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Estudos Culturais: contribuições do campo daComunicação para o campo da Música

Mariana Cioffi

Introdução

Ao considerar a produção acadêmica multidisciplinar nocampo da música, e os atuais programas de mestrado dedicadosao assunto em nosso país, percebe-se a forte influência dasociologia, da antropologia, e da história. Outros programastrazem a bagagem da pedagogia, da psicologia e da filosofia.Além disso, programas não multidisciplinares dedicam-se aoestudo da própria música, abordando questões estéticas,estruturais, criativas, analíticas, etc. Em nossa produçãoacadêmica, há poucas intersecções entre o campo da música e ocampo das teorias da comunicação, bem como poucasintersecções entre esses dois campos e o campo da economia, oque sugere que os meios de comunicação, a análise das estruturasdo capital por eles geradas, bem como aspectos sociaisimportantes não estão sendo devidamente analisados no campoda música. Em outras palavras, os equipamentos da indústriacultural e conseqüentemente da indústria da música (formal einformal), e o impacto e transformação social protagonizados poresses equipamentos recebem pouca atenção em nossa produçãoacadêmica no campo da música. Por mais que se argumente quenão cabe a um acadêmico da música, e sim a um acadêmico dacomunicação olhar para estes fenômenos, o fato é que nem oacadêmico da música nem o acadêmico da comunicação olhamum para o outro.

Isso acontece não por falta de vontade dos pesquisadores.Há um motivo histórico complexo para que haja pouca interaçãoentre os campos citados, bem como há sérias conseqüências

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dessa falta de interação: a maior parte dos mercados da músicano Brasil é informal; as instituições governamentais carecem deentendimento desses mercados e boa parte dos bens culturaisproduzidos não somente não geram receita como são distribuídosprecariamente, mantendo os produtores (músicos) em condiçõesdifíceis; o mercado formal se expande de maneira descontrolada,pela lógica do capital financeiro internacional, ignorando asdemandas culturais do país; culturas que circulam por meio dosmercados informais são mantidas na marginalidade e não têmsuas reivindicações ouvidas nem por acadêmicos nem porpolíticos.

Nesse cenário, os Estudos Culturais (e áreas afins) trazemdescobertas e explicações históricas que ajudam a compreenderpor que há tão pouca interação entre o campo das teorias dacomunicação e o campo das artes. Na intersecção desses camposestá a indústria cultural – aqui compreendida como mercado debens culturais - , objeto de estudo complexo e que foi sujeito avárias “meias-interpretações” através dos anos. É impossívelanalisar quantitativamente um campo que filosoficamente não écompreendido, e tanto o contexto de surgimento dos estudosculturais quanto seu conteúdo esclarecem essas questões. Nessesentido, a corrente nos ajuda a entender que é mais do quenecessário elaborar pesquisas quantitativas no campo daindústria cultural, bem como mudar a maneira com queelaboramos estudos acadêmicos no campo das artes e dacomunicação. O objetivo desse trabalho, portanto, é demonstrar aimportância dos estudos culturais - e de certas áreas afins – paranosso campo de estudo da música em dois pontos: 1. nacompreensão e análise quantitativa das indústrias culturais e 2.na construção de um conhecimento ampliado, que pense oconceito de cultura pelo que ele realmente é e também pelo quepoderia vir a ser: lugar de exercício da cidadania e decrescimento econômico balanceado (o que obviamentepossibilita mudanças positivas em nosso mercado da música).

Primeiramente, discutirei as teorias da comunicação e o

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surgimento dos estudos culturais nesse contexto. Depois, focareio olhar para as indústrias culturais, onde características do campoe conseqüências dessas características serão expostas eexplicadas através da perspectiva dos estudos culturais e de áreaspróximas, primeiro em âmbito global e depois em âmbitonacional. Por último, olharei para contribuições específicas daárea de estudo, aquelas que ajudam a mudar a realidade e não ateoria. O foco é nas indústrias culturais como um todo, apenas“passeando” pela área da música eventualmente - isso devido àlimitação do formato; utilizar as perspectivas dos estudosculturais especificamente na área da música é tarefa a serrealizada e que toma espaço maior que o deste artigo. Esteestudo, portanto, dedica-se a provar a importância, para aacademia de música, do trabalho de coleta/análise de dados sobreas indústrias culturais e da reobservação das teorias de acordocom o olhar da corrente em questão.

As teorias da comunicação e os estudos culturais

Considerando que a indústria cultural surge dos meios decomunicação em massa, seu estudo deve estar intimamenterelacionado às teorias da comunicação. Os estudos culturais, porsua vez, estão relacionados com os desenvolvimentos nessecampo, já que consideram a cultura como fenômeno central nacompreensão das sociedades e os meios de comunicação comoelemento ativo construtor e difusor de práticas e significações.Os estudos culturais surgiram em resposta às primeiras teorias dacomunicação, que ignoravam as contribuições da sociologia -apesar de os primeiros estudos terem sido os da Escola deChicago (1910-1920), nos quais a comunicação era estudadajunto com as ciências sociais (Mattelart, A. &M., 1998, p.19).Mais tarde na década, a Escola perdeu força e vieram os estudosfuncionalistas por Harold Laswell (1930-40), que eram focadosem aspectos administrativos, ignorando indivíduos e suas

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respostas. Os conceitos teóricos da escola pressupunham umamassa ignorante de pessoas, que responderia ingenuamente esem reflexão às mensagens dos meios de comunicação (Wolf,1998, p.23). Esse pressuposto continuou durante muitas décadas,principalmente na Teoria Matemática da comunicação (final dosanos 40 – 1950) e na Teoria Crítica da Escola de Frankfurt (1940em diante), que foi uma resposta radical à ênfase em aspectosadministrativos e de negócios das outras correntes (Wolf, 1999.p. 82). Foi um estudioso da teoria crítica, Theodor Adorno(1977), que cunhou o termo “indústria cultural”. Apesar deparciais, os pressupostos da Escola de Frankfurt permanecem emnossos estudos e imaginário, colocando a arte em oposição aoconceito de produto e de industrialização e denegrindo tudoaquilo que circula na indústria cultural. Muitas outras teoriasseguiram tentando explicar o fenômeno da comunicação emmassa (ver Mattelart, A. &M., 1998 e Wolf, 1999), mas o maisrelevante para este estudo é lembrar que por muito tempo osmeios de comunicação foram compreendidos apenasparcialmente, através de teorias que ignoravam avanços nocampo da sociologia e da antropologia e condenavam seu próprioobjeto de estudo, os meios de comunicação.

Os estudos culturais surgiram na década de 1960, naInglaterra, sendo uma das primeiras correntes a reconsiderar asociologia no estudo dos meios de comunicação.Multidisciplinar, o campo possui influência do estruturalismofrancês, da crítica marxista, da psicologia e da sociologia (Storey,2010, p.2), sendo sua principal influência o estruturalismo (aquié interessante citar que o trabalho de Pierre Bourdieu, ligado aessa corrente1, foi e ainda é de suma importância para estudiososda área de estudos culturais e das indústrias culturais). SegundoWolf (1999, p. 107), para os estudos culturais, “a cultura não éