relativo

Não obtidas 3 8,33 %

Obtidas 33 91,66 %

Total 36 100 %

Apareceram 18 variantes para denominar o movimento acrobático; a partir das quais

organizaram-se agrupamentos lexicais. Então, tendo por base a pesquisa lexicográfica

observou-se que:

(i) cambota é um verbete dicionarizado remissivo a cambalhota em Aulete (2012), Ferreira

(2010) e Houaiss (2009), tornou-se o elemento aglutinador de “maria cambota”, “má

cambota” e “maria combota”. “Combota” considerou-se variação fônica, não está

dicionarizada;

ESTADO

LEXIAS AGRUPADAS

VALOR

ABSOLUTO

VALOR

RELATIVO

PERNAMBUCO

maria combonda /

maria cumbunda

3

25 %

pulo mortalho/

mortal

2

16,66 %

nenhuma resposta /

não sabe

2

16,66%

Cambalhota 1 8,33 %

Capoeira 1 8,33 %

Estrelinha 1 8,33 %

maria cumbuca 1 8,33 %

pula-pula 1 8,33 %

17

(ii) maria é um verbete com outras acepções, das quais se destaca a determinação de pessoa

comum indeterminada, mas não associada a “cambota”;

(iii) Ferreira (2010, p. 400) trata “cambona” como “viravolta, reviravolta, cambalhota”; no

entanto, tal verbete não consta no Aulete (1012) e Houaiss (2009) traz outra acepção;

(iv) “Combona” é uma “caniçada/ caneiro para pegar peixe na praia” segundo Ferreira (2010,

p. 535) e Houaiss (2009, p. 498); não consta no Aulete (2012);

(v) “Cumbunda” e “combonda” não são dicionarizadas. Ressalta-se, todavia, que “bunda

canastra” é uma variante que aparece no Atlas Linguístico de Pernambuco de Edmilson José

de Sá (2013). “Canastra” equivale entre outras acepções a “costas”, podendo ser uma

interpretação para “cambalhota”, como afirma Ribeiro (2012, p. 168): “o movimento

acrobático da cambalhota poderia ser interpretado como ‘virar as costas = virar canastra ou de

costas / de canastra’?” Em “cumbunda” tem-se possivelmente um uso sinônimo e, assim,

elegeu-se como elemento aglutinador; “combonda” seria uma variação fônica;

(vi) Cumbuca constitui um verbete, mas com outras acepções, a saber: espécie de vaso feito

de cabaça. Entretanto, pode-se ter aqui um tabu linguístico: “cumbuca” omitindo “cumbunda”

do “bunda canastra” pernambucano, que é um verbete com interpretação sinônima possível a

“cambalhota”;

(vii) “pulo mortal” foi consultado como lexia simples: “pulo” – “Ação ou resultado de pular,

impulsionar o próprio corpo com as pernas, projetando-o a certa altura ou a certa distância”

(AULETE, 2012, p. 719); “qualquer golpe de capoeira” (FERREIRA, 2010, p. 1737); “ação

de pular, luta de capoeira” (HOUAISS, 2009, p. 1576) –; e “mortal” – que está sujeito à

morte. Junto não é um verbete, mas equivale a um movimento acrobático. “Mortalho” é uma

lexia não dicionarizada e foi considerada variante fônica - paragoge; ao mesmo tempo em que

“mortal” é o elemento aglutinador;

(viii) “pula-pula” é um verbete que não remete a “cambalhota”, mas a outro brinquedo para

crianças, no qual se apoiam os pés numa plataforma sustentada por molas e borrachas;

(ix) “pastelão-quente”, assim como pulo mortal, foi consultado como lexia simples:

“pastelão” (pastel grande; indivíduo mole) e “quente” (que conduz calor). Existe uma

brincadeira conhecida como “pastelão quente”, na Bahia, (variação de “pula sela”; “estrela-

novo-toco”), em que um participante fica curvado e os demais pulam sobre ele tendo que

18

realizar ações específicas: variações de salto conforme a ordem vai sendo dada pelo primeiro

que pula, como bater o pé na bunda, deixar o corpo tocar levemente as costas, cravar as unhas

nas costas. Quando já tiverem pulado, o primeiro passa a assumir a posição do indivíduo

mole, mas se alguém errar na ação, assume de imediato a posição.

(x) “virar de bruço”, consultada como lexia simples: “virar” (ação de colocar-se em posição

diversa da anterior) e “bruço” (posição deitada em que a barriga fica de encontro ao chão).

Embora seja um movimento de girar o corpo, não há associação com a “cambalhota”.

(xi) “ginástica”, segundo Ferreira (2010, p. 1031), é a “arte ou ato de exercitar o corpo para

fortificá-lo e dar-lhe agilidade”. Houaiss (2009) e Aulete (2012) trazem acepções

semelhantes. A “cambalhota”, enquanto movimento do corpo que exige impulso das pernas, é

um tipo de exercício da ginástica, embora as lexias não sejam sinônimas.

(xii) “estrelinha”, embora não lexicografada como movimento corporal nos dicionários

pesquisados, é uma habilidade básica na ginástica, podendo ser lateral ou frontal, que

fortalece o tronco e ajuda a chegar a movimentos mais elaborados, muito comum no jogo de

capoeira. Talvez venha dessa acepção a interpretação associativa com a “cambalhota”.

(xiii) “capoeira” é um verbete presente nas três obras consultadas como “Jogo atlético criado

por escravos, [...]executam golpes com as pernas” (AULETE, 2012, p.152); “jogo acrobático

constituído por movimentos” (FERREIRA, 2010, p. 421); e “arte marcial de ataque e defesa

introduzida no Brasil por escravos bantos; atualmente praticada como jogo e esporte”

(HOUAISS, 2009, p. 396), nenhuma delas, no entanto, faz referência a cambalhota.

Em suma, nenhuma das acepções apresentadas contempla o que se busca na questão

155 do QSL; inclusive, a ação de “cair sentado” não foi considerada um diferencial do

movimento. As denominações como “ginástica”, “mortal”, “capoeira”, “estrelinha” revelam

um movimento de corpo, mas sem as especificidades da cambalhota. Já “pula-pula”,

“pastelão-quente” e “virar de bruços”, referem-se a outras ações e brincadeiras infantis,

todavia sem sinonímia com aquela procurada pelo questionário, instrumento dessa pesquisa.

As respostas mais comuns objeto da pergunta 155 do QSL foram “cambota” (agrupada

em “maria cambota”, “maria combota” e “má cambota”), “combona” (“maria combona”) e

“cumbunda” (agrupada em “maria cumbunda” e “maria combonda”), todas as três variantes

com 16,66% de produtividade cada, num total de 49,98% das respostas dadas. Juntas, tais

denominações definiram as generalizações que foram feitas sobre a brincadeira, com uma

19

frequência em número de ocorrências de 54,54% das respostas válidas, 18 das 33 ocorrências

Como se verifica na tabela 4, tais lexias ocorreram de maneira diferenciada na Bahia e em

Pernambuco, conforme se vê na sequência.

TABELA 4 - Distribuição do item lexical “cambalhota” por produtividade na Bahia e

em Pernambuco

Em 100% das localidades pesquisadas ocorreram lexias como respostas à pergunta em

questão; como esses, vários dados denotam ser a brincadeira muito conhecida nas regiões

estudadas. No entanto, nenhuma lexia foi considerada norma, por não ter atingido uma

frequência superior a 90% nas referidas localidades.

Em comparação ao documentado por Ribeiro (2012), na área do Falar Baiano

(NASCENTES, 1953) e regiões circunvizinhas (exposto na tabela 4 – Frequência das formas

lexicais de cambalhota – todas as respostas, p.181 da tese), verifica-se que “cambalhota” é a

lexia mais produtiva, atingindo o percentual de 38,5%, na pesquisa da autora; enquanto que,

para esta pesquisa, tal lexia concretiza apenas 5,55% da frequência total, um quinto lugar no

ranking, ao lado de “ginástica”. Ao mesmo tempo que a lexia “cambota” – 16,66% – é a mais

expressiva (igualmente a “combona”, “cumbunda”) para pesquisa com a comunidade cigana,

alcançou em Ribeiro (2012), 19,3%, o que lhe rendeu a colocação de segunda lexia mais

produtiva. Tal comparação assegura que apesar de haver lexias que são exclusivas de uma ou

de outra pesquisa, aquelas mais produtivas em Ribeiro (2012) repetem-se, ainda que com o

percentual diferenciado, neste trabalho específico com informantes da etnia cigana.

LEXIAS AGRUPADAS

VALOR

ABSOLUTO

BAHIA

VALOR

ABSOLUTO

PERNAMBUCO

VALOR

RELATIVO

BA / PE

cambota 6 16,66 %

combona 6 16,66 %

cumbunda 3 3 16,66 %

mortal 2 11,11 %

nenhuma resposta 1 2 8,33%

ginástica 2 5,55 %

cambalhota 1 1 5,55 %

capoeira 1 2,77 %

estrelinha 1 2,77 %

cambona 1 2,77 %

maria cumbuca 1 2,77 %

pula-pula 1 2,77 %

pastelão quente 1 2,77 %

virar de bruço 1 2,77 %

20

4 Considerações finais

Retomando a pergunta que o léxico produzido pelas comunidades ciganas

pesquisadas, a partir do QSL do ALiB, com base em jogos e diversões infantis, fornece dados

que marcam a variação lexical do povo cigano, pontuam-se as seguintes reflexões de caráter

conclusivo:

91,66% dos informantes apresentaram respostas válidas (33 ocorrências);

Em Pernambuco, 100% dos homens responderam à questão e, na Bahia, 100% das

mulheres;

No geral, das mulheres participantes, 88,88% atribuíram uma lexia para tal pergunta

e, 94,44% dos homens;

As faixas etárias tiveram aproveitamento de 91,66%, igualmente.

Ainda diante dos dados, “cumbunda” é a lexia de maior amplitude geográfica, pois

abrange os dois estados, os quatro municípios.

No município de Miguel Calmon –BA, tem-se a maior variação lexical de

“cambalhota”, apresentando 8 lexias (já agrupadas) convivendo na mesma localidade,

o que equivale a 61,53% do total.

Não se deseja dessa forma esgotar as possibilidades de análises, pois como afirma Ribeiro

(2014, p.18) “[...] os caminhos das palavras são muitos”; todavia cumpriram-se os objetivos,

uma vez que se examinaram os dados de variação lexical a partir de obras lexicográficas:

Houaiss (2009), Ferreira (2010), Aulete (2012) para averiguar se as lexias encontradas estão

ou não dicionarizadas e se possuem identificação com a brincadeira em questão;

identificaram-se variações dialetais nos estados pesquisados, e, também, pode-se verificar a

influência de possíveis fatores socioculturais - variação diassexual, diageracional, diastrática –

nas escolhas realizadas pelos falantes. Por fim, e não menos importante, a pesquisa

possibilitou um parcial conhecimento da cultura lexical dos ciganos enquanto grupo étnico.

Referências

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Cadernos do CNLF, Rio de Janeiro: CiFEFiL, vol. XV, n. 5, t. 2, p. 1332-1343, 2011.

21

AULETE, Caldas. Aulete Digital – Dicionário contemporâneo da língua portuguesa:

Dicionário Caldas Aulete, vs online. Disponível em: http://www.aulete.com.br/. Acesso em:

04 mai 2016.

CARDOSO, Suzana Alice Marcelino. Geolinguística: tradição e modernidade. São Paulo:

Parábola, 2010. 198 p.

COMITÊ NACIONAL DO PROJETO ALiB. Atlas Linguístico do Brasil: questionário

2001. Londrina: Ed. UEL, 2001.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da língua portuguesa. 5. ed.

Curitiba: Positivo, 2010.

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Silva, Guaracira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

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dos; SOLEDADE, J. (Org.). Saberes lexicais: mundos, mentes e usos. Salvador: EDUFBA,

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HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa.

Elaborado pelo Instituto Houaiss de lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa S/C

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OLIVEIRA, Ana Maria Pinto Pires; ISQUERDO, Aparecida Negri (Org.). As ciências do

léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. 2. ed. Campo Grande: Ed. UFMS, 2001.

RIBEIRO, Silvana Soares Costa. Brinquedo e brincadeiras infantis na área do falar

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____Pela mão de Alice: O social e o político na Pós-Modernidade. 8. ed. São Paulo: Cortez,

2000. p. 119-140.

22

O ITEM ONDE EM PROCESSO DE MUDANÇA: ANÁLISE DE USOS EM

REDAÇÕES DO VESTIBULAR/2013 DE UMA UNIVERSIDADE EM SALVADOR

Ilana Guimarães de Souza (UNEB-PPGEL)

RESUMO

O presente trabalho se propõe a analisar usos de ONDE em redações escritas por candidatos a uma

vaga na UNEB (Universidade do Estado da Bahia), os quais se submeteram ao processo seletivo

vestibular de 2013. Comparam-se prescrições normativas para o uso do ONDE com os dados

constatados no corpus examinado e notam-se usos diferentes do que a Gramática tradicional

prescreve. O estudo será feito à luz de pressupostos teóricos do Funcionalismo Linguístico, no que

concerne à abordagem da Gramaticalização (Hopper & Traugott, 1993, 2003, dentre outros) e da

Sociolinguística Variacionista (Labov, 2008 [1972]), conjugação de abordagens que vem sendo

designada de Sociofuncionalimo (Tavares, 2013). Sob essa perspectiva, analisam-se os elementos

condicionantes para que o ONDE seja usado de modo inovador nas redações. Observa-se possibilidade

de ONDE passar por um processo de mudança de item gramatical para mais gramatical. Constatam-se,

a partir das funções gramaticais e semântico-pragmáticas que desempenha nas sentenças que interliga,

indícios de uma abstratização dos sentidos desse item gramatical, tendo atingido usos linguísticos mais

monitorados, como nas dissertações de vestibular. Observa-se, assim, um possível percurso de

gramaticalização de ONDE, de sua função mais evidentemente locativa, como advérbio interrogativo

sem antecedente, até a função de conectivo, com esvaziamento de valor sintático, como uma

conjunção. Os resultados obtidos evidenciam a forma ONDE como item em processo de

gramaticalização no português brasileiro.

Palavras-chave: Sociofuncionalismo. Mudança Linguística. Gramaticalização. Onde

1 INTRODUÇÃO

A variação linguística ocorre nas diversas modalidades textuais. A fala se mostra

como a mais evidentemente variável nos níveis da fonética, morfologia, sintaxe e léxico.

Porém, também a escrita é espaço de variação, mesmo em gêneros considerados mais formais,

como a dissertação para o exame vestibular, que pressupõe maior monitoramento por parte do

autor do texto, já que um dos critérios para atribuição de nota à redação é a adequação ao

padrão normativo (PAVANI et alii, 2006). Nessa perspectiva, quando se encontram, em

quantidade significativa, exemplos de fenômenos de variação linguística nesse gênero textual,

cabe analisar quais fatores linguísticos estariam motivando a ocorrência desses fenômenos.

23

Este artigo é parte de uma pesquisa ainda não concluída para dissertação de

mestrado, que se debruça sobre o levantamento estruturas gramaticais e semântico-

pragmáticas favoráveis ao uso de ONDE nos textos produzidos pelos vestibulandos da UNEB

do ano de 2013. Fatores como a faixa etária, a escolaridade, o gênero e o grupo social dos

informantes não puderam ser levados em consideração, já que a instituição não fornece os

dados dos candidatos que se submetem ao processo seletivo, em decorrência do sigilo

necessário à garantia da lisura do processo seletivo de estudantes aspirantes a uma vaga na

instituição. Diante disso, serão observados os fatores linguísticos que condicionaram ao

emprego do ONDE nas diversas estruturas gramaticais e semântico-pragmáticas em que

ocorrem, observando-se os possíveis elementos motivadores da variação. A hipótese que

conduz essa pesquisa e a possibilidade de estar havendo um processo de gramaticalização do

item gramatical em estudo. Com finalidade de avaliar a confirmação dessa pressuposição,

serão apresentados, respectivamente, a fundamentação teórica, a metodologia, a análise dos

dados e as considerações finais.

2. A prescrição Normativa

Os estudos sociolinguísticos têm comprovado que há grande distanciamento entre o

que é pregado pelo padrão normativo e alguns usos reais de falantes do português brasileiro

dito culto (cf. FARACO, 2008, p.75). Todavia, nas práticas comunicativas, seu uso tem se

expandido. O uso proposto para o ONDE pela tradição gramatical é de um termo com valor

semântico de lugar, conforme afirma Bechara, 2009 :

Os advérbios relativos, como os pronomes relativos, servem para referir-se a

unidades que estão postas na oração anterior. Nas ideias de lugar empregamos

onde, em vez de em que, no qual (e flexões): A casa onde mora é excelente.

Precedido das preposições a ou de, grafa-se aonde e donde: O sítio aonde vais é

pequeno.

Cipro Neto também aponta para a referência a um lugar ao propor o uso da variação

padrão de ONDE, ressaltando, inclusive, os usos que, segundo ele, não devem ocorrer:

Na língua culta, escrita ou falada, ONDE deve ser limitado aos casos em que há indicações de

lugar físico, espacial. Quando não houver essa indicação, deve-se preferir em que, no qual (e suas

flexões, na qual, nos quais, nas quais) e, nos casos de idéia de causa/efeito ou de conclusão,

portanto.

24

É interessante observar que a própria orientação de Cipro Neto aponta contextos

linguísticos em que não se deve usar ONDE, o que indica que o gramático constata, na prática

comunicativa, que os falantes têm usado ONDE para fazer referência a outros valores

semânticos, não apenas de lugar, como propõe a gramática normativa.

3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Neste trabalho, faz-se uma observação sociofuncional. Diante disso, nas seções que

se seguem serão apresentados os fundamentos da Sociolinguística e do Sociofuncionalismo.

3.1 Sociolinguística

O presente estudo baseia-se nos pressupostos teórico-metodológicos da

Sociolinguística Variacionista (LABOV, 1972) e do Funcionalismo Linguísticos (HOPPER e

TRAUGOTT, 1991). Segundo a perspectiva da Sociolinguística, a manifestação linguística

não se dá de modo homogêneo, havendo sempre a diversidade no uso. Quando a variação se

dá de maneira sistemática e quantitativamente comprovada, pode-se afirmar que se está diante

de um processo de mudança no sistema linguístico (WEINREICH, LABOV & HERZOG,

1968). Essa mudança é ainda mais provável quando se está diante de fenômenos mais

frequentes em usuários de faixa etária mais jovem, conforme afirma Tarallo (2003, p. 65), já

que há mais probabilidade de fortalecimento da forma inovadora, em detrimento da forma

conservadora.

Os processos de mudança linguística passam por estágios sincrônicos de variação:

em um mesmo período, duas ou mais variantes da mesma variável podem ser encontradas na

língua, pois, segundo Labov (1972), não há aleatoriedade na heterogeneidade linguística,

sendo, dessa forma, trabalho do linguista buscar os elementos motivadores das variantes

estudadas.

Nessa perspectiva, alguns contextos linguísticos e sociais favorecem o uso mais

frequente de uma ou outra variante. No caso de ONDE, por se tratar de um item gramatical

que se apresenta em variação de ordem gramatical e semântico-pragmática, a teoria

funcionalista da linguagem também se mostra profícua para essa análise.

25

3.2 Sociofuncionalismo

Apesar de não fazer análise da interferência de variáveis sociais nas ocorrências do

fenômeno ONDE, pode-se afirmar que o presente estudo se insere na área do

Sociofuncionalismo (TAVARES 2013), já que a metodologia quantitativa e a análise de

fatores internos à linguagem são pertinentes à área. Amorim (2013, p. 103), a respeito dessa

questão, defende que “vale destacar outro ponto crucial na interface

Sociolinguística/Gramaticalização, que diz respeito a uma questão metodológica: a

abordagem quantitativa capaz de auxiliar na compreensão de processos de gramaticalização”.

Propõe-se uma abordagem híbrida para o estudo por se tratar de uma análise

metodologicamente variacionista, mas com hipóteses baseadas no que se convencionou

chamar de processo de gramaticalização. Para o Funcionalismo, ocorre processo de

gramaticalização quando um item lexical passa a funcionar como gramatical ou quando um

item gramatical adquire funções ainda mais gramaticais (HOPPER, 1991).

Hopper (1991) descreve, ainda, os princípios da estratificação e da especialização,

segundo os quais, respectivamente, o item em mudança apresenta formas variáveis de uso

sincrônico e posteriormente há um estreitamento das possibilidades de realização,

estabelecendo-se preferências por contextos linguísticos específicos. Outra vertente dos

estudos linguísticos que oferece parâmetros para estudar as especificidades dos usos atuais do

item ONDE é a Teoria da Metáfora (LAKOFF e JONHSON, 1980), que indica os processos

de transferência semântica de expressões com significado anteriormente mais concreto para

noções mais abstratas, tais como o espaço associando-se a tempo, como esclarece Lílian

Ferrari:

Outra metáfora recorrente é a que nos permite conceber TEMPO em termos de

ESPAÇO ou de MOVIMENTO através do espaço. Nesse caso, há duas

perspectivas possíveis, o tempo é concebido como um local para onde o EGO se

dirige ou como entidade que se desloca no espaço em direção ao EGO. (FERRARI,

2001)

3 ANÁLISE DE DADOS

Como a pesquisa ainda está em andamento, aqui serão indicados apenas alguns casos

prototípicos de estratificação de ONDE com referência a espaço físico, tempo e conectivo.

26

Esses valores também foram estudados por Souza (2008), que analisou a fala de

soteropolitanos com escolarização de nível fundamental (a partir de dados do PEPP –

Programa para o Estudo do Português Popular Falado de Salvador) e de nível superior

(observando entrevistas feitas para o Projeto Norma Urbana Culta de Salvador - NURC).

3.1 – Espaço Físico:

Quando funciona como pronome relativo, o ONDE faz referência a sintagmas

nominais (SN’s) anteriores, os quais têm se apresentado com diferentes valores semânticos.

Todavia, os usos mais frequentes de ONDE são, como nos exemplos a seguir, referências a

Espaço Físico:

(1) O número de reclamações aumentam nos bairros mais populares, ONDE acontece

com frequência. – 2906 / 314

(2) Atualmente um dos locais ONDE possui um grande número de denúncias, por conta

da violação do silêncio é a cidade de Salvador. 2906 / 3

Em (1), ONDE retoma o SN antecedente “bairros mais populares”, que ocorre na

sentença como sintagma preposicionado com função locativa, como adjunto adverbial de

lugar, logo o ONDE se apresenta em sua função mais adequada ao que propõe o padrão

gramatical.

Já no trecho (2), apesar de o ONDE também apresentar antecedente com valor

semântico de Espaço Físico, desempenha função diferente do que há do exemplo anterior. O

ONDE substitui “locais” e exerce, na estrutura relativa que introduz, função sintática de

sujeito, demonstrando papel diferente do anterior, que seria uma função mais acessória do que

a de sujeito.

3.2 – Tempo

Foram encontradas ocorrências de ONDE com referência à noção de tempo:

(3) (...) entretanto esses barulhos são provenientes (sic), geralmente nos finais de semana,

ONDE os responsáveis pelos restaurantes e bares usam o volume acima do normal (...)

– 2906 / 02

44 Os trechos aqui destacados estão indicados conforme numeração das salas em que os candidatos realizaram a

prova e o respectivo número que receberam pelo sistema do processo seletivo.

27

(4) (...) vivemos em tempos considerados corridos, estressantes e cansativos, ONDE

todos tentam buscar seus momentos de paz em seus lares ou lugares. – 2911 / 10

Nos excertos acima, os referentes de ONDE são respectivamente o sintagma “finais de

semana” (5) e “tempos considerados corridos, estressantes e cansativos” (6), numa referência

clara ao valor de tempo. A transposição da noção de espaço para tempo se dá por meio do que

Lakoff (1998, p. 102) chama de “uma locação no espaço”. O valor de lugar que o ONDE

carrega de sua origem é transposto para uma referência mais abstrata, como a noção de tempo,

o que pode ser visto como indício de processo de maior abstratização, seguindo os princípios

de Hopper (1991).

Esse processo, fundamentado em uma análise linguística baseada no uso, observa-se o

que se chama unidirecionalidade de mudança, rumo a uma progressiva abstratização de

significado de uma expressão (HOPPER, 1991), como se pode observar no seguinte esquema:

Espaço > tempo > texto

3.3 – Conectivo

O ONDE categorizado como conectivo apresenta esvaziamento do seu valor sintático-

semântico original, sem referência fórica no texto, funcionando como elemento conjuntivo,

conforme afirma Souza (2009):

O que se observa, no português atual, a partir dos dados da língua falada analisados, é que o

ONDE apresenta, além de seu valor mais básico, de espaço físico - o único aceito pela tradição

gramatical - outros valores, como os referentes a tempo, noção - que é um espaço virtual – posse.

Além de ocorrer, em alguns contextos, sem o valor funcional que possui, de relativo, se

apresentando como mero conector, ligando orações, sintagmas, ou mesmo como um marcador

discursivo. (p. 71-2)

Os excertos abaixo representam essa categorização:

(5) Nos tempos atuais, um dos maiores problemas dos brasileiros é a poluição sonora,

ONDE não se tem mais a liberdade de se assistir sem que teja no volume máximo. –

2912 / 06

(6) Os carros de som, bares, vizinhos barulhentos e etc são consequências de toda uma

falta de educação social, ONDE essas pessoas agem sem avaliar as consequências de

28

suas ações, pois um carro com uma música em alto volume pode agradar alguns, mas

com certeza incomodará alguém. - 2912 / 35

Em (5), o ONDE introduz uma justificativa para a afirmação de que a poluição sonora é

um problema dos brasileiros, notando-se um possível valor explicativo, mas sem a referência

inicial a lugar, ainda que abstrato, pois o valor pragmático não é meramente substituição do

SN anterior “a poluição sonora”, mas uma relação entre os sentidos das orações que se unem a

partir do ONDE.

Em (6), há também um valor explicativo na oração introduzida pelo ONDE, a qual

justifica a o fato de manifestações da poluição sonora serem consequência da “falta de

educação social”. Esses usos mais abstratos do item ONDE têm se mostrado como indícios de

um possível processo de gramaticalização pelo qual ele esteja passando.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dados por ora apresentados são parte de um corpus de 350 redações, que serão

analisadas em busca de usos do ONDE, visando à descrição dos contextos linguísticos em que

ocorre e seus fatores condicionantes. A pesquisa, que constituirá uma dissertação de mestrado,

ainda está em fase inicial e carece de aprofundamento teórico-metodológico. Porém, as

análises iniciais já apontam a multifuncionalidade desse item gramatical, como os casos

relativos a valores semânticos de espaço e tempo, além da função de conectivo.

Ao examinar os casos de abstratização das funções do item gramatical ONDE, notam-se

indícios de um possível percurso de mudança linguística, com valores semânticos ainda não

especificados. Pode-se, então, supor uma necessidade pragmático-discursiva do usuário da

língua, o qual o utiliza como forma de atender a seus propósitos comunicativos, criando

maneiras inusitadas de usar esse elemento linguístico. Essa noção tende a ratificar o processo

de gramaticalização pelo qual o ONDE pode estar passando no português brasileiro

contemporâneo.

29

REFERÊNCIAS

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31

A VARIAÇÃO TU/VOCÊ NO PORTUGUÊS POPULAR FALADO DE SALVADOR E

AMARGOSA, NA BAHIA

Lorena Cristina Ribeiro Nascimento5

Marcela Moura Torres Paim6

RESUMO

Esta pesquisa, em andamento, tem por objetivo analisar quais são os condicionadores que atuam na

escolha dos pronomes tu/você na fala popular das comunidades de Salvador e Amargosa, na Bahia.

Através deste estudo, temos por proposta investigar o uso variável dos pronomes tu e você através de

inquéritos do Programa de Estudos do Português Popular Falado de Salvador (PEPP) e de inquéritos

gravados em Amargosa; a fim de aferir se o fenômeno constitui uma variação estável ou caminha para

uma mudança linguística, além de investigar se o fenômeno em questão é marcado pela variação

diatópica. Esta pesquisa tem como base o modelo teórico-metodológico da Sociolinguística

Quantitativa e a coleta de dados para análise está sendo realizada através de 12 inquéritos do PEPP e

12 inquéritos gravados em Amargosa no ano de 2016. Os informantes são homens e mulheres em

igual número, distribuídos em três faixas etárias (I: 15 a 24 anos; III: 45 a 55 anos; IV: 65 anos em

diante). Após a transcrição das gravações, serão realizadas as seguintes etapas: levantamento dos

dados; codificação, seguindo uma chave de proposta; e, então, a análise estatística através do pacote de

programas GoldVarb. Por fim, serão realizadas análise e interpretação desses dados obtidos. Até o

momento, o uso de você se mostra categórico na fala soteropolitana.

Palavras-chave: Sociolinguística; Variação Tu/Você; PEPP.

INTRODUÇÃO

Os pronomes pessoais no português do Brasil têm sido muito discutidos desde a

segunda metade do século XX e analisados por diversos pesquisadores, dando enfoque desde

a utilização dos pronomes em áreas geográficas específicas a tentativas de alcançar resultados

de caráter nacional, sem homogeneizar o fenômeno, como propõe Cardoso (2014).

5 Mestranda no Programa de Pós Graduação em Língua e Cultura – PPGLINC, na

Universidade Federal da Bahia – UFBA. Bolsista através da Fundação de Amparo à Pesquisa do

Estado da Bahia (FAPESB)

6 Doutora em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia. Professora adjunta

IV do Departamento de Letras Vernáculas e professora permanente do Programa de Pós-

Graduação em Língua e Cultura da Universidade Federal da Bahia.

32

Você é resultado de um processo de pronominalização da forma de tratamento Vossa

Mercê, como confirmam trabalhos como os de Nogueira (2013), Cardoso (2014) e Lopes e

Duarte (2003), e talvez por isso ainda seja considerado pelas gramáticas como um exemplo de

forma de tratamento, embora seja amplamente utilizado como pronome da segunda pessoa do

singular, concorrendo com o pronome tu (esse geralmente apontado como único pronome

pessoal do caso reto de segunda pessoa do singular nas gramáticas). Segundo Lopes e Duarte

(2003), na segunda metade do século XVIII, o pronome tu foi bastante utilizado

(concorrendo, na época, com os tratamentos Vossa Mercê e vós), mas sofreu um declínio logo

depois, voltando a ser utilizado no final do século XIX. Você, por sua vez, começa a ser foco

na metade do século XVIII, quando passa a concorrer com tu.

A variação tu/você na Bahia, conforme apontam estudos como o de Nogueira (2013), é

marcada pela diatopia. O pronome tu está sendo utilizado na capital baiana (Salvador), mas a

frequência no uso desse pronome está mais presente no português falado do interior do estado,

como observado na fala de Amargosa. A seguir, exemplos de dados identificados na amostra:

(i) “E hoje em dia VOCÊ está vendo.” Inq. 20, PEPP, p.110.

(ii) “E se TU for católica, ir na igreja e tal.” Inq. 04, Amargosa.

Tarallo (1997) afirma que toda língua é heterogênea e diversificada, e que essa

diversidade linguística é sistematizada, pois é através da sistematização que as comunidades

de fala podem alcançar a comunicação efetiva. A partir desse pressuposto, pretende-se

analisar quais os fatores que condicionam a utilização de tu e de você na fala popular dos

municípios baianos Salvador e Amargosa. De acordo com Callou e Leite (2002), as normas

vernáculas/populares são oriundas dos usos linguísticos das comunidades menos

escolarizadas. Portanto, neste trabalho, consideramos “fala popular”, os usos de indivíduos

com escolaridade fundamental e média.

1 O locus da pesquisa

33

SALVADOR

Localização da Cidade de São Salvador, no estado da Bahia

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Salvador_(Bahia)

Salvador, atualmente, é a cidade-sede da Região Metropolitana de Salvador,

popularmente conhecida como Grande Salvador. É a capital do estado da Bahia, com área

territorial de 692,820 km² e, pela estimativa do Censo do ano de 2010 do IBGE, esperava-se

em 2015 que o município estivesse com aproximadamente 2.921.087 habitantes (em 2010, a

contagem foi de 2.675.656 habitantes).

Enriquecida pela mistura de culturas (a população formada por, principalmente,

índios, africanos e europeus) no decorrer da sua formação, Salvador é hoje um local muito

conhecido pela sua culinária, música e festejos, principalmente o Carnaval. Toda essa

diversidade, obviamente, reflete também na constituição do português falado na região.

34

AMARGOSA

Localização do município de Amargosa, no estado da Bahia

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Amargosa

Amargosa está situada na mesorregião do Centro-Sul Baiano, no Vale de Jiquiriçá,

com uma área territorial de 431,673 km². De acordo com o Censo do ano de 2010 do IBGE,

estima-se que atualmente a cidade seja constituída por mais de trinta e sete mil habitantes; no

ano de 2010 calculou-se 34.351 habitantes. A região é hoje conhecida, também, como Cidade

Jardim, em razão da beleza de seus jardins e praças. É imprescindível ressaltar a importância

da imigração e colonização europeia e a sua contribuição nas construções e costumes do

município, assim como a cultura africana, que deixou marcada a sua herança, seja na religião,

música e alimentação local. Essas influências (europeias e africanas) se estendem ao modo de

falar dos amargosenses.

35

2 Metodologia da pesquisa

Esta pesquisa tem como base o modelo teórico-metodológico da Sociolinguística

Quantitativa, constituído pelo sociolinguista William Labov. A pesquisa quantitativa é

baseada em números, hipóteses e verificações. Segundo Labov (2008), o ponto de partida para

uma análise sociolinguística é o uso linguístico, o vernáculo. De acordo com o autor, o

vernáculo é a língua falada sem preocupação no como, a fala descontraída. A Sociolinguística

Variacionista estuda o fenômeno linguístico correlacionando-o com aspectos estruturais e

sociais que podem influenciar na escolha da variante. Através dessa pesquisa, temos por

objetivo analisar a variação na expressão de 2ª pessoa do singular, entre os pronomes tu e

você na fala baiana quanto aos aspectos linguísticos e extralinguísticos.

Na composição do corpus, estão sendo utilizados inquéritos do Programa de Estudos

do Português Popular Falado de Salvador (PEPP), que surgiu com a proposta de preencher a

lacuna nos estudos sociolinguísticos em Salvador, já que não existia um corpus constituído

através da fala popular soteropolitana. A construção do PEPP teve início em fins da década de

1990 e foi concluído no ano de 2000. São 48 inquéritos estilo DID (discurso entre informante

e documentador) com duração de aproximadamente 40 minutos, 16 deles transcritos e

publicados no livro “Um estudo da fala popular de Salvador – PEPP”, organizado por Lopes,

Souza e Souza (2009). Os informantes são homens e mulheres em igual número, com

escolaridade fundamental e média distribuídos em quatro faixas etárias: a primeira de 15 a 24

anos; a segunda faixa com informantes de 25 a 35 anos, a terceira de 45 a 55 anos e a quarta

faixa etária, com entrevistados de 65 anos em diante. Na seleção dos informantes, procurou-se

garantir que eles fossem nativos da cidade de Salvador ou que estivessem permanecido a

maior parte de suas vidas no local, assim como seus pais, a fim de que houvesse o mínimo de

interferência de outros dialetos em suas escolhas linguísticas, seguindo o modelo de entrevista

sociolinguística defendido por Labov.

Selecionamos para a pesquisa três faixas etárias, das quatro existentes no PEPP: a

primeira (15 a 24 anos), a terceira (45 a 55 anos) e a quarta (65 anos em diante). A segunda

faixa foi descartada por estar muito próxima da primeira.

O corpus em Amargosa está sendo construído através de gravações realizadas in loco

entre os meses de maio e novembro do ano de 2016. Seguindo o pressuposto metodológico da

Sociolinguística Quantitativa, procurou-se garantir que os indivíduos tivessem nascido na

36

região ou ido morar no local desde muito cedo, assim como os seus pais, para que não

houvesse grande interferência de traços linguísticos de outras localidades em suas falas.

Seguimos as exigências adotadas pelas pesquisadoras do PEPP na procura dos informantes, a

fim de manter a equivalência dos dados. Buscamos homens e mulheres em igual número (06

homens e 06 mulheres) dentro das três faixas etárias estabelecidas. Na primeira faixa,

indivíduos com 15 a 24 anos, na terceira, aqueles com 45 a 55 anos e para a quarta faixa

etária, foram selecionados falantes com 65 em diante; com escolaridade fundamental e média.

Os inquéritos são estilo DID (diálogo entre informante e documentador), assim como o PEPP,

e têm duração de aproximadamente 30 a 35 minutos.

A coleta de dados está sendo realizada através do levantamento de todos os casos

encontrados de tu e você através de 12 inquéritos do PEPP (Salvador) e de mais 12 inquéritos

de Amargosa-Ba, a fim de contrastar a frequência nos usos das variantes na capital baiana e

no município do interior baiano. Os falantes foram distribuídos da seguinte maneira: 04

informantes por faixa etária, 02 homens e 02 mulheres (01 homem e 01 mulher para cada

nível de escolaridade – Fundamental e Médio).

Para o presente este artigo, foram selecionados apenas quatro informantes de

Amargosa (dois da faixa etária I e dois da faixa etária IV – homens e mulheres em quantidade

equivalente), assim como também foram selecionados quatro inquéritos com o mesmo perfil

em Salvador, a fim de apresentar o andamento da pesquisa.

As variáveis selecionadas foram:

Variável dependente: A expressão da 2ª pessoa do singular

Variantes: tu / você

(iii)“Tia I., VOCÊ me dá um beijo?” Inq. 36, PEPP, p.249

(iv) “Pra onde é que TU vai?” Inq. 01, Amargosa.

Variáveis independentes:

37

Variáveis internas:

- Função sintática (sujeito, não sujeito)

(v) Sujeito: “VOCÊ fica preocupado de acontecer” Inq. 20, PEPP, p.118

(vi) Não sujeito: “quando eu falar para VOCÊ não sair” Inq. 20, PEPP, p.113

- Tempo verbal (passado, não passado)

(vii) Passado: “o caldo que TU cozinhou o frango” Inq.03, Amargosa.

(viii) Não passado: “Não quero conversa com VOCÊ” Inq. 36, PEPP, p.242

- Tipo de frase (declarativa, não declarativa)

(ix) Declarativa: “VOCÊ vai fazer uma pergunta” Inq. 24, PEPP, p.257

(x) Não declarativa: “VOCÊ quer o que, meu filho?” Inq. 06, Amargosa.

- Tipo de discurso (atual, relato próprio, relato de outrem)

(xi) Atual: “VOCÊ vê que ela é uma pessoa diferente” Inq. 05, Amargosa.

(xii) Relato próprio: falei com ele “meu pai, VOCÊ, olhe” Inq. 12, PEPP, p.139

(xiii) Relato de outrem: “Oh! Tal horário VOCÊ tinha que estar aqui” Inq. 20, PEPP,

p. 111

- Tipo de referência (específica, genérica)

(xiv) Específica: TU num sabe o que é não? Inq. 04, Amargosa.

(xv) Genérica: “qualquer lugar VOCÊ vai” Inq. 34, PEPP, p.313

- Tipo de enunciado (narração/instrução, declaração/anúncio, ordem,

questionamento/hesitação, ameaça/advertência, afirmação)

(xvi) Narração/Instrução: “mas VOCÊ fazia exame de admissão” Inq. 24, PEPP,

p.272

(xvii) Declaração/Anúncio: “no interior VOCÊ conhece todo mundo.” Inq. 01,

Amargosa.

(xviii) Ordem: “VOCÊ vai ter que estudar,” Inq. 20, PEPP, p.123

(xix) Questionamento/Hesitação: “TU já veio pro São João daqui?” Inq. 04,

Amargosa.

38

(xx) Ameaça/Advertência: “depois VOCÊ vai parar para conversar” Inq. 20, PEPP,

p.124

(xxi) Afirmação: “VOCÊ não vai morrer não, Sheila” Inq. 36, PEPP, p.247

° Variáveis externas:

- Sexo (Homem/Mulher)

- Faixa Etária (I, II, IV)

- Escolaridade (Fundamental/Média)

- Localidade (Salvador, Amargosa)

Com esse levantamento, pretende-se confrontar os dados obtidos nos dois municípios

no intuito de saber se a variação tu/você é fortemente diatópica, assim como avaliar se há em

Salvador um caso de mudança em curso nos usos dos pronomes pessoais de segunda pessoa.

Para este artigo, após as gravações e transcrições dos inquéritos, foi realizado o

levantamento dos dados; depois a codificação destes, seguindo uma chave de codificação. Na

sequência, o material foi submetido à análise estatística através do pacote de programas

GoldVarb (GUY; ZILLES, 2007). Os resultados estatísticos parciais serão apresentados a

seguir.

3. Análises iniciais

Tabela 1: Variação TU X VOCÊ no corpus observado

VOCÊ TU

91.6% 8.4%

Até o presente momento, o pronome VOCÊ demonstrou ter uma frequência maior que

o TU nos usos de falantes baianos, como um todo. Tendo VOCÊ, uma frequência de 91.6%

dos usos (com 218 ocorrências), e TU apenas 8.6% (equivalente a 20 ocorrências).

39

A variável Sujeito/Não Sujeito não pôde ser avaliada para este pequeno recorte do

estudo, por apresentar KnockOut; tendo a variante Não Sujeito, apresentado 100% das

escolhas. Algumas outras variáveis precisaram ser descartadas pelo mesmo motivo. Isto

aconteceu pela baixa quantidade de dados em decorrência da diminuição de inquéritos

selecionados para o presente artigo.

Como podemos conferir no Gráfico 1, a escolha dos pronomes de tratamento é

preferida quando usados no tempo verbal Não Passado, com 92,4% da frequência, enquanto a

escolha pelo tempo Passado ocorre em 7,6%.

Gráfico 1: Uso dos pronomes de tratamento quanto ao Tempo Verbal.

Tabela 2: Uso dos pronomes de tratamento quanto ao Tempo Verbal.

Não Passado Passado

VOCÊ 92,7% 7,3%

TU 77,8% 22,2%

Foi possível notar que, embora VOCÊ tenha grande preferência nas escolhas dos

falantes, o TU, quando no tempo Passado, tem uma frequência maior nas escolhas dos

informantes, que no tempo Não Passado.

0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

100

Não Passado Passado

40

Gráfico 2: Uso dos pronomes de tratamento quanto ao Tipo de Frase

Foi notória a preferência, até o presente momento, dos falantes pelo tipo Declarativo

de frase quando utilizam ambos os pronomes de tratamento. Apresentando, o tipo Declarativo

85,3% de frequência, enquanto as frases Não Declarativas aparecem com 14,7% dos usos.

Gráfico 3: Uso dos pronomes de tratamento quanto ao Tipo de Discurso

0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

Declarativa Não Declarativa

41

Quanto ao Tipo de Discurso, foi possível aferir que quando o Discurso é Atual, a

escolha dos falantes é de 81,1%, sendo de 16% quando o discurso é narrado através da fala de

outra pessoa, e apenas 2,9% ao relatarem a própria fala.

Tabela 3: Uso dos pronomes de tratamento quanto ao Tipo de Discurso.

RELATO ATUAL RELATO

PRÓPRIO

RELATO DE

OUTREM

VOCÊ 91,7% 71,4% 94,7%

TU 8,3% 28,6% 5,3%

Quando analisamos as escolhas nos usos de TU e VOCÊ quanto ao Tipo de Discurso,

podemos observar que o pronome TU é mais utilizado quando está em voga a variante Relato

Próprio, com 28,6%, enquanto nas demais situações, este aparece com 8,3% e 5,3% nas

variantes Relato Atual e Relato de Outrem, respectivamente.

A variável Tipo de Enunciação também apresentou KnockOut, pois as variantes

Advertência, Afirmação e Ordem apresentaram 100% de frequência do pronome VOCÊ.

Como é possível verificar na Tabela 4 abaixo.

0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

Disc. Atual Relato próprio Relato de outrem

42

Tabela 4: Uso dos pronomes de tratamento quanto ao Tipo de Enunciação

Declaração Narração Questionamento Advertência Ordem Afirmação

VOCÊ 88,9% 93,6% 69,2% 100% 100% 100%

TU 11,1% 6,4% 30,8% 0% 0% 0%

É interessante, porém, apontar, que quando a enunciação se configura em

Questionamento, o uso do pronome TU é mais utilizado que nas demais opções, com

frequência de 30,8% dos dados.

Tabela 5: Uso dos pronomes de tratamento quanto à Localidade

SALVADOR AMARGOSA

TU 0% 21,7%

VOCÊ 100% 78,3%

A partir da Tabela 5, podemos observar que a escolha dos pronomes de tratamento

(TU/VOCÊ) nas localidades estudadas é realizada de maneira bem distinta. Enquanto em

Salvador os informantes utilizam sempre o pronome VOCÊ, em Amargosa há ainda,

variação. VOCÊ, por enquanto, se mostrou mais presente na fala dos amargosenses, com

uma frequência de 78,3%. O TU, por sua vez, aparece com 21,7% dos dados.

4.Algumas considerações

Pelo que foi levantado até o momento, foi possível observar que o uso de VOCÊ, em

Salvador e em Amargosa, é preferido. Como podemos verificar em:

(xxii) “Tinha uma maratona que VOCÊ fazia.” Inq. 24, PEPP, p.268

(xxiii) “Mainha não quer ver VOCÊ sofrer.” Inq. 17, PEPP, p.291

43

O único informante que utilizou o pronome TU em Salvador, estava citando passagens

bíblicas, e somente neste momento, fez uso deste. Como podemos conferir a seguir:

(xxiv) “Oh Deus, mostrando que só TU és o senhor, que só o senhor, ó Deus, pode

solucionar ao senhor todos os problemas, Deus TU disseste na tua palavra que

bendita é a nação cujo o Deus é o senhor, [...]” Inq.40, PEPP, p. 163.

Trouxemos este exemplo para ilustrar que em Salvador, o TU parece estar evidente em

situações específicas, como na fala de pessoas religiosas, por exemplo. Entretanto, por fazer

parte do grupo da Faixa Etária II, retirada do corpus desta pesquisa, como foi mencionado

anteriormente, este inquérito não foi considerado no levantamento dos dados. Por este motivo,

na capital baiana, o VOCÊ se mostrou categórico.

Já em Amargosa, de forma geral, os informantes oscilam entre TU e VOCÊ, como

podemos conferir nos usos dessa informante da Faixa Etária III, que utiliza tanto o VOCÊ,

quanto o TU:

(xxv) “e TU come de boa, achando que é camarão.” Inq. 03, Amargosa.

(xxvi) “pode ter certeza que VOCÊ não vai receber um salário mínimo.”

Inq. 03, Amargosa.

O TU, neste caso, se mostra mais voltado para referências específicas, enquanto o

VOCÊ é mais utilizado em referências genéricas.

No entanto, os informantes da faixa IV utilizam mais VOCÊ que TU, independente do

fator escolaridade (fundamental/média) ou sexo (homem/mulher).

(xxvii) “Se VOCÊ é daqui, conhece a Rua Carlos Lima.” Inq. 02, Amargosa.

(xxviii)“Agora, VOCÊ só vira ele no dia seguinte.” Inq. 05, Amargosa.

Optamos por não considerar como variável o grau de intimidade (variável presente em

muitas pesquisas acerca da variação tu/você), mas através de conversas durante e após as

gravações, foi possível perceber que os informantes, ao fazerem referências a familiares ou

amigos próximos, utilizam o TU no lugar de VOCÊ. Como, por exemplo, o informante 01,

44

que utilizou durante toda a gravação, o pronome VOCÊ, porém, quando questionado acerca

do tratamento que usaria com um amigo, respondeu o seguinte:

(xxix) INQ: Quando você vê um amigo com uma mala e quer saber pra onde ele vai.

Como é que você pergunta?

INF.: Quando eu vejo um amigo com uma mala e quero saber pra onde ele vai?

INQ.: Qual é a pergunta que você faz?

INF.: Pra onde TU vai? TU vai pra onde? Inq. 01, Amargosa.

Este mesmo informante, com o gravador já desligado, se referiu à irmã, da seguinte

maneira:

(xxx) “Aí eu falo pra ela: não, mas TU não vai.” Inq. 01, Amargosa.

A informante da faixa etária IV supracitada, quando falando sobre o esposo, utilizou

também o pronome TU:

(xxxi) “Eu falo pra ele: e TU desliga essa coisa.” Inf. 05, Amargosa.

Concluímos, portanto, que embora não consideremos a variável intimidade, esta deve

ser analisada numa posterior pesquisa. Quanto aos dados em análise, acreditamos ter em

Amargosa, uma variação equilibrada entre o TU e o VOCÊ, sendo o VOCÊ característico de

falantes mais velhos, e o TU marcado na fala de informantes mais jovens. A pesquisa em

andamento ainda tem muito a ser explorado através dos inquéritos que serão gravados e

transcritos neste final do ano de 2016. Apresentamos aqui, resultados preliminares e

possibilidades para o trabalho final.

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2014.

45

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46

CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSTITUIÇÃO IDENTITÁRIA DOS TOPÔMINOS

DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO LITORAL NORTE E AGRESTE

BAIANO

Ayesk de Jesus Machado7

Maria da Conceição Reis Teixeira8

RESUMO

A Toponímia, parte da ciência Onomástica, nos permite a compreensão das lexias que

nomeiam territórios e nos ajuda a visualizar um panorama das escolhas lexicais que as

comunidades selecionam para chamar seu espaço de lar e marcar sua terra com aquilo de mais

peculiar que a caracteriza: a forma que realizam a língua e a associam com seus universos. O

presente trabalho objetiva analisar a constituição identitária linguística dos 70 topônimos das

comunidades remanescentes dos quilombos do Litoral Norte e Agreste Baiano. Procuramos

aqui relacionar tais nomes com a formação étnica desses grupos através da análise histórica da

região, utilizando primordialmente os pressupostos teóricos e metodológicos propostos por

Dick (1990), assim como Isquerdo (2012), Biderman (1981) e outros. A pesquisa mostra

inicialmente a presença linguística africana e portuguesa nas escolhas dos topos, mas uma

forte predominância de nomes indígenas atribuídos aos quilombos da referida região,

possibilitando assim traçar um perfil linguístico dessa região.

Palavras-chave: Onomástica. Toponímia. Língua e Identidade. Quilombos. Litoral Norte e

Agreste Baiano.

1 Introdução

A nomeação do mundo circundante sempre fez parte da existência do homem

civilizado não apenas como tomada de posse daquilo que conquistou, mas como uma forma

de peculiarizar seus espaços e deixar tal herança para as futuras gerações, preservando assim a

sua identidade. Ao nomear sua terra, o homem apreende a realidade e atribui ao seu território

suas características mais íntimas, como expressão daquilo que observa, sente e cultiva. Para

Biderman (2001, p. 13),

[...] a nomeação da realidade pode ser considerada como a etapa primeira no

percurso científico do espírito humano de conhecimento do universo. Ao reunir os

objetos em grupos, identificando semelhanças e, inversamente, discriminando os

7 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens pela Universidade do Estado da Bahia

(PPGEL/UNEB), membro do Grupo NEL – Núcleo de Estudos Lexicais e integrante do projeto ATOBAH

(PPGEL/UNEB). Email: [email protected] 8 Doutora em Letras (UFBA), Líder do Grupo de Pesquisa Edição e Estudos de Textos, Diretório do CNPq.

Professor Pleno da Universidade do Estado da Bahia, atuando na Graduação e na Pós-Graduação

(PPGEL/UNEB). Desenvolve pesquisa em acervos documentais, resgatando textos literários e não literários

veiculados em periódicos baianos. Pesquisadora integrante do projeto ATOBAH. Email:

[email protected]

47

traços distintivos que individualizam esses seres e objetos em entidades diferentes,

o homem foi estruturando o mundo que o cerca, rotulando essas entidades

discriminadas.

Somente após a atribuição de nomes o espaço passa a existir e tais lexias

nomenclatórias constituem a memória elementar de cada comunidade como um dos traços

identitários mais importantes, tendo em vista que alguns grupos somente conhecem sua

história considerando esse processo. Assim, ao chegar a essa compreensão, é possível trazer à

tona as reflexões acerca da origem, preservação e manutenção das características de cada

comunidade, principalmente porque o estudo dos topônimos permite resgatar o passado,

sendo, portanto, uma ferramenta relevante que contribui para a compreensão sócio-histórica

refletida, que muitas vezes encontra-se soterrada pelo tempo.

Segundo Oliveira e Isquerdo (2001, p. 09),

o léxico representa a janela através da qual uma comunidade pode ver o mundo,

uma vez que esse nível da língua, é o que mais deixa transparecer os valores, as

crenças, os hábitos e costumes de uma comunidade, como também, as inovações

tecnológicas, transformações socioeconômicas e políticas ocorridas numa

sociedade.

Como processo político, nomear lugares significa estabelecer e indicar a dominação de

território e determinar espaços como pertencentes a um grupo que não apenas se consolidou

na região, mas modificou e impôs seus costumes. A nomeação se dá de forma natural, porém

não acidental, com os recursos linguísticos do tempo e sempre estabelecendo um vínculo

socioafetivo com a comunidade, assim a análise dos topos, objeto da Toponímia, do Grego

topos, “lugar” e onoma, “nome”, ou seja, o estudo dos nomes de lugares , é definida por Dick

(1990, p. 119) “como um imenso complexo línguo-cultural, em que os dados das demais

ciências se interseccionam necessariamente e, não, exclusivamente”, que é capaz de preservar

a história dos grupos, uma vez que os topônimos refletem a visão de mundo daqueles que se

organizaram e constituíram determinado espaço como lar.

No que tange às comunidades remanescente dos quilombos (CRQs) do Litoral Norte e

Agreste Baiano, devidamente reconhecidas e registradas, as escolhas lexicais que foram

usadas para nomear tais espaços revelam traços importantes da constituição identitária da

região na época. Com a presença de povos indígenas que já habitavam a região antes da

chegada dos colonizadores, e dos negros escravos trazidos da África por portugueses que ali

se fixaram, é possível entender os topônimos existentes como um banco de memórias que

permite não apenas apreender a evolução organizacional do seu espaço, mas a relação do

grupo com o ambiente e, especialmente, verificar as circunstâncias do processo de

territorialização. São 22 municípios que fazem parte desse espaço, onde são localizados cerca

48

de 200 comunidades quilombolas que resistem até hoje às mudanças histórico-sociais e

mantêm viva a memória dos antepassados como símbolos de resistência e luta. Dessas

comunidades apenas 70 são reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares, entidade

vinculada ao Ministério da Cultura que tem como objetivo preservar aspectos da cultura afro-

brasileira, entre eles, formalizar a existência destas comunidades, assessorá-las juridicamente

e desenvolver projetos, programas e políticas públicas de acesso à cidadania dos

quilombolas, descendentes de africanos escravizados que mantêm tradições culturais, de

subsistência e religiosas ao longo dos séculos. Excluídos de todas as formas, desde os tempos

sombrios da história escravagista, os quilombolas organizaram-se em comunidades cujo

objetivo era abrigar aqueles que fugiam dos seus algozes em busca de liberdade.

Objetiva-se abordar algumas considerações sobre a constituição identitária de algumas

lexias que nomeiam as comunidades quilombolas no território de identidade Litoral Norte e

Agreste Baiano. As discussões aqui levantadas são um recorte do projeto de pesquisa

intitulado Da Resistência à afirmação: Um Estudo Toponímico dos Quilombos do Litoral

Norte e Agreste Baiano, em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Estudo de

Linguagens, da Universidade do Estado da Bahia. Faz parte de um projeto maior coordenado

pela professora Celina Marcia de Souza Abbade cujo principal objetivo é elaborar o Atlas

Toponímico da Bahia (ATOBAH).

2 Atribuição dos topos no território brasileiro: aspectos históricos

O território brasileiro, como se sabe, foi habitado tanto por portugueses, quanto por

tantos outros povos que aqui estavam e desembarcaram, influenciando diretamente no

processo não apenas cultural, mas de nomeação dos espaços como forma de demonstração de

domínio e posse dos locais conquistados. Consequentemente, deixaram marcada na história e

na Língua Portuguesa suas próprias identidades que contribuíram para a heterogeneidade do

povo brasileiro. No entanto, antes da influência massiva da cultura europeia neste território,

os portugueses que aqui chegaram já encontraram muitos locais nomeados por indígenas,

porém ignorados pelos colonizadores por desconhecerem essa prática comum em todos os

povos.

Com a interação mais avançada entre portugueses e indígenas, tornou-se conhecido o

vocabulário nomenclatório atribuído pelos indígenas, que depois passou a ser complementado

com lexias lusitanas para demarcar a presença, ainda sutil, dos colonizadores. Sobre isso,

49

Dick (1982. p. 78) esclarece que “a nomeação portuguesa de lugares, face, como se viu, à uma

nomenclatura preexistente, configura, em muitos casos, o que se convencionou a chamar de

‘superposição toponímica’”.

A toponímia, então estabelecida na época, buscava a imposição lusitana, ainda

pacífica, através da disseminação dos ideais portugueses com a propagação do nome de Deus

e de valores cristãos em detrimento das práticas consideradas pagãs; dessa forma, o caminho a

ser adotado foi o do catolicismo em contraposição aos valores indígenas voltados para o

imediatismo natural de grupos que buscavam sobreviver com forte relação com a natureza. Há

também, nesse sentido, a forte influência africana advinda dos escravos que para aqui foram

trazidos como mão de obra na colonização do país. Sobre esse fato, Ramos (1943, p. 293)

esclarece que ‘não foi uma viagem espontânea de exploração e conquista; foi, ao revés, uma

migração passiva, uma migração forçada pela captura e escravidão, o maior movimento

migratório passivo da história”; logo seria impossível o silenciamento dessa nova

contribuição tanto para a língua que aqui se estabelecia e se fixava, quanto para a nomeação

de locais que eram também habitados por esses grupos, seja em locais destinados a este fim,

seja de forma clandestina, como os quilombos.

Após esta fase, os missionários que aqui permaneciam e que estavam obstinados à

aculturação indígena não apagaram as lexias nomenclatórias de forma imediata, mas, segundo

Dick (1982, p.10),

a introdução de elementos culturais europeus realizou-se, como se afirmou, através

dos próprios significantes indígenas, semanticamente diversificados. Aos

primitivos termos, adicionaram acepções novas, ou diferentes substâncias de

conteúdo, que atendessem mais de perto aos fatos culturais em aquisição.

Assim, as palavras encontradas pelos portugueses foram semanticamente modificadas

de acordo com a ideologia colonizadora. Com o avanço desse processo, o estabelecimento de

mudanças mais profundas tem início com a alteração tanto dos significantes quanto dos

significados das lexias nomenclatórias, tendo permanecido apenas a realização fonológica

similar. As evoluções seguiram até que, frente à manutenção das línguas indígenas e

consequentemente apresentando riscos à língua lusitana como padrão, em 1759, Francisco

Xavier de Mendonça Furtado, representante do Marquês de Pombal segue, segundo Cardoso

(1961, p. 282 apud DICK, 1982, p. 10) “por todas as cidades que ia percorrendo, substituindo

os nomes indígenas pelos portugueses”; dessa forma, tal panorama demonstra claramente a

tentativa de disseminação do vocabulário português como forma de domínio e demarcação de

território, em detrimento dos topônimos encontrados pelo poder hegemônico na época.

50

3 Território de identidade Litoral Norte e Agreste Baiano: constituição e história

Conforme foi definido pelo Governo do Estado da Bahia, território de identidade “é

um espaço físico, geograficamente definido, geralmente contínuo, caracterizado por critérios

multidimensionais, tais como o ambiente, a economia, a sociedade, a cultura, a política e as

instituições, e uma população com grupos sociais relativamente distintos, que se relacionam

interna e externamente por meio de processos específicos, onde se pode distinguir um ou mais

elementos que indicam identidade, coesão social, cultural e territorial”. São 22 municípios do

Estado da Bahia que fazem parte desse espaço: Acajutiba, Alagoinhas, Aporá, Araçás,

Aramari, Cardeal da Silva, Catu, Conde, Crisópolis, Entre Rios, Esplanada, Inhambupe,

Itanagra, Itapicuru, Jandaíra, Mata de São João, Olindina, Ouriçangas, Pedrão, Pojuca, Rio

Real, Sátiro Dias. Foi uma das últimas regiões a ter seus limites estabelecidos pela lei de

divisão territorial do Estado da Bahia, nº 12.057/2011, que estabelece a atualização das

divisas municipais feita há mais de 60 anos. São 13,7 mil quilômetros quadrados e população

estimada em mais de 600 mil habitantes, de acordo com o Censo 2010 do IBGE, e a atividade

econômica mais forte é o cultivo de laranja e coco; outras atividades como exploração de

petróleo e turismo também contribuem para o desenvolvimento econômico, mas ainda em

expansão.

Gráfico 1: Comunidades remanescentes de quilombos do território de identidade litoral

norte e agreste baiano.

Elaboração: Ayesk de Jesus Machado

Na região constam os registros de 67 quilombos ou comunidades remanescentes de

quilombos (CQRs): 03 no município de Alagoinhas, 45 estão dentro dos limites do município

345

12

32

38

21

0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50

Rio Real Pedrão Ouriçangas Mata de São João Esplanada

Entre Rios Conde Aramari Araçás Alagoinhas

51

de Araçás, 01 em Aramari, 02 no município do Conde, 03 em Entre Rios, 02 em Esplanada,

03 em Mata de São João, 08 em Ouriçangas, 02 no município de Pedrão e 01 em Rio Real. O

gráfico 1 dá uma ideia da distribuição das comunidades remanescentes de quilombos do

território de identidade litoral norte e agreste baiano.

Não há muitos registros documentais dessa região e o período que compreende o

século XVII e final do XIX é o que mais apresenta ausência de memória desse território, mas

acredita-se que seu desenvolvimento teve início no século XVI com a chegada de Garcia

D'Avila (1528-1609), um agricultor na Comenda de Rates, em Portugal, e amigo do

comendador Thomé de Sousa. Aportou na Bahia em 29 de março de 1549, junto com Thomé

de Sousa e no mesmo ano, em 1º de junho, tornou-se feitor e almoxarife da Cidade do

Salvador e da Alfândega. Ganhou as sesmarias em Itapagipe, Itapuã e Tatuapara, onde deu

início ao maior feudo do país. Construiu a Torre nomeada Torre Singela de São Pedro de

Rates, cujo objetivo era servir como observatório estratégico. Construiu também um castelo, a

Casa da Torre, sede das sesmarias. Casado com Mércia Rodrigues, viveu um relacionamento

extraconjugal com a índia tupinambá Francisca Rodrigues e tiveram uma filha de nome Isabel

d'Ávila; a mesma casou-se com um dos netos de Caramuru e Paraguaçu, Diogo Dias. Um dos

descendentes direto desse casal foi Francisco Dias d'Ávila, que posteriormente tomou posse

da Casa da Torre.

Como em quase todas as regiões do Brasil, aqui também tem extrato étnico dos

diversos povos que viveram antes, durante e depois do período de colonização: indígenas,

portugueses, africanos, por exemplo. Natural que todos tenham dado a sua contribuição para

tecer as marcas identitárias desse território, repletas de nuances que, provavelmente, se

refletem nas escolhas dos topônimos. Natural também que “lutas” tenham sido travadas, que

jogos de poder tenham sido praticados subjugando o outro, impondo os seus valores, crenças,

religião, língua. Como bem pontua Leite (1999):

Em diversas situações, índios e negros, por vezes aliados, lutaram – desde o início

da ocupação e exploração do continente – contra os vários procedimentos de

expropriação de seus corpos, bens e direitos. Os negros, diferentemente dos índios

– considerados como “da terra” –, enfrentaram muitos questionamentos sobre a

legitimidade de apropriarem-se de um lugar, cujo espaço pudesse ser organizado

conforme suas condições, valores e práticas culturais (LEITE, 1999, p. 334)

4 Análise de topônimos dos quilombos do Litoral Norte e Agreste Baiano

52

A Toponímia – termo de origem grega, topos (lugar) e ónyma (nome) – ocupa-se com

o estudo de nomes de lugares considerando fatores linguísticos e extralinguísticos

como fatores importantes na construção/apropriação e associação das lexias nomenclatórias

ao território nomeado. Por essa razão, tal estudo requer análise dos topos (nomes de lugares) à

luz da investigação cultural e social do povo que o nomeou, pois esses signos toponímicos

não são arbitrários, mas oriundos de um elo entre cultura e língua; não são ontológicos, mas

históricos e não apenas edificam a cultura, mas substancializam-na e a preservam para as

futuras gerações. Dick (1990) esclarece que,

A história dos nomes de lugares, em qualquer espaço físico considerado, apresenta-

se como um repositório dos mais ricos e sugestivos, face à complexidade dos

fatores envolventes. Diante desse quadro considerável dos elementos atuantes, que

se entrecruzam sob formas as mais diversas, descortina-se a própria panorâmica

regional, seja em seus aspectos naturais ou antropo-culturais (DICK, 1990, p. 19).

Nessa direção, Coromines (1965) é esclarecedor ao afirmar que os nomes de lugares,

Constituem a herança da qual somos proprietários, assim como a montanha que

limita nosso horizonte, ou o rio de onde tiramos água para irrigar, ou o povo, ou a

cidade que nos viu nascer e que amamos mais que qualquer outra, ou a região, o

país ou o estado onde ocorre nossa vida coletiva. Pode-se pensar porque o homem,

um ser racional, se pergunta o porquê de todas as coisas que vê e que sente não se

perguntaria sobre o porquê desses nomes que todo mundo tem frequentemente nos

lábios. (COROMINES, 1965, p.7).

Ao nomear, o homem considera valores que devem ser preservados e mantidos pelas

futuras gerações para que seus costumes sejam perpetuados como forma de apossamento de

território e apreensão da realidade. No processo de nomear os lugares, o homem estabelece

uma relação de poder e de subjugar o outro. Dick afirma que (1998, p.99-100),

Destacam a relação dominante/dominado, ou melhor dizendo, o poder do mando e

da sujeição, mesmo em regiões em que o exercício de autoridade não se define pelo

continuísmo ou pela transmissão hereditária. A toponímia antroponímica, por esses

constituintes, reflete, subjacente à forma, motivos de ordem psicológica mais

profunda que levam o pesquisador a tentativas de explicação [...]. Mas (o modelo)

revela muito da pressão social, da coerção que o próprio sistema impõe aos seus

membros.

Assim, ainda segundo Dick:

A Toponímia reserva-se o direito de se apresentar como a crônica de uma

comunidade, gravando o presente para o conhecimento das gerações futuras. Assim

é que os elementos mais diferenciadores da mentalidade do homem, em sua época

e em seu tempo, em face das condições ambientais de vida, que condicionam a sua

percepção do mundo, estão representados nos nomes de lugares, senão todos, pelo

menos os mais flagrantes (DICK, 1992, p.112)

53

A palavra que nomeia também é aquela que conta a história, que abre um leque de

possibilidades, que nos permite conhecer a origem de um povo e desvendar os fatos ainda não

contados e/ou que foram esquecidos voluntária ou involuntariamente, pelos nossos

antepassados. Isto porque a palavra nomeadora dos espaços representa “[...] todo o universo

da significação, o que inclui toda a nomenclatura e a interpretação da realidade”

(BIDERMAN, 2001, p. 198).

Considerando a importância de compreender o perfil daqueles que colaboraram para

a nomeação e consequente constituição identitária dos espaços em questão, apresentar-se-ão a

seguir alguns topônimos pertencentes às comunidades quilombolas do Litoral Norte e Agreste

Baiano. A organização das fichas do estudo que será desenvolvido e sua classificação

taxonômica segue, em linhas gerais, o modelo de categorização proposto por Dick (1992). A

escolha dos topônimos aqui apresentados foi aleatória, não teve qualquer motivação

específica.

Ficha Taxonômica 1

Topônimo Jatobá

Taxionomia Fitotopônimo

Localização Município de Araçás/ Bahia

Origem Indígena (Tupi)

Informações enciclopédicas sf. Yata ‘wá. Árvore da família das

Cesalpináceas (FERREIRA, 2007, p. 78)

Estrutura morfológica Nm [Ssing] – Nome masculino

[Substantivo singular] Elaboração: Ayesk de Jesus Machado.

Ficha Taxonômica 2

Topônimo Brocotó

Taxionomia Geomorfotopônimo

Localização Município de Araçás/ Bahia

Origem Africana (Banto)

Informações enciclopédicas

Terreno escabroso, com muitos altos e

baixos, escavado ou obstruído de pedras;

sulco irregular aberto por águas pluviais

em ruas sem calçamento. (CASTRO,

2001)

Estrutura morfológica

Nm [Ssing] – Nome masculino

[Substantivo singular] Elaboração: Ayesk de Jesus Machado.

Ficha Taxonômica 3

Topônimo Mocambo do Rio Azul

Taxionomia Ecotopônimo

Localização Município de Rio Real /Bahia

Origem Hibridismo [africano + português]

54

Informações enciclopédicas

Esconderijo de escravos na floresta,

equivalente a quilombo; choça, palhoça,

casebre; cerrado de mato ou moita onde se

esconde o gado (CASTRO, 2013).

Rio Azul é uma referência ao Rio Real

que banha os estados da Bahia e de

Sergipe.

Estrutura morfológica

NCm [Ssing + {Prep + Asing + Ssing}] =

Nome Composto masculino [Substantivo

singular + {Preposição + Artigo singular +

Substantivo singular}] Elaboração: Ayesk de Jesus Machado.

Ficha Taxonômica 4

Topônimo Tapera

Taxionomia Sociotopônimos

Localização Município de Mata de São João/Bahia

Origem Indígena (Tupi)

Informações enciclopédicas De taba+pûer+-a: aldeia extinta. Durante

o período colonial passou a significar

também fazenda extinta. É com esse

sentido que tal palavra aparece mais

comumente na toponímia brasileira: “Por

que cuidaes que se arruinam e

desfabricam, e estão feito taperas tantos

engenhos? (Pe. Antônio Vieira [1657], 3º

Sermão da Quarta Dominga da Quaresma,

69) (NAVARRO, 2013, p. 600)

Estrutura morfológica Nf [Ssing] = Nome feminino

[Substantivo singular] Elaboração: Ayesk de Jesus Machado.

5 Considerações finais

Os topônimos não apenas salvaguardam na memória dessas comunidades, mas são

responsáveis por perenizar as tradições desse povo. Repletos de história, cultura e identidade,

além do seu próprio povo, é possível que este seja o elemento que melhor traduza o grupo em

questão não apenas por exteriorizar a leitura do mundo e do espaço, mas por preservar sua

ancestralidade. A partir da pequena amostra aqui analisada, é possível compreender que,

apesar de tratar-se de comunidades quilombolas remanescentes de escravos, há topônimos de

diversas origens e não apenas africanos. Certamente trata-se de uma pequena amostra, por

isso as análises ainda são elementares e poderão (e certamente) ser alteradas quando do estudo

do corpus em sua totalidade.

55

REFERÊNCIAS

BIDERMAN, Maria Tereza. Teoria Linguística (teoria lexical e linguística

computacional). 2. ed. Martins Fontes: São Paulo, 2001.

COROMINES, J. Estudis de toponímia catalana. v. 2. Barcelona: Barcino, 1965, p.7

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nomes transplantados. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 24, p. 75-96,

dec. 1982. ISSN 2316-901X. Disponível em:

<http://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/69706>. Acesso em: 06 nov. 2016.

doi:http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i24p75-96

DICK, Maria Vicentina de Paula do Amaral. A motivação toponímica: Princípios teóricos e

modelos Taxionômicos. São Paulo: FFLCH/USP, 1990.

DICK, Maria Vicentina de Paula do Amaral. Toponímia e Antroponímia no Brasil.

Coletânea de estudos. São Paulo: Gráfica da FFLCH/USP, 1992.

DICK, Maria Vicentina de Paula do Amaral. Os nomes como marcadores ideológicos. In:

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Fundação Cultural Palmares. Disponível em < http://www.palmares.gov.br/?page_id=88>.

Acesso em 12 de maio de 2016

GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA. Territórios de Identidade. Disponível em <

http://www.seplan.ba.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=17> Acesso em 21

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IBGE. Censo Demográfico 2010. Disponível em: <http://www.censo2010.ibge.gov.br>.

Acesso em 08 de Agosto de 2016, às 22h.

LEITE, Ilka B. Os Quilombos no Brasil: questões conceituais e normativas. Disponível em

http://ceas.iscte.pt/etnografica/docs/vol_04/N2/Vol_iv_N2_333-354.pdf. Acesso em 15 de

Junho de 2016.

OLIVEIRA, Ana Maria Pinto Pires de; ISQUERDO, Aparecida Negri. (orgs). In: As ciências

do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. Campo Grande (MS): UFMS, 2001. p.

09-11.

RAMOS, Arthur. Introdução à antropologia brasileira. Rio de Janeiro: Coleção Estudos

Brasileiro, 1943, p. 293.

SOCIOAMBIENTAL. Territórios Remanescentes de Quilombos. Disponível em

https://uc.socioambiental.org. Acesso em 10 agosto 2016, às 18h08min

56

A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

Carlos Wilson J. Pedreira (MPLE/UFPB)

Prof. Dr. Dermeval da Hora (MPLE/UFPB)

Profa. Dra. Norma da Silva Lopes (UNEB)

RESUMO: Nesta pesquisa, investigamos o motivo que faz os docentes se queixarem das

variedades linguísticas com que os alunos se comunicam com os demais. Agindo, às vezes, de

modo grosseiro com os alunos, os professores dizem que eles não sabem falar direito o

português. Como esses docentes compreendem o conceito de língua? Será falar seguindo as

normas da gramatica normativa? A pesquisa foi realizada com os alunos do 6º ao 9º ano do

Ensino Fundamental de uma escola pública do município de Juazeiro-BA, localizada em um

bairro periférico. A análise foi realizada segundo os princípios da Sociolinguística

Educacional de Bortoni-Ricardo (2004, 2005), para investigar os aspectos sociais e estruturais

que condicionam os diversos usos da língua falada pelos estudantes. Foram observadas

algumas aulas e aplicado um questionário social com alguns alunos do 6º ao 9º ano do Ensino

Fundamental. Analisando algumas aulas observadas e da análise do questionário chegamos a

algumas conclusões: De uma forma geral, os resultados nos mostraram que o professor não

valoriza a fala do aluno, o professor não deixa vir à tona os desejos e anseios do aluno e que o

aluno tem direito à sua forma de expressão ser respeitada pelo professor durante as aulas.

Percebemos que a variedade linguística utilizada pelos alunos não é errada ou feia, mas

diferente, como atestam os trabalhos de Bagno (1999; 2000; 2001; 2002; 2007; 2014),

Bortoni-Ricardo (2004, 2005), Scherre (2005), Faraco (2005).

PALAVRAS-CHAVE: Variação linguística; Sociolinguística, Língua falada, Língua escrita.

1 INTRODUÇÃO

A escolha do tema A variação linguística no ensino de Língua Portuguesa: deu-se em

razão dos preconceitos linguísticos enfrentados pelos alunos, no decorrer do período escolar

do ensino fundamental e pela falta de entendimento dos professores em relação à fala dos

alunos.

Um dos maiores desafios enfrentados pelo professor de português, especialmente no

Ensino Fundamental, diz respeito ao tratamento da variação linguística. Devemos constatar

também que grande parte dos professores não está preparada, ainda, para discuti-la quando ela

emerge em sala de aula. Cabe a esse mesmo professor se instrumentalizar para otimizar as

ações pedagógicas focalizadas para os fenômenos variáveis.

57

Do ponto de vista estritamente linguístico, o erro não existe, o que existe são formas

diferentes de usar os recursos potencialmente presentes na própria língua. É preciso enfatizar

as tendências imanentes da língua para levar as pessoas em geral, os professores em

particular, a assumir a convicção de que “Os chamados “erros” que nossos alunos comentem

têm explicação no próprio sistema e processo evolutivo da língua. Portanto, podem ser

previstos e trabalhados com uma abordagem sistêmica. (BORTONI-RICARDO, 2004, p.9).

É sabido que em qualquer domínio social, encontramos grande variação no uso da

língua. Em uma sala de aula, na linguagem do professor que exerce um papel social de

ascendência sobre seus alunos, a variação também é encontrada, seja em grau maior ou

menor.

Conforme analisa Bortoni-Ricardo (2004, p.38), foram identificados alguns padrões

principais na conduta do professor perante a realização da regra não padrão pelos alunos:

o professor identifica “erros de leitura”, isto é, erros na decodificação do

material que está sendo lido, mas não faz distinção entre diferenças dialetais e

erros de decodificação na leitura, tratando-os da mesma forma;

o professor não percebe uso de regras não-padrão. Isto se dá por duas razões:

ou o professor não está atento ou o professor não identifica naquela regra uma

transgressão porque ele próprio a tem em seu repertório. A regra é, pois,

“invisível” para ele;

o professor percebe o uso de regras não-padrão e prefere não intervir para não

constranger o aluno;

o professor percebe o uso de regras não-padrão, não intervém, e apresenta, logo

em seguida, o modelo da variante-padrão.

O padrão de comportamento do professor em relação ao uso de regras não-padrão

pelos alunos depende basicamente do tipo de evento em que essas regras ocorrem. Os alunos,

ao chegar à escola, já são usuários competentes de sua língua materna, mas têm de ampliar a

gama de seus recursos comunicativos para poder atender às convenções sociais, que definem

o uso linguístico adequado a cada gênero textual, a cada tarefa comunicativa e a cada tipo de

interação.

Os professores em atividade hoje e que se formaram há mais de vinte anos

“aprenderam, na universidade, a considerar a língua como um fenômeno homogêneo,

iniciando-se numa gramática formal, estrutural, e tomando a sentença como território máximo

de atuação” (CASTILHO, 1998, p.12). A implantação maciça das teorias linguísticas nas

58

instituições de ensino superior no Brasil vem provocando, no último meio século, profundas

transformações nos modos de encarar o ensino de línguas nas escolas fundamental e média.

No entanto, quando se sai da esfera acadêmico-científica e se entra na sala de aula da

grande maioria das escolas brasileiras, o que ainda se encontra é uma prática pedagógica de

ensino de língua que revela pouca ou nenhuma influência de todas essas novas perspectivas

de abordagem do fenômeno da linguagem – apesar de estarem presentes, já faz algum tempo,

até mesmo em diretrizes oficiais de educação, como os Parâmetros Curriculares Nacionais

(MEC, 1998)

Embora contenham propostas louváveis de reformulação das práticas tradicionais de

ensino de língua, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Língua Portuguesa estão

redigidos de tal modo que sua leitura se revela, com muita frequência, extremamente difícil

para a grande maioria dos professores brasileiros, sobretudo os que atuam nas escolas

públicas, que não foram preparados, em seus cursos de formação, para ler esse gênero de

texto escrito, que pressupõe conhecimento prévio de teorias linguísticas específicas,

veiculadas numa terminologia que não é tão transparente para o professor-leitor quanto parece

ser para os autores do documento.

Por sua vez, os professores que se formam atualmente e que, em seus cursos

universitários, entram em contato com as novas propostas científicas, ainda não conseguem

consubstanciá-las em instrumental pedagógico efetivo para sua prática de sala de aula. Além

disso, embora muitos terminem seu curso universitário dispostos a renovar o ensino de língua,

o embate com as estruturas de um sistema educacional obsoleto, pouco flexível e

tremendamente burocratizado acaba frustrando muitos desses novos professores. A isso se

agrega a expectativa vigente na sociedade em geral, sobretudo entre os pais dos alunos, de que

a escola ensine “português” (entenda-se: gramática normativa) exatamente do mesmo modo

como eles, os pais, aprenderam em sua época de escola. Ou seja, quem menos entende sobre a

língua, é quem mais quer legislar sobre ela.

Assim, quais seriam os verdadeiros objetivos do ensino de língua na escola? Propiciar

condições para o desenvolvimento pleno de uma educação linguística. Diferente em muito da

prática tradicional de inculcação de uma suposta “norma-padrão e de uma metalinguagem

tradicional de análise gramatical.

Esta educação linguística tem como princípio elementos constitutivos:

o desenvolvimento ininterrupto das habilidades de ler, escrever e escutar;

59

o conhecimento e reconhecimento da realidade intrinsecamente múltipla,

variável e heterogênea da língua, realidade sujeita aos influxos das ideologias e

dos juízos de valor;

a constituição de um conhecimento sistemático sobre a língua, tomada como

objeto de análise, reflexão e investigação.

A escola deve visar ao aumento do repertório linguístico dos alunos para lhes dar a

possibilidade de utilizar as variantes apropriadas às situações de comunicação mais diversas e

assegurar o mais eficazmente possível as funções a que a língua serve.

Querer impedir a escola, pela razão ideológica que seja, de fazer o aluno adquirir o

código escrito e o registro mais formal do código oral parece, portanto, nocivo para o

indivíduo, cujo repertório verbal seria então limitado, e para a comunidade que ficaria

empobrecida com isso. Querer, sob pretexto de purismo ou de ascensão social, impedir a

escola, o indivíduo ou mesmo o aluno de utilizar uma variedade linguística dialetal de registro

informal quando quiser, para assegurar as funções da linguagem que ele deseja, constitui

igualmente um empobrecimento do patrimônio comunitário e uma discriminação inaceitável.

Sempre imaginei a escola como um lugar que propiciasse aos alunos uma maior

oportunidade de acesso aos bens culturais como forma de ascensão social, pois ela tem a

função de promover a igualdade social, porém agindo de maneira a discriminar a linguagem

do aluno, o seu falar espontâneo, ela só vai continuar a preservar as discriminações sociais.

Como nos alerta Bechara (2000, p.40):

Não cabe à instituição de ensino a simples substituição da norma coloquial usada

na língua funcional do aluno pela norma culta usada na língua funcional da escola.

Caberá ao professor e à escola como um todo transformar o aluno num poliglota

dentro da sua própria língua histórica.

Segundo essa perspectiva, a escola tem por objetivo propiciar ao aluno o

conhecimento de diversos recursos expressionais da língua, a fim de ampliar-lhe a capacidade

comunicativa.

É necessário o combate a opressão quando a escola impõe indistintamente a

modalidade culta a todas as situações de uso da linguagem, ou a educação de natureza

“monolíngue”, tanto quanto imprescindível promover e viabilizar o leque de possibilidades

comunicativas em diferentes gêneros e estilos discursivos.

Outra postura equivocada por parte da escola é a de considerar que os alunos usuários

de formas não-padrão são incapacitados intelectualmente. Em geral, os alunos não dominam o

60

padrão por não terem tido aprendizagem sistemática e contato por vezes em decorrência do

meio social em que vivem. Dominam quase sempre estilos mais coloquiais e traços de

dialetos regionais.

De acordo com Possenti (1999, p.32):

Qualquer avaliação da inteligência do aluno com base na desvalorização de seu

dialeto (isto é, medida apenas pelo domínio do padrão e/ou da escrita padrão) é

cientificamente falha. A consequência a tirar é que os alunos que falam dialetos

desvalorizados são tão capazes quanto os que falam dialetos valorizados, embora as

instituições não pensem assim.

Visando um ensino democrático de língua materna, devemos estimular que os falantes

se apropriem de normas prestigiadas, libertando-se do preconceito de que alguns não terão

oportunidade para utilizá-lo ou não possuem competência para adquiri-lo. É preciso evitar a

educação de exclusão para possibilitar que o conhecimento da norma culta seja um dos

vetores do conjunto de conhecimentos que compõem a competência comunicativa de forma a

adequar os indivíduos em diversos eventos de fala.

Ainda encontramos uma postura tradicional, que não integra as diversidades

linguísticas dos falantes em toda a plenitude tornando estreitada e parcial a prática pedagógica

nas instituições de ensino.

O professor de língua materna deve tão somente mediar os diferentes tipos de fala sem

condenar os alunos. Como vem apontando pesquisas no campo (BORTONI-RICARDO,

2006). Através da concretização dessa nova postura, é possível proporcionar a expansão dos

usos linguísticos sem eleger aleatoriamente a fala peculiar de um grupo social. Em síntese: o

ideal seria acrescentar aos usos coloquiais e regionais que dominam, as formas linguísticas da

norma socialmente prestigiada.

2 Variação linguística: o que é?

Vive-se numa sociedade permeada de diferenças histórico-cultural-geográficas e essas

diferenças refletem na língua. Sendo ela um produto social, está sujeita às transformações

pelas quais a sociedade passa. Não se pode conceber a língua como um bloco homogêneo e

estático, deve-se, portanto, considerá-la como um produto social influenciada pela variação

diastrática, diafásica e diacrônica (cf. FLYDAL apud BECHARA, 1994).

61

A língua é produzida socialmente. Sua produção e reprodução são fatos cotidianos da

vida dos homens. Todas as línguas variam, isto é, não existe sociedade ou comunidade na

qual todos falam da mesma forma. Essas variações linguísticas são reflexos da variedade

social, pois em todas as sociedades existe alguma diferença de poder aquisitivo ou de papéis

dentro dela e essas diferenças refletem-se na linguagem. Assim, muitas vezes percebem-se

diferenças na fala de pessoas de classes, de sexos, de escolaridades, ou de etnias diferentes; a

linguagem, assim, fornece meios de constituição de identidade social.

A variação linguística é um fenômeno que acontece com a língua e pode ser

compreendida por intermédio das variações históricas e regionais. Em um mesmo país, com

um único idioma oficial, a língua pode sofrer diversas alterações feitas por seus falantes.

Como não é um sistema fechado e imutável, a língua portuguesa ganha diferentes nuances. O

português que é falado no Nordeste do Brasil pode ser diferente do português falado no Sul do

país. Claro que um idioma nos une, mas as variações podem ser consideráveis e justificadas

de acordo com a comunidade na qual se manifesta.

As variações acontecem porque o princípio fundamental da língua é a comunicação,

então é compreensível que seus falantes façam rearranjos de acordo com suas necessidades

comunicativas. Os diferentes falares devem ser considerados como variedades diferentes, não

como erros. Quando tratamos as variações como erro, incorremos no preconceito linguístico

que associa, erroneamente, a língua ao status. Por vivermos em uma sociedade complexa, na

qual estão inseridos diferentes grupos sociais. Alguns desses grupos tiveram acesso à

educação formal, enquanto outros não tiveram muito contato com a norma culta da língua.

Podemos observar também que a língua varia de acordo com suas situações de uso, pois um

mesmo grupo social pode se comunicar de maneira diferente, de acordo com a necessidade de

adequação linguística. Prova disso é que você não vai se comportar em uma entrevista de

emprego da mesma maneira com a qual você conversa com seus amigos em uma situação

informal, não é mesmo?

Apesar de algumas variedades linguísticas não apresentarem o mesmo prestígio social

no Brasil, não devemos fazer da língua um mecanismo de segregação cultural, corroborando

com a ideia da teoria do preconceito linguístico, ao julgarmos determinada manifestação

linguística superior a outra, sobretudo superior às manifestações linguísticas de classes sociais

ou regiões menos favorecidas. Por isso, é fundamental que o professor de Língua Portuguesa

esteja preparado para que, ao receber indivíduos pertencentes às camadas menos prestigiadas

62

na sociedade, ele consiga relacionar as diferenças linguísticas para o aluno ter acesso a um

número possível de opções de uso, visto que a língua é um todo com bastantes variedades e o

professor deve se oportunizar desse leque de variedades, não se limitando a uma única

variedade, pois desta forma, o ensino de língua não utilizará a soma das variedades do

Português, mas uma tentativa de vê-lo como um todo e não só elegendo uma parte da língua

discriminando as demais. Sobre o tema, Cagliari (1992, p.28) diz que

O professor de português deve ensinar aos alunos o que é uma língua, quais as

propriedades e usos que ela realmente tem, qual é o comportamento da sociedade e

dos indivíduos com relação aos usos linguísticos, nas mais variadas situações de

suas vidas.

Para ocorrer uma reformulação no ensino, é necessário partir do saber linguístico do

aluno (uso regional, social e estilo peculiar), de modo a não impor o padrão, mas a construir

meios produtivos para levar o aluno a utilizar, na necessidade, a variedade de prestígio.

3. Definição de língua padrão e não padrão

A língua é um conjunto de variedades linguísticas, e cada uma delas com suas

características peculiares; se faz necessário definirmos ‘língua padrão’. Deve-se observar que,

no momento em que se estabelece uma variedade padrão (conhecida como ‘língua padrão’),

ela ganha tanta importância e prestígio social, que todas as demais são consideradas

“impróprias”, “pobres”. Cabe ressalvar que cientificamente não é possível admitir que uma

forma linguística seja superior ou inferior a outra.

Assim, define Magda Soares o dialeto-padrão ou norma-padrão (2000, p. 82–83):

Dialeto-padrão: também chamada norma-padrão culta, ou simplesmente norma

culta, é o dialeto a que se atribui, em determinado contexto social, maior prestígio;

é considerado o modelo – daí a designação de padrão, de norma – segundo o qual

se avaliam os demais dialetos. É o dialeto falado pelas classes sociais privilegiadas,

particularmente em situações de maior formalidade, usada nos meios de

comunicação de massa (jornais, noticiários de televisão, etc.), ensinado na escola, e

codificado nas gramáticas escolares (por isso, é corrente a falsa ideia de que só o

dialeto-padrão pode ter uma gramática), quando qualquer variedade linguística

pode ter a sua.

O português padrão resumidamente é “[...] uma forma, um molde, um gabarito, uma

régua”. (BAGNO, 2000, p. 160).

63

Já a língua não padrão é constituída de variedades linguísticas que se distanciam da

variedade prestigiada, dos dicionários, apreendida naturalmente pelo falante, a partir da

espontaneidade comunicativa das pessoas comuns dos diferentes níveis sociais e regionais.

Para Perini (2001), o português que aparece nos textos escritos não é a nossa língua

materna; a nossa língua materna é aquela que aprendemos com nossos pais, irmãos e avós.

Desse modo, as diferenças são bastante profundas. Com isso, pode-se constatar que há duas

línguas no Brasil: uma que se escreve, o português; e a outra que se fala, que o próprio autor

denomina vernáculo, como sendo, a língua materna dos brasileiros.

Desse modo, o português não padrão, coloquial e/ou vernáculo se usa em geral na fala

informal, já o português padrão é usado na escrita formal. Perini (2001, p. 36) ainda afirma

“[...] que o certo é escrever português e falar vernáculo; não pode haver inversão”.

As crianças que chegam à escola falando português não padrão são consideradas

deficientes linguísticas. Desconsidera-se o conhecimento pré-adquirido do aluno, cuja

expressão é espontânea. Estigmatizar os educandos, reprimindo-os com tratamentos

inconsequentes, como um excesso de correção de pronúncia, de acentuação ou de emprego de

termos regionalistas, pode desencadear nos estudantes características de incapacidade,

difundindo-se em posições que definem propriamente a classe de dominados.

Traçar uma diferença que nos parece fundamental: a distinção entre diferença

linguística e erro linguístico. Diferenças linguísticas não são erros, são apenas

construções ou formas que divergem de um certo padrão. São erros aquelas

construções que não se enquadram em qualquer das variedades de uma língua.

(POSSENTI, 1996, p. 80).

Ainda sobre isso, os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998) colocam que a questão

não é falar certo ou errado, mas saber qual forma de fala utilizar, considerando as

características do contexto de comunicação, ou seja, saber adequar o registro às diferentes

situações comunicativas. É saber coordenar satisfatoriamente o que falar e como fazê-lo,

analisando a quem e por que se diz determinada coisa. É conhecer, portanto, quais variedades

e registros da língua oral são pertinentes em função da intenção comunicativa, do contexto e

dos interlocutores a quem o texto se dirige. A questão não é o de correção da forma, mas de

adequação às circunstâncias de uso, ou seja, de utilização eficaz da linguagem: falar bem é

falar adequadamente, é produzir o efeito pretendido.

64

5. Que língua a escola deve ensinar? e qual o papel do professor de português?

No processo de ensino de língua materna, observamos uma prática pedagógica

frustrante que desconsidera a necessidade de se trabalhar com as variedades linguísticas dos

alunos a fim de que dominem a língua padrão idealizada pela escola. A língua portuguesa no

Brasil possui muitas variedades dialetais (diferentes falares regionais presentes numa dada

sociedade, num dado momento histórico). Identificam-se geográfica e socialmente as pessoas

pela forma como falam. Mas há muitos preconceitos decorrentes do valor social relativo que é

atribuído aos diferentes modos de falar: é muito comum se considerarem as variedades

linguísticas de menor prestígio como inferiores ou erradas.

O problema do preconceito disseminado na sociedade em relação às falas dialetais

deve ser enfrentado na escola, como parte do objetivo educacional mais amplo de educação

para o respeito à diferença. Para isso, e também para poder ensinar Língua Portuguesa, a

escola precisa livrar-se de alguns mitos: o de que existe uma única forma “certa” de falar – a

que se parece com a escrita – e o de que a escrita é o espelho da fala – e, sendo assim, seria

preciso “consertar” a fala do aluno para evitar que ele escreva errado.

A diversidade linguística presente na sala de aula é decorrente da busca pela

democratização do ensino que visa a oportunizar aos alunos provenientes das camadas sociais

menos favorecidas o acesso a chamada “língua da cultura”. Essa democratização torna-se

falsa ao considerarmos que a prática pedagógica vigente não leva em consideração a distância

entre a forma de falar do aluno e a variedade culta exigida pela escola.

Mattos e Silva (2000, p. 33) critica essa atitude contraditória e opressora da escola

quando diz: A escola brasileira, ainda que pseudodemocratizada no que diz respeito à língua

materna, persegue, no geral, a tradição normativo-prescritiva. A consequência

disso para quem tenha algum verniz de formação linguística é óbvia: muitas e

variadas falas chegam à escola e essa persegue ainda um ideal normativo

tradicional.

Observamos, através do fragmento citado, que a escola ainda não se adaptou a

clientela atual. Quando a escola aborda a norma padrão, a variante culta, desprezando a

norma popular, dando ênfase à escrita, desvalorizando os valores, crenças e cultura do aluno,

a escola está se portando equivocadamente contrária aos documentos oficiais que trazem uma

nova perspectiva para o ensino de Língua Portuguesa.

Ao incorporar esse comportamento preconceituoso presente na sociedade, a escola

rotula o aluno pelo modo diferente de falar. Ela desconhece a realidade linguística desse

aluno, esquece que ele já é portador de uma linguagem, e a utiliza com capacidade para dizer

65

tudo o que quer, não podendo a escola, de forma alguma, ignorar ou destruir esse patrimônio,

próprio de sua comunidade. Cabe à escola respeitar as variações, entendê-las e até mesmo

ensiná-las, comparando-as com a variedade dita de prestígio ensinada na escola.

Como afirma Luft (2000, p. 67):

Em sociedades econômica, social e culturalmente heterogêneas, é inevitável a

heterogeneidade no campo da linguagem. Assim, mesmo que vise a uma

homogeneidade linguística culta, a escola tem de trabalhar a partir da realidade

gramatical heterogênea dos alunos; do contrário, sua atuação na educação

idiomática será frustrada.

O descaso por parte dos professores pelas formas linguísticas que divergem do padrão

gera o preconceito linguístico, ocasionado pelo não reconhecimento de que as diferenças

dialetais são sistemas complexos e legítimos como os diferentes padrões mais prestigiados. O

preconceito favorece à evasão escolar a partir do momento em que os professores oprimem as

formas diferentes do padrão culto, considerando-as deselegantes e erradas. Evidentemente que

a agência Escola tem um papel preponderante de instrumentalizar os falantes com as normas

de prestígio.

Não se espera que o aluno saia da escola como entrou. O problema está nas atitudes

prescritivas e discriminatórias dos professores que inibem os alunos quando estigmatizam as

formas populares de expressão. Luft (2000, p. 69) assinala que “todas as variedades da língua

são valores positivos. Não será negando-as, perseguindo as, humilhando quem as usa, que se

fará um trabalho produtivo no ensino”.

Ao refletir sobre essa questão, Bortoni-Ricardo (2006, p. 15) adverte:

A escola não pode ignorar as diferenças sociolinguísticas. Os professores e, por

meio deles, os alunos têm que estar bem conscientes de que existem duas ou mais

maneiras de dizer a mesma coisa. E mais, que essas formas alternativas servem ‘a

propósitos comunicativos distintos e são recebidas de maneira diferenciada pela

sociedade. Algumas conferem prestígio ao falante, aumentando-lhe a credibilidade

e o poder de persuasão; outras contribuem para formar-lhe uma imagem negativa,

diminuindo-lhe as oportunidades. Há que se ter em conta ainda que essas reações

dependem das circunstâncias que cercam a interação. Os alunos que chegam à

escola falando “nos cheguemu”, “abrido” e “ele drome”, por exemplo, têm que ser

respeitados e ver valorizadas as suas peculiaridades linguístico-culturais, mas têm o

direito inalienável de aprender as variantes de prestígio dessas expressões. Não se

lhes pode negar esse conhecimento, sob pena de se fecharem para eles as portas, já

estreitas, da ascensão social. O caminho para uma democracia é a distribuição justa

de bens culturais entre os quais a língua é o mais importante.

É significativo verificar que a nossa linguagem varia adequando-se às diversas

situações com as quais nos deparamos. Os próprios professores, na condição de falantes

66

normais, possuem a capacidade de adaptação às circunstâncias, ou seja, a sua linguagem varia

comprovando que não se manifestam sempre pela variedade culta. Podemos assim constatar,

ao compararmos a linguagem coloquial utilizada quando falamos com nossos amigos e a

linguagem formal utilizada quando falamos com nossos superiores hierárquicos. Sendo assim,

não existe variedade certa, mas variedade adequada para determinada situação.

Como nos alerta Bechara (2000, p. 40):

Não cabe à instituição de ensino a simples substituição da norma coloquial usada

na língua funcional do aluno pela norma culta usada na língua funcional da escola.

Caberá ao professor e à escola como um todo transformar o aluno num poliglota

dentro da sua própria língua histórica.

Segundo essa perspectiva, a escola tem por objetivo propiciar ao aluno o

conhecimento de diversos recursos expressionais da língua, a fim de ampliar-lhe a capacidade

comunicativa.

É necessário o combate a opressão quando a escola impõe indistintamente a

modalidade culta a todas as situações de uso da linguagem, ou a educação de natureza

“monolíngue”, tanto quanto imprescindível promover e viabilizar o leque de possibilidades

comunicativas em diferentes gêneros e estilos discursivos.

De acordo com Possenti (1999, p. 32):

Qualquer avaliação da inteligência do aluno com base na desvalorização de seu

dialeto (isto é, medida apenas pelo domínio do padrão e/ou da escrita padrão) é

cientificamente falha. A consequência a tirar é que os alunos que falam dialetos

desvalorizados são tão capazes quanto os que falam dialetos valorizados, embora as

instituições não pensem assim.

Visando a um ensino democrático de língua materna, devemos estimular que os

falantes se apropriem de normas prestigiadas, libertando-se do preconceito de que alguns não

terão oportunidade para utilizá-lo ou não possuem competência para adquiri-lo. É preciso

evitar a educação de exclusão para possibilitar que o conhecimento da norma culta seja um

dos vetores do conjunto de conhecimentos que compõem a competência comunicativa de

forma a adequar os indivíduos em diversos eventos de fala.

5. Conclusão

Esta pesquisa desenvolvida contemplou muitas questões que colaboraram na tentativa

de refletir sobre o tema na teoria e na prática do ensino da língua. Apoiados por teóricos,

procuramos mostrar o que é variação linguística sem deixar de enfatizar a necessidade do

67

domínio da forma padrão para a conquista de espaço na sociedade e no mercado de trabalho,

levando em conta a bagagem histórica, cultural e social de cada aluno.

A partir da observação da realidade, podemos perceber que grande parcela da falta de

valorização da fala do indivíduo enquanto educando, ocorre por parte da grande deficiência na

formação do professor que se encontra despreparado para conviver com as variações

linguísticas em sala de aula.

Como possível solução para o problema ora apresentado, propomos que o profissional

da área de educação repense sua prática pedagógica com o intuito de diminuir essa grande

lacuna existente entre a língua padrão ensinada pelo professor e aquela língua utilizada pelo

aluno em seu meio social. Todo profissional da área de educação deve ter consciência do seu

papel dentro da sociedade na formação do cidadão. Para tanto é necessário que esse

profissional esteja atento para as novas mudanças e que as veja como algo de suma

importância para seu crescimento profissional. Uma vez que atitudes acomodadas, aliadas ao

notório despreparo, refletem práticas que desestimulam as relações de aprendizagem. O

professor deve estar embasado pelo conhecimento específico para dominar sua matéria,

sentir-se confortável diante dos alunos, apto a prestar-lhes esclarecimentos: teorias, pesquisas,

estudos de quaisquer níveis são fundamentais. Habilitam-no para o devido exercício da

profissão.

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preconceito. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.

69

EMPATIA COMO TRAÇO PARA FILIAÇÃO A COMUNIDADES DE PRÁTICA GAYS EM

SALVADOR (BA): CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Danniel da Silva Carvalho (UFBA/PPGLinC)

Rafael Gurgel Almeida (UFBA)

RESUMO: Este estudo discute a escolha de expressões referenciais empregadas como marcas de

referência específica de identidade na fala de homens gays brasileiros. O principal objetivo foi

examinar a produção linguística de dois informantes de diferentes regiões socioeconômicas da cidade

de Salvador, Bahia. Fez-se necessário considerar o traço empatia (KUNO, 1987) para analisar a fala

dos informantes, particularmente com relação à reinterpretação de termos como “bicha”, “viado” e

“mona” – tradicionalmente consideradas expressões depreciativas. A análise dos dados baseou-se na

observação da filiação dos informantes em suas respectivas comunidades de prática, as quais são

inicialmente definidas geograficamente. Observamos, entretanto, que a distribuição geográfica das

tradicionais variáveis sociolinguísticas não é suficiente para definir as comunidades de prática

observadas. Indexicalização é uma noção essencial uma vez que, fazendo o falante uso de expressões

como “bicha” em momentos específicos, ele inaugura um contexto relevante para fixação do termo a

um valor semântico. Resultados parciais mostram que o informante da parte mais rica da cidade

compõe e participa da comunidade de prática gay desenvolve um senso positivo de pertencimento, e

sua identidade é construída através de sua produção linguística. Expressões como “mona”, “viado” e

“gay” são ressignificados e funcionam como expressões de referência específica. O informante da

parte mais pobre da cidade, por sua vez, desenvolve um sentimento negativo e, linguisticamente, não

se sente confortável em articular as construções de sua persona a termos como “viado”.

Palavras-chave: Empatia. Indexicalização. Fala gay. Identidade. Sociolinguística.

1 Apresentação

O presente trabalho pretende examinar a produção linguística de dois informantes de

diferentes regiões socioeconômicas da cidade de Salvador, Bahia, a fim de analisar a

reinterpretação promovida pelos falantes de expressões tradicionalmente depreciativas, como

bicha, viado, passiva, mas geralmente empregadas como marcas de referência específicas de

identidade, a partir da noção do traço [empatia] proposto por Kuno (1987).

70

Este trabalho é um pequeno recorte do projeto “A língua na diversidade: um estudo

sociolinguístico de gays soteropolitanos”, desenvolvido na Universidade Federal da Bahia,

que procura observar a diversidade linguística em comunidades formadas pelas consideradas

“minorias”, como a comunidade homossexual, por exemplo, cuja descrição dos usos

linguísticos não é contemplada nos estudos da sociolinguística tradicional. Fruto desse projeto

maior, a presente pesquisa traçou, a partir do embasamento teórico dos estudos de Robert J.

Podesva (2002), os de Janny Cheshire (2005) e os trabalhos de Ronald B. Mendes (2011), e

Raquel Ko Freitag at al. (2012), um rápido paralelo entre as divergências e as aproximações

pragmáticas que apareceram nas falas desses informantes durante a coleta de dados orais

(entrevistas e conversa entre amigos). Para tanto, fizemos uso do quadro teórico-metodológico

da Teoria da Variação Linguística (cf. LABOV, 2001), lançando mão de vertentes da

chamada terceira onda dos estudos sociolinguísticos, preconizada por Eckert (2000) e

Podesva (2002), assim como dialogamos com produções pós-estruturalistas, ressaltando as

contribuições sobre a compreensão de gênero trabalhada por Butler (1990).

O tratamento dos dados foi realizado sob o arcabouço teórico-metodológico da

terceira onda sociolinguística, considerando a variação, sobretudo, como recurso para a

construção de significado social dentro de uma rede (ECKERT, 2012). Pretendeu-se, portanto,

verificar a produção linguística de dois informantes, ambos da faixa etária entre 18 e 25 anos,

frequentadores de regiões diferentes (Orla e Centro) da cidade de Salvador, Bahia, a fim de se

observar que traços linguísticos permitem identificar filiação a uma comunidade de prática.

Percebeu-se a necessidade de considerar o traço [empatia] (KUNO, 1987) para analisar a fala

desses informantes, sobretudo no que diz respeito à ressignificação de expressões como

“bicha”, “viado” e “mona”, por exemplo – considerados, vernacularmente, expressões

depreciativas. A análise dos dados baseou-se na observação da filiação dos informantes em

suas respectivas comunidades de prática, que foram inicialmente definidas geograficamente.

Percebeu-se, entretanto, que a distribuição geográfica, uma das variáveis tradicionais da

Sociolinguística, não foi suficiente para definir as comunidades de prática observadas. A

noção de indexicalização foi essencial para a definição de comunidade aqui utilizada: na

medida em que o falante faz uso de uma expressão como “bicha” em momentos específicos,

ele inaugura um contexto relevante para a fixação de tal termo a um valor semântico. Este

valor, para a terceira onda Sociolinguística, precisa ser compartilhado por pessoas engajadas

em um empreendimento comum.

71

Assim, partindo de estudos cada vez mais frequentes com relação à diversidade

linguística no âmbito da identidade de gênero, propomos o rompimento com os paradigmas

tradicionais no estudo sociolinguístico, cujas análises não contemplam a orientação sexual do

indivíduo enquanto uma variável relevante para o estudo de sua produção linguística.

Compreendemos, portanto, os homossexuais masculinos soteropolitanos enquanto

participantes de Comunidades de Prática – agregado de pessoas que se engajam em algum

empreendimento comum (FREITAG, MARTINS, TAVARES, 2012) –, e a língua enquanto

um dos elementos através do qual falantes constituem suas identidades. Para tanto, iniciamos

a seleção e montagem de um corpus que permita o tratamento dos elementos pronominais de

referência de gênero nos dados – em especial quando termos como “bicha”, “viado” ou “gay”,

por exemplo, deixam de ser empregados enquanto expressões adjetivais e passam a fazer

referência de pessoa, mantendo referência de gênero (social) ambígua.

2 A distinção gênero/sexo na sociolinguística

Sobre os conceitos de gênero utilizados nos estudos sociolinguísticos, Wodak e Benke

(1997) afirmam que as pesquisas correlacionando linguagem e gênero tiveram início com os

trabalhos de Labov, nos anos 60. Nessa tradição, gênero é visto com sexo biológico, não

sendo feitas considerações acerca da construção social do gênero. A intenção, nesse caso, é

mostrar a correlação existente entre as variáveis linguísticas e o sexo (entre outras categorias

sociais); com isso, o gênero é controlado da mesma forma que a escolaridade, a idade ou a

classe social – importando, apenas, na medida em que é passível de ser estatisticamente

medido.

Na tentativa de distinguir gênero e sexo, Chambers (1995), por exemplo, define duas

categorias de variação:

I. Baseada no gênero (gender-based variability) – nesse caso, as diferenças

linguísticas são explicadas em termos dos papéis desempenhados por homens e mulheres em

relação à mobilidade deles em uma dada comunidade: quanto menor for o contato social e a

variação geográfica de homens ou mulheres, maior será o uso, por esses indivíduos, das

variantes do seu grupo de contato (p. 125-126). Exemplo: Nichols (1983 apud CHAMBERS,

1995) identificou, em uma comunidade de pessoas negras na Carolina do Sul (Estados

72

Unidos), que os homens tendem a utilizar as variantes do dialeto local mais frequentemente

do que as mulheres. Explicação: esses padrões não são explicados pela questão do gênero em

si mesmo, mas refletem diferenças individuais e grupais em relação à mobilidade e às

interações com grupos não-nativos. As mulheres, por exemplo, tendem a se deslocar

geograficamente e a ter relações sociais mais diversificadas do que os homens.

Nesse tipo de variação, o gênero desempenha um papel secundário em relação à

mobilidade: trata-se, portanto, de variação baseada na mobilidade e não no gênero. A

justificativa de Chambers (1995) para o nome atribuído a esse tipo de variação é de que a

mobilidade é determinante na existência de diferenças linguísticas entre homens e mulheres.

II. Baseada no sexo (sex-based variability) – nesse caso, explicam-se as diferenças

linguísticas a partir de diferenças biológicas (neuropsicológicas) entre homens e mulheres,

que existem mesmo quando os papéis atribuídos ao gênero são ausentes (CHAMBERS, 1995,

p. 104). Exemplificando, testes demonstram que: as mulheres possuem mais vantagens do que

os homens em relação ao comportamento verbal; os homens tendem a apresentar distúrbios

verbais mais frequentemente do que as mulheres; os homens são mais propensos a apresentar

distúrbio de leitura e afasia (após caso de acidente cerebral); e eles são quatro vezes mais

propensos a sofrer de autismo infantil e de dislexia do que as mulheres (CHAMBERS, 1995,

p. 133).

Correlacionando os dois tipos de variação, Chambers (1995) levanta a hipótese de que

a tendência de as mulheres assumirem papéis (relacionados ao gênero) que exijam maior

mobilidade do que os homens pode ser o resultado (e não a causa) de sua vantagem

sociolinguística inata.

Apesar de estipular essas duas categorias de variação, percebe-se que Chambers é

bastante tradicional ao pautar a questão do gênero no sexo biológico e não no processo de

produção da identidade ao qual o gênero – tido como construção social – está interligado. Na

mesma direção de Chambers estão os estudos de Labov.

Diferentemente dos autores acima, Eckert e McConnell-Ginet (2003) defendem que

ambas as categorias – sexo e gênero – não podem ser consideradas sinônimos, visto que o

segundo é a elaboração social do primeiro. Para as autoras, por exemplo, a dicotomia menina-

menino é a primeira a partir da qual a nossa identidade é formada. Meninas e meninos

aprendem a ser femininas ou masculinos através das práticas sociais que existem nas diversas

73

comunidades às quais eles pertencem. Assim, tem-se que: (i) meninas e meninos são tratados

diferentemente por seus pais em relação ao padrão linguístico que esses utilizam, à maneira

pela qual eles brincam com seus filhos ou aos brinquedos que eles escolhem para suas filhas e

filhos; (ii) as meninas e os meninos se envolvem com os mesmos grupos sexuais durante

grande parte da infância, o que significa que meninas e meninos são socializados em

diferentes culturas de gênero – isto, por sua vez, influencia o comportamento verbal que

elas/eles desenvolvem.

Eckert (2000) propõe que os estudos da variação linguística tenham como lócus de

análise as comunidades de prática, que podem ser entendidas como espaços interacionais de

construção de significados sociais onde as identidades, tanto individuais como grupais, estão

sendo constantemente construídas. Assim, o gênero é uma construção social que ocorre em

práticas sociais, as quais se vinculam a outras categorias sociais. Em sua teoria da variação

tida como prática social, Eckert (2000) olha para os falantes como sujeitos que, ao se

inserirem em práticas sociais, constituem categorias sociais e constroem (e respondem a) o

significado social da variação. Com isso, é inerente ao fenômeno de variação/mudança

linguística o processo de constituição da identidade dos indivíduos, pois é nesse processo (que

envolve também a constituição do gênero) que as variáveis linguísticas assumem valor social.

Essa abordagem do gênero se enquadra naquela que é considerada a terceira onda nos

estudos sociolinguísticos. A sociolinguística tem por objeto de estudo os padrões observáveis

de comportamento linguístico nas práticas de uso, se ocupando, assim, das relações entre

língua e sociedade por meio da investigação empírica. Seu enfoque está destinado,

principalmente, aos usos linguísticos concretos e ao caráter heterogêneo da língua. Em seus

desenvolvimentos, considera-se que a sociolinguística apresenta três níveis de análise

distintos, chamados de “ondas”: A primeira onda, através do estabelecimento dos

fundamentos para o estudo da variação linguística, ressalta as correlações existentes entre

variáveis linguísticas e categorias sociais primárias, como classe socioeconômica, sexo, idade,

escolaridade etc.; a segunda onda tem como característica o estudo etnográfico de populações

mais localmente definidas; a terceira onda apresenta como foco a variação linguística como

um recurso para a construção de significado social, pondo em cheque a delimitação das

categorias selecionadas como relevantes pelos estudos da primeira onda (FREITAG,

MARTINS e TAVARES, 2012).

74

Segundo Evans (2004), as redes sociais podem ser consideradas um sistema de

relações pessoais com efeitos sobre os indivíduos ou como relações usadas pelas pessoas para

atingir seus objetivos. Elas carregam a potencialidade de se estender sobre toda a sociedade,

mas apresentam diferenças estruturais em duas dimensões: densidade (contatos dos

indivíduos) e plexidade (conteúdo, multiplicidade de conexões). Já segundo Freitag, Martins e

Tavares (2012), comunidades de prática dizem respeito a agrupamentos de indivíduos que, ao

dividirem perspectivas e objetivos em comum, traduzem este envolvimento em prática, em

ações – que podem se desdobrar em usos específicos da língua.

3 Indexicalização e comunidades de prática

O fenômeno que pretendemos tratar aqui é bastante produtivo dentro da comunidade

homossexual masculina observada, na qual percebemos o uso da expressão referencial a

bicha, por exemplo, com as mais diversas funções sintáticas, como pode ser notado nos dados

(1-3), o que indica um valor pronominal a essas expressões (cf. CARVALHO, 2016b).

(1) A bicha1sg foi ver o boy mas ele era uó.

(2) A bicha2sg tá fazendo o quê tão quietinha?

(3) Eu vim só ver a bicha2sg e ela me trata assim.

No entanto, para que o participante empreenda tal uso linguístico, é preciso haver um

engajamento com algum grupo e consequente ressignificação dessas expressões. Se o

indivíduo não deseja indexicalizar à sua fala a participação na(s) comunidade(s) de prática

gay(s), é pouco provável que tais expressões sejam produtivas. A noção de indexicalização

tratada nesta pesquisa depende de restrições contextuais, como discute Teixeira (2011, p. 164-

166):

75

[o] termo ‘indexical’ foi usado primeiramente por Pierce (1902) para designar um

tipo específico de sinal, aquele que tem uma relação direta ou real com seu objeto.

Desde então, o termo, em filosofia e em semântica, foi ganhando contornos

diferentes e atualmente engloba as expressões que dependem do contexto para

receber um valor semântico. A fim de restringir esse conceito devemos nos

perguntar de qual contexto um termo indexical depende, já que contexto é um

construto amplo cuja definição depende da teoria considerada, e também o que

significa exatamente dependência contextual. [...] Grosso modo, o momento de

proferimento das expressões indexicais inaugura o contexto relevante para a

fixação de seu valor semântico e das proposições que os contêm.

Nossa proposta, por conseguinte, é uma fissura no significante “gay”. Se pensamos em

estilo, participação e engajamento, esta comunidade de prática vê-se aberta à participação de

pessoas que, inclusive, não são homossexuais. Uma comunidade de prática é um agregado de

pessoas que se juntam para engajar-se em algum empreendimento comum. Na esteira desse

engajamento, a comunidade de prática desenvolve meios para fazer coisas que se traduzem

em práticas e essas práticas envolvem a construção de uma orientação compartilhada em

relação ao mundo em volta – uma definição tácita que os indivíduos assumem um em relação

ao outro e em relação a outras comunidades de prática (FREITAG, MARTINS e TAVARES,

2012, p. 923). Gay, portanto, torna-se identidade de gênero, e não apenas expressão

afetiva/sexual. Contudo, a montagem do corpus considerou apenas homossexuais masculinos

que, etnograficamente, frequentem algum dos três núcleos de Salvador.

Relacionando o conceito de indexicalização ao de comunidade de prática, podemos

assumir que a dinâmica de filiação a uma dada comunidade funciona da seguinte forma:

Uma população se torna saliente e certa característica da fala desta população pode

chamar atenção; uma vez reconhecida, esta característica pode ser extraída de seus

arredores linguísticos e tornar-se, por conta própria, índice de adesão àquela

população;

Tal índice pode ser usado por “forasteiros” (outsiders), i.e. falantes de outras

populações, para evocar estereótipos associados a esta população;

76

Atos lexicais desta natureza repetidos convencionam um novo signo, que em tal ponto

torna-se disponível para movimentos indexais posteriores;

Como resultado, a ordem indexical não é linear, mas pode progredir simultaneamente

e através do tempo em múltiplas direções, estabelecendo um conjunto de significados

relacionados.

Dessa forma, podemos assumir que cada uma das comunidades de prática analisadas

neste trabalho é definida a partir da dinâmica descrita acima.

4 Filiação e autopercepção nas comunidades de prática

A análise dos dados baseou-se na observação da filiação dos informantes em suas

respectivas comunidades de prática, que foram inicialmente definidas geograficamente.

Percebeu-se, entretanto, que a distribuição geográfica, uma das variáveis tradicionais da

Sociolinguística Variacionista Laboviana, não é suficiente para definir as comunidades de

prática observadas. A noção de indexicalização, portanto, é essencial para tal definição, pois

na medida em que o falante faz uso de uma expressão como “bicha” em momentos

específicos, ele inaugura um contexto relevante para a fixação de tal termo a um valor

semântico. Este valor, para a terceira onda Sociolinguística, precisa ser compartilhado por

pessoas engajadas em um empreendimento comum.

Analisamos, para este trabalho, uma entrevista sociolinguística e uma conversa entre

amigos de dois informantes da cidade de Salvador, Bahia: o primeiro do núcleo Orla, que

compreende a faixa entre os bairros da Barra e do Rio Vermelho, onde encontram-se bares e

clubes de frequência da classe média soteropolitana e com frequência gay considerável; e o

segundo do núcleo Centro, que envolve os bairros da Piedade, 2 de Julho e Campo Grande, e

contém um número considerável de bares e algumas casas noturnas frequentadas por gays de

vários níveis socioeconômicos, mas primordialmente da classe média-baixa, de acordo com a

distribuição de renda do IBGE. Ambos os informantes encontram-se em uma faixa etária

entre 18 e 25 anos e apresentam discursos bem diferentes com relação ao engajamento na

comunidade gay, tornando profícuo um estudo comparativo. Observamos ocorrências das

77

expressões mencionadas anteriormente como identificadoras de indivíduos pertencentes a

comunidades gays com valor positivo ([+empático]) apenas na produção linguística do

primeiro informante, como ilustram os dados (4-6):

(4) Já falei ‘mona, você vai’. (Inf01Op8l12 – conversa entre amigos)9

(5) Ar bicha de cima olhando assim ó ‘é tudo viado ali embaixo’. (Inf01Op8l21 – conversa

entre amigos)

(6) ...e ainda tinha a outra gay que saiu porque ela transava com o namorado. (Inf01Op21l30 –

conversa entre amigos)

Assumimos que as diferentes seleções lexicais dos informantes, no que diz respeito à

utilização pronominal das expressões em questão, deve-se às suas impressões com relação à

filiação à(s) comunidade(s) de prática gay(s). Observemos os seguintes excertos:

(7) [...] eu amo o ambiente boêmio que tem os bares {bate as mãos contra as coxas} do Rio

Vermelho eu amo demais então você [...] que se identifica com essa parte eu acho que você

deveria ir para o Rio Vermelho no Acarajé da Dinha e para você que gostaria de fazer uma

amizade também eu acho que lá é bem é: é um lugar que [você] vai poder fazer uma amizade

tão fácil, a interessante. (Inf01Op5l37 – entrevista).

(8) Bom, é hoje em dia eu tô selecionando mais eu já tive muitos amigos gays mas como o::

mundo... GLS é um pouco... é...assim...macabro, eu diria macabro porque é um descontando

no outro {gesticula} é um querendo pegar namorado do outro é um com inveja do outro [...]

por exemplo eu até poucos dias atrás eu ia no Campo Grande me divertia bastante, mas era

aquela coisa pacata você chega lá às sete horas da noite começa a juntar gays [...] fica todo

mundo naquela praça do Campo Grande ali em frente ao TCA e... começam a conversar e de

repente chega alguém com vinho [...] bebe aquilo ali fica bêbado logo alguns chega a se

drogar outros até se estupram lá no meio [...]. (Inf01Cp5l24 – entrevista).

9 As informações entre parênteses que seguem os dados dizem respeito às coordenadas de referência no banco de dados do projeto “A língua na diversidade: um estudo sociolinguístico de gays soteropolitanos” e significam: Inf01 – informante 1; Inf02 – informante 2C – Região do Centro; O – Região da Orla; p – página em que consta o dado; l – linha inicial do dado na página referida.

78

O trecho em (7) foi retirado da entrevista sociolinguística do informante do núcleo

Orla, e o em (8) retirado do informante do núcleo Centro. Em (7), o primeiro informante diz

amar o ambiente boêmio e acredita que o Rio Vermelho, bairro localizado em uma região

com poder socioeconômico médio-alto e onde se localizam a maioria dos bares e clubes da

moda, é um local ideal para estabelecer amizades. Seu desejo de pertencimento nos possibilita

perceber o engajamento e filiação de tal informante na comunidade. Já em (8), o segundo, por

sua vez, seleciona um termo como “macabro” para descrever a comunidade do Centro, região

naturalmente marginalizada nas grandes cidades no Brasil e que, especialmente em Salvador,

agrega valor negativo a seus bares e casas noturnas, e explicita que está se desvinculando da

comunidade gay quando diz que já teve mais amigos dentro dela, porém se tornou mais

seletivo no que diz respeito aos seus vínculos.

Percebe-se uma diferença na maneira como, afetivamente, cada um deles se relaciona

com a comunidade prática. O trecho em (9), também retirado da entrevista do informante do

Centro, nos permite perceber, de maneira ainda mais elucidativa, como ele depreende o uso

pessoal do termo “viado”:

(9) [...] eu não ligo se alguém chegar pra mim e chamar de bê, de binho, de binha tal, mas

viado eu acho um palavrado muito ofensivo, né, é como... É como chegar pro negro e

chamar de passo preto, como chamar o negro de... comé de... urubu coisa do tipo.

(Inf01Cp4l35 – entrevista).

Assim, os resultados parciais evidenciam que o informante do núcleo Orla frequenta,

compõe e participa da comunidade de prática, desenvolve um sentimento positivo de

pertencimento, e sua identidade se constrói, também, através de sua produção linguística.

Expressões como “mona”, “bicha” e “gay” são ressignificadas e passam, inclusive, a

funcionar como pronomes de referência específica. O informante do Centro, por sua vez,

desenvolve um sentimento negativo e, linguisticamente, não se sente confortável em articular

a construção da sua persona a um termo como “viado”, por exemplo. Torna-se produtivo,

portanto, explorar o traço [empatia] para refletir sobre a seleção lexical dos informantes.

Assumiremos aqui que indexicalização é o que permite o falante associar valor positivo ou

negativo, ou seja, associar o traço [+empatia] ou [-empatia], ao uso das referidas expressões,

uma vez que, ao fazer uso de uma expressão com bicha em momentos específicos, ele

79

inaugura um contexto relevante para a fixação de um termo a um valor semântico

(CARVALHO, 2016a).

Kuno (1987, p. 206) define empatia como a identificação do falante, que pode variar

em grau, com uma pessoa/coisa que participa de um evento ou estado que ele descreve em

uma sentença. Segundo Lehmann e Moravcsik (2000, p. 734), em geral, o falante tem mais

empatia com entidades que estão mais próximo dele e são maximamente como ele. Assim, a

não-empatia pode também variar em grau, apresentando-se em forma de apatia até a forma de

antipatia ou repulsa (CARVALHO, 2016a, p. 56) – o que é observado na maneira como o

informante do núcleo Centro compreende a comunidade prática na qual, etnograficamente,

parecia estar se engajando. Sua repulsa pelo comportamento dos sujeitos filiados à

comunidade de prática do Centro está evidente na transcrição (8), especialmente no que diz

respeito à interação entre os indivíduos e o consumo de drogas.

Observemos o seguinte excerto (10), extraído da entrevista do informante do núcleo

Orla:

(10) Olha só agora é brincadeira é: o que me motivou a s... me aceitar entrevistador {olhar

irônico} foi é: desde cedo eu já me achava assim com gosto duvidoso {riso} então eu

ficava reparando nas opiniões meus parentes em relações... em relação aos gays eu sempre

fui bem atencioso em qualquer outro aspecto não somente de gays e tal então eu acho que:

pra mim tem sempre uma tem sempre pessoas preconceituosas eu acho que na minha

família também e vê esses comentários de preconceitos de... por todos os lados não só por

familiares mas amigos e tal eu ficava assim pensando isso tem que mudar isso tem que ser

diferente num dá pras pessoas acharem que gay é só promiscuidade o que a maioria da...

da... dos comentários que vêm à tona são dessa maneira então eu não me via como esse

perfil então eu pensava não isso n... no... isso não condiz comigo e eu sou gay então isso foi

uma... um dos motivos óbvio que também nós temos os ativistas e temos os artistas que

apoiam os gays e... e eu citaria Lady Gaga como umas uma pess... uma das maiores

ativistas do mundo LGBT ou GLS como queiram chamar e ela foi uma pessoa que me

motiva até hoje a lutar contra os direitos a lutar para sobre os direitos dos gays [...].

(Inf01Op9l19)

80

Através da leitura do trecho acima, é possível perceber que o processo de

autopercepção do informante passou por um questionamento da narrativa que lhe chegava

com relação à identidade gay – inclusive por parte de sua família. Marginalizar a

comunidade LGBT é parte do agenciamento de gênero com o qual este indivíduo rompeu,

desenvolvendo empatia pelo grupo e filiação ao núcleo Orla, como já exposto. Podemos

assumir, portanto, que a seleção lexical do informante é uma postura empoderadora na

medida em que assume uma identidade subalternizada – talvez parte da agenda comum aos

outros participantes da comunidade de prática. O processo de autopercepção do informante

do Centro, por sua vez, deu-se de maneira bastante diferente, como podemos observar em

(11):

(11) Sim, eu pra me aceitar foi bastante complicado principalmente porque eu sou católico

praticante [...] e foi justamente numa conversa com um padre e outra conversa com um

pastor que eu percebi...que...não tinha como mudar minha natureza [...]. (Inf01Cp3l3 –

entrevista)

Percebe-se que o informante do núcleo Centro, no seu processo de autopercepção, teve

de se reportar a entidades historicamente contrárias às pautas LGBTs. Por mais que ele tenha

se conformado a sua homossexualidade, o discurso cristão permanece em sua fala na medida

em que ele condena as demonstrações públicas de afeto (ou até sexuais) dos integrantes do

Centro, bem como o consumo de álcool. E isso acaba por se refletir nas escolhas lexicais do

informante.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Blackless et al. (2000) estimam que cerca de 1% dos bebês nascem com

características divergentes daquelas interpretadas como macho e fêmea. Essas crianças,

para que se adequem às classificações de sexo biológico, frequentemente são submetidas a

manipulações endocrinais e cirurgias de ordem estética, ou seja, mesmo algo que

encaramos enquanto estritamente natural, recebe um tratamento culturalizado. Este dado

81

ilustra o quanto a Agenda do Gênero se inscreve sobre os nossos corpos desde o momento

do nascimento (ECKERT e MCCONNELL-GUINET; 2003).

Gênero, por conseguinte, não é algo com o qual nascemos ou algo que temos: é

algo que performamos (BUTLER, 1990). Desde crianças, apreendemos como ser menino

ou menina a partir das referências que nos são lançadas – da cor da roupa às brincadeiras

permitidas. Conforme internalizamos essas informações, não só as reproduzimos como nos

tornamos parte fundamental no agenciamento da performance de gênero de outras crianças.

Adquirida certa independência dos nossos pais, torna-se importante que perguntar o nosso

gênero não se faça necessário, pois este precisa ser um aspecto facilmente identificável de

nossa persona. Outras identidades, inclusive a gay, são marginalizadas na medida em que

não correspondem à expectativa hegemônica que atribui ao pênis uma identidade

masculina, e à vagina uma identidade feminina. O gênero, portanto, não é natural, é

construção social. Do contrário, por que se faria necessário que fôssemos agenciados a

performá-lo?

A nossa proposta de rasura no significante “gay”, por consequência, dá-se com base

na noção de Butler de que performamos gênero. A prática estilística, portanto, noção que

tanto interessa à terceira onda Sociolinguística, é parte fundamental da maneira como os

homossexuais masculinos constroem sua participação em um agregado de pessoas. Esta

discussão é pertinente na medida em que nosso projeto se interessa pela produção

linguística dos homossexuais soteropolitanos levando em consideração sua identidade de

gênero, sua performance. A seleção lexical dos informantes, por consequência, seria uma

maneira consciente de indexicalizarem, às suas falas, o pertencimento à comunidade de

prática gay.

Os resultados parciais mostram que o informante que compõe e participa da

comunidade de prática da Orla desenvolve um senso positivo de pertencimento [+empatia], e

cuja identidade é construída também através de sua produção linguística. Expressões como

mona, viado e bicha são indexicalizadas e funcionam como expressões referenciais

específicas. Já o informante da comunidade do Centro da cidade, por seu turno, desenvolve

um sentimento negativo (-empatia) e, linguisticamente, não se sente confortável em articular a

construção de sua persona a termos como viado.

82

Isso se deve, parcialmente, à marcação simbólica enquanto meio através do qual as

práticas sociais ganham sentido: “[…] nós vivemos nossa subjetividade em um contexto

social no qual a linguagem e a cultura dão significado à experiência que temos de nós mesmos

e no qual nós adotamos uma identidade” (WOODWARD, 2000, p. 56).

A indexicalização, por parte do informante 1, à comunidade de prática gay da Orla,

rasura expectativas de gênero. No contexto social em que ele está inserido, sua experiência

linguística, assim como o seu consumo e sua postura política, o posicionam em determinado

lugar social e funcionam enquanto ferramentas através das quais ele forja sua identidade e

ressignifica sua experiência.

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84

OS MANO, OS CARA, OS HOMI: CONCORDÂNCIA, IDENTIDADE E

CONSCIÊNCIA RACIAL

Fernanda de Oliveira Cerqueira (FAPESB/ PPGLinC / UFBA)

Resumo: Eckert (2005, 2012) propõe que haja três ondas de estudos sociolinguísticos, as quais não se

sucedem, nem se substituem, compartilham o mesmo objetivo geral de estudar a variação e a mudança

em um sistema linguístico heterogêneo e plural, mas elas refletem um olhar mais específico de como

estas abordagens lidam com a variação e com o informante. Uma vez que a primeira onda e a segunda

onda estudam a variação considerando a sua comunidade de fala, conforme Labov (1966) e Guy

(2001), a terceira onda avalia a variação linguística tomando por base as comunidades de prática que

consistem em “[...] um grupo de pessoas agregadas em função de um engajamento [social] mútuo e de

um empreendimento comum [...]” (ECKERT, MCCONNELL-GINET, 2010, p. 102).

Consequentemente, o objetivo dessa abordagem é conceber a variação como uma prática estilística,

proveniente de práticas linguísticas cotidianas, mutáveis em termos de significação e julgamento,

mediante o posicionamento ideológico de quem as utiliza em interação dinâmica, enquanto grupo,

como redes sociais (MILROY, 1980). Sendo assim, o presente trabalho visa mostrar que a ausência de

concordância de número em sintagmas nominais, como os mano, os cara e os homi, reflete aspectos

estilísticos provenientes de consciência racial e identitária, quando produzidos no dialeto hip hop. Para

tanto, é feita adoção do método qualitativo de análise da terceira onda da sociolinguística (ECKERT,

2005, 2012) a fim de identificar, em dados extraídos de músicas, de cantores e bandas cujos membros

são adeptos do movimento hip hop, que o uso de concordância de número não marcada nos sintagmas

nominais supracitados está diretamente atrelado a aspectos estilísticos decorrentes de consciência

racial, consciência de classe e identidade (ROTH-GORDON, 2007).

Palavras-chave: Concordância nominal, terceira onda, consciência de classe, identidade.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa mostrar que a ausência de concordância nominal de número

em sintagmas, como os mano, os cara e os homi, reflete aspectos estilísticos provenientes de

consciência racial e identitária, quando produzidos no dialeto hip hop. Para tanto, é feita

adoção do método qualitativo de análise da terceira onda da sociolinguística (ECKERT, 2005,

2012) a fim de identificar, em dados extraídos de músicas, de cantores e bandas cujos

membros são adeptos do movimento hip hop, que o uso de concordância de número não

marcada nos sintagmas nominais supracitados está diretamente atrelado a aspectos estilísticos

decorrentes de consciência racial, consciência de classe e identidade (ROTH-GORDON,

2007) e empoderamento (HOOKS, 2008; SOUZA, 2011).

85

(1) Os mano lá na dois se ligaram na batida, mandaram acioná, mandaram um salve

na rima.

(2) De esquina com os mano sempre em frente.

(3) RZO, os cara, rima rica, rima rara, os mano fica de cara e a batida que não para.

Toda a família, a mesma família, os mano tudo da minha laia.

(4) Movimento rolando, os cara pixando.

(5) Sirele ligada os homi chegando, trick track, boom boom.

(6) Corre negada, os homi chegando.

Os dados de (1) a (6), retirados de músicas das bandas Racionais MCs, RZO,

Sabotage, ilustram uma modalidade linguística frequente nas periferias brasileiras,

destacando-se, nesse caso, a variante de concordância zero para número em sintagmas

nominais. Sabe-se que, em muitos casos, o uso dessa forma demonstra, conforme estudos

sociolinguísticos (SCHERRE; NARO, 1997; CALLOU, 1998; BAXTER; LOPES, 2009,

entre outros), baixo acesso à norma culta do português brasileiro, evidenciando, nessa ótica,

nuances do português popular brasileiro (MATTOS, SILVA, 2001; LUCCHESI, 2008). No

entanto, argumenta-se, no presente trabalho, que a ausência de concordância nominal de

número, em contextos específicos, como em manifestações do movimento sociocultural hip-

hop, remonta a questões de apropriação da variante em questão com fins de empoderamento

racial e socioeconômico por parte dos informantes. Portanto, para discutir esse

comportamento linguístico, o trabalho divide-se nas seguintes seções: na seção 2, ‘As três

ondas da Sociolinguística’; 3. ‘Contribuições da Antropologia’; 4. ‘O hip-hop como

comunidade de prática’; e 5. ‘Conclusões’.

2 As três ondas da sociolinguística

Em geral, a Sociolinguística busca compreender a língua, como um sistema heterogêneo, a

partir do contexto social, configurado, pelo menos inicialmente, pela comunidade de fala. De acordo

com Labov, é na comunidade de fala que a variação e a mudança ocorrem efetivamente.

[...] uma comunidade de fala não pode ser concebida como um grupo de falantes

que usam todos as mesmas formas, ela é mais bem definida como um grupo que

compartilha as mesmas normas a respeito da língua [...] os membros de uma

comunidade de fala compartilham um conjunto comum de padrões normativos,

mesmo quando encontramos variação altamente estratificada na fala real (LABOV,

2002[1972], p. 188-225).

86

Percebe-se, deste modo, que, ao invés do uso linguístico compartilhado por falantes,

as atitudes semelhantes diante de eventos linguísticos parece ser o critério adotado pelo

teórico para definir comunidade de fala. Considerando essa lacuna, Guy (2001) define

comunidade de fala com base nos seguintes critérios: a. os traços linguísticos, compartilhados

pelos falantes, devem diferenciá-los de outros grupos; b. entre os falantes do grupo, deve

existir uma frequência alta de comunicação; e c. o grupo de falantes deve possuir as mesmas

normas e as mesmas atitudes no que tange o uso da língua.

Apesar de ampliar o conceito de comunidade de fala, o terceiro critério proposto por

Guy se aproxima muito do conceito de comunidade de fala apresentado por Labov. No

entanto, o critério da frequência na comunicação abre precedente para outras possibilidades

no campo teórico, como o conceito de redes sociais proposto por Milroy (1980). Para ela, as

redes sociais são redes de relacionamentos desenvolvidas pelos informantes ao longo do

cotidiano, são configuradas em diferentes esferas, como família, grupo de amigos, campo

profissional e tipos de lazer, consequentemente, variam de falante para falante.

A grande contribuição de Guy à proposta de Milroy é de que a frequência

comunicativa do falante é diretamente proporcional à densidade da rede na qual ele se insere,

isto é, quanto maior o número de indivíduos atuantes em uma determinada rede social, maior

será a densidade dessa rede, por conseguinte, quanto menor o número de indivíduos atuantes

em uma determinada rede social, menor será a densidade dessa rede. Tendo em vista que o

conceito de rede foi originado na Antropologia, sua concepção está amplamente dependente

de outras (macro)estruturas, tais como sociedade, economia e política.

Desse modo, uma pesquisa sociolinguística, na qual se considerem as redes sociais

como ambiente comunicativo, visa capturar a dinâmica presente no comportamento

interacional dos informantes. Assim, Coelho et al (2012) afirmam que tanto a pesquisa

pautada no conceito de comunidade de fala, quanto a pesquisa desenvolvida a partir da noção

de rede social, apresentam alguns limites, pois no trabalho com comunidades de fala, prioriza-

se o tipo social estratificado, e, no trabalho com redes sociais, há uma ampla dificuldade tanto

com o levantamento, quanto com a sistematização dos grupos. Logo, a pesquisa com redes

sociais, como proposta por Milroy (1980, 2002), tende a contemplar um número menor de

informantes na constituição das amostras.

Considerando tais questões, Eckert (2000) propõe que os estudos em sociolinguística

sejam constituídos a partir de comunidades de prática, espaços interacionais de construção de

representações sociais nos quais a identidade, tanto do sujeito individualmente, quanto como

87

membros de um dado grupo, encontra-se em processo dinâmico e constante de construção.

Em sua proposta teórica, tida como prática social, Eckert (2000, 2005, 2006) e Eckert e

McConnell-Ginet (2010) consideram os informantes como sujeitos que, ao se inserirem em

redes sociais, constituem categorias sociais e constroem constantemente o significado social

da variação.

A noção de sujeito proposta por Eckert dialoga diretamente com a concepção de

sujeito pós-moderno defendida por Hall (1992, p.12),

[...] o sujeito pós-moderno [é] conceptualizado como não tendo uma identidade

fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel”:

formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos

representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (HALL,

1987). É definida historicamente e, não biologicamente.

O sujeito pós-moderno assume diferentes marcas identitárias, em diferentes

circunstâncias, identidades que não são “unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente” (HALL,

1992, p. 13), mas em função dos perfis dos grupos com os quais dialoga. Com isso, fica claro

que o fenômeno de variação/mudança linguística, para Eckert, configura-se como um

processo de constituição da identidade dos indivíduos, dado que é nesse processo que as

variáveis linguísticas assumem valor social. Portanto, tomando por base as discussões

supracitadas, Eckert (2005, 2012), propõe que haja três ondas de estudos sociolinguísticos, as

quais não se sucedem, nem se substituem, compartilham o mesmo objetivo geral de estudar a

variação e a mudança em um sistema linguístico heterogêneo e plural, mas refletem um olhar

mais específico de como essas abordagens lidam com a variação e com o informante.

A primeira onda está diretamente associada às produções labovianas. Os estudos

dessa onda apresentam um vasto retrato das variáveis linguísticas usadas pela comunidade de

fala, definida como entidade delimitada geograficamente nas quais “um grupo compartilha as

mesmas normas a respeito da língua”. Esse ainda é o modelo mais aderido pelos teóricos da

Sociolinguística, sobretudo no Brasil, sendo, muitas vezes, retratado como única vertente

metodológica da teoria. Tal proposta iniciou-se com estudo de Labov (1966) acerca do inglês,

em Nova York, trabalho cuja correlação do uso das variáveis linguísticas associou-se às

categorias sociais primárias, a saber faixa etária, classe socioeconômica, gênero etc,

destacando o padrão regular da estratificação socioeconômica dessas variáveis, o que foi

considerado como valor social da variação linguística. Em geral, estudos dialetológicos

costumam recorrer aos aspectos metodológicos da primeira onda.

88

A segunda onda é fortemente marcada pelo caráter etnográfico, cujas características

possibilitam a percepção de um retrato local das variáveis linguísticas, pois, ao passo que

essas comunidades de fala estão situadas em comunidades menores, delimitadas mais

culturalmente, do que geograficamente, sua avaliação demanda a realização de um vasto

mapeamento sociohistórico. Os trabalhos dessa onda assumem, nesse sentido, a definição de

comunidade de fala proposta por Guy, na qual os traços linguísticos, compartilhados pelos

falantes, deve diferenciá-los de outros grupos, entre os falantes do grupo, deve existir uma

frequência alta de comunicação, e o grupo de falantes deve possuir as mesmas normas e as

mesmas atitudes no que confere o uso da língua.

Sendo assim, os resultados das pesquisas em segunda onda representam um valor

social relativo da variação de acordo com a dinâmica local. Por essa razão, Eckert (2005) e

Freitag (2015) defendem que as produções em segunda onda promoveram uma visão mais

clara de como as variações diatópicas estão imbuídas de significado local, definido

sociohistoricamente. Entretanto, essa abordagem não obteve muita adesão, visto que a

perspectiva etnográfica demanda uma coleta de dados realizada mediante maior envolvimento

com a comunidade, assumindo, desta forma, elementos sociais e demográficos identificados a

partir de traços como saída da comunidade, julgamento de pertencimento à mesma e atitudes.

O trabalho mais citado como referência dessa perspectiva é o estudo de Labov sobre o black

english, em Nova York.

A terceira onda intenta estudar a variação linguística tomando por base as

comunidades de prática que consistem em “[...] um grupo de pessoas agregadas em função de

um engajamento mútuo e de um empreendimento comum [...]” (ECKERT, MCCONNELL-

GINET, 2010, p. 102). Consequentemente, o objetivo dessa abordagem é conceber a variação

como uma prática estilística, proveniente de práticas linguísticas cotidianas, mutáveis em

termos de significação e julgamento, mediante o posicionamento ideológico de quem as

utiliza em interação dinâmica, enquanto grupo. Logo,

[o]s estudos de 3ª onda continuam quantitativos, valendo-se da experiência

metodológica das ondas anteriores. A diferença está em intervir a ordem da

pergunta: não mais buscar correlação entre o padrão linguístico e as categorias

sociais, mas identificar as categorias sociais que atuam no padrão linguístico. É

uma proposta de retomada do significado social da variação, mudando o foco da

estrutura para a prática linguística (FREITAG, 2015, p.4).

As pesquisas dessa natureza consideram, como entidade linguística relevante para

obtenção de amostras, as comunidades de práticas, grupo de sujeitos engajados em prol dos

89

mesmos propósitos, pois compartilham as mesmas características, não só linguísticas, como, e

principalmente, ideológicas e identitárias, viabilizando, consequentemente, a investigação do

papel do sujeito em termos de “hierarquia, inovação e adesão”. Nessa ótica, a identidade

demonstra o(s) papel(is) assumidos pelos sujeitos nos espaços em que ele atua, ou seja, em

suas comunidades de prática, “forjadas” partindo de suas redes sociais e, por conseguinte, de

suas relações de filiação.

3 Contribuições da antropologia

Em um trabalho cujo objetivo foi verificar as opressões veiculadas pela apologia à

variedade culta do inglês norte-americano, Hooks (2008) discute a relação de língua e poder,

sobretudo nas “hierarquias” raciais e propõe a ressignificação dos usos linguísticos para

emancipação do grupo socialmente oprimido. Para tanto, a autora posiciona-se incialmente

recusando a expressão “língua do opressor”, com intuito de destacar a função

“desemponderadora” presente nesse discurso, visto que é através da aquisição da língua alvo e

de sua ressignificação, dada pelas variações, que o grupo dominado começa a reivindicar a

língua como um elemento para sua constituição enquanto sujeito. Assim,

[a]prender inglês, aprender a falar a língua a língua estranha, era uma maneira de

os escravos africanos começarem a recuperar seu poder pessoal dentro de um

contexto de dominação. Possuindo a língua compartilhada, povos negros poderiam

encontrar de novo uma maneira de fazer comunidades e um sentido para criar

solidariedade política necessária para resistir (HOOKS, 2008, p. 859).

No Brasil, esse processo foi mais tardio, pois (a) a colonização brasileira contou com

mão de obra escrava composta por milhares de negros falantes de uma vasta gama de línguas,

muitas ininteligíveis entre si. Neste momento, embora a língua alvo fosse essencial para

comunicação do dominador com os dominados, o “reduzido” número de falantes da língua

alvo, assim como o contato e as relações entre colonizador e colonizado comprometeu o

processo de aquisição do português pela população escrava; (b) segundo Lucchesi (2009),

esse cenário foi parcialmente favorável a presença de um crioulo, mas a presença de ações

normativas, isto é, o surgimento da imprensa, a escolarização básica pública e os

deslocamentos sociais, culminaram em um processo de transmissão linguística irregular do

qual resultou uma variedade de português e não em uma língua crioula. Portanto, as línguas

faladas pelas comunidades quilombolas brasileiras foram crioulos de base lexical portuguesa,

dissolvidos mediante os efeitos das ações normativas, mas deixando fortes marcas nas normas

populares, o elemento chave para o dialeto das periferias (LUCCHESI, 2015).

90

Roth-Gordon (2007) segue a mesma perspectiva com intuito de validar que o uso

mais recorrente do item lexical playboy por jovens de favelas cariocas tem por objetivo

sancionar negativamente jovens brancos ricos. Para atender a tal objetivo, o trabalho extrapola

a complexa negociação de raça, classe e espaço as quais permeiam o português brasileiro

acerca do uso da gíria playboy, pois “[n]os lotados centros urbanos, como o Rio de Janeiro,

padrões de segregação espacial tendem a separar brasileiros por classe socioeconômica e raça,

poucas pessoas de cor ocupam espaços residenciais de classe média e elite” (ROTH-

GORDON, 2007, p. 254).

Considerando que a referência de espaço urbano e classe socioeconômica

frequentemente está indexada à raça no Brasil (VARGAS, 2004), Roth-Gordon (2007)

argumenta que, através do termo playboy, jovens marginalizados identificam a desigualdade

brasileira a partir dos privilégios da classe média, pois o item lexical playboy denuncia a

desigualdade social à qual os jovens negros pobres estão submetidos na sociedade brasileira.

Dentro dessa ótica, se estabelecem as seguintes dicotomias rico/pobre, branco/negro,

condomínio/favela, e, por conseguinte, playboy/mano, muito importantes para compreensão

de como determinadas variantes linguísticas colaboram com a compreensão do movimento

hip-hop como comunidade de prática e como seus usos evidenciam relações de filiação ao

grupo em questão.

4 O hip-hop como comunidade de prática

Considerando o hip-hop como um movimento cultural da diáspora negra, Souza

(2011) argumenta que não haja uma única perspectiva de surgimento do mesmo.

Ainda que não seja possível descrever precisamente o hip-hop por meio de uma

única versão, uma das correntes mais expressivas afirma que o fenômeno

consolida-se como cultura e obtém reconhecimento social e político a partir de seu

surgimento nos bairros de Nova York nos anos 1980, quando ganha contornos

sociais e artísticos. Autores como Gilroy (2001), Hall (2003) e Cancline (2005)

concordam com a ideia de que não existe apenas uma história do hip-hop. Como

movimento cultural, ele se transforma nos vários contextos em que aporta,

hibridiza-se e assume distintos formatos, ressinificando de maneiras diferentes os

efeitos do fenômeno da diáspora negra pelo mundo, fazendo da musicalidade um

dos elementos de sustentação de sua organização social, cultural e política

(SOUZA, 2011, p. 60).

Por conseguinte, a emergência de valores referentes a esse movimento cultural, tais

como discursos e atitudes, contribui com o surgimento de códigos e orientações adotadas por

grupos à proporção que estes se juntam e ganham força “circunscritos a determinados bairros,

91

originando crews, coletivos batizados com nomes que expressam novas identidades

[coletivas] em construção” (SOUZA, 2011, p. 65), por isso o movimento hip-hop é

considerado híbrido e heterogêneo, visto que ele “se faz e refaz”, especialmente em polos

urbanos. Neste contexto linguístico, interpreta-se os mano como uma categoria, a classe de

negros pobres, de maneira mais abrangente e em oposição aos playboy; enquanto os cara é

um sintagma que atua, nesse dialeto, como um recorte da categoria “os mano” referente a

indivíduos pertencentes ao mesmo grupo, porém mais próximos, tais como “os broder”, “os

parceiro”, “os parça”; e os homi, por sua vez, refere-se à polícia.

Considerando comunidade de prática como um grupo de falantes entre os quais é feito

o mesmo engajamento sociocultural em prol de relações de filiação, culminando

invariavelmente em comportamentos linguísticos e dada a discussão acerca da natureza do

movimento hip-hop, é legítimo considerá-lo como comunidade de prática. Sendo assim, fazer

uso de variantes linguísticas, outrora estigmatizadas, revela, conforme aponta Roth-Gordon

(2007), estilo, construção de uma persona social política, consciente das desigualdades sociais

brasileiras muito intimamente relacionadas a questões raciais e, consequentemente, em

apropriação do fenômeno da falta de concordância nominal de número, em determinados

sintagmas, como elemento empoderador (HOOK, 2008).

5. Conclusão

No contexto sócio-político da década de 90 até os dias atuais, a modalidade linguística

adotada por membros da cultura hip-hop parece demonstrar a apropriação e o empoderamento

linguístico destacados por Hooks (2008). Logo, na medida em que se assume a fala utilizada

por membros do movimento hip-hop como comunidade de prática, percebe-se que a ausência

do padrão de concordância de número em sintagmas nominais como os mano, os cara, os

homi está diretamente atrelada a aspectos estilísticos oriundos de consciência racial,

consciência de classe e identidade. A perspectiva teórica-metodológica da Terceira Onda da

Sociolinguística promove condições para que os membros da referida comunidade de prática

sejam visualizados como sujeitos, por conta disso, ao se inserirem nas redes sociais

constituintes de uma determinada crew, configuram categorias sociais e constroem

constantemente o significado social da variação em questão. Por isso, a variação é concebida

como prática estilística, decorrentes das práticas linguísticas cotidianas, passivas de mudança

quanto à significação e ao julgamento.

92

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470.

94

DIVERSIDADE LINGUÍSTICA DO ITEM LEXICAL “AGUARDENTE”: UMA

ANÁLISE A PARTIR DOS DADOS DO PROJETO ALERS

Ludinalva S. do Amor DIVINO(UFBA)

RESUMO

Este artigo propõe verificar quais as variantes lexicais utilizadas na região sul do país para o item

lexical aguardente, identificando as possíveis diferenças e/ou semelhanças diatópicas. A metodologia

do trabalho deu-se a partir da análise dos itens lexicais que respondem a questão 182 do questionário

do Atlas Linguístico do Brasil, doravante ALiB, sobre as variações lexicais para a pergunta: Como se

chama a bebida alcoólica feita de cana-de-açúcar, do campo semântico Alimentação e Cozinha. O

corpus constitui-se das respostas coletadas nos estados da região Sul que compõem a Carta 604 do

Atlas Linguístico-Etnográfico da Região Sul do Brasil (ALERS). Foram encontradas as variantes:

cachaça, pinga, caninha, cana, canha, tonteza e pura. Ficou evidente que o processo de migração

interno da região Sul dividiu esta região em duas áreas linguísticas, a paranaense e a rio-grandense,

identificando o Estado de Santa Catarina como área de transição; prova disso, foram as formas lexicais

dominantes no Paraná (pinga) e no Rio G. do Sul e Santa Catarina (cachaça).Em síntese, obtivemos na

região sul a variante mais produtiva: cachaça (com 159 registros); em segundo lugar: pinga(com 87

registros) ; 01 ocorrência para a variante tonteza e 1 ocorrência para a variante pura. Registra-se

também a resposta prejudicada (rp) com 9 frequências.

Palavras-chave: Léxico.Geolinguística. ALERS. Aguardente.

INTRODUÇÃO

O Brasil é um país cuja língua – a língua portuguesa – apresenta, indubitavelmente,

um alto grau de diversidade e variabilidade. O falar de uma pessoa faz parte de sua cultura e,

portanto, há de ser respeitado. Constitui-se marca essencial de sua identidade, além de

integrar o âmbito da linguagem – toda forma de comunicação - assumindo o papel de

principal “produto” da cultura e, ao mesmo tempo, o principal “instrumento” de sua

transmissão.

Nesse sentido, não podemos considerar a linguagem fora do contexto sociocultural

em que está inserida, na medida em que sua função seria não apenas transmitir informações,

como também estabelecer e manter contatos sociais e culturais entre os falantes. Portanto, não

se pode também deixar de lado o fato de que ela vai acompanhar e refletir os padrões de

comportamento e valores socioculturais e identitários de uma dada comunidade de fala.

Objetivamos verificar quais as variantes lexicais utilizadas na região sul do país para

o item lexical aguardente, identificando, assim, as possíveis diferenças e/ou semelhanças

95

diatópicas. Nesse sentido, a metodologia do trabalho deu-se a partir da análise dos itens

lexicais que respondem a questão 182 do questionário do Atlas Linguístico do Brasil,

doravante ALiB, sobre as variações lexicais para a pergunta: Como se chama a bebida

alcoólica feita de cana-de-açucar, do campo semântico Alimentação e Cozinha. Portanto, o

corpus constitui-se das respostas coletadas nos estados da região Sul que compõem a Carta

604 do Atlas Linguístico-Etnográfico da Região Sul do Brasi.

Sabemos que o meio social e o domínio que o falante possui de diversos estilos

linguísticos influenciam no momento de escolha do seu universo lexical, adequando a fala

como processo de comunicação e interação. Nessa direção, a palavra atua no estabelecimento

da identidade do universo lexical do falante.

Nascentes aponta para o estudo da língua em uso, ao afirmar que “uma língua não se

espalha através de uma região sem alterar-se aqui e ali” (NASCENTES, 1960, p.253) e

salienta a necessidade do estudo dialetológico em nosso país, devido à grande extensão

territorial e à variada composição étnico-cultural brasileira que atuam na diversidade.

Para alcançar os objetivos propostos nesta pesquisa, utilizamos os pressupostos

teóricos da Dialetologia, da Geografia Linguística e da Lexicologia.

1 Léxico

O nível lexical da língua é considerado o retrato da cultura de um povo, refletindo

aspectos vinculados às experiências sociais e culturais de uma comunidade, pois o indivíduo,

ao escolher formas linguísticas para nomear os referentes do mundo físico e do universo

simbólico, revela não somente a sua percepção da realidade, mas compartilha valores, práticas

culturais e crenças do grupo social em que está inserido. Dessa forma, o léxico de uma língua

é constituído por um conjunto de vocábulos que representa a herança sociocultural de uma

comunidade, conforme Biderman (2001, p.14):

[...] o léxico de uma língua natural pode ser identificado como o patrimônio

vocabular de uma dada comunidade linguística ao longo de sua história. Assim,

para as línguas de civilização, esse patrimônio constitui um tesouro cultural

abstrato, ou seja, uma herança de signos lexicais herdados e de uma série de

modelos e categorias para gerar novas palavras.

96

No estudo do léxico, o ponto de partida é a linguagem, entendendo-se que, por meio

da expressão linguística, é possível conhecer características culturais da comunidade, já que,

através da palavra, os indivíduos expressam o tipo de vida que levam, o que pensam, o que

fazem, os limites culturais que os mantêm. Para Coseriu (1978, p.19), cabe à Etnolinguística o

estudo dos fatos de uma língua motivados pelos saberes (ideias, crenças, concepções,

ideologias) acerca das coisas.

Conforme Velarde (1991, p.41), no estudo da vinculação entre linguagem e cultura é

importante distinguir se o ponto de partida da pesquisa é a linguagem ou a cultura. Ele faz

ainda uma distinção entre Sociolinguística e Etnolinguística, afirmando que a primeira estuda

a variação da linguagem relacionada à estrutura social da comunidade, enquanto a segunda

dedica-se ao estudo da variação linguística relacionada com a cultura.

É conveniente pontuar que o pluralismo linguístico que caracteriza o português do

Brasil é reflexo das variadas misturas de raças, culturas e línguas que estiveram presentes no

processo de colonização de nossa terra. Sendo assim, a língua usada pelos falantes está sujeita

à variação ou, nas palavras de Barros Ferreira et al (1966, p. 480): “a língua vive através da

diversidade” que pode se dar em vários níveis: diacrônico, diatópico, diastrático, diafásico e

diageracional.

A Geografia Linguística se constitui em um método da Dialetologia Horizontal, uma

vez que a Dialetologia faz uso desses princípios metodológicos para estudar e documentar o

uso da língua dentro de um espaço, ou seja, para registrar os dados linguísticos reais,

relacionando-os, muitas vezes, com dados sociais.

2 Variação diatópica: dialetologia monodimensional e dialetologia pluridimensional

Língua e sociedade são duas realidades totalmente interligadas e através da linguagem

o homem consegue se comunicar e se expressar, interagindo com o mundo que o rodeia.

Dessa maneira, através da linguagem, podemos identificar se o falante é homem ou mulher,

bem como observar sua faixa etária, seu grau de instrução etc. É possível observar, por

exemplo, se o falante brasileiro é nordestino, carioca, paulista ou sulista, devido às diferenças

dialetais (fonéticas e lexicais) existentes entre eles. No entanto, apesar dessa gama de

variedade linguística, o falante do sul do país compreende perfeitamente o falante do norte,

97

pois eles têm em comum a mesma unidade linguística que vigora no território brasileiro: a

língua portuguesa e as variações não fazem desta uma língua ininteligível.

A partir do século XIX, desenvolveram-se diversas teorias linguísticas que se

propuseram a observar e explicar a variação na língua, dentre elas podemos destacar a

Dialetologia, cuja finalidade é mapear e identificar a realidade espacial linguística, ou seja,

visa a documentar a variação diatópica, registrando os distintos dialetos regionais, tendo

assim uma dimensão prioritariamente espacial.

Neste sentido, os dados coletados a partir de uma pesquisa dialetal podem ser

documentados tendo como base os critérios definidos pelo método da geografia linguística.

Esta é definida por Coseriu (1965, p. 05) como:

Un método dialectologico y comparativo que há llegado a tener extraordinário

desorrolo en nuestro siglo, sobre todo en le campo românico, y que presupone el

registro en mapas especiales de un número relativamente elevado de formas

linguísticas (fónicas, léxicas o gramaticales) comprobadas mediante en cuesta

directa y unitária en una rede de puntos de un território determinado, o, por lo

menos, tiene en cuenta la distribución de las formas en el espacio geográfico

correspondiente a la lengua, a las lenguas, a los dialectos o a los hablares

estudiados.

Na verdade, a geografia linguística ou geolinguística visa a investigar e a registrar a

linguagem falada, inserida em um determinado espaço, podendo ter um enfoque

monodimensional (eminentemente espacial) e pluridimensional. Enquanto este abarca, além

dos dados espaciais, dados extralinguísticos, como gênero, faixa etária, nível de escolaridade

etc, aquele registra exclusivamente a variação diatópica. Neste sentido, a Dialetologia faz uso

dos princípios metodológicos da geografia linguística para estudar e documentar o uso da

língua dentro de um espaço, ou seja, para registrar os dados linguísticos areais, relacionando-

os, muitas vezes, com dados sociais.

Diante disso, é conveniente pontuar que a geolinguística continua priorizando a

variação diatópica, mesmo quando registra os dados da língua sob uma perspectiva

pluridimensional; na verdade, apenas amplia sua dimensão ao controlar outras variáveis,

como idade, escolaridade, gênero e, desse modo, complementa os dados areais, sem a busca

obcecante e exaustiva de quantificação e, como bem afirmou Cardoso (2000, p. 141):

98

Não creio que se deva aplicar à geolinguística a metodologia da dialetologia

vertical, ou sociolinguística (...). os dados geolinguísticos, ademais, não podem ser

arguidos de pobreza sociológica (...).

Atualmente, tem-se muito discutido acerca de outras dimensões, que não a diatópica,

que devam ser levadas em consideração em uma análise dialetológica. Para Cardoso (2000)

contestar a importância de uma variável sobre outra não parece ser uma boa solução, dada a

complexa relação entre língua e fatos sócio-espaciais. Além disso, temos de levar em conta

que desde os primeiros trabalhos dialetais já se demonstrava preocupação com outras

variáveis que não fossem diatópicas.

Nesse sentido, achamos conveniente transcrever o que disse, com muita propriedade,

Cardoso (2000, p. 415)

Creio que a geolinguística hoje, neste final de milênio, deve continuar a priorizar a

variável diatópica, abrindo, porém, espaço para o controle de outras variáveis como

gênero, idade e escolaridade, sem a busca obcecante da quantificação, mas

tomando-as, de forma exemplificativa e não exaustiva de modo a complementar os

próprios dados areais.

Assim, ao contrário do que foi afirmado por alguns estudiosos sobre a suposta crise da

geolinguística, é preciso deixar claro que esta apenas ampliou e modernizou seu campo de

estudo, tornando acessível dados que antes não se faziam necessários. Desse modo, urge que

os cientistas da língua concebam a geografia linguística como um método da Dialetologia

que, com o decorrer do tempo, veio se desenvolvendo e buscando caminhos que mais se

aproximem da realidade e, a partir de dados espaciais, pretende-se chegar a dados sócio-

culturais, ou seja, a uma análise pluridimensional dos fenômenos linguísticos.

2.1 Representação da variação diatópica nos atlas linguísticos

Os atlas linguísticos são elaborados a fim de representar e registrar, em suas cartas, a

variação diatópica, coletada a partir de uma pesquisa dialetal. Na verdade, nos atlas está

reunido um conjunto “de mapas de um território, mais ou menos vasto, que representam ou

localizam as realizações dos paradigmas linguísticos em estudo (de natureza fonética, lexical,

morfológica ou sintática), registrando as respectivas variações geográficas.” (BARROS

99

FERREIRA et al, 1966, p. 484). Desse modo, um Atlas linguístico nos possibilita visualizar a

distribuição geográfica de determinado fenômeno da língua, delimitando sua extensão, além

de isolar, através de isoglossas, áreas dialetais, definidas pela concentração de fenômenos

linguísticos idênticos.

No tocante ao registro da variação diatópica, podemos afirmar que foi com a

publicação do Atlas Linguistique de la France (ALF), elaborado por J. Gilliéron, que a

geografia linguística se tornou uma disciplina autônoma, seguindo o seu curso e aprimorando

seus princípios metodológicos. No Brasil, os estudos dialetais têm seu começo em 1826, com

a presença de Visconde de Pedra Branca, Domingos Borges de Carvalho, no Atlas

Ethnographique Du Globe de Adrien Balbi.

Nesse contexto, o Brasil empreende a sua caminhada geolinguística publicando o

primeiro atlas linguístico regional, o Atlas Prévio dos Falares Baianos (APFB), em 1963,

resultado de pesquisas realizadas na Universidade do Estado da Bahia pelos pesquisadores:

Nelson Rossi, Carlota Ferreira e Dinah Isensee. Nos dias atuais, o Brasil conta com dez atlas

linguísticos regionais publicados. O segundo atlas linguístico regional é o Esboço de um Atlas

Linguístico de Minas Gerais (EALMG), em seguida tivemos:o Atlas Linguístico da Paraíba

(ALPB); o Atlas Linguístico de Sergipe (ALS) é o quarto atlas publicado no Brasil; o quinto

atlas lançado no Brasil foi intitulado Atlas Linguístico do Paraná (ALPR), de Vanderci

Aguilera, em 1994; o sexto: Atlas Linguístico-Etnográfico da Região Sul do Brasil (ALERS);

o sétimo é o Atlas Linguístico Sonoro do Pará (ALISPA); o oitavo atlas regional é o Atlas

Linguístico de Sergipe II, de Suzana Cardoso; o nono atlas é o Atlas Linguístico de Mato

Grosso do Sul (ALMS);o décimo atlas regional publicado no Brasil é o Atlas linguístico do

Estado do Ceará (ALECE).

No que diz respeito ao Brasil, o desejo inicial de se elaborar um atlas de extensão

nacional foi grande, data de 1953, porém inviabilizado, pois o Brasil era um país rural ainda,

então foram feitas pesquisas em escala estadual até haver reais condições infraestruturais de

se fazer um atlas nacional. Passado pouco mais de 40 anos, foi, enfim, viabilizado o Projeto

Atlas Linguístico do Brasil, ALiB, que tem como objetivo geral fornecer dados para uma

visão ampla da língua majoritária em nosso país. O Projeto ALiB configura-se como um

projeto original na medida em que busca o mapeamento global das variedades da língua

portuguesa, uma vez que os atlas linguísticos regionais fornecem visões parciais dos usos da

fala. (PAIM,2012)

100

De acordo com Cardoso (2010, p. 68), “o começo da geolinguística está, assim,

marcado pela busca da realidade nacional, entendida como a descrição linguística de área que,

geográfica ou politicamente, se reveste de unidade”. Cardoso cita que os atlas podem ser

divididos em quatro tipos de acordo com a extensão territorial: regional, nacional, continental

e grupo linguístico.

Em relação a esse fato, Cardoso (2010, p. 68) afirma que:

a necessidade de aprofundar o conhecimento de uma dada região,

proporcionado pelos atlas nacionais, motivou o aparecimento de atlas

regionais que, como a própria denominação explicita, se destinam ao exame

de áreas menores, buscando detalhar o conhecimento de regiões específicas,

fazendo com que o que se deveria ter constituído na primeira geração de atlas

linguísticos – a produção de atlas regionais –, viesse a aparecer num segundo

momento e quando já circulavam os atlas nacionais.

Dessa maneira, a busca pela realidade nacional provocou e provocará motivações para o

surgimento de atlas em outros países, tendo como base os princípios metodológicos do ALF,

mesmo mudando uma ou algumas situações na metodologia.

3 A ocupação territorial da região sul e o surgimento do ALERS

O povoamento da região Sul deu-se, inicialmente, pelos indígenas. Em 1626, vieram

os padres jesuítas espanhóis para catequizá-los e esses religiosos fundaram aldeias

denominadas missões ou reduções. Os índios que habitavam as missões criavam gado, ou

seja, dedicavam-se à pecuária, trabalhavam na agricultura e aprendiam ofícios. Mais tarde,

vieram os bandeirantes paulistas que atacaram as missões para aprisionar os índios. Com isso,

os padres jesuítas e os índios abandonaram o lugar. A população da região Sul aumentou

muito com a chegada dos primeiros imigrantes europeus. No século XIX, o produto de grande

expressão para o país deixou de ser a cana-de-açúcar e passou a ser o café, fato que

proporcionou o povoamento. Os primeiros imigrantes foram os açorianos. Depois vieram

principalmente os alemães e os italianos. Outros grupos (árabes, poloneses e japoneses)

também procuraram a região para morar.

Percebemos, portanto, que a região Sul teve uma concentração maior de europeus e

descendentes, porque no período em que vieram muitos imigrantes para o Brasil a maioria lá

se instalou, visto que as características da região (sobretudo o clima) se assemelhavam muito

101

aos países europeus, e esses povos viram que a região era propícia, principalmente, para o

desenvolvimento de culturas agrícolas tais quais eles praticavam na Europa.

Sabe-se que a delimitação de áreas linguísticas fundamenta-se na correlação entre a

língua falada e as características do meio geográfico, a saber: origem e constituição étnica da

população, migrações, grau de isolamento e de urbanização, relevo, dentre outros. Sendo

assim, acreditamos que a maneira como se deu a ocupação territorial dessa região tenha

influenciado linguisticamente seus moradores.

Já situado na quarta fase da Dialetologia no Brasil, o Atlas Linguístico-Etnográfico

da Região Sul do Brasil (ALERS), é o sexto atlas lançado em território nacional, em 2002. Os

pesquisadores: Walter Koch, Mário Silfredo Klassmann e Cléo Vilson Altenhofen foram os

mentores desse atlas, o qual contempla os três estados da região sul do país: Paraná (PR),

Santa Catarina (SC) e Rio Grande do Sul (RS). Foram lançados dois volumes: o primeiro

contendo introdução e metodologia e o segundo, o atlas propriamente dito. A rede de pontos

para a pesquisa do ALERS é dividida em duas partes: 275 pontos, incluindo zona rural e zona

urbana.

O projeto ALERS busca registrar, organizar e comparar dados linguísticos de

natureza fônica, morfossintática e semântico-lexical do português falado na Região Sul do

país.

4 Análise dos dados

Os informantes para o ALERS têm idade entre 28 e 58 anos e pouca escolaridade,

tendo sido escolhidos dois por localidade nas áreas rurais e três nas áreas urbanas. Em relação

aos pontos, temos, no Paraná, 100 pontos, em Santa Catarina, 80 pontos e Rio Grande do Sul,

95 pontos, totalizando 275 pontos, como já mencionamos.

Das respostas encontradas para a pergunta do Questionário Semântico Lexical (QSL)

182: Como se chama a bebida alcoólica feita de cana-de-açúcar? Foram encontradas as

variantes: cachaça, pinga, caninha, cana, canha, tonteza e pura, evidenciadas na tabela 1.

102

TABELA 1- Distribuição diatópica das variantes no ALERS

VARIANTES FREQUÊNCIA

cachaça 159

pinga 87

penga 01

caninha 08

cana 04

canha 04

tonteza 01

pura 01

rp 09

A partir da Tabela 1, percebemos que a variante mais produtiva foi cachaça (com

159 registros); em segundo lugar pinga (com 87 registros) ; 01 ocorrência para a variante

tonteza e 1 ocorrência para a variante pura. Registra-se também a resposta prejudicada (rp)

com 9 frequências.

Em relação à análise lexical das variantes para aguardente, encontramos em Cunha

(1997) a acepção da variante cachaça como aguardente de cana-de-açúcar, de origem

controversa. Ainda em Cunha (1997), cana é classificada com s.f,- caule de várias plantas da

família das gramíneas, tais como o bambu.

Cana é trazida por Morais Silva (1945) com a acepção de bebida alcoólica, na

entrada caninha, classificada como brasileirismo, diminutivo de cana. A lexia pinga é trazida

por Cunha (1997) como extensão do verbo pingar. Para Morais Silva(1945) pinga é

classificada como brasileirismo popular.

103

CARTAQSL 604- Aguardente

Percebe-se a partir da Carta do QSL 604 que a designação cachaça foi a mais

produtiva nos estados de Santa Catarina e R. G. do Sul, enquanto a variante pinga foi

predominante no estado do Paraná. Por outro lado, ainda neste estado, ocorreram 22 pontos

104

com a variante cachaça, visualizando um traçado no Sul do Paraná, o que sugere influência da

fronteira com Santa Catarina.

Através da Carta, é notório o uso da variante caninha no Oeste do R. Grande do Sul,

o que acarretará em uma isoglossa nas localidades de: Barra do Ribeiro, Camaçá, São

Lourenço do Sul e Pelotas que são representadas pelos pontos:832,838,843,834,828 no Atlas.

GRÁFICO I – Distribuição das variantes lexicais para o item aguardente - ALERS

Podemos observar no Gráfico I, que no R. Grande do Sul ocorreu 84% de utilização

da variante cachaça, enquanto em Santa Catarina obtivemos 73%. Já no Paraná, tem-se um

percentual de 25% de usos desta variante.

Em relação à variante lexical pinga, seu uso foi mais predominante no Paraná,

obtendo um percentual de 72%, enquanto em Santa Catarina prevaleceu com 20% de uso e no

Rio G. do Sul, 3%.

No que tange às outras variantes (caninha, cana, canha), agrupadas como “outras”,

foi apresentado um percentual mais significante no Rio Grande do Sul com 12% de

ocorrências.

5 Considerações finais

É perfeitamente possível se enveredar pelos caminhos da Geografia Linguística tendo

sob controle outras variáveis além das diatópicas, ou seja, a Geolinguística assume outros

0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

PR SC RS

cachaça

pinga

outros

105

parâmetros que não o diatópico, quando passa a considerar as variáveis sociais, mas não deixa

de ser eminentemente diatópica.

Podemos pontuar que todo e qualquer estudo de natureza dialetal é de extrema

importância para se conhecer e se registrar não apenas as diversidades linguísticas de natureza

diatópica, como também as variedades da língua que correspondem a aspectos sócio-culturais

e espaciais, levando os falantes a terem consciência de que cada comunidade linguística, cada

localidade e cada pessoa realizam sua língua de maneira diferente.

Ficou evidente que o processo de migração interno da região Sul divide essa região

em duas áreas linguísticas, a paranaense e a rio-grandense, identificando o Estado de Santa

Catarina como área de transição; prova disso foram as formas lexicais dominantes no Paraná

(pinga) e no Rio Grande do Sul e Santa Catarina (cachaça). Confirmando, portanto, que a

partir do estudo do léxico torna-se possível desvendar as transformações sociais, históricas e

ideológicas que perpassam um grupo social, isto é, as características humanas e culturais de

determinados grupos são reveladas através do léxico.

O presente estudo foi uma pequena amostra das inúmeras possibilidades de

exploração do material coletado pelo ALERS, sinalizou, de forma bem tímida, a existência de

áreas linguísticas relacionadas com as diversas áreas de colonização da região Sul.

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VELARDI, Manuel Casado. Lenguaje y cultura. Madrid: Sintesis, 1991.

107

ALMA E ESPÍRITO: TERMOS DO ESPIRITISMO

Amilca Mª de Lima Fernandes10

Celina Márcia de Souza Abbade11

RESUMO: O presente trabalho faz parte de um projeto maior de elaboração do Dicionário de Termos

Espíritas coordenado pela Profa. Dra. Celina Márcia de Souza Abbade. Este artigo tem por objetivo

partir do léxico já levantado e fazer um breve estudo acerca dos termos alma e espírito, utilizados por

Allan Kardec em O Livro dos Espíritos. Como embasamento teórico-metodológico, seguiremos os

pressupostos de Krieger (2011), Abbade (2014 e 2015), Ullmann (1977), Kardec ([1857] 2006), dentre

outros, de forma a colaborar para que os postulados dessa Doutrina tornem-se mais científicos e

compreendidos.

Palavras-chave: Terminologia; Lexicologia; Doutrina Espírita; alma; espírito

1 Apresentação

No ano de 1855, em Paris, Hyppolyte Léon Denizard Rivail, educador, nascido em

Lyon, na França, tem contato com o “fenômeno das mesas que giravam, saltavam e corriam,

em condições tais que não deixavam lugar para qualquer dúvida”, o que o levou inicialmente

a observar e logo em seguida a pesquisar tais ocorrências que eram propagadas pela Europa e

pelo Estados Unidos, nos meados do século XIX.

O Prof. Rivail, já habituado a fazer pesquisas, passa então a observar estes

fenômenos e a analisá-los cuidadosamente, buscando justificativas para tais ocorrências. Ele

utilizou-se do método comparativo e experimental, característicos da época, fazendo

perguntas a diversos médiuns12 espalhados pela Europa através de cartas escritas, e aguardava

as respostas para compará-las. Essas respostas então, seriam dadas por Espíritos, sob o

amparo do Espírito de Verdade. A técnica utilizada à época para dar conta de tal fenômeno

10 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens – PPGEL, da Universidade do Estado

da Bahia – UNEB. 11 Docente do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens – PPGEL, da Universidade do Estado da

Bahia – UNEB. 12 Aquele que se comunica com vivos e mortos, ou seja, está no meio dos dois mundos.

108

era o uso de cestinhas de bico, com 15 a 20 centímetros de diâmetro, que tinham um lápis

amarrado na ponta, e com a intervenção de duas médiuns, as irmãs Julie e Caroline Baudin, de

14 e 16 anos, as quais punham as mãos na beirada da cesta, e as respostas eram escritas numa

lousa, fenômeno designado pelo Prof. Rivail como psicografia indireta, ou seja, aquela que

para acontecer necessita de um suporte material, a exemplo de pranchas e cestinhas de bico.

Após isso, ele enviava a mesma pergunta para outros médiuns que se utilizavam da mesma

técnica.

O professor Rivail não se utilizou do seu nome para realizar essa obra nem nenhuma

outra da codificação espírita. Pesquisas dizem que é provável que o espírito Zéfiro, um

espírito que o acompanhava e o protegia que teria sido sugerido que ele adotasse um

pseudônimo. E toda a codificação espírita foi assinada pro Allan Kardec, dando origem a uma

nova corrente espiritualista que o próprio Kardec denominou Espiritismo.

Após Kardec obter a convicção da existência dos espíritos e da sua interlocução com

os homens, em 18 de abril de 1957, com 501 perguntas e respostas, foi apresentada ao público

a primeira edição do O Livro dos Espíritos, uma das obras básicas da Doutrina Espírita, o

primeiro de uma série de cinco livros a serem publicados pelo Prof. Rivail, com pseudônimo

de Allan Kardec, num momento em que ocorriam grandes transformações sociais, filosóficas,

políticas e linguísticas, e em que eram disseminadas várias ideias novas, a exemplo do

positivismo de Comte, o evolucionismo de Charles Darwin, o idealismo de Hegel, o pré-

saussuriano de Schleicher, também adepto do evolucionismo.

Em uma segunda edição, no dia 18 de março de 1860, as 501 perguntas e respostas

foram ampliadas para 1018, dessa vez através de outra médium, a Srtª Japhet. Em Obras

Póstumas, Kardec diz que mais de dez médiuns colaboraram nessa atividade.

Allan Kardec teria sido designado pelo Espírito de Verdade para codificar o

Espiritismo, ou seja, compilar todos os postulados ditados pelos possíveis espíritos, daí

também ser conhecido como o Codificador da Doutrina. Dessa forma, o Espiritismo teve as

suas bases compiladas, ou seja, codificadas por Allan Kardec, que além de O Livro dos

Espíritos, piblicou as obras: O Livro dos Médiuns (1861), que contém a parte experimental e

científica, manual para os que exercitam o intercâmbio com o Mundo Espiritual; O Evangelho

Segundo o Espiritismo(1864, )para a parte moral; O Céu e o Inferno (1865) ou A Justiça de

Deus segundo o Espiritismo e A Gênese (1868), com os milagres e as predições.

109

2 Histórico dos estudos terminológicos

A Terminologia é uma ciência que estuda os termos característicos de uma área

específica, abarcando o vocabulário técnico relacionado a qualquer atividade laboral do ser

humano.

O marco inicial dos estudos terminológicos foi o ano de 1935, quando o engenheiro e

professor Eugen Wuster, defendeu, na Universidade de Stutgart, Alemanha, a sua tese de

doutorado intitulada A normalização internacional da terminologia técnica, com ênfase

especial na Eletrotécnica. Nessa época, explicou as suas motivações para aquela pesquisa,

enfatizando a importância desses estudos para os cientistas e técnicos e propiciando organizar

denominações e conceitos das suas disciplinas, com o intuito de facilitar a comunicação entre os pares,

bem como divulgar tais conhecimentos, convertendo-se, assim, no principal modelo da Escola de

Viena, assim como o criador da Teoria Geral da Terminologia – TGT.

Para a TGT, o conceito é absoluto e inalterável, ou seja, não se enquadra no

pensamento saussuriano – signo, significante e significado. Fundamenta-se na

monorreferencialidade do termo, ou seja, designa um único termo para um conceito, e vice-

versa. A ideia de Wuster era a de evitar empecilhos na comunicação entre os profissionais

ocasionados pela polissemia e pelas ambiguidades, uma vez que entendia a língua técnica e

científica como a “língua do uso”.

Em 1928, antes, portanto, da defesa da tese de Wuster, um novo pensamento sobre a

linguagem, a forma vinculada diretamente à função, foi divulgado pelo linguísta Vilém

Malthesius, no 1º Congresso Internacional de Linguística, realizado em Haia, na Holanda,

evento que ficou conhecido como o Círculo, ou Escola de Praga.

Inspirados nos conceitos de Saussure, os integrantes da Escola de Praga, dos quais

destacamos Nikolaj Trubetzkoy e Roman Jakobson, entendiam a linguagem articulada como

um sistema de comunicação, preocupando-se com os seus usos e funções. Propunham estudar

a língua como um “sistema funcional’, excluindo a dicotomia diacronia/sincronia e

preconizando uma relação entre sistema e uso. (NEVES, 2004).

Nos anos 90, segundo Cabré (1999), ocorreu uma mudança de paradigma, decorrente

da revisão dos pressupostos teórico-metodológicos: os pesquisadores em terminologia

começaram a divergir da TGT, alegando que a teoria wusteriana não descrevia de forma

eficaz o léxico especializado, haja vista a diversidade tipológica promovida pelas inúmeras

110

necessidades de termos, decorrentes da rapidez com que surgiam novas especialidades. Daí,

entenderam que as particularidades pragmáticas da comunicação da TGT seriam insuficientes

para atender as novas demandas.

Assim, em sintonia com a perspectiva funcional, foi apresentada por Maria Teresa

Cabré a Teoria Comunicativa da Terminologia – TCT, a qual designou os termos como

unidades linguísticas, permitindo a variação conceitual e denominativa, o caráter polissêmico,

homonímico ou sinonímico dos termos, ou seja, adequando-os às necessidades reais de uso.

De acordo com Cabré (1999), a terminologia é “o conjunto de diretrizes que se

utilizam no trabalho terminográfico”. Ela tem como resultados a pesquisa de vocabulários,

propiciando diferenciar o campo nocional, objetivando delimitar os termos de um domínio

característico, como também proceder a atualização dos mesmos.

E é nessa perspectiva que os estudos terminológicos passaram a se desenvolver e

continuam crescendo a cada dia.

3 Alma e espírito – alguns conceitos

Kardec, em sua introdução a O Livro dos Espíritos (1857), afirma que “Para designar

coisas novas são necessárias palavras novas; assim exige a clareza de uma língua, para evitar

a confusão que ocorre quando a palavra tem múltiplos sentidos”.

Sabendo-se que a língua é um organismo vivo, ativo, e que precisa se adequar às

necessidades reais de uso dos falantes, Kardec (1857) também precisou atribuir distinções e

novos sentidos para diversos termos que ele utilizou em sua codificação. Dentre esses termos,

vamos citar aqui apenas dois: alma e espírito. Começamos demonstrando como eles foram

descritos pelos “espíritos” nas perguntas 76 e 134, respectivamente, de O Livro dos Espíritos.

76 – Que definição se pode dar dos Espíritos?

- Pode-se dizer que os Espíritos são seres inteligentes da Criação. É o ser imaterial e

individual que reside em nós e sobrevive ao corpo.

134 – Que é alma?

111

- Um espírito encarnado.

Que era a alma antes de se unir ao corpo?

- Espírito.

Recorrendo aos dicionários, observamos, por exemplo, que, de acordo com

Nascentes (1955), alma deriva do latim anima, “respiração, vento, vida”. Kardec esclarece a

relevância em explicitar o sentido da palavra alma, em virtude de ser o fundamento de toda

doutrina moral. Por outro lado, elucida o Codificador, fomenta diversas interpretações, pelo

fato de a língua humana carecer de vocabulário com sentido específico.

Abbagnamo (2003, em seu Dicionário Filosófico, define alma como,

O princípio da vida, da sensibilidade e das atividades espirituais (como quer que

sejam entendidas e classificadas), enquanto constitui uma entidade em si, ou

substância. O uso da noção de alma está condicionado pelo reconhecimento de que

certo conjunto de operações ou de eventos, chamados "psíquicos" ou "espirituais",

constituem manifestações de um princípio autônomo, irredutível, pela sua

originalidade, a outras realidades, embora em relação com elas. Que a alma seja

incorpórea ou tenha a mesma constituição das coisas corpóreas é questão menos

importante, já que a solução materialista em geral se fundamenta, assim como a

solução oposta, no reconhecimento da alma como substância. (ABBAGNAMO,

2003)

Voltaire ([1764] 2008), em seu Dicionário Filosófico, apresenta diversos

pensamentos relacionados aos conceitos na época relativos à lexia alma. Ele enfatiza que

alma era compreendida como origem, causa e a própria vida, o que nos leva à concepção da

“morte da alma” com o cessar a vida biológica. Também a define como “[…] alma é um

termo vago, indeterminado, que exprime um princípio desconhecido de efeitos conhecidos,

que sentimos em nós.”, e, no sentido literal, derivando do latim anima ’o que anima’. Este

filósofo também indaga se a alma inteligente é espírito ou matéria; se foi criada antes do

corpo físico; se sai do nada em nosso nascimento; se, depois de nos ter animado um dia na

Terra, ela sobrevive após a morte do corpo físico. Enfatizou que a humanidade é devedora do

Velho Testamento, por nos ter revelado a imortalidade da alma, ao tempo em que destacou

que Igreja Católica definiu que a alma é imaterial.

Na introdução de O Livro dos Espíritos, percebemos o registro do termo alma com

tripla significação. Para os materialistas, a alma é o advento da vida material, é desprovida de

essência e acaba no mesmo instante que a vida orgânica. “Neste sentido e por comparação

112

dizem de um instrumento quebrado, que não produz mais som, que ele não tem alma. De

acordo com esta opinião a alma seria um efeito e não uma causa” (KARDEC, 1857).

Para o codificador, outras pessoas creem que haveria no Universo uma única alma,

que distribuiria centelhas para os seres providos de inteligência, sendo que, após a morte,

essas centelhas retornariam à origem, se reintegrando ao todo, “como os córregos e os rios

retornam ao mar de onde saíram” (KARDEC, 1857). Assim, de acordo com esse ponto de

vista, Deus seria a alma universal e cada ser humano um pequeno fragmento do Todo, ideia

que corresponde a uma variação da Doutrina Panteísta.

Para outros ainda, a alma é um ser inteligente que preserva a individualidade após o

fim da vida biológica, ou seja, sobrevive à morte do corpo físico, é o pensamento dos

espiritualistas.

Esta tripla significação, segundo Kardec (1857), decorre do equívoco da língua, que

dispõe de uma palavra para designar três pontos de vista distintos; logo necessitariam de

termos diferentes para estabelecer tais desigualdades.

Em virtude da necessidade de utilizar com frequência a palavra alma em sua obra,

Kardec deliberou estabelecer um sentido, objetivando eliminar dúvidas e evitar enganos,

conforme resposta à pergunta 134 de O Livro dos Espíritos: “a alma é um espírito encarnado”.

Já a lexia espírito, ainda em Nascentes (1955), observamos que deriva do latim

spiritus “alma, coragem, vigor, sopro, respiração”, relacionado a spirare, “respirar”.

O espírito é o princípio inteligente do Universo, é onde ficam depositados todos os

conhecimentos construídos durante as diversas encarnações. O atributo primordial do espírito

é a inteligência, sendo que para expressá-la no plano material necessita-se do corpo físico.

Segundo Kardec, para o espírito construir a própria aprendizagem, é necessário retornar à

vida física e material, em outro corpo, sem nenhuma correlação com o anterior. Espírito,

enfim, pode ser entendido então como a alma após o desligamento do corpo físico.

Retornando a Abbagnamo (2003), em seu Dicionário de Filosofia, ele atribui cinco

definições diferentes para o termo espírito: a primeira é “alma racional ou intelecto”

significado esse que vigora na Filosofia Moderna e Contemporânea, como também na

linguagem popular; o segundo, pneuma, derivado do grego, significando o sopro animador. O

113

autor cita que Kant fez uso deste termo com este sentido em sua teoria estética, conforme

citado nesta passagem: "No significado estético, espírito é o princípio vivificante do

sentimento”. Mas aquilo com que esse princípio vivifica a alma, a matéria de que se serve, é o

que confere impulso finalista à faculdade do sentimento e a insere num jogo que se alimenta

de si mesmo e fortifica as faculdades de que resulta”. A terceira definição é “substâncias

incorpóreas, ou seja, anjos, demônios e almas dos mortos”; a quarta, “matéria sutil ou

impalpável que é a força animadora das coisas” e a quinta, vinculada mais estreitamente com

o significado “alma racional, intelecto”, esse termo às vezes significa disposição ou atitude,

como nas célebres expressões atuais “espírito religioso”, “espírito esportivo” etc.

Ressaltamos que René Descartes, no seu livro “O Discurso do Método” fez uso desse

termo com o significado de “capacidade pensante”, quando registrou o “Penso, logo existo” -

"Puisque je doute, je pense; puisque je pense, j'existe" - ou seja, fazendo referência a um

espírito, um intelecto ou uma razão, frase esta que foi um marco no Iluminismo, pondo a

razão humana como a maneira absoluta de existência.

A Terminologia tem como objeto o termo técnico-científico. O termo é a lexia que

compõe a sentença lexical dos saberes especializados. Desse modo, tomando como referência

o léxico especializado, as áreas técnicas, científicas e tecnológicas expressam e comunicam o

conhecimento que elas produzem. Para Krieger (2011), a Semântica tem proximidade com a

Terminologia em virtude da relevância do plano conceitual que compõe as terminologias. A

Lexicologia, a Lexicografia e a Terminografia, em razão de possuírem similaridades,

correlacionam-se à Terminologia, haja vista que juntas formam as Ciências do Léxico.

Cabré (1999) defende a ideia de que o usuário de uma língua não detém uma dupla

competência linguística, a especializada e a geral, considerando que as terminologias integram

os signos da linguagem natural. Porém, existem diferentes enfoques no que tange ao objeto de

estudo da Terminologia. Enquanto a Lexicologia e a Lexicografia se ocupam do estudo e da

descrição do léxico geral (palavras) de determinada língua, a Terminologia trata do estudo e

da descrição do léxico especializado (termos) de determinada linguagem especializada.

Léxico deriva do grego lexis ‘palavra’. Segundo Saussure (1986), pode também ser

utilizado no sentido de ‘dicionário de uma língua’, ou seja, conjunto de palavras ordenado,

“tesouro de palavras, disposto como está num dicionário”. É parte da língua e guarda o saber

linguístico de um povo. Logo, abrange o saber que é socializado pelos usuários de uma

114

língua. Dessa forma, qualquer coisa que faça parte da vida humana tem um nome, e esse

nome integra o léxico.

De acordo com Abbade (2006):

Estudar o léxico de uma língua é enveredar pela história, costumes, hábitos e

estrutura de um povo, partindo-se de suas lexias. É mergulhar na vida de um povo

em um determinado período da história, através do seu léxico. Apesar de pouco

estudado até então, o estudo lexical das línguas é deveras importante e necessário

para desvendar os inúmeros segredos da nossa história social e linguística, segredos

estes que podem ser desvendados pelo estudo e análise do léxico existente nessas

línguas em momentos específicos da história de cada povo. (ABBADE, 2006, p.

213-214)

Para Ullmann (1964, p. 63 e 64), a palavra desempenha um papel de tal modo

decisivo na estrutura da língua, que necessitamos de um ramo especial da linguística para

examiná-la em todos os seus aspectos, a Lexicologia. Esta ciência não trata apenas das lexias,

mas também de todos os tipos de morfemas que entram na sua composição. Segundo o autor,

a Lexicologia trata de palavras e morfemas que as formam, isto é, de unidades significativas.

É através do uso das palavras que se propicia ao falante criar frases e textos, como também

registrar a cultura de uma época, através da escrita.

Ullmann (1964) defende a ideia de que

[...] O nome é a configuração fonética da palavra; o ‘sentido’ é a informação que o

nome comunica ao ouvinte; a coisa [o referente] é o aspecto ou o acontecimento

não-linguístico acerca do qual falamos. [...] Essa relação recíproca entre o som e o

sentido é o que chamo de significado da palavra (ULLMANN, 1964, p.119).

A Lexicologia é a ramificação da Linguística que trata do estudo científico do léxico,

sendo uma das suas incumbências sinalizar para a possiblidade de análises de um conjunto de

palavras de determinado sistema, ou de um grupo de indivíduos. Abarca áreas como a

formação de palavras, a etimologia, a criação e empréstimos de palavras, a estatística

lexical, e relaciona-se necessariamente com a fonologia, a morfologia, a sintaxe e em

particular com a semântica. Ciência que tem como finalidade basilar a análise da palavra, a

categorização lexical e a estruturação do léxico.

115

4 Conclusão

Para Kardec (1857), a palavra alma é usada para referir-se às mais diferentes coisas.

Alguns denominam alma como princípio da vida, e nesse sentido pode-se dizer de forma

figurada que a alma é uma centelha anímica emanada do Grande Todo. Essa ideia inclui que

independente da matéria ela conserva a sua individualidade. É a este ser que se chama

igualmente alma. E neste sentido pode-se dizer que a alma é um Espírito encarnado, que se

expressa num corpo material. Dando à alma diferentes definições, os Espíritos falaram

segundo as aplicações que faziam da palavra e segundo as ideias terrestres de que estavam

ainda mais ou menos imbuídos. .

A Filosofia define Espírito como alma racional ou intelecto, pneuma ou sopro

animador, ser incorpóreo, matéria sutil ou impalpável e capacidade pensante. Contudo,

segundo Kardec (1857), Espírito é a individualização ou humanização do princípio inteligente

do Universo, ser que pensa e sobrevive à morte do corpo físico e que preserva a sua

personalidade, ou seja, características individuais e consciência de si após o desenlace. Assim,

de acordo com a Doutrina Espírita, o corpo é um envoltório, uma vestimenta que o espírito

utiliza nos diversos períodos de aprendizados das encarnações, com a finalidade de progredir.

A língua é dinâmica, viva, daí estar em constante transformação, o que pode ser

notada através das novas palavras que continuamente são criadas, visando atender as

necessidades de uso. Quando algo novo é descoberto, é necessário criar novas palavras ou

atribuir novos sentidos às palavras existentes para que haja compreensão. Novas lexias são

criadas de acordo com os diversos contatos entre os seres pertencentes à comunidade

universal. Assim, está sujeita a transformações e se modifica no tempo e se diversifica no

espaço.

Dessa maneira, lexias comuns como Alma e Espírito, apresentam conceitos

específicos quando estão inseridos em uma especialidade. E o léxico vai sobrevivendo em

sua dinamicidade constante.

116

5 REFERÊNCIAS

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Maria & JESUS, Ana Maria Ribeiro de. Os estudos lexicais em diferentes perspectivas –

livro eletrônico, vol. V; orgs. São Paulo: FFELCH/USP, 2015.

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social à luz da lexicologia. In: Diferentes olhares sobre o português brasileiro. Orgs.

LOPES, Norma & outros. Feira de Santana: UEFS, 2014.

ABBADE, Celina Márcia de Souza. O estudo do léxico. In: TEIXEIRA, Maria Conceição;

QUEIROZ, Rita de Cássia; SANTOS, Rosa Borges dos (Org.). In: Diferentes perspectivas

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e Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 354.

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DESCARTES, René. Discurso do Método. Tradução Maria Ermantina Galvão. S. Paulo,

Martins Fontes: 2001. Disponível em:

http://www.josenorberto.com.br/DESCARTES_Discurso_do_m%C3%A9todo_Completo.pdf

#page=15&zoom=auto,-55,526. Acessado em 15/11/16.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 166ª ed. Trad. de Salvador Gentile; ver. Elias

Barbosa. Araras: IDE, [1857] 2006.

KRIEGER, Maria da Graça. Terminologia – uma entrevista com Maria da Graça Krieger.

ReVel, v. 9, n. 17, 2011. Disponível em:

www.revel.inf.br/files/entrevistas/revel_17_entrevista_maria_graca_krieger.pd

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UFRGS/Humanitas, 2001.

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Filosofia e Ciências Espíritas, v. 5. Brasília: FEB, 2013. Disponível em:

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Livraria Acadêmica, 1955. Disponível em:

https://archive.org/stream/AntenorNascentesDicionaroEtimologicoDaLinguaPortuguesaTomo

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Fundação Calouste Gulbenkian, 1964.

VOLTAIRE. Dicionário filosófico. Tradução de Ciro Mioranza e Antonio Geraldo da Silva.

São Paulo: Editora Escala, 2008. Disponível em:

117

http://www.cairu.br/biblioteca/arquivos/Filosofia/Dicionario_Filosofico_Voltaire.pdf.

Acessado em 15/11/16.

118

FORMAS DE INDETERMINAÇÃO DO SUJEITO NA FALA DOS

SOTEROPOLITANOS: UM OLHAR SOBRE OS DADOS DO ALIB

Tassila Ferreira Vale Guimarães13

Introdução

Este presente artigo objetiva fazer um rápido panorama das ocorrências de

indeterminação de sujeito na fala dos soteropolitanos. Através dos pressupostos teórico-

metodológicos da Sociolinguística Variacionista, foram analisadas 8 entrevistas do Atlas

Linguístico do Brasil (ALIB), sendo 4 informantes do nível fundamental e 4 falantes do

ensino superior. Outras variáveis também analisadas neste trabalho são o sexo e duas

diferentes faixas etárias (de 18 a 30 anos e de 50 a 65 anos). As respostas dos falantes aos

questionários fonético-fonológicos e semântico-lexicais propostos pelo atlas proporcionaram

material suficiente para a realização desta pesquisa. Além daquelas ocorrências de

indeterminação de sujeito respaldadas pela gramática normativa, serão apresentadas outras

formas observadas nos dados dos soteropolitanos.

1 O que dizem sobre a Sociolinguística?

A Sociolinguística Variacionista é uma abordagem linguística que visa estudar a

língua em seu uso real, relacionando sua variação e heterogeneidade a fatores linguísticos e

extralinguísticos, tais como idade, sexo, grau de instrução do falante, aspectos históricos,

culturais ou até mesmo a organização política, econômica e social das comunidades de fala

(MARTELOTTA, 2015).

A missão dos estudos sociolinguísticos consiste em desmascarar a aparente

assistematicidade do suposto caos linguístico (TARALLO, 2001) que é o universo das

variações, levantando hipóteses através de um árduo trabalho com gravações, buscando o

contexto ou fatores condicionantes (linguísticos ou extralinguísticos) para a realização de uma

13 Mestranda do PPGEL/UNEB.

119

determinada variável e, após o levantamento dos dados, chegar a conclusões a respeito do

caráter variacionista do fenômeno linguistico (LABOV,1972).

Para a Sociolinguística, os fatores sociais estão estreitamente ligados à variação

linguística. O uso de uma determinada variante por uma classe social mais prestigiada torna

tal ocorrência menos suscetível à marginalização do que àquela comumente utilizada por

falantes de classe mais baixa. Se falantes da variedade de prestígio passam a adotar variantes

menos prestigiadas, Labov (1972) considera tal fenômeno um forte indicativo de mudança

linguística em curso.

O grau de escolaridade também é uma variável que deve ser considerada. Pessoas

que frequentaram menos a escola têm, na sua maioria, um vernáculo mais preservado, livre de

influências das normas pré-estabelecidas, apresentadas no ambiente escolar. Quanto menos

escolarizado é o falante, maior a chance de ouvir dele o português menos monitorado e

distante de influências externas.

A faixa etária é outra variável que comumente explica a variação linguística. Estudos

mostram (LABOV, [1964]1974) que, quanto mais jovem é o falante, maior o uso da

linguagem inovadora. Em contrapartida, se este jovem for mais escolarizado, é possível que

prefira variantes mais privilegiadas, devido a seu acesso à norma culta da língua trabalhada

nas escolas.

O sexo dos falantes também interfere nas escolhas linguísticas. A mulher geralmente

adota menos variantes estigmatizadas, devido a seu pai social de modelo para os filhos, dentre

outras, enquanto os homens são maiores difusores de tais variantes.

O foco de estudo da teoria laboviana é o vernáculo, uso informal da língua em

situações cotidianas, sem a preocupação com o uso da norma padrão. Uma barreira para os

estudos sociolinguísticos é a consciência do falante de que está sendo gravado, bem como a

interferência da figura do pesquisador, que deve ser minimizada em especial no momento da

entrevista. Saber, no caso do entrevistado, que sua fala será analisada já é um tanto

constrangedor, mas a presença de um gravador e a figura do próprio entrevistador deixa a

situação ainda mais vexatória. Por esta razão é sugerido que o pesquisador apresente um

questionário previamente preparado, que englobe perguntas feitas para estimular narrativas

pessoais, de modo que o entrevistado fique à vontade para responder às perguntas a ponto de,

se possível, esquecer que está sendo gravado.

120

Com questionários de natureza fonético-fonológica, semântico-lexical,

morfossintática, além de questões de pragmática e temas para discursos semidirigidos, o Atlas

Linguístico do Brasil (ALIB), acervo utilizado nesta pesquisa, tem como objetivo traçar um

panorama linguístico do português falado no Brasil. Com dois volumes já publicados, o atlas

possui uma rede de pontos de 250 localidades espalhadas por todo o país. O presente trabalho

visa à analise do vernáculo dos 8 falantes entrevistados da cidade de Salvador, sendo 4

homens e 4 mulheres, de escolaridades distintas (ensino fundamental e superior) e de duas

faixas etárias diferentes (de 18 a 30 anos e de 50 a 65 anos).

2. O sujeito indeterminado, a Gramática Normativa e o vernáculo soteropolitano

Quando o falante não sabe quem praticou a ação do enunciado por ele proferido ou

simplesmente não quer revelar o sujeito agente, usa uma construção conhecida como sujeito

indeterminado. A gramática normativa (CUNHA, 2007) apresenta como forma padrão de

indeterminação do sujeito apenas aquelas consideradas de prestígio, a saber: (i) o verbo na

terceira do plural ou (ii) o verbo na terceira pessoa do singular, com o pronome ‘se’.

1) Contaram-me, quando eu era pequenina, a história duns náufragos, como nós.

(CUNHA, 2007, p.128)

2) Comia-se com a boca, com os olhos, com o nariz. (CUNHA, 2007, p.128)

Porém, a partir dos dados do ALiB analisados nessa pesquisa, foi possível identificar

outras formas de indeterminação do sujeito na fala dos falantes de Salvador, além das

supracitadas.

O Quadro 1 apresenta a distribuição dos falantes das 8 entrevistas.

Quadro 1: Distribuição dos informantes por escolaridade, sexo e faixa etária.

Falantes Ensino fundamental Ensino superior

Faixa etária 1

(dos 18 aos 30 anos)

1 Homem 1 Homem

1 Mulher 1 Mulher

Faixa etária 2

(dos 50 aos 65 anos)

1 Homem 1 Homem

1 Mulher 1 Mulher

121

Durante as entrevistas, foram identificadas 278 ocorrências que apresentavam a

indeterminação do sujeito ao responder os questionários fonético-fonológico e semântico-

lexical. Os falantes referiram-se aos sujeitos com expressões tidas como de prestígio, tais

como:

3) “Dizem que é matador.”

4) “Chama-se boi capado.”

Mas na maioria das ocorrências o sujeito é expresso por formas nominais ou outras

estruturas gramaticais não referidas pela tradição gramatical.

O número total das ocorrências está representada no gráfico 1:

Gráfico 1: Formas de indeterminação do sujeito na fala dos soteropolitanos

Muitos gramáticos sugerem que a forma padrão de indeterminação do sujeito é o uso

do verbo na terceira pessoa do plural, quando não há referência aos pronomes eles ou elas, ou

a qualquer outro sintagma nominal no plural anteriormente citado no enunciado. Outra forma

padronizada é usar o verbo intransitivo ou outro que necessite de complemento

preposicionado, desde que acompanhado da partícula se em ênclise (ROCHA LIMA, 2008).

76

37

39

124

Formas de indeterminação do sujeito na

fala dos soteropolitanos

Expressões nominais

Verbo na terceira pessoa do

plural

Verbo na terceira pessoa do

singular, com a presença da

partícula "se"

Verbo na terceira pessoa do

singular, sem a presença da

partícula "se"

Verbo no infinitivo

122

Ainda no presente trabalho foram encontrados registros do uso proclítico da partícula ‘se’,

como no exemplo a seguir:

5) “Se compra a dúzia”.

O gráfico 2 e a tabela 1 apresentam o uso da forma padrão de indeterminação do

sujeito na fala dos soteropolitanos por faixa etária, por escolaridade e por sexo dos

informantes:

Gráfico 2: Uso da forma padrão de indeterminação do sujeito

Variáveis independentes Variante: Verbo na

terceira pessoa do plural

Variante: Verbo na

terceira pessoa do

singular, acompanhado

da partícula ‘se’

Homens

Mulheres

18,9%

81,1%

33,3%

66,6%

Faixa etária 1

Faixa etária 2

27,1%

72,9%

28,2%

71,8%

Ensino fundamental

Ensino superior

29,7%

70,3%

10,2%

89,8%

Tabela 1: Frequências das variantes de prestígio x sexo, faixa etária e escolaridade

0

5

10

15

20

25

30

35

VERBO NA TERCEIRA PESSOADO PLURAL

VERBO NA TERCEIRA PESSOADO SINGULAR,ACOMPANHADO DAPARTÍCULA "SE"

123

Considerando apenas a variável gênero, observamos um fator interessante. As

mulheres assumem a maior quantidade de ocorrências consideradas de prestígio, constatando

um perfil mais conservador nas escolhas linguísticas. Tal postura pode ser explicada pelo

próprio papel da mulher na sociedade, que tende a querer se firmar através da linguagem e

alcançar um lugar social de mais prestígio (BULHÕES, CARVALHO, LOPES; 2013, p. 13-

14).

Outro fator extralinguístico que deve ser analisado é a faixa etária. Nota-se uma

tendência do uso padrão de indeterminação do sujeito muito maior entre as pessoas mais

velhas (faixa etária 2 - dos 50 aos 65 anos). Geralmente os falantes de idade mais avançada

preferem usar formas mais antigas, o que neste caso são as estruturas menos estigmatizadas

(BRAGA, MOLLICA; 2003, p. 44). Os informantes da faixa etária 2 permaneceram mais

conservadores, realizando a maioria das formas padronizadas da língua.

Em relação à variável escolaridade, a tendência revelada na pesquisa é a preferência

por formas mais escolarizadas como o verbo em terceira pessoa do plural ou na terceira

pessoa do singular, acompanhado da partícula ‘se’ por falantes mais escolarizados, devido ao

contato com a cultura letrada e a variedade culta apresentada no ambiente escolar (COELHO,

2015).

3. Fala-se de outra forma em Salvador

Além das formas de indeterminação do sujeito apontadas pela Gramática Normativa,

os falantes da cidade de Salvador dão preferência a estruturas desconsideradas pela norma

padrão da língua. Há ocorrências de sintagmas nominais, com ou sem núcleo aparente (6 e 7);

verbo na terceira pessoa do singular sem a presença da partícula ‘se’(8) e verbo no infinitivo

(9).

6) “O povo chama de toró.”

7) “Uns chamam de ignorante, outros de analfabeto.”

8) “Chama mãe de leite.”

9) “Procurar o pessoal para informar.”

O gráfico 3 representa o contraste das formas de prestígio em relação às formas mais

estigmatizadas, revelando a predominância daquelas que a norma padrão desconsidera.

124

Gráfico 3: Formas de prestígio x outras formas de indeterminação

Das formas de indeterminação não preconizadas pela Gramática Normativa, a mais

comum foi o uso da terceira pessoa do singular, sem o acompanhamento da partícula ‘se’, a

saber 124 das 278 ocorrências. A relação de tal variante relacionada às variáveis

independentes revela-se na tabela 3:

Variante: verbo na terceira pessoa do singular, sem a partícula ‘se’

Sexo/ Gênero Homens

54,8%

68 ocorrências

Mulheres

45,2%

56 ocorrências

Faixa etária Dos 18 aos 30 anos

31,4%

39 ocorrências

Dos 50 aos 65 anos

68,6%

85 ocorrências

Grau de escolaridade Ensino fundamental

48,4%

60 ocorrências

Ensino superior

51,6%

64 ocorrências

Tabela 2: Frequência da 3ª pessoa sem o se x variáveis sexo, faixa etária e escolaridade

Formas de prestígio X outras formas de indeterminação

Formas de prestígio (verbo naterceira pessoa do plural ouverbo na terceira pessoa dosingular, acompanhado dapartícula 'se')

Outras formas deindeterminação (expressõesnominais; verbo na terceirapessoa do singular, sem apresença da partícula 'se' ouverbo no infinitivo)

125

Nota-se que não há muita diferença entre homens e mulheres quanto à variante em

questão, bem como o grau de escolaridade do falante. Independente do sexo do informante, ou

do contato com a forma padrão em ambiente escolar, os soteropolitanos têm realizado cada

vez mais o verbo em terceira pessoa, desacompanhado da partícula ‘se’ para indeterminar o

sujeito dos enunciados. Outra questão a ser observada é que as pessoas mais jovens utilizam

muito menos tal variante, em relação às pessoas mais idosas. Mesmo que o esperado seja o

falante jovem utilizar mais a forma não padrão, por ser um pouco mais descuidado e menos

conservador nas escolhas linguísticas, esta pesquisa revelou o oposto: a ocorrência dessa

forma de indeterminação, diferente daquelas consideradas padronizadas é muito maior entre

as pessoas mais idosas.

Ainda diferentes da forma padrão, as ocorrências de expressões nominais estão

presentes na fala dos soteropolitanos.

Gráfico 4: As expressões nominais x variáveis independentes

A seguir, analisam-se as estruturas sintáticas das expressões nominais de

indeterminação. A tabela 3 apresenta tipos de estrutura e percentuais de utilização no corpus

observado.

0

10

20

30

40

50

60

Sexo/GêneroHomem/Mulher

Faixa etária 1/ Faixa 2 Grau de escolaridadeEnsino fundamental/

Superior

HOMEM

MULHER

FE 1

FE 2

FUND

SUP

126

Dentre as estruturas sintagmáticas das expressões nominais reveladas durante a coleta de

dados destacam-se:

Estrutura sintagmática Exemplos de ocorrências Percentual das

ocorrências

SN= DET + N “As pessoas, né?”

“O povo chama de peito, né?”

“O pessoal bebe dentro, lá em

Periquitinho.”

“Muita gente chama de

mexeriqueira.”

“Algumas pessoas chamam de

balão.”

“Todo mundo já sabe que é no

mês de dezembro.”

13,1%

10,5%

7,8%

5,2%

6,5%

5,2%

SN= DET + DET + N “Muita pouca pessoa conhece por

vara.”

1,3%

SN= DET + N (não

aparente)

“Umas chamava parteira

também.”

“Alguns dizem pra dar a luz...”

“Uns chama peito, outros chama

seio.”

“Outros diz que já viu a mula.”

2,6%

3,9%

7,8%

1,3%

SN= DET + DET + N

(não aparente)

“ Os outros dizem que tá

chovendo granito, né?”

“Cada um dá um nome.”

2,6%

5,2%

SN= N “ Alguém falou aí.”

“Fulano deu uma gargalhada.”

“Pessoas que falam só pra eles

entenderem.”

“Nego nem tá se importando.”

“Eles cortam assim, em cachos.”

3,9%

3,9%

2,6%

7,8%

5,2% Tabela 3: Percentual das estruturas sintagmáticas das expressões nominais

Além das formas já apresentadas até aqui, uma outra variante foi encontrada durante a

pesquisa: o uso do verbo no infinitivo para marcar indeterminação do sujeito.

10) Procurar o pessoal para informar.

Quando a informante idosa com baixa escolaridade decide iniciar a sentença com o

verbo no infinitivo, ela não deixa claro quem vai procurar o pessoal para pedir informações.

127

4. Considerações finais

É muito grande o número de variantes utilizadas por falantes da cidade de Salvador

para indicar a indeterminação do sujeito. O padrão normativo não contempla tal variedade, ao

apresentar apenas duas possibilidades para essa construção sintática, a saber o verbo na

terceira pessoa do plural ou do singular, acompanhado da partícula ‘se’. A presente pesquisa

revelou que o número de ocorrências menos prestigiadas é muito maior. O uso de formas

nominais e o verbo na terceira pessoa do singular, sem a partícula ‘se’ sobrepõe-se às formas

de prestígio, alcançando todas as variáveis independentes, pois as ocorrências independem do

sexo, faixa etária ou grau de escolaridade dos falantes.

REFERÊNCIA

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da variação. São Paulo: Contexto, 2003.

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português brasileiro. Sociolinguística parimétrica. Sociofuncionalismo. Feira de Santana:

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COELHO, Izete Lehmkuhl. Para conhecer sociolinguística. São Paulo: Contexto, 2015.

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MARTELOTTA, Mário Eduardo (org.). Manual de Linguística. 2. Ed., 3ª reimpressão. São

Paulo: Contexto, 2015.

TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguística. 7. Ed. São Paulo: Ática, 2001.

SITE RELACIONADO: https://ALiB.ufba.br/

128

ELEMENTOS PERSUASIVOS DO DISCURSO RETÓRICO DO PRESIDENTE

MICHEL TEMER

Fredson Augusto Silva Oliveira14

Resumo: Neste trabalho, pretendemos aplicar pressupostos teóricos metodológicos da Teoria da

Argumentação e da Retórica sobre o Éthos, o Páthos e o Lógos para estudar as técnicas

argumentativas de Michel Temer. O corpus deste estudo é constituído do seu primeiro

pronunciamento como presidente da república, ocorrido no dia 31 de agosto de 2016 e transmitidos

pela mídia. O discurso está registrado em vídeo e foi transcrito para a realização desta análise. A

política faz parte do quotidiano das pessoas e torna-se ainda mais relevante se considerado o contexto

de efervescência política que o Brasil vem vivenciando desde as manifestações de rua realizadas em

2013 que culminou com o impeachment de Dilma Rousseff, um processo que divide a opinião pública.

A análise do corpus mostra que Michel Temer já tinha conhecimento de um Éthos pré-discursivo

negativo por parte de uma parcela do seu auditório coletivo e visou a suplantá-lo. A análise mostra

também que o orador apelou para o páthos ao evocar sentimentos coletivos positivos do auditório, e

utilizou vários argumentos para construir o seu discurso, conquistar a adesão do auditório e sustentar a

sua tese principal. O discurso do presidente apresentou também uma incompatibilidade evidenciada

por proposições/objetivos contraditórios.

Palavras-chave: Retórica. Michel Temer. Discurso político. Argumentação

Résumé: Dans ce travail, nous avons l'intention d'appliquer les fondements théoriques et

méthodologiques de la théorie de l’Argumentation et de la Rhétorique à propos de Ethos, Pathos et

Logos pour étudier les techniques argumentatives de Michel Temer. Le corpus de cette étude est

composé de son premier discours en tant que président de la République, qui a eu lieu le 31 août 2016

et a été retransmis par les médias. Le discours est enregistré sur vidéo et a été transcrit pour cette

analyse. La politique fait partie de la vie quotidienne des gens et devient encore plus pertinente si on

considère le contexte d'effervescence politique que le Brésil a connu depuis les manifestations en 2013

et qui a conduit à la destitution de Dilma Rousseff, un processus qui divise l'opinion publique.

L'analyse de corpus montre que Michel Temer était déjà au courant d'un Ethos prédiscursif négatif par

une partie de son auditoire collectif et a cherché à le supplanter. L'analyse montre également que

l'orateur joue sur le pathos pour évoquer des sentiments collectifs positifs de l'auditoire, et utilise

divers arguments pour construire son discours, pour gagner l'adhésion de l’auditoire et pour soutenir sa

thèse principale. Le discours du président a également présenté des contradictions entre propositions/

objectifs.

Mots-clés: Rhétorique. Michel Temer. Discours politique. Argumentation.

14 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia

(PPGEL/UNEB), Salvador, Bahia. E-mail: [email protected]

129

INTRODUÇÃO

Neste trabalho, apresentamos os elementos persuasivos do discurso retórico de Michel

Temer a partir da análise do seu primeiro pronunciamento como presidente da república,

exibido pela mídia, no dia 31 de agosto de 2016. O discurso está registrado em vídeo e foi

transcrito para a realização desta análise (formato integral em anexo). Com base na Teoria da

Argumentação e da Retórica, consideraremos as argumentações centradas nas três dimensões

da relação retórica que giram em torno do ato discursivo persuasivo: no orador (éthos), no

auditório (páthos) e no discurso propriamente dito, utilizado pelo presidente (lógos). Este

trabalho é composto por três seções. Na primeira seção, discorreremos, brevemente, sobre

éthos, páthos e lógos. A segunda seção será dedicada à análise dos elementos envolvidos na

construção do éthos prévio do presidente Michel Temer. Por fim, na terceira seção,

apresentaremos a análise dos principais tipos de argumentos utilizados pelo presidente Michel

Temer para pôr em destaque as suas virtudes de caráter (éthos), para provocar sentimentos

que mobilizem e envolvam o seu auditório (páthos), para construir o seu discurso, sustentar as

suas teses e provocar a adesão do seu auditório (lógos).

1 Éthos, Páthos e Lógos

De acordo com Perelman; Olbrechts-Tyteca (2005, p. 363) o éthos resume-se “à

impressão que o orador, por suas palavras, dá de si mesmo”. Para Meyer (2007), o éthos está

relacionado ao caráter do orador, a sua história de vida, a suas escolhas e a um conjunto de

virtudes morais e de boa conduta que construirão a sua própria imagem e esta, por sua vez,

aliada aos argumentos que ele utiliza em seu discurso, poderá ou não lhe conferir autoridade

diante do seu auditório. Autoridade, neste sentido, é entendida como uma qualidade daquele

que fala porque sabe o que fala e o éthos, portanto, seria o fim dos questionamentos.

Nessa perspectiva, é importante ressaltar que a imagem do orador não esta somente

atrelada ao seu discurso, mas pode ser construída também através do seu estilo, de como ele

se apresenta publicamente e a todas as informações prévias que seu auditório tem sobre ele.

Segundo Maingueneau (2008), o éthos está relacionado ao ato enunciativo, mas também

aquilo que o público constrói como representação do éthos daquele que enuncia, antes mesmo

de ele falar. Maingueneau estabelece, portanto, uma distinção entre éthos discursivo (aquele

130

construído durante a enunciação) e éthos pré-discursivo (aquele construído antes mesmo da

enunciação). Seria o éthos discursivo de Michel Temer aquele construído durante o seu

primeiro pronunciamento como presidente da república e o éthos pré-discursivo (ou éthos

prévio) aquele construído por seu auditório antes da mídia exibir o referido discurso.

O orador, antes de enunciar, precisa tomar conhecimento do éthos prévio que permeia

o imaginário do seu auditório para, finalmente, compor um discurso capaz de, conforme o

caso, modificar ou controlar esse éthos, um discurso capaz de diminuir a possível distância

existente entre eles, aumentando os aspectos positivos e minimizando os aspectos negativos.

É importante salientar que esse jogo que o orador faz com a defasagem entre os dois éthos

(MEYER 2007) pode ocorrer também no momento da enunciação, durante a qual ele tenta

modificar e/ou controlar o éthos imanente do auditório, aquele que é construído enquanto o

orador fala. Entretanto, no caso do discurso selecionado para compor o corpus deste trabalho

(um pronunciamento registrado em vídeo), o tipo de relação que se apresenta é aquele

existente entre o éthos discursivo e o éthos prévio, ou seja, entre a imagem criada por Michel

Temer durante o seu discurso e a possível imagem prévia que o seu auditório coletivo15 faz

dele.

Segundo Reboul (2004, p. 48), o páthos “é um conjunto de emoções, paixões e

sentimentos que o orador deve suscitar no auditório com seu discurso” e, assim como o éthos,

tem natureza afetiva, ao contrário do lógos que tem natureza racional. De acordo com Meyer

(2007, p. 36), “se o éthos remete às respostas, o páthos é a fonte das questões e estas

respondem a interesses múltiplos, dos quais dão prova as paixões, as emoções ou

simplesmente as opiniões” e as paixões agem de forma distinta em cada indivíduo que

compõe o auditório; esses, por sua vez, aderem ou não às teses do orador.

Meyer afirma que “a paixão começa pela expressão subjetiva de uma questão vista sob

o ângulo do prazer e do desprazer: enquanto resposta, ela anula essa questão, transformando-a

em tonalidade particular, subjetiva [...]”. O auditório está sempre questionando o orador,

durante e mesmo antes do ato de fala, e esperando dele as respostas para os seus

questionamentos. Quando a paixão transforma os questionamentos em respostas, ela não

diferencia mais o problema e a indiferença absorve a individualidade daquele que questiona,

pouco importando, portanto, as respostas dadas pelo orador. Meyer compara essa situação a

15 Consideramos o conceito de auditório descrito por Charaudeau (2007, p. 246-247), segundo o qual, o auditório

(páthos) do discurso político é sempre uma entidade coletiva e em grande número, pois a fala do discurso

político circula no espaço público.

131

uma cegueira passional ou ao “estar apaixonado”, quando as características do ser amado são

suplantadas por aquilo de bom que pensamos dele (MEYER, 2007, p. 37).

O orador precisa estar atento às paixões do auditório, pois elas expressam o aspecto

subjetivo de um problema, já que o páthos é também “o conjunto de valores implícitos das

respostas fora da questão, que alimentam as indagações que um indivíduo considera como

pertinente” (MEYER, 2007, p. 39). Se o orador identifica as questões implícitas do páthos,

ele pode aproveitar-se dos valores do auditório, daquilo que ele admira, daquilo de que ele

tem raiva, daquilo que o alegra, daquilo que o entristece, daquilo que ele despreza, daquilo

que ele deseja, enfim, de tudo aquilo que Descartes chamou de “movimentos da alma”

(MEYER, 2007, p. 39).

O lógos é tudo que está em envolvido na argumentação, isso inclui o éthos e o páthos

e inclui também as teses, os argumentos e a linguagem utilizada pelo orador para construir o

seu discurso. Perelman; Olbrechts-Tyteca (2005, p. 21) afirmam que, “como a argumentação

visa obter a adesão daqueles a quem se dirige, ela é, por inteiro, relativa ao auditório que

procura influenciar”. Meyer (2007, p.25) defende que “[...] o éthos, o páthos e o lógos devem

ser postos em pé de igualdade, se não quisermos cair em uma concepção que exclua as

dimensões constitutivas da relação retórica. O orador, o auditório e a linguagem são

igualmente essenciais”. Portanto, a linguagem utilizada pelo orador deve ser adequada ao

auditório e ele deve estar atento aos seus gestos e maneira de se vestir. A argumentação deve

ser bem estruturada, ter rigor, coerência e deve apoiar-se nos princípios e valores

compartilhados pelo auditório, pois um equilíbrio entre o éthos e o páthos é essencial para que

a argumentação ganhe estabilidade. São as emoções positivas emanadas do auditório que

fortalecem o lógos, se as emoções forem negativas, acontece o efeito contrário, a

argumentação enfraquece e o orador pode se desestabilizar.

. Antes de analisarmos os tipos de argumentação centradas no éthos de Michel Temer, no

páthos e no lógos, apresentaremos, nos próximos parágrafos, um breve histórico do seu

percurso político e dos aspectos contextuais em torno da sua posse. Apresentaremos também

trechos de algumas reportagens vinculadas na mídia no Brasil e no exterior (antes e

imediatamente após a sua posse) a fim de evidenciarmos a construção do seu éthos prévio.

132

2 A construção do éthos prévio de Michel Temer

A revista Época do dia 16 de maio de 2016 publicou a reportagem intitulada Tudo

sobre Michel Temer, disponível na sua versão digital e atualizada no dia 31 de agosto do

mesmo ano, na qual apresenta uma breve biografia do presidente, cujos principais trechos

elencamos no quadro a seguir:

Quadro 1 – Biografia de Michel Temer

Nasceu em Tietê, no interior de São Paulo, em 1940.

Graduou-se em Direito pela Universidade de São Paulo (USP).

Formou-se Doutor pela PUC de São Paulo, seguiu carreira no meio jurídico e publicou livros sobre

Direito Constitucional.

Iniciou sua carreira política na década de 1980, anos depois, filiou-se ao PMDB.

Foi eleito deputado na década de 1990, exercendo a função de presidente da Câmara por três vezes e

do PMDB de 2001 a 2015.

Em 2010, formou a chapa com Dilma Rousseff para concorrer, como vice-presidente, ao Planalto. No

primeiro mandato, foi considerado como um "vice decorativo", tendo pouco poder ou influência no

governo.

No segundo mandato Temer assumiu o posto de articulador político do governo, manteve-se nessa

função até agosto de 2015.

A partir do final de 2015, Temer passou a apostar mais ativamente na possibilidade de assumir a

Presidência. Lançou um pacote de propostas chamado "Uma Ponte para o Futuro" em outubro.

Sua carta a Dilma e o vazamento de um áudio em que ele discursa como presidente se transformaram

em munição para o PT e o governo acusá-lo de "traidor", "conspirador" e "golpista".

Na madrugada do dia 12 de maio, o Senado afastou Dilma Rousseff, e Temer assumiu interinamente.

Na tarde de 31 de agosto, o Senado aprovou o impeachment de Dilma, o que fez de Temer

oficialmente presidente.

Seu nome apareceu na Operação Castelo de Areia, que investigava propinas pagas pela empreiteira

Camargo Corrêa. A operação foi suspensa em 2010.

Foi citado na Operação Lava Jato em duas delações premiadas diferentes, acusado de receber R$ 5

milhões do dono da OAS, José Adelmário Pinheiro.

Temer é acusado, ainda, do mesmo crime que iniciou o processo de impeachment contra Dilma: o de

ter feito "pedaladas fiscais" para maquiar as contas públicas. Isso não o impediu de se tornar o

principal articulador de um futuro governo pós-Dilma.

Na vida pessoal, Michel Temer se casou duas vezes. No primeiro casamento, com Maria Célia de

Toledo, teve cinco filhos. Em 2003, casou-se com Marcela Tedeschi Araújo Temer, com quem tem

um filho.

Fonte: Revista Época, 16/05/2016

O portal G1 da Globo.com publicou em 5 de maio de 2016 a reportagem Temer é

ficha-suja e fica inelegível por 8 anos, diz promotora eleitoral, na qual afirma que o TRE de

São Paulo condenou o então vice-presidente por doações pessoais de campanha acima do

limite permitido em 2014, mas que a sua Assessoria alegou erro de cálculo e negou

133

inelegibilidade. Também em 5 de maio de 2016, o site Estadão Política publicou a reportagem

Temer é ficha-suja e está inelegível, diz Procuradoria Eleitoral, na qual afirma que o

presidente (interino à época) foi condenado ao pagamento de multa de R$ 80 mil por

doações ilegais em 2014, ficando, portanto, inelegível por oito anos. A revista Forum também

publicou uma reportagem, em 5 de junho de 2016, tratando da mesma questão: Ficha suja,

Temer está inelegível por oito anos e não cabe qualquer possibilidade de recurso. A revista

afirma que a decisão foi entregue à 2ª Zona Eleitoral e aponta condenação de Michel Temer

em doações de campanha acima do permitido por lei.

Logo após o impeachment de Dilma Rousseff ocorrido em 31 de agosto de 2016, o

jornal GGN, em sua versão online, publicou a seguinte matéria: Mundo fala de “golpe” e

“governo ilegítimo” de Michel Temer. Nela, são apresentas as manchetes (acompanhadas das

imagens) e trechos dos principais jornais e/ou redes de televisão do mundo comentando o

impeachment. Patrícia Faermann, autora da matéria, analisa:

Expressões como "golpe", "injustiça", "governo ilegítimo", "não escolhido nas

urnas", além de históricos de luta de Dilma Rousseff e contra o "sombrio" de

Michel Temer foram usados por jornais de todo o mundo, nesta quarta-feira (31)

em que uma presidente da República foi afastada sem crimes de responsabilidade.

A notícia, ao contrário do que aqui, não foi celebrada pela maioria dos diários, mas

escancarados os bastidores que caem junto com Rousseff.

O quadro abaixo apresenta as manchetes traduzidas e elencadas na matéria publicada

pelo jornal GGN:

Quadro 2 – Manchetes internacionais sobre o impeachment de Dilma Rousseff

JORNAL PAÍS MANCHETES

Spiegel Online Alemanha O novo presidente do Brasil Temer: O homem por trás

da sombra.

BBC Londres Como o Brasil vai olhar para trás com o impeachment

de Dilma?

O Diário português Portugal De vice ‘decorativo’ a chefe de Estado.

El País Espanha Dilma Rousseff destituída definitivamente pelo Senado

do Brasil.

Le Monde França Brasil: a presidente Dilma Rousseff destituída

Al Jazeera Catar Impeachment de Dilma Rousseff: um caso de hipocrisia?

Considerando as informações apresentadas, podemos entender que o éthos prévio do

presidente Michel Temer é composto por sua imagem de cidadão e de homem público, mas

está associado também ao contexto de efervescência política que o Brasil vivencia desde as

manifestações de ruas ocorridas em 2013 e que culminou com o afastamento definitivo de

134

Dilma Rousseff do maior cargo executivo do país, ocorrido durante o segundo ano do seu

segundo mandato. Esse processo dividiu e ainda divide a opinião pública16 devido à eclosão

de uma série de questionamentos de ordem jurídica. O site Consultor Jurídico publicou uma

matéria, no dia 22 de março de 2016, intitulada Contrário ao impeachment, grupo de juristas

faz ato em apoio a Dilma, na qual afirma que os juristas que se manifestaram durante a

reunião mostraram-se indignados com a decisão do Conselho Federal da OAB de apoiar o

impeachment de Dilma. Segundo eles, “a diretoria usurpou a legitimidade da Ordem, que não

lhes pertence, para apoiar um golpe”. No processo de impeachment, Dilma foi acusada de

cometer crime de responsabilidade por conta dos atrasos no repasse do Tesouro a bancos

públicos encarregados da operação financeira de alguns programas sociais, as chamadas

“pedaladas fiscais”, entretanto, segundo o site Mapa da democracia pedaladas fiscais são

“uma maneira de cumprir artificialmente o orçamento, mas não é crime de responsabilidade.

Portanto, não, a presidenta Dilma não é acusada de nenhum crime”.

Pelas razões supracitadas, podemos entender também que o éthos prévio de Michel

Temer é negativo, ao menos por parte de uma determinada parcela da população brasileira - o

seu auditório coletivo ou páthos. Do ponto de vista ideológico, mesmo fazendo parte do

mesmo governo por mais de cinco anos, Michel Temer e Dilma Rousseff possuem

orientações políticas distintas. Ele representa uma política de centro e ela uma política de

esquerda, fator que, durante o processo de impeachment, certamente influenciou também na

construção desse éthos prévio negativo do atual presidente.

Diante do exposto, passamos à análise dos tipos argumentativos presentes na

construção do éthos discursivo de Michel Temer, dos tipos de argumentos utilizados para

mobilizar e envolver o seu auditório (páthos) e dos tipos de argumentos utilizados para

construir o seu discurso, sustentar as suas teses e provocar a adesão do seu auditório (lógos).

3 Michel Temer e a argumentação centrada na tríade retórica: éthos, páthos e lógos

A análise que faremos sobre as técnicas argumentativas utilizadas pelo presidente

Temer para conquistar ou aumentar a adesão do seu auditório tem como base os argumentos

quase-lógicos, os argumentos baseados na estrutura do real, os argumentos que fundam a

estrutura do real e outras técnicas argumentativas descritas por Perelman; Olbrechts-Tyteca

(2005) e Fiorin (2015), além de algumas características do discurso político descritas por

16 Entendemos “opinião pública” como um espaço de discussão no qual os cidadãos trocam suas opiniões pela

via argumentativa (HABERMAS 1989, apud CHARAUDEAU 2006)

135

Charaudeau (2006). Os argumentos quase lógicos lembram os raciocínios lógicos e

matemáticos, mas suas conclusões podem ser contestadas, pois não são logicamente

necessárias. Os argumentos baseados na estrutura do real são aqueles reconhecidos pelo nosso

sistema de significações como pertencentes ao mundo objetivo (relações de sucessão,

hierarquização, coexistência, causalidade). Os argumentos que fundam a estrutura do real são

os meios de organização da realidade, aqueles essencialmente indutivos ou analógicos. Por

fim, outras técnicas argumentativas que podem ser utilizadas dizem respeito àquelas que

apelam para o éthos do orador e também para o páthos. É importante ressaltar que, nas

análises a seguir, consideramos o que dizem Perelman; Olbrechts-Tyteca (2005, p. 221),

segundo os quais “o argumento pode ser compreendido e analisado por diferentes ouvintes e

que as estruturas lógicas podem ser consideradas matemáticas e inversamente”, em outras

palavras, as interpretações e análises podem mudar de acordo com cada ouvinte, leitor e/ou

analista e nossas análises constituem, portanto, possibilidades. Consideramos também que

leitor pode identificar argumentos que não serão, aqui, identificados e elencados.

Antes mesmo do discurso escrito, faremos a análise dos elementos visuais que, embora

não escritos e não falados, fazem parte o referido discurso17. No vídeo (imagem ilustrativa em

anexo), Michel Temer aparece numa sala que lembra um escritório, cujas estantes de tons

sóbrios estão repletas de livros, o que pode nos remeter à ideia de erudição, de um homem

culto que gosta de ler. Do lado esquerdo da tela, podemos ver duas bandeiras simbolizando a

pátria e compondo o cenário solene característico do discurso a ser proferido. Michel Temer

está vestido com cores também sóbrias que se harmonizam com o ambiente, cujo único

contraste é o colorido das bandeiras. As cores sóbrias são conhecidas como aquelas que

transmitem a ideia a discrição, elegância, organização e seriedade. Comparativamente,

podemos perceber uma oposição entre as indumentárias do presidente Michel Temer e as da

ex-presidenta18 Dilma Rousseff que, sobretudo, no primeiro mandato, aparecia publicamente

vestida com cores quentes e vibrantes. Em 24 de fevereiro de 2014, a revista Exame publicou

a matéria Todos os terninhos da presidente(a) Dilma em fotos falando das mudanças no visual

e no vestuário de Dilma ao longo do seu primeiro mandato, os quais, segundo a revista, eram

“alvo de línguas maldosas quando se trata de estilo”. Ainda de acordo com a matéria,

“considerada um pouco desleixada e nada afeita aos detalhes quando se tratava de

17 Primeiro pronunciamento de Michel Temer como presidente efetivo do Brasil 31/08/2016. Vídeo disponível

no canal Youtube no link <https://www.youtube.com/watch?v=hlhi5CfydvI> 18 Preferimos adotar a grafia “presidenta”, pois além de estar correta, do ponto de vista da gramática normativa

de língua portuguesa, consideramos essenciais as discussões em torno das questões de gênero e da garantia dos

direitos das mulheres.

136

moda”, Dilma Rousseff já foi alvo de críticas pela sua maneira de se vestir antes e depois de

ter se tornado presidenta, e foi contestada, inclusive, por usar a cor vermelha, símbolo do seu

partido, o PT.

Outro aspecto que deve ser considerado ao analisarmos o discurso de Temer é a

entonação da sua voz e o tipo de linguagem utilizada. O presidente apresenta boa dicção,

articula bem as palavras, fala com fluidez, clareza e segurança, mantendo sempre um ritmo

pausado, uma entonação mansa e uma linguagem formal, do ponto de vista da variedade

padrão da língua portuguesa. Nesse aspecto, o presidente estabelece mais uma oposição com a

sua antecessora, considerada por muitos, uma oradora ruim. No dia 22 de maio de 2016, o

jornal O Globo publicou a matéria intitulada Linguagem coloquial de Dilma é substituída

pelo estilo formal do interino, dedicada à comparação do modo de falar dos referidos políticos

quando ainda eram presidenta e vice-presidente, respectivamente. De acordo com o jornal:

[...] Dilma se notabilizava por discursos com pouca linearidade, emendando um

assunto no outro e se esquecendo de retomar o pensamento original. As falas eram

marcadas pelo tom professoral, pontuadas com perguntas retóricas [...] A chegada

do presidente interino, com uma fala ultraformal, por oras até rebuscada,

estabeleceu um contraste imediato, resgatando uma linguagem retrô. Além de

mesóclise, é comum nas falas do peemedebista o emprego contumaz da ênclise –

outra colocação pronominal [...] Ele também utiliza com grande frequência as

conjunções adversativas “no entanto” e “entretanto” [...]

As características apontadas pelo O Globo e outros aspectos gramaticais da fala de

Michel Temer podem ser vistos em algumas passagens do discurso que compõe o corpus do

presente trabalho:

O caminho que temos pela frente é desafiador. Conforta-nos, entretanto, saber que o

pior já passou (grifos nossos) [Discurso, linha 23].

Ainda na área de habitação, dobramos o valor do financiamento para a classe média

(grifo nosso) [Discurso, linhas 33-34]

Despeço-me lembrando que 'Ordem e Progresso' sempre caminham juntos (grifo nosso)

[Discurso, linha 50]

Reitero, portanto, meu compromisso de dialogar democraticamente com todos os

setores da sociedade brasileira. Respeitarei a independência entre Executivo, Legislativo

e o Judiciário (grifo nosso) [Discurso, linhas 48-49]

Nos excertos destacados, o presidente Temer utiliza a ênclise nas palavras “conforta-

nos” e “despeço-me” e os marcadores discursivo “ainda” para introduzir uma informação

adicional e “portanto”, para introduzir uma conclusão. Ele utiliza também a conjunção

adversativa “entretanto” para marcar a oposição entre a afirmação anterior “O caminho que

temos pela frente é desafiador” e a afirmação que será anunciada “o pior já passou”. Todos os

137

marcadores discursivos utilizados por Michel Temer ajudam a garantir a coesão entre as

frases e os períodos, o entrelaçamento das ideias elencadas e a linearidade do discurso.

Vestir-se com cores sóbrias, exibir marcas de erudição e ter boa oratória ajudam o

auditório a construir um éthos positivo do orador. O presidente Michel Temer, além de

demonstrar conhecimento desses recursos persuasivos, joga com o éthos negativo de Dilma

Rousseff, aproximando-se de parte do seu auditório coletivo, da parcela da população que

criticava a maneira de vestir e de falar da ex-presidenta. No dia 14 de março de 2016, a revista

Carta Capital publicou a matéria Adesão ao protesto pró-impeachment cresce, mas ato ainda

é elitizado, na qual apresenta os dados de uma pesquisa feita pelo Instituto Datafolha durante

um protesto ocorrido na Avenida Paulista em São Paulo19. A pesquisa, que tinha como

objetivo de traçar o perfil dos protestantes, chegou aos seguintes resultados:

A maior parte dos manifestantes da Paulista era homens (57%, ante 43% de

mulheres), 77% declararam ser de cor branca (ante 63,9% da população da região

metropolitana de São Paulo que se declara branca) e a média de idade girava em

torno de 45 anos, segundo o Datafolha. A renda e a escolaridade dos manifestantes

que compareceram ao ato também é superior à média da população paulistana.

Metade dos participantes do protesto (50%) ganhavam acima de cinco salários

mínimos (4.400 reais), com 24% recebendo entre dez e vinte vezes o valor mínimo

fixado de 880 reais (8800 reais). No caso da escolaridade, 77% dos entrevistados

declarou possuir o Ensino Superior completo - no município, o índice de pessoas

com diploma do Ensino Superior é de 28%.

Não podemos afirmar que os manifestantes pró-impeachment de Dilma Rousseff

foram os mesmos que criticavam sua maneira de falar e vestir, nem que eles fossem (àquela

altura) diretamente favoráveis à posse de Michel Temer como presidente do Brasil, mas, ao

conhecer as características desse auditório (acima descritas), usar uma linguagem comum20 a

ele e ao jogar com o éthos negativo da ex-presidenta, Temer buscou aproximar-se e conquistar

a sua adesão. Em contrapartida, ao expressar-se de maneira muito formal, ele pode ter

afastado a parcela do seu auditório que se identificava com o éthos de Dilma Rousseff

construído, dentre outras formas, pela linguagem mais informal que ela utilizava em seus

discursos. A adesão desse segundo grupo, bem como daqueles que já possuem um éthos

prévio negativo do presidente Temer, ainda pode ter sido conquistada durante o ato de fala.

19 O protesto era contra o governo Dilma e aconteceu no dia 13 de março de 2016. A pesquisa do Datafolha

contou com 2.262 entrevistados. A matéria está disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/politica/adesao-

ao-protesto-pro-impeachment-cresce-mas-ato-ainda-e-elitizado> 20 Abreu (2009) discorre sobre as condições da argumentação, dentre elas a ”linguagem comum” com o

auditório. Segundo ele, “somos nós que temos de nos adaptar às condições intelectuais e sociais daqueles que

nos ouvem, e não o contrário”.

138

Logo no início do seu primeiro pronunciamento como presidente da república, Temer

diz: “Assumo a presidência do Brasil, após decisão democrática e transparente do Congresso

Nacional” (Discurso, linha 2). Esse excerto não constitui nem a tese principal nem uma das teses

de adesão do seu discurso, mas apresenta o primeiro desafio a ser superado por ele face ao seu

auditório coletivo: suplantar o éthos prévio negativo, através daquilo que diz. Ora, se existe um

questionamento, por parte da opinião pública, quanto à legalidade ou não do impedimento de

Dilma Rousseff e, portanto, da sua posse, para legitimar o seu discurso e conquistar a adesão do

seu auditório, o presidente usou um argumento de autoridade (fundamentado na estrutura da

realidade), invocando o Congresso Nacional, órgão constitucional ao qual é dado o poder de

destituir um presidente da república do cargo. O argumento de autoridade apela para o

respeito e para a credibilidade de especialistas reconhecidos na sua área de atuação ou para

alguém ou alguma entidade, da ordem do poder, que exerce comando sobre outros e a que se

pode recorrer (FIORIN, 2015). Entretanto, Fiorin (2015, p. 178) adverte que “o problema

desse tipo de argumento é que o apelo à reverência e ao respeito à autoridade, frequentemente,

é usado para calar o oponente, para silenciar a oposição, para impedir a crítica e o

questionamento”. Os adjetivos “democrática” e “transparente” são recursos linguísticos que

visam a reforçar a credibilidade da decisão tomada pela autoridade invocada.

Em seguida, o presidente afirma: “O momento é de esperança e de retomada da confiança

no Brasil. A incerteza chegou ao fim. É hora de unir o país e colocar os interesses nacionais acima

dos interesses de grupos. Esta é a nossa bandeira” (Discurso, linhas 3-5). Nesse excerto, Temer

ainda não apresenta as suas teses21, mas reforça os argumentos que visam a suplantar o éthos

prévio negativo do auditório apoiando-se nas possíveis falhas do governo anterior,

responsável, neste caso, pelo clima de instabilidade e insegurança do país. Há nesse

fragmento também a presença de dois tipos de argumentos. O primeiro argumento apela para

o páthos do auditório, trata-se do argumentum ad populum que consiste na invocação dos

sentimentos coletivos positivos ou negativos de um auditório, como, por exemplo, a lealdade,

o preconceito, o medo, entre outros, sendo bastante usado em manifestações públicas

numerosas e de grande alcance (FIORIN, 2015). Temer apela para o sentimento coletivo e

positivo de nacionalidade do auditório. Ele pede que se esqueçam os interesses individuais e

que todos se unam em prol dos interesses coletivos, pois é essa a bandeira que ele, o seu

21 De acordo com Abreu (2009, p. 17), “ao iniciar um processo argumentativo visando ao convencimento, não

devemos propor de imediato nossa tese principal, a ideia que queremos ‘vender’ ao nosso auditório. Devemos,

antes, preparar o terreno para ela, propondo alguma outra tese, com a qual nosso auditório possa antes

concordar”.

139

governo e o auditório devem defender (o pronome possessivo “nossa” reforça a ideia de

comunhão). O outro argumento é fundamentado na estrutura do real e trata da causalidade e

sucessão, “é aquele que considera o que vem antes, numa sucessão, é a causa do que ocorre

depois” Fiorin (2015, p.158). Para Michel Temer, a sua posse é a causa do fim da incerteza,

representa um momento de esperança e de retomada da confiança do Brasil.

Dando prosseguimento à nossa análise, encontramos o seguinte trecho: “Tenho

consciência do tamanho e do peso da responsabilidade que carrego nos ombros. E digo isso porque

recebemos o país mergulhado em uma grave crise econômica: são quase 12 milhões de

desempregados e mais de R$ 170 bilhões de déficit nas contas públicas” (Discurso, linhas 6-8).

Quando afirma ter consciência do tamanho e do peso da sua responsabilidade, “as condições de

credibilidade levam o sujeito político a construir uma imagem de si, um éthos, que deve servir

de suporte de identificação para o auditório: éthos de lucidez” Chauraudeau (2006, p 266).

Em seguida, como argumento de adesão inicial, ele elenca fatos relacionados ao governo

anterior que mexem diretamente com o páthos do auditório. Os fatos e as presunções são

bastante utilizados como teses de adesão inicial, pois facilitam a adesão da tese principal

(ABREU, 2009). Se o auditório acredita que o presidente Temer recebeu o Brasil

“mergulhado em uma grave crise econômica”, que ele possui “12 milhões de desempregados

e mais de 170 bilhões de déficit nas contas públicas”, a argumentação ganha estabilidade.

Entretanto, Fiorin (2015, p. 159-160) adverte que números e cifras são contestáveis, sujeitos à

interpretação, porque podem ser utilizadas segundo as estratégias argumentativas do orador.

Temer diz que o seu compromisso “é o de resgatar a força da nossa economia e

recolocar o Brasil nos trilhos” (Discurso, linhas 8-9), e utiliza os dois verbos em destaque para

continuar mobilizando o páthos do auditório. Ao deixar implícito que as coisas não vão bem

aqui no país, o orador o conduz a uma associação direta entre as más condições atuais e a

administração do governo anterior. Segundo Fiorin (2015, p.206), ao falarmos, deixamos

implícitas coisas que serão inferidas pelo interlocutor, pois existem coisas que não precisam

ser ditas, mas que podem ser percebidas facilmente por operações lógicas (se...então) e

pragmática (contexto verbal e não verbal). A argumentação por implícito é bastante utilizada

na vida cotidiana e também no discurso político, pois serve, dentre outras coisas, para ocultar

algum elemento fraco ou duvidoso da argumentação ou para maximizar o que está implícito

na fala do outro (FIORIN, 2015, p. 207). O argumento implícito presente no discurso de

Michel Temer pode ser inferido também quando ele destaca os alicerces do seu governo:

140

“eficiência administrativa, retomada do crescimento econômico, geração de emprego, segurança

jurídica, ampliação dos programas sociais e a pacificação do país” (Discurso, linhas 10-11).

No fragmento a seguir, podemos identificar um argumento por analogia iniciando a

apresentação da tese principal do pronunciamento/discurso em análise. Vejamos:

O governo é como a sua família. Se estiver endividada, precisa diminuir despesas para

pagar as dívidas. Por isso, uma de nossas primeiras providências foi impor limite para os

gastos públicos. Encaminhamos ao Congresso Nacional uma proposta de emenda

constitucional com teto para as despesas públicas. Nosso lema é gastar apenas o

dinheiro que se arrecada. Reduzimos o número de ministérios. Demos fim a milhares de

cargos de confiança. Estamos diminuindo os gastos do governo. [Discurso, linhas 13-

18]

Ao comparar, de maneira análoga, o governo com as famílias da população brasileira,

seu auditório, o presidente Michel Temer busca adesão à tese principal que será apresentada

logo em seguida: (o governo) “precisa diminuir despesas para pagar as dívidas” / (o governo)

“precisa impor limite para os gastos públicos”. De acordo com Fiorin (2015, p. 64), “a

analogia é o raciocínio em que de uma proposição particular se conclui uma proposição

particular somente pela semelhança dos casos referidos”, neste caso, a proposição “governo”

conclui, por semelhança, a proposição “família”. Contudo, conforme Perelman; Olbrechts-

Tyteca (2005, p. 424), toda analogia pode ser contestada, posta à prova e Charaudeau (2006,

p. 266) afirma que toda analogia/comparação é uma armadilha porque é extremamente

subjetiva. A analogia utilizada por Temer suscita questionamentos, se considerarmos a relação

difícil e contraditória entre as instituições Estado e família. De acordo com Mioto (2004, p.

45), a relação família e Estado é, há bastante tempo, conflituosa, pois envolve a disputa de

controle sobre o comportamento dos cidadãos. Por isso, os indivíduos entendem essa relação

de duas maneiras antagônicas: ou como uma invasão do Estado sobre suas vidas, que mexe

com os valores individuais ou familiares, ou como um elemento essencial para a emancipação

progressiva de cada indivíduo. No final desse mesmo excerto, o orador elenca as medidas

adotadas para atingir o fim desejado, elas funcionam como a base/argumentos que sustentam

a tesa defendida.

A analogia empreendida por Michel Temer esconde uma figura de comunhão que ele

tenta criar para assimilar-se ao auditório. Analisemos os excertos abaixo:

O governo é como a sua família. Se estiver endividada, precisa diminuir despesas para

pagar as dívidas. (Discurso, linhas 13-14)

141

Trabalhamos muito. Somos pessoas dispostas a acordar cedo e dormir tarde em busca

do nosso sonho. Temos espírito empreendedor, dos microempresários aos grandes

industriais. (Discurso, linhas 37-39)

Agora mesmo, demos ao mundo uma demonstração de nossa capacidade de fazer bem

feito. Os Jogos Olímpicos resgataram nossa autoestima diante de todo o mundo. Bilhões

de pessoas, ao redor do planeta, testemunharam e aplaudiram nossa organização e

entusiasmo com o que o Brasil promoveu o maior e mais importante evento esportivo

da terra. E teremos daqui a pouco as Paralimpíadas, que certamente terão o mesmo

sucesso. (Discurso, linhas 40-44)

Conforme Perelman; Olbrechts-Tyteca (2005, p. 201), as figuras de comunhão são

aquelas usadas pelo orador para confirmar a comunhão com o auditório. Ela é obtida através

da referência a uma cultura, uma tradição ou um passado comum a todos, como podemos ver

no excerto no qual o presidente fala dos Jogos Olímpicos, um momento celebração coletiva,

um evento tradicional capaz de promover a união entre as pessoas, sobretudo quando

realizado aqui no Brasil. Ainda conforme Perelman; Olbrechts-Tyteca (2005, p. 202), a

comunhão cresce quando o orador estabelece uma similitude com o auditório, como podemos

ver nos excertos nos quais ele compara o governo e família ou quando ele ressalta as

qualidades do povo brasileiro utilizando-se da primeira pessoa no plural, integrando-se,

portanto, a ele (o povo). Todas essas figuras de comunhão servem de argumentum ad

populum, pois, como visto anteriormente, apelam ao páthos (sentimentos, paixões, emoções)

do auditório.

O presidente apresenta outra medida/argumento para dar sustentação à tese principal

do seu discurso, trata-se de dois tipos de raciocínio causal, descritos por Charaudeau (2006, p.

265-266), um dito como principal e o outro dito como pragmático. Temer afirma: “Para

garantir o pagamento das aposentadorias, teremos que reformar a Previdência Social. Sem reforma,

em poucos anos o governo não terá como pagar aos aposentados” (Discurso, linhas 19-20).

Primeiramente, ele transforma em causa aquilo que é finalidade: “Para garantir o pagamento das

aposentadorias, teremos que reformar a Previdência Social”. Ele não diz que é preciso fazer tal

coisa (a reforma da previdência) para que algo (garantir o pagamento dos aposentados) aconteça

(raciocínio causal principal), ele faz o percurso contrário. Para Charaudeau (2006, p. 266), “esse

modo de raciocínio visa ganhar a adesão dos indivíduos a um princípio, escolha moral, que

deveria constituir o fundamento de sua adesão ao projeto político que lhe é proposto”. Logo

depois, Temer avança na premissa e apresenta a consequência prevista: “Sem reforma, em

poucos anos o governo não terá como pagar aos aposentados” (raciocínio causal pragmático).

Segundo Charaudeau (2006, p. 266), esse tipo de raciocínio “busca convencer que não há outra

142

consequência senão a anunciada e nenhum outro objetivo a perseguir que o que foi

anunciado”. O mesmo raciocínio causal principal pode ser visualizado também no seguinte

excerto: “Para garantir os atuais e gerar novos empregos, temos que modernizar a legislação

trabalhista” (Discurso, linha 28), no qual ele transforma em causa aquilo que é finalidade (a

geração de novos empregos).

Há marcas de incompatibilidades apresentados no discurso do presidente.

Analisemos os seguintes excertos:

Já ampliamos os programas sociais. Aumentamos o valor do Bolsa Família. O Minha

Casa, Minha Vida foi revitalizado. Ainda na área de habitação, dobramos o valor do

financiamento para a classe média. Decidimos concluir mais de mil e quinhentas obras

federais que se encontravam inacabadas. (Discurso, linhas 32-35)

O Brasil é um país extraordinário. Possuímos recursos naturais em abundância. Um

agronegócio exuberante, que não conhece crises. (Discurso, linhas 36-37)

Lembremos agora a tese principal do discurso analisado e alguns argumentos que visam a

dar-lhe sustentação:

Tenho consciência do tamanho e do peso da responsabilidade que carrego nos ombros.

E digo isso porque recebemos o país mergulhado em uma grave crise econômica:

são quase 12 milhões de desempregados e mais de R$ 170 bilhões de déficit nas contas

públicas. Meu compromisso é o de resgatar a força da nossa economia e recolocar o

Brasil nos trilhos. (grifo nosso) [Discurso, linhas 6-9]

O governo é como a sua família. Se estiver endividada, precisa diminuir despesas

para pagar as dívidas. Por isso, uma de nossas primeiras providências foi impor

limite para os gastos públicos. Encaminhamos ao Congresso Nacional uma

proposta de emenda constitucional com teto para as despesas públicas. Nosso lema

é gastar apenas o dinheiro que se arrecada. Reduzimos o número de ministérios.

Demos fim a milhares de cargos de confiança. Estamos diminuindo os gastos do

governo. (grifos nossos) [Discurso, linhas 13-18]

De acordo com Fiorin (2015, p. 139), “a incompatibilidade refere-se a duas proposições

que não podem coexistir no mesmo sistema, sem negar-se logicamente”. Nos excertos mostrados,

o presidente Michel Temer fala da crise econômica no Brasil e da necessidade de cortar gastos para

resolvê-la, mas anuncia o aumento de gastos com os programas sociais do governo. Em outro

trecho, ele exalta as riquezas do país, dentre elas, um agronegócio que, segundo ele, “não conhece

crises”. As incompatibilidades são marcadas pela oposição entre os substantivos “crise” e

“abundância”, pelos verbos “ampliar” e “diminuir” e pelas proposições “dobrarmos o valor dos

financiamentos”/”decidimos concluir mais de mil e quinhentas obras” e “impor limites para os

gastos públicos”/”Nossa lema é gastar menos”/”estamos diminuindo os gastos do governo”. As

143

incompatibilidades acontecem porque, na argumentação, a linguagem não é unívoca, podendo,

portanto, ser interpretada de diferentes formas (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.

221-222).

Existe um conflito de interesse revelado pelo discurso do presidente, pois ou o governo

corta despesas ou investe nos programas sociais. Esse conflito pode ter ocorrido por duas razões

distintas. Na primeira delas, o orador utiliza o argumento do desperdício, segundo o qual se propõe

a dar continuidade a algo que já existe para que os esforços que já foram empregados não sejam

desperdiçados (FIORIN, 2015, p. 168); neste caso, ele faz questão de garantir a manutenção dos

programas sociais que fizeram parte dos governos anteriores. A segunda razão seria a utilização de

um recurso retórico descrito por Charaudeau (2006, p. 261) como palavra de dissimulação.

Segundo o autor:

Contrariamente a uma ideia que se expande cada vez mais, o ator político nunca

diz qualquer frase. Ele sabe prever três coisas: as críticas de seus adversários, os

efeitos perversos da informação midiática e os movimentos sociais que deve tentar

antecipar e neutralizar. Instala-se então um jogo de máscaras entre palavra,

pensamento e ação que nos conduz à questão da mentira na política.

Considerando essa perspectiva, o presidente, temendo as críticas da oposição e da mídia e

uma reação de uma determinada parcela da população e dos movimentos sociais, mentiu ao dizer

que ampliaria os investimentos nos programais sociais, mesmo sob pena de estabelecer

incompatibilidades em seu discurso e parecer incoerente, contraditório. Cumpre-nos ressaltar que

antes de assumir o cargo, havia rumores de que o presidente Michel Temer (naquela ocasião,

interino) acabaria com os programas sociais, como podemos ver nas publicações abaixo, feitas,

respectivamente, pelo site Estadão Política da Folha de São Paulo22, no dia 17 de abril de 2016 e

pelo site do Jornal Valor Econômico, também no dia 17 de abril de 2016:

Dilma [...] divulgou, no fim da noite desse sábado na internet um vídeo em que

reafirma ser alvo de "um golpe", cujo principal objetivo é retirá-la do governo.

Segundo ela, o objetivo seria o fim dos programas sociais. "Querem revogar

direitos e cortar programas sociais como o Bolsa Família e o Minha Casa Minha

Vida", disse a presidente na gravação.

Belágua, no interior do Maranhão, tem uma população que depende quase toda do

Bolsa Família. E o impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT) significa, para

22 Esta matéria foi feita pelo site Estadão Política da Folha de São Paulo, mas encontra-se disponível apenas no

site UOL. Procuramos a matéria na fonte original, mas ela não está disponibilizada.

144

muitos aqui, o prenúncio de uma mudança para suas vidas: o fim do programa.

Nos trechos finais do discurso, o presidente Michel temer fala do seu compromisso

com país, passando mais uma vez a utilizar a primeira pessoa do singular. Aliás, cabe ressaltar

que todo o discurso é construído oscilando entre a primeira pessoa do plural (quando o orador

fala em nome do governo do qual ele faz parte), em terceira pessoa do singular (quando o

orador se refere ao governo de maneira impessoal) e em primeira pessoa (quando o orador

fala de si próprio). Voltemos à análise dos trechos finais do pronunciamento/discurso,

transcritos a seguir:

Meu único interesse, e que encaro como questão de honra, é entregar ao meu

sucessor um país reconciliado, pacificado e em ritmo de crescimento. Um país que dê

orgulho aos seus cidadãos. Reitero, portanto, meu compromisso de dialogar

democraticamente com todos os setores da sociedade brasileira. Respeitarei a

independência entre Executivo, Legislativo e o Judiciário. Despeço-me lembrando

que 'Ordem e Progresso' sempre caminham juntos. E com a certeza de que juntos,

vamos fazer um Brasil muito melhor. Podem acreditar: quando o Brasil quer, o

Brasil muda. (grifos nossos) [Discurso, linhas 45-52]

O presidente mostra-se disposto, determinado, aberto ao diálogo e ético, criando

condições de credibilidade necessárias para a identificação e, portanto, a construção de uma

imagem de si positiva por parte do seu auditório. Temer cria um éthos de engajamento, pois

demonstra a vontade de agir (CHARAUDEAU, 2006, p.266). Ele também recorre a sua honra

e ao sentimento de comunhão com o auditório, usado em outras passagens do seu discurso

(como visto anteriormente). Ao falar de “reconciliação”, “pacificação” e “ritmo de

crescimento”, o presidente joga mais uma vez com o éthos negativo da ex-presidenta Dilma

Rousseff e as possíveis falhas da sua administração, motivo que, por inferência, seriam as

causas daquilo que precisa ser reparado por ele.

Considerações finais

Neste trabalho, apresentamos os elementos persuasivos do discurso retórico de Michel

Temer a partir da análise do seu primeiro pronunciamento como presidente da república,

exibido pela mídia, no dia 31 de agosto de 2016. Com base na Teoria da Argumentação e da

Retórica, consideramos as argumentações centradas nas três dimensões da relação retórica

que giram em torno do ato discursivo persuasivo: no orador (éthos), no auditório (páthos) e no

145

discurso (lógos) utilizado pelo presidente. Na primeira seção, discorremos sobre éthos, páthos

e lógos e, apoiados pelos postulados de Meyer (2007), mostramos a importância de

considerarmos igualmente os três elementos da tríade retórica se não quisermos cair em uma

concepção que exclua as dimensões constitutivas dessa relação.

Dedicamos a segunda seção à análise dos elementos envolvidos na construção do

éthos prévio do presidente Michel Temer. Com base em matérias publicadas na imprensa

brasileira e na imprensa mundial, antes e imediatamente depois da sua posse como presidente

da república, identificamos um éthos prévio negativo de Michel Temer em razão de alguns

acontecimentos associados a sua imagem de cidadão e de homem público e também ao

contexto de efervescência política que o Brasil vivencia desde as manifestações de ruas

ocorridas em 2013 e que culminou com o afastamento definitivo de Dilma Rousseff da

presidência da república.

Na terceira seção, apresentamos a análise dos principais tipos de argumentos utilizados

pelo presidente Michel Temer envolvendo a tríade retórica: éthos, páthos e lógos.

Identificamos que o referido presidente tinha conhecimento do éthos prévio (pré-discursivo)

negativo por parte de uma parcela do seu auditório coletivo e tentou suplantá-lo de três

formas: jogando com o éthos negativo da ex-presidenta Dilma Rousseff; usando um argumento

de autoridade (fundamentado na estrutura da realidade); e construindo um éthos discursivo, ora

de lucidez, ora de engajamento (CHARAUDEAU, 2006). Temer, vestindo-se com cores

sóbrias, mostrou-se disposto, determinado, aberto ao diálogo, ético, consciente de sua

responsabilidade como presidente, dono de uma boa oratória - com linguagem formal, clara,

fluida, boa dicção e entonação de ritmo pausado.

O orador apelou para o páthos utilizando o argumentum ad populum (FIORIN, 2015).

Ele evocou sentimentos coletivos positivos do auditório em relação à realização das

Olimpíadas e Paralimpíadas do Rio de janeiro, utilizou argumento por implícito (FIORIN,

2015) para falar da situação atual do país e jogar com o éthos negativo de Dilma Rousseff,

utilizou também figuras de comunhão (OLBRECHTS-TYTECA, 2005) e fatos e as

presunções (ABREU, 2009) para facilitar a adesão à tese principal, argumento por analogia

(OLBRECHTS-TYTECA, 2005; CHARAUDEAU, 2006; FIORIN, 2015) para introduzi-la e

raciocínio causal (CHARAUDEAU, 2006) para dar-lhe sustentação. O discurso do presidente

Michel Temer apresentou uma incompatibilidade (FIORIN, 2015), evidenciada por

proposições/objetivos contraditórios. Percebemos que essa incompatibilidade pode ter

ocorrido por duas razões distintas: devido à (possível) utilização de um argumento de

146

desperdício (FIORIN, 2015) ou devido à (possível) utilização de um recurso retórico

conhecido como palavra de dissimulação (CHARAUDEAU, 2006).

Ressaltamos que as análises aqui apresentadas são interpretações que podem mudar de

acordo com as experiências de cada ouvinte, leitor e/ou analista, e constituem, portanto,

apenas possibilidades. Contudo, esperamos ter contribuído para algumas reflexões acerca do

tema. Consideramos também que o leitor pode encontrar argumentos que não foram nem

identificados nem elencados por nós. Sabemos da importância dos estudos sobre Discurso e

Argumentação e desejamos que o corpus deste trabalho seja explorado por outros estudiosos.

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2009.

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147

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2016.

REVISTA FORUM. Ficha suja, Temer está inelegível por oito anos e não cabe qualquer

possibilidade de recurso. Disponível em:

<http://www.revistaforum.com.br/2016/06/05/ficha-suja-temer-esta-inelegivel-por-oito-anos-

e-nao-cabe-qualquer-possibilidade-de-recurso/> Acesso em: 19 out. 2016.

148

TEMER, Michel. Primeiro pronunciamento de Michel Temer como presidente efetivo do

Brasil 31/08/2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=hlhi5CfydvI>

Acesso em: 10 set. 2016.

149

Anexo 1 - Imagem do Primeiro pronunciamento do presidente Michel Temer.

150

Boa noite a todos! 1

Assumo a presidência do Brasil, após decisão democrática e transparente do Congresso Nacional. 2

O momento é de esperança e de retomada da confiança no Brasil. A incerteza chegou ao fim. É 3

hora de unir o país e colocar os interesses nacionais acima dos interesses de grupos. Esta é a nossa 4

bandeira. 5

Tenho consciência do tamanho e do peso da responsabilidade que carrego nos ombros. E digo isso 6

porque recebemos o país mergulhado em uma grave crise econômica: são quase 12 milhões de 7

desempregados e mais de R$ 170 bilhões de déficit nas contas públicas. Meu compromisso é o de 8

resgatar a força da nossa economia e recolocar o Brasil nos trilhos. 9

Sob essa crença, destaco os alicerces de nosso governo: eficiência administrativa, retomada do 10

crescimento econômico, geração de emprego, segurança jurídica, ampliação dos programas sociais 11

e a pacificação do país. 12

O governo é como a sua família. Se estiver endividada, precisa diminuir despesas para pagar as 13

dívidas. Por isso, uma de nossas primeiras providências foi impor limite para os gastos públicos. 14

Encaminhamos ao Congresso Nacional uma proposta de emenda constitucional com teto para as 15

despesas públicas. Nosso lema é gastar apenas o dinheiro que se arrecada. Reduzimos o número de 16

ministérios. Demos fim a milhares de cargos de confiança. Estamos diminuindo os gastos do 17

governo. 18

Para garantir o pagamento das aposentadorias, teremos que reformar a Previdência Social. Sem 19

reforma, em poucos anos o governo não terá como pagar aos aposentados. O nosso objetivo é 20

garantir um sistema de aposentadorias pagas em dia, sem calotes, sem truques. Um sistema que 21

proteja os idosos, sem punir os mais jovens. 22

O caminho que temos pela frente é desafiador. Conforta-nos, entretanto, saber que o pior já passou. 23

Indicadores da economia sinalizam o resgate da confiança no país. Nossa missão é mostrar a 24

empresários e investidores de todo o mundo nossa disposição para proporcionar bons negócios que 25

vão trazer empregos ao Brasil. Temos que garantir aos investidores estabilidade política e 26

segurança jurídica. 27

Para garantir os atuais e gerar novos empregos, temos que modernizar a legislação trabalhista. A 28

livre negociação é um avanço nessas relações. O estado brasileiro precisa ser ágil. Precisa apoiar o 29

trabalhador, o empreendedor e o produtor rural. Temos de adotar medidas que melhorem a 30

qualidade dos serviços públicos e agilizem sua estrutura. 31

Já ampliamos os programas sociais. Aumentamos o valor do Bolsa Família. O Minha Casa, Minha 32

Vida foi revitalizado. Ainda na área de habitação, dobramos o valor do financiamento para a classe 33

151

média. Decidimos concluir mais de mil e quinhentas obras federais que se encontravam 34

inacabadas. 35

O Brasil é um país extraordinário. Possuímos recursos naturais em abundância. Um agronegócio 36

exuberante, que não conhece crises. Trabalhamos muito. Somos pessoas dispostas a acordar cedo e 37

dormir tarde em busca do nosso sonho. Temos espírito empreendedor, dos microempresários aos 38

grandes industriais. 39

Agora mesmo, demos ao mundo uma demonstração de nossa capacidade de fazer bem feito. Os 40

Jogos Olímpicos resgataram nossa autoestima diante de todo o mundo. Bilhões de pessoas, ao 41

redor do planeta, testemunharam e aplaudiram nossa organização e entusiasmo com o que o Brasil 42

promoveu o maior e mais importante evento esportivo da terra. E teremos daqui a pouco as 43

Paralimpíadas, que certamente terão o mesmo sucesso. 44

Presente e futuro nos desafiam. Não podemos olhar para frente, com os olhos do passado. Meu 45

único interesse, e que encaro como questão de honra, é entregar ao meu sucessor um país 46

reconciliado, pacificado e em ritmo de crescimento. Um país que dê orgulho aos seus cidadãos. 47

Reitero, portanto, meu compromisso de dialogar democraticamente com todos os setores da 48

sociedade brasileira. Respeitarei a independência entre Executivo, Legislativo e o Judiciário. 49

Despeço-me lembrando que 'Ordem e Progresso' sempre caminham juntos. E com a certeza de que 50

juntos, vamos fazer um Brasil muito melhor. Podem acreditar: quando o Brasil quer, o Brasil 51

muda. 52

Obrigado, boa noite a todos, e que Deus nos abençoe nessa nossa caminhad53

152

UMA OBSERVAÇÃO DA PUBLICIDADE NO SEGMENTO DE ESTÉTICA

FEMININA: ESTUDO DE CASO EM UMA EMPRESA BAIANA

Alessandra Lopes Fontoura

Resumo: Com o avanço da internet e a massiva presença da mesma na vida das pessoas, a

propaganda precisou adaptar-se e buscar novas formas de atingir seu público alvo. Nesse

cenário, há o aplicativo instagram, desenvolvido para o compartilhamento de fotos, mas que

hoje se mostra como um dos principais instrumentos para divulgação de marcas e produtos.

Assim, faz-se necessário entender que estratégias podem maximizar os resultados da

propaganda neste aplicativo e ainda como elementos verbais e visuais produzem sentidos.

Tomou-se como objeto de estudo uma empresa que atua no segmento de saúde e estética do

mercado baiano, a partir de uma visão diferenciada no tratamento aos seus pacientes, cujo foco

para promover resultados mais satisfatórios é um trabalho integrado, associando diversas áreas

da medicina, nutrição e fisioterapia. A referida empresa é usuária do instagram desde a sua

inauguração e utiliza esse aplicativo como principal forma de divulgação de seus serviços entre

o público-alvo. Num primeiro momento, este trabalho visa entender as condições de produção

em que determinada propaganda da empresa objeto da pesquisa foi concebida.

Palavras-chave: Análise do Discurso; Condições de Produção; Instagram; Publicidade.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Com o avanço da internet e a massiva presença da mesma na vida das pessoas,

a propaganda precisou adaptar-se e buscar novas formas de atingir seu público alvo,

ainda que mantendo os mesmos objetivos da publicidade nas mídias já tradicionais, que

é persuadir o consumidor a comprar determinado produto ou serviço, e também adotar

algum estilo de vida ou ideologia. Em paralelo a isso, os avanços tecnológicos

permitiram que diversas funções fossem agregadas aos telefones celulares, tornando-os

verdadeiros smartphones, remodelando os hábitos de consumo dos indivíduos que estão

a cada dia mais online em seus telefones móveis, utilizando-se dos diversos aplicativos

que estão disponíveis para serem utilizados nos mesmos.

Nesse cenário, há o aplicativo instagram, criado em 2010, e que hoje já foi

baixado e é utilizado por mais de um bilhão de pessoas em todo mundo. Originalmente,

essa ferramenta foi desenvolvida para o compartilhamento de fotos, mas hoje se mostra

como um dos principais instrumentos para divulgação de marcas e produtos. Em

153

essência, cada usuário deste aplicativo pode seguir todos aqueles que de alguma forma o

interesse e, a partir daí, passará a ver as publicações desse perfil seguido. Dessa forma,

quando encarada como mídia publicitária, pode-se dizer que cada usuário do instagram

tem como seu público alvo seus seguidores diretos e que esse universo pode ser

ampliado, aumentando o alcance das publicações através da utilização de técnicas

conhecidas como repost e utilização de hastags. Assim, faz-se necessário entender que

estratégias podem maximizar os resultados da propaganda neste aplicativo e ainda que

elementos discursivos e visuais surtem maior efeito quando utilizados.

Num primeiro momento, este trabalho visa ao entendimento das condições de

produção em que determinada propaganda foi concebida. Essa análise se mostra

imprescindível, pois para que se possa compreender os efeitos de sentido criados por

uma peça publicitária, é determinante considerar os aspectos ideológicos intrínsecos a

mesma e ainda as condições de produção em que a peça foi realizada. Segundo Orlandi

(2000), condições de produção se relacionam ao sujeito, à situação e também à

memória. Em sentido estrito, essas condições se relacionam ao momento da enunciação,

ou seja, ao contexto imediato; em sentido amplo, abarcando o contexto sócio-histórico e

ideológico. Já a memória se relaciona ao interdiscurso, “como aquilo que fala antes, em

outro lugar, independentemente” (ORLANDI, 2000, p. 31).

INICIANDO A ANÁLISE

Temos, então, uma empresa X, que atua no segmento de saúde e estética, a

partir de uma visão diferenciada no tratamento clínico aos seus pacientes, cujo foco para

promover resultados mais satisfatórios é um trabalho integrado, associando diversas

áreas da medicina, nutrição e fisioterapia. De forma resumida, a clínica defende que o

corpo humano é um conjunto, e para obtenção de resultados estéticos mais efetivos e

duradouros é necessário que todo esse conjunto seja trabalhado. No que se refere ao

público alvo, a clínica visa ao atendimento a homens e mulheres adultos, da classe A

(até por não aceitar planos de saúde e só fazer atendimento particular). A referida

empresa é usuária do instagram desde a sua inauguração, e o anúncio a seguir

apresentado, publicado em 19 de março de 2016, será o corpus dessa análise.

154

No contexto imediato, por ter utilizado a imagem de uma mulher, podemos

concluir que essa peça tem como público alvo as mulheres adultas, seguidoras ou não

do perfil da empresa no instagram (possui perfil desbloqueado e se utilizou de hastags

para facilitar buscas). Essa conclusão se baseia nos princípios de associação e

identificação, são mais atingidos aqueles que se identificam com o que veem, portanto,

também mulheres. O anúncio trabalha de forma mais institucional, não se prendendo

diretamente à venda de um dos tratamentos comercializados pela clínica, mas

comunicando de certa forma a sua filosofia e diferencial.

Já no que se refere ao contexto sócio-histórico, é necessário entender a origem

desse discurso. Não é de hoje que se fala a respeito de como as condições internas do

corpo humano refletem na parte externa, em como a simples ingestão da quantidade

correta de água por dia pode interferir na jovialidade da pele, por exemplo. Talvez não

seja possível identificar a fonte, mas praticamente todos os indivíduos já ouviram de

alguém, seja sua mãe, um parente, um amigo, que é importante se alimentar bem para

aparentar bem. Pode-se dizer até que já é uma verdade instituída que todos repetem por

aí, mesmo sem saber de onde partiu ou se existem bases científicas que comprovem.

Paralelo a isso, com a disseminação da cultura de um estilo de vida saudável, e com a

multiplicação de ‘blogueiras’ que a todo dia apresentam aos seus milhares de seguidores

os resultados milagrosos da mudança na alimentação, consumo de água, receitas

funcionais, o discurso de que estar bem internamente reflete positivamente na parte

externa ganhou ainda mais força.

Um outro aspecto que não pode ser desconsiderado no anúncio é o padrão de

beleza. Na peça, há a afirmação de que existe uma saúde interna e uma beleza externa

155

representada pela imagem de uma modelo branca, magra, com cabelos lisos e feliz. Em

oposição a isso, a empresa atua numa cidade predominantemente negra, mas já é sabido

que o preconceito racial, ainda que se constitua crime, está na rotina de todos e ainda é

visto com naturalidade por muitos. O discurso “eu não tenho preconceito, mas pra mim

bonito é ser branco” não é novidade, seja na propaganda, nas famílias, nas empresas,

nas piadas, está ainda enraizada a ideia de que os traços referentes à raça branca são os

próximos dos padrões aceitáveis de beleza e, portanto, mesmo que inconscientemente

serão modelos com essas características os selecionados para as campanhas.

Visando aprofundar um pouco mais essa análise, necessário retomar Orlandi

(2000) que afirma que as condições de produção funcionam segundo alguns fatores,

como relações de força, antecipação e relações de sentido que constituiriam as

Formações Imaginárias:

“Assim não são os sujeitos físicos nem os seus lugares empíricos como tal,

isto é, como estão inscritos na sociedade, e que poderiam ser

sociologicamente descritos, que funcionam no discurso, mas suas imagens

que resultam de projeções. São essas projeções que permitem passar das

situações empíricas – os lugares dos sujeitos – para as posições dos sujeitos

no discurso. Essa é a distinção entre lugar e posição” (ORLANDI, 2000, p.

40).

A autora (ORLANDI, 2000, p.40) ainda acrescenta que:

As condições de produção implicam o que é material (a língua sujeita a

equívoco e historicidade), o que é institucional (a formação social, em sua

ordem) e o mecanismo imaginário. Esse mecanismo produz imagens dos

sujeitos, assim como do objeto do discurso, dentro de uma conjuntura sócio-

histórica. Temos assim a imagem da posição sujeito-locutor (quem sou eu

para lhe falar assim?) mas também da posição sujeito interlocutor (quem é

ele para me falar assim, ou para que eu lhe fale assim), e também a do objeto

do discurso (do que eu estou lhe falando? Do que ele me fala?). É pois todo

um jogo imaginário que preside a troca de palavras.

Levando em consideração esses elementos e voltando ao anúncio objeto dessa

análise, é possível identificar as relações de sentido presentes no discurso. A afirmação

“saúde por dentro e beleza por fora” só se faz compreender e tem força de

convencimento publicitário por saber que existem discursos que o sustentem. Sejam

dizerem médicos, de nutricionistas, até de celebridades e pessoas que despertam a

admiração da maior parte das pessoas, são discursos que em algum momento trataram

do assunto abordado na peça publicitária e dão força ao pensamento de que um corpo

156

saudável reflete numa pessoa com pele mais firme, cabelo mais macio e porque não

dizer, alguém mais bonito.

A peça publicitária apresentada não trouxe algo novo, ela se apropria de

discursos já aceitos, associando a marca da empresa e os serviços oferecidos pela

mesma como caminho para alcançar aquilo que parece ser positivo e necessário para o

bem estar do público-alvo. Assim, se o discurso de viver com saúde e ter um estilo de

vida saudável com práticas que promovam o bem estar já é aceito e apoiado pela maior

parte das pessoas, um anúncio que se fundamente nesse discurso terá maior aceitação e

poder persuasivo junto ao seu público-alvo (KARSAKLIAN, 2004).

Além disso, outro aspecto que não pode ser desconsiderado é a forma com que

a empresa anunciante, sujeito-locutor, é apresentada não apenas nesse, mas em todos os

seus anúncios publicados no instagram. Antes de qualquer coisa, a empresa se apresenta

como referência em sua área, aquela que possui os melhores profissionais,

equipamentos e estrutura e por isso, no que se refere às relações de poder, teria um

discurso de maior valor dentre os demais. Para aquele que tem acesso à informação

veiculada no instagram da empresa, se levar em consideração o papel que a mesma

representa no mercado, certamente o discurso por ela construído surtirá mais impacto e

possivelmente poder de persuasão do que o que for dito por um anônimo ou por uma

empresa percebida como com menor valor.

Dessa forma, considerar os elementos que constituem as condições de

produção e as formações imaginárias relacionadas a um produto/serviço de uma

empresa atuante no mercado pode representar uma maior eficácia nos discursos

produzidos nas campanhas publicitárias das mesmas. Uma propaganda eficaz é aquela

que transcende o óbvio, que não se limita apenas em apresentar uma imagem impactante

e um texto chamativo, mas aquela que realmente comunique e convença. E quão mais

embasado é o anúncio, alinhado com o que realmente se quer dizer, para quem quer

dizer, e como quer ser entendido, maior as chances de sucesso.

157

REFERÊNCIAS

KARSAKLIAN, Eliane. Comportamento do Consumidor. 2. ed. São Paulo: Atlas,

2004.

INSTAGRAM. www.instagram.com. Acesso em: 19 de março de 2016.

ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 2. ed. Campinas:

Pontes, 2000.

158

TRÊS VARIÁVEIS EM OBSERVAÇÃO EM SALVADOR

Norma da Silva Lopes23

Caroline Pereira Bomfim24

Rebeca Carrilho Magalhães de Deus25

Taise Rocha dos Santos26

INTRODUÇÃO

O Programa de Iniciação Científica da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) já

proporcionou a muitos alunos da graduação a inserção em trabalhos de pesquisa

diversos, lhes dando possibilidade de inserção e progressão nos estudos nos diversos

níveis da pós-graduação.

Neste texto, tem-se como proposta apresentar resultados de três pesquisas

sociolinguísticas variacionistas, ora finalizadas em um programa de iniciação científica

na UNEB, sobre a variação linguística em Salvador.

1 A pesquisa sociolinguística no programa de Iniciação Científica na UNEB

No curso de Letras são realizadas pesquisas promissoras em diversas áreas dos

estudos linguísticos e literários, desenvolvidas por estudantes de graduação em Letras.

Neste texto, apresentamos resultados de três estudos sobre a variação em Salvador, que

merecem ser registrados, pelo que essas pesquisas têm contribuído para que o estudante,

futuro professor, tenha conhecimento da sua língua, demonstre respeito pelas variedades

linguísticas e adquira gosto e embasamento pela pesquisa, imprescindível para o

ingresso em cursos de Mestrado.

23 Professora permanente do PPGEL/UNEB – Orientadora de IC/UNEB 24 Bolsista de IC/FAPESB/UNEB 25 Bolsista de IC/PICIN/UNEB 26 Bolsista de IC/ FAPESB/UNEB

159

Serão tratados os seguintes fenômenos: a variação da preposição EM/NI em

Salvador; a variação da regência do verbo IR de movimento; e a variação na expressão

verbal dos particípios.

Na seção 2 desse texto, faz-se uma breve fundamentação teórica que embasa as

pesquisas; em seguida, nas seções 3, 4 e 5, trata-se de cada fenômeno aqui estudado,

faz-se uma visão panorâmica de pesquisas anteriores realizadas sobre cada um dos

fenômenos,. e, a seguir, apresenta-se uma descrição de cada uma das pesquisas alvo de

nossas discussões. Em 6, são feitas algumas considerações e, logo após, apresentam-se

as referências.

2 Pressupostos teórico-metodológicos

Os estudos sociolinguísticos tomam como objetivo entender a variação

linguística, considerando que ela não se dá por acaso, mas por razões linguísticas e

sociais (LABOV, 2008). Dessa forma, o pesquisador busca provar a inexistência da

hipótese nula (de que a variação é aleatória), através de amostras de fala de uma

comunidade linguística, observadas e coletadas para estudo de fenômenos linguísticos

variáveis. Através de um estudo sociolinguístico, além do estudo da variação sincrônica

de faixas etárias diferentes, faz-se projeção de mudança futura na língua, como também

encontram-se registros de formas que tendem ao desaparecimento ainda existentes na

fala dos mais velhos. Dessa maneira, os estudos sociolinguísticos desfazem a dicotomia

estudo sincrônico versus estudo diacrônico, da dicotomia saussureana, através do

estudo em tempo aparente, com a observação de idades diferentes; e do estudo em

tempo real, com a confirmação dos prognósticos apontados pelo estudo em tempo

aparente, observando sincronias diferentes.

Neste texto, apresentam-se resultados da pesquisa de iniciação científica

(2015/2016) em que se utilizam os pressupostos teórico-metodológicos da

sociolinguística, aqui referidas como Bonfim (2016), Deus (2016) e Santos (2016), a

seguir tratadas.

160

3 A variação EM/NI

3.1 Estudos anteriores

O estudo realizado pela pesquisadora Maria Betânia Paes, em co-autoria com a

professora Norma Lopes (PAES e LOPES, 2013), observa as ocorrências da forma ni,

variante da preposição em, na fala de sujeitos nativos de Vitória da Conquista, cidade

localizada no sudoeste baiano. Como resultado, observa-se que das 653 ocorrências de

em e ni, a preposição em apareceu nos 613 casos, enquanto o ni apenas em 34,

totalizando a porcentagem de 5%. Verifica-se que falantes mais velhos, faixa etária 3

realizam mais que os mais novos a variante ni, o que ocorreu em 10% dos casos (peso

relativo .94). As autoras chegam à conclusão de que o maior percentual de ocorrências

da variante ni nessa faixa etária 3, em relação às outras, reflete que, em fases pretéritas

do português brasileiro, houve prevalência de tal forma na comunidade conquistense, e

esse fato ainda pode ser visto atualmente. Os dados mostram que os níveis Fundamental

e Médio têm números próximos, como 7% e 5% de realizações, respectivamente. Os

falantes com nível Superior obtiveram 2% de realizações da variante ni, evidenciando

uma maior tendência consciente dos falantes a reduzir a presença do ni à medida que

possui maior contato com o ensino institucionalizado. O maior nível de escolaridade

revela uma possibilidade de monitorar mais a fala em determinados momentos,

evitando, assim, o que a desvaloriza, nesse caso a forma ni. A baixa ocorrência do ni, 34

de 653, considerando a pequena diferença entre as faixas etárias, revela que não há sinal

de mudança, na qual uma variável tomaria a posição da outra.

Souza (2012) chama a atenção para o fato de que um dos fenômenos

morfossintáticos encontrados no vernáculo brasileiro é a variação Em / Ni. No seu

trabalho, além de discutir a questão da influência africana, analisa a questão do

português no Brasil e o seu ensino. Holm (1962, apud SOUZA, 2012) explica que esse

fenômeno decorre de uma possível analogia dos paradigmas /de/~/di/ e suas contrações

com os artigos definidos: o, a, os, as. No entanto, Souza pontua que a variante NI não é

exclusiva apenas dos falantes de comunidades isoladas, mas também nas produções

escritas de indivíduos com acesso a escola, como nos dados do ne /ni/ retirados dos

textos escolares escritos: “Já bati ne uma colega e fui para a diretoria” (Falante 02. 6º

ano) e “Minha avó veio e deu uma surra de cabo de esprito de alevante NE (fulano) e eu

161

me escondi” (Falante 03. 6º ano). O autor observa dados de Serrinha (Bahia), para

mostrar que a variante NI também ocorre nos centros urbanos e a escolha por uma

escola particular justifica-se para observar se a variação também ocorre em classe

socioeconomicamente favorecida. Como resultado, a pesquisa observou que a variante

NI é pouco utilizada, apesar de mais utilizada nos textos escritos dos estudantes do 6º

ano, com percentual de 3,31% das ocorrências, enquanto nos textos do 9º ano, a

frequência é baixa, totalizando somente 0,64% dos casos. Isso revela que a forma

padrão em é a mais privilegiada, enquanto o NI, considerado pelo autor como de

substrato da língua africana, tende ao desaparecimento na escrita, por influência da

escolarização.

3.2 A variação EM/NI em Salvador

A utilização da forma NI, variante da preposição EM, destaca-se no cenário

sociolinguístico de Salvador. Neste texto, apresenta-se um estudo acerca da variação

EM/NI na fala popular urbana de Salvador, tendo como referencial teórico os

pressupostos da Teoria da Variação e estudos anteriores sobre o assunto em questão.

Objetiva-se mostrar os fatores linguísticos e extralinguísticos condicionantes no uso das

EM ou sua variante NI na fala de Salvador.

Com relação à metodologia, a pesquisa baseia-se na observação dos dados do

Programa de Estudos do Português Popular Falado de Salvador (PEPP)27, constituído

entre 1998 e 2001 e publicado em parte no ano de 2009, que conta com 48 inquéritos,

dos quais 16 serviram de aporte teórico para este estudo. Na observação inicial, chegou-

se aos resultados apresentados na tabela 01.

TABELA 1: A VARIAÇÃO EM NI EM SALVADOR – ANÁLISE GERAL

Fonte: Bonfim (2016)

27 O acervo transcrito grafematicamente do PEPP pode ser encontrado na íntegra no endereço

www.linguagemnacidade.com.br.

Variantes Dados/ Total %

EM 1976/2053 96%

NI 77/2053 4%

162

Como se percebe, em Salvador, a variante preferida é a forma canônica EM,

com 96% e a forma NI ocorre somente em 4% dos dados.

Na análise das formas EM (forma padrão) e NI (forma não padrão) levaram-se

em conta as variáveis linguísticas: (1) presença/ausência de determinantes: artigo,

pronome adjetivo (pronome possessivo, pronome demonstrativo); (2) tipos de

substantivo: próprio e comum; e as variáveis extralinguísticas: (i) gênero: masculino e

feminino; (ii) escolaridade: níveis fundamental e médio; (iii) faixa etária dos grupos: 1

(15 a 24 anos), 2 (25 a 35 anos), 3 (45 a 55 anos) e 4 (65 anos em diante). Foi necessária

a escuta dos inquéritos, a codificação dos dados, após isso, utilizou-se o programa

GoldVarb X para obter os resultados analisados.

3.3 Resultados e Discussão

Na análise dos dados percebe-se uma maior incidência no uso do EM quando

contrastado com o NI, visto que a forma padrão aparece em 96% dos registros

observados, enquanto a outra é utilizada em apenas 4%.

No estudo empreendido, percebeu-se que há contextos que parecem contribuir

para a realização do NI. A variante NI quase não tem ocorrência junto a determinantes,

artigos, pronomes adjetivos ou pronomes possessivos. E junto a pronome demonstrativo

não há um caso sequer do NI. A tabela 02 apresenta os resultados dessa observação.

TABELA 02: USO DO EM NA VARIAÇÃO EM/ NI EM SALVADOR –

PRESENÇA DE DETERMINANTES

PRESENÇA/AUSÊNCIA DE

DETERMINANTE

EM %

ARTIGO; PRONOME ADJETIVO;

PRONOME POSSESSIVO;

1399/1430 97.8%

SEM DETERMINANTE 397/443 89.6%

PRONOME DEMONSTRATIVO 180/180 100%

Fonte: Bonfim (2016)

Apresentam-se alguns dados:

163

Porque tem uns lá NA rua mesmo. Inq. 18, p. 83

eu estudei tinha umas três melhores escolas que tinha aqui NI Salvador, na Bahia. Inq.

20, p. 120

mas mais novo porque a gente NAQUELA época tinha treze. Inq 18, p. 80

Os resultados mostram que apenas com determinantes ou outros elementos o

NI pode ocupar raramente a posição do EM em Salvador; e com pronome

demonstrativo há um bloqueio para a realização do NI. No entanto, a presença do NI

chega a 10,4 em sintagmas sem qualquer determinante, o que reforça a ideia de Holm

(1962), da analogia com o DE (de, do, da; NI, no, na).

Quanto ao tipo de substantivos (se próprio ou comum), o estudo chegou aos

resultados mostrados na tabela 3.

TABELA 3: USO DO EM NA VARIAÇÃO EM/ NI EM SALVADOR – TIPOS DE

SUBSTANTIVOS

SUBSTANTIVO EM %

COMUM 1634/1705 95.8%

PRÓPRIO 339/344 98.5% Fonte: Bonfim (2016)

A tabela 3 apresenta percentuais bem próximos entre os dois fatores:

substantivos comuns, 95,8% do EM (1634 de 1705); e substantivos próprios, 98,5%

(339/344). Esses resultados parecem indicar que essa variável não parece contribuir para

a escolha entre EM ou NI.

Os aspectos extralinguísticos apresentam resultados interessantes quanto à

questão da variação EM/NI a começar pelos dados obtidos na seção de gênero, que

revelou uma pequena diferença de apenas 1% entre os participantes ao utilizarem a

forma padrão. (Tabela 4)

TABELA 4: USO DO EM NA VARIAÇÃO EM/ NI EM SALVADOR – GÊNERO

Gênero EM %

HOMEM 1092/1129 96.7%

164

MULHER 884/924 95.7% Fonte: Bonfim (2016)

No que se refere à escolaridade dos informantes, nos dois níveis estudados:

fundamental e médio há o mesmo valor percentual de 96%, mostrando que ter

formações acadêmicas variadas pouco influencia na escolha das formas: para o ensino

Fundamental a ocorrência do EM foi de 895 do total de 935; no ensino Médio o EM

ocorreu em 1087 dados do total de 1118, também 96%. As tabelas 4 e 5 apresentam

esses resultados. (Tabela 5)

TABELA 5: USO DO EM NA VARIAÇÃO EM/ NI EM SALVADOR –

ESCOLARIDADE

ESCOLARIDADE EM %

FUNDAMENTAL 898/935 96%

MÉDIO 1078/1118 96.4% Fonte: Bonfim (2016)

Os grupos etários analisados tiveram os resultados organizados do seguinte

modo: Faixa etária 1, os mais novos, (96%), Faixas etárias 2 e 3 (95% cada) e Faixa

etária 4 (98%), revelando que, independente da idade, o falante ainda usa a norma

padrão e em poucos momento há a variação. Na observação das faixas etárias, os

resultados não sugerem qualquer mudança. (Tabela 6)

TABELA 6: USO DO EM NA VARIAÇÃO EM/ NI EM SALVADOR –

ESCOLARIDADE

FAIXA ETÁRIA EM %

Faixa etária 1 412/431 95.6

Faixa etária 2 460/484 95%

Faixa etária 3 556/577 96.4%

Faixa etária 4 548/561 97.7% Fonte: Bonfim (2016)

A presente pesquisa buscou apresentar um estudo acerca da variação EM/NI no

contexto da fala popular urbana de Salvador sob o enfoque da sociolinguística

165

variacionista. Pelos dados observados, a pesquisa revela que a variante NI existe

minimamente na fala de Salvador, e seu uso não distingue gênero do informante, faixa

etária ou escolaridade. O que parece levar o falante ao uso da forma NI em detrimento

do EM é a ausência de determinante no nome ou núcleo do sintagma introduzido por

essa preposição, fortalecendo a hipótese de HOLM (1962), da analogia com o de

(de/do/da; ni/ no/ na).

4 Regência variável do verbo IR de movimento

Em seguida, apresentam-se resultados da pesquisa de iniciação científica

(2015/2016) com financiamento da bolsa PICIN/UNEB, intitulada Variação na

regência de verbos de movimento em Salvador, aqui referida como DEUS (2016).

O verbo IR de movimento é referido na Gramática Normativa como tendo duas

possibilidades de regência: a preposição A (quando for ida com volta rápida -

transitória) e PARA (quando a ida é para ficar, duradora - permanente).

4.1 Estudos anteriores

Mollica (1996a), no estudo desse fenômeno variável, refere-se a uma terceira

variante, EM, e diz, a partir de Nascentes (1953) e de outros estudiosos da língua, que

essa variante é um traço típico do português brasileiro.

Mollica (1996a) estudou a variação da regência do verbo IR de movimento na

fala carioca, utilizando-se da observação de dados do Corpus Censo. Nas análises

estatísticas tratou A e PARA como formas padrão e EM como não padrão. Dessa forma,

foi possível uma análise binária padrão X não padrão. Considerou as seguintes

variáveis, dentre outras hipóteses: (i) configuração do espaço (+fechado e –fechado);

(ii) grau de definitude (+determinante e +definido; +determinante e –definido; -

determinante e +definido; -determinante e –definido); (iii) permanência (+permanência

e –permanência) e chegou aos resultados resumidos a seguir.

Quanto à configuração de espaço, a análise mostrou que no caso de IR a

ambiente fechado apresentou uma tendência maior ao EM; e a lugares –fechados, uma

tendência à forma padrão A/PARA. Quanto ao grau de definitude, o padrão A ou PARA

demonstrou ser mais condicionado do locativo com -determinante sendo – definido

166

(como em Não ia a cinema sozinha). E o locativo +determinante e +definido mostrou

condicionar a escolha do EM (como em Nós íamos no sindicato).

Em Mollica (1996b), foram observados os condicionamentos sociais, e a autora

observa que

o fenômeno estudado é medianamente estruturado socialmente: a

escolarização dos falantes fez-se sentir principalmente entre as mulheres; a

idade influenciou no sentido de os mais jovens tenderem a se distanciar do

padrão, os falantes mais integrados no mercado de trabalho mais a variante

padrão. (MOLLICA, 1996b, p. 293).

4.2 Regência variável do verbo IR de movimento em Salvador

Em Salvador, Deus (2016) fez uma observação da regência do IR de

movimento na fala popular de Salvador, utilizando-se do acervo do PEPP (LOPES;

SOUZA; SOUZA, 2009). Fazendo uma observação geral dos dados, chegou aos

resultados apresentados na tabela 1.

TABELA 7: VARIAÇÃO NA REGÊNCIA DO VERBO IR DE MOVIMENTO-

ANÁLISE GERAL

Para 171/240 71%

EM 40/240 17%

A 13/240 5%

Advérbio 16/240 7%

Conforme se pode observar na tabela apresentada, no universo analisado em

Salvador, a variante que predomina é o PARA, seguido do EM. O EM só ocorre em 5%

dos dados. No restante dos dados o locativo é expresso por advérbios. Desconsiderando

os advérbios, são três as preposições encontradas no corpus estudado: A, PARA, EM.

A

eu jogava futebol, gostava de IR A PRAIA Inq. 40, pág. 154

Os colegas chama para IR A ANIVERSÁRIO Inq.36, pág. 250

PARA

É, com dezessete anos FUI PARA O RIO aí fiquei lá

eu FUI PRA TUDO QUE É CANTO Inq. 23, pág. 216

167

EM

é difícil ele IR NO LUGAR ASSIM Inq.36, pág. 250

não IA NEM NO COLÉGIO. Inq. 34, p. 306

Considerando o percentual baixo da variante A, e para propiciar análise

binária, para fins de análise de condicionamento das variáveis independentes na escolha

da preposição, foram desprezados os usos dessa variante. A análise estatística com o

auxílio do GoldVarb, então levou em conta as variantes PARA e EM.

As variáveis estudadas como prováveis condicionantes da escolha da variante

foram: permanência no local (+ ou – permanência), definitude do locativo (+ definido, -

definido), tempo/forma verbal (passado, presente, futuro, infinitivo, particípio passado,

gerúndio), presença de elemento interveniente entre verbo e locativo (com elemento

interveniente ou sem elemento interveniente), gênero (masculino ou feminino), faixa

etária (Fe1 – mais jovem, Fe2, Fe3, Fe4 – mais velha), escolaridade (fundamental e

média).

Dentre as variáveis observadas, o programa de regras variáveis selecionou a

Permanência no local, a Presença de elemento interveniente entre o verbo e o locativo e

a escolaridade. A seguir, apresentam-se os resultados dessas variáveis

Tabela 8: Condicionamento da Variável Permanência no Local na escolha da

preposição PARA na regência do IR de movimento.

Duração da Permanência Dados/Total Peso Relativo

Permanente (duradouro) 49/50 98% 0,87

Transitório (rápido/passageiro) 107/135 79% 0,33

Observando os resultados apresentados na tabela 8, percebe-se o fato de prever

uma permanência maior no local condiciona a escolha do PARA ao invés do EM.

Apesar dessa preposição ter ocorrido em 79% como transitório, na análise de regras

variáveis, em que se observa não só o condicionamento de uma variável, mas de todas,

no conjunto, o peso relativo dessa variável no fator transitório é de apenas 0,33.

168

Tabela 9: Condicionamento da Variável Presença de elemento interveniente entre

verbo e locativo na escolha da preposição PARA na regência do IR de movimento.

Elemento interveniente Dados/Total Peso Relativo

Com interveniente 5/14 35% 0,09

Sem interveniente 151/171 88% 0,54

Na maioria dos dados observados, não houve interveniente entre o verbo IR e o

locativo; e nos poucos dados ‘Com interveniente’ o PARA demonstrou que não era essa

variante a escolhida. O PARA teve um peso de 0,09 em casos de presença de

interveniente e 0,54 quando não há interveniente.

Tabela 10: Condicionamento da Variável Escolaridade na escolha da preposição

PARA na regência do IR de movimento.

Escolaridade Dados/Total Peso Relativo

Fundamental 74/99 74% 0,27

Média 82/86 99 % 0,75

Os resultados apresentados pela tabela 10 deixam claro que a escolaridade

condiciona os falantes ao uso do PARA e consequente redução do EM. Os falantes de

escolaridade maior demonstraram tender mais a usar o PARA; a escolaridade Média

teve um peso de 0,75, e os de menor escolaridade tendem a usar menos a forma PARA,

peso relativo de 0,27. A variante concorrente, EM, a partir desses resultados, demonstra

sofrer estigma social, pois é combatida pela escola: quanto menos exposição escolar,

menos PARA, quanto maior escolarização, mais PARA, na regência verbal de IR de

movimento.

169

5 Variação na expressão do particípio

A seguir, apresentam-se resultados da pesquisa de iniciação científica

(2015/2016) com financiamento da bolsa FAPESB, intitulada Variação no uso dos

particípios em Salvador, aqui referida como Santos (2016).

5.1 Estudos anteriores

Na nova gramática do português contemporâneo de Celso Cunha e Lindley

Cintra (CUNHA e CINTRA, 2008), encontra-se referência ao Particípio Duplo, descrito

como Verbos de Partícipio Irregular e Verbos Abundantes para só então encontrar a

descrição do Emprego do Particípio. Na seção Verbos de Particípio Irregular, vemos

que existem verbos da 2ª e 3ª conjugação que somente podem ser conjugados em sua

forma irregular, não podendo portanto ser conjugados em suas formar regulares

terminadas em -ido. São estes os verbos: dizer/dito, escrever/escrito, fazer/feito,

ver/visto, pôr/posto, abrir/aberto, cobrir/coberto, vir/vindo. Os autores fazem algumas

observações acerca de casos especiais com alguns verbos e suas formas irregulares

como é o caso dos verbos derivados: desdito de desdizer e uma ressalva de que

desabrido não é particípio regular de desabrir e, sim, forma reduzida de dessaborido, e

ainda a substituição da forma do verbo no particípio pagado, pela atual, pago.

Na seção Verbos Abundantes os autores descrevem esse tipo de verbos como

os que possuem duas ou mais formas equivalentes, e que em quase todos os casos tal

abundância ocorre em suas formas de particípio, forma com a qual esses verbos se

apresentam como terminados em -ado ou -ido ou em suas formas reduzidas. Os autores

apresentam uma regra para a especificação e uso desses casos: empregam-se as formas

regulares do verbo na voz ativa, acompanhados dos verbos auxiliares ter ou haver, e nas

formas irregulares emprega-se o verbo na voz passiva acompanhado do verbo auxiliar

ser. Há alguns exemplos: na 1ª conjugação entregar/entregado/entregue

aceitar/aceitado/aceito/aceite; na 2ª conjugação: acender/acendido/aceso;

morrer/morrido/morto; na 3ª conjugação emergir/emergido/emerso; omitir/omitido/

omisso; descritos respectivamente nas formas de Infinitivo - Particípio Regular -

Particípio Irregular. Os autores fazem algumas observações sobre o uso de alguns

particípios somente em Portugal.

170

Rocha (2016b), em relatório dos estudos de Pós-Doutorado, apresenta

resultados da observação dos usos dos particípios em textos escritos de vestibulandos de

uma universidade pública de Salvador. Nos dados observados do PEPP foram

encontrados verbos de particípios duplos e de particípio único. São dados de particípio

duplo:

que eu fui EXPULSO no Rui Barbosa Inq 18, P77

aí eu fui SUSPENSO, Inq 18, P78

porque a gente não tinha PAGO a mensalidade, Inq12, P133

São dados de particípio regular (+do) único (só uma forma):

como eu já tinha FALADO, Inq 12, P135

a gente não ia entrar DEVIDO a isso né, Inq 12, P133

eu já ligo até mais do que deveria ter LIGADO, Inq 12, P137

São dados de particípio irregular (-do) único (só uma forma):

ter VISTO a minha avó pregar assim comigo, Inq23,P210

São dados de particípio irregulares (-do) inovadores de verbos tidos pela tradição como

de particípio (+do) único (só uma forma):

ela tinha PEGO (pegado) o horário, Inq 12, P132, Linha 28

eu gosto muito assim de ir como eu tinha FALO (falado), Inq 12, P140

5.2 Variação na expressão do particípio em Salvador

Na observação geral dos dados de Salvador, observados por Rocha (2016b),

dentre os verbos de particípio duplo, percebeu-se uma tendência ao uso da forma

simples de particípio, nos casos de particípio duplo, independente do auxiliar:

porque a gente não tinha PAGO a mensalidade, Inq12, P133

5.3 Análise feita por Santos (2016)

Na observação da variação na expressão dos particípios no português popular

de Salvador (através da amostra PEPP), Santos chegou aos resultados apresentados na

171

tabela 11, que apresenta as frequências do particípio regular (+do) entre as ocorrências

de particípios duplos e simples (de forma única)

Tabela 11: Frequência das formas irregulares de particípio (-do) entre as formas

de particípio duplo e simples

Tipos de particípio Dados/Total % DUPLO 25/38 65%

SIMPLES 4/153 3%

A tabela 11 que reúne a análise com verbos de particípio duplo e verbos de

particípio simples, nota-se que entre os particípios duplos, há uma preferência pela

variante irregular (-do). Das 38 ocorrências de particípio duplo, a forma irregular (-do)

foi escolhida em Salvador (como pago, salvo), independente da estrutura sintática e do

tipo de auxiliar ter/haver; ser/estar..

Deve-se considerar ainda que o particípio do verbo PEGAR, tido como de

particípio único, com forma regula (+do) até meados do século XX, tornou-se, pelos

dados observados em fins do século em Salvador, como de particípio único, irregular (-

do). Foram encontrados dados como exemplificados a seguir, com o auxiliar TER, que

promoveria segundo a prescrição, o uso da forma de particípio regular (+do), não a

irregular (-do):

ela tinha PEGO o horário, Inq 12, P132

tinha PEGO tudo, Inq 12, P132

e olhe que eu tenho PEGO até professores bons viu, Inq 12, P135

Resta tratar de um uso inovador, ainda variável, pois as duas formas são

utilizadas. Os dados atestam essa variação:

como eu já tinha FALADO, Inq 12, P135

eu gosto muito assim de ir como eu tinha FALO, Inq 12, P140

Como se pode observar, observa-se uma variação no particípio de um verbo

tradicionalmente conhecido de particípio único (+do), utilizado de forma reduzida (-do).

Interessante frisar que o dado com o particípio reduzido foi encontrado no uso de uma

mulher jovem com o curso médio concluído. Isso indica que não é, como se poderia

imaginar, um uso que se poderia encontrar apenas entre os pouco escolarizados, parece

172

que há uma tendência no português brasileiro a tornar duplos os particípios de alguns

verbos com tendência ao uso da forma (-do).

Trabalhos futuros, com mais dados (que possibilitasse um estudo quantitativo

mais esclarecedor), e com mais aprofundamento, poderão atestar com mais segurança as

observações aqui feitas.

6 Algumas considerações

Este texto fez uma amostragem de três pesquisas de Iniciação Científica que

observaram a fala de Salvador: a variação EM/NI; a regência variável do verbo IR de

movimento, com as variantes as preposições A, EM e PARA; a variação na expressão

do particípio em Salvador.

Para o graduando em Letras, estudos como esses aqui apresentados fazem-no

conhecer e entender a sua verdadeira língua, e a variação que a caracteriza, e darão

condição de uma atuação profissional, como professor de português, condizente com a

realidade de uso dessa língua.

REFERÊNCIAS

BONFIM, Caroline. A variação da preposição EM/NI na fala de Salvador. Salvador:

Jornada de Iniciação Científica da UNEB, 2016. (Inédito)

CUNHA, Celso; CINTRA, Luís F. Lindley. Nova gramática do português

contemporâneo. 5.ed. Rio de Janeiro : Lexikon, 2008.

DEUS, Rebeca Lorena Carrilho Magalhães de. Variação na regência do verbo Ir de

movimento na fala de Salvador. Salvador: Jornada de Iniciação Científica da UNEB,

2016. (Inédito)

LABOV, William. Trad. Marcos Bagno, Maria Marta P. Scherre; Caroline R. Cardoso.

Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2008

LOPES, Norma da Silva; SOUZA, Constância Maria Borges de; SOUZA, Emília

Helena Portella Monteiro de. Um estudo da fala popular de Salvador: PEPP,

Salvador: Quarteto, 2009.

173

MOLLICA, Maria Cecília de Magalhães. A regência variável do verbo IR de

movimento. In. OLIVEIRA e SILVA, Giselle Machline de; SCHERRE, Maria Marta

Pereira. Padrões sociolinguísticos. Rio de Janeiro: Tampo Brasileiro, 1996a.

MOLLICA, Maria Cecília de Magalhães. Influência dos fatores sociais sobre a regência

do verbo IR de movimento. In. OLIVEIRA e SILVA, Giselle Machline de; SCHERRE,

Maria Marta Pereira. Padrões sociolinguísticos. Rio de Janeiro: Tampo Brasileiro,

1996b.

PAES, Maria Bethânia Gomes; LOPES, Norma da Silva. A preposição NI em Vitória

da Conquista- BA: contextos e implicações. In: Variação e Mudança no Português

Brasileiro e Aspectos da Sócio-História. Goiânia: Universidade Federal de Goiás,

2013. p. 570-577. Disponível em:

http://www.simelp.letras.ufg.br/anais/simposio_13.pdf

ROCHA, Eva. A variação na expressão do imperativo em textos escritos e orais em

Salvador. Salvador: UNEB, 2016. Relatório de Pós Doutorado. (Inédito)

SANTOS, Taíse Rocha dos. Variação no uso dos particípios. Salvador: Jornada de

Iniciação Científica da UNEB, 2016. (Inédito).

SOUZA, Emerson Santos de. Descrioulização da variante NI em textos escolares de

Serrinha - BA. Xique-Xique: Universidade do Estado da Bahia – UNEB, 2012.

Disponível em:

http://www.uneb.br/xiquexique/dcht/files/2012/08/Descrioliza%C3%A7%C3%A3o_da

_variante-Emerson_de_Souza.pdf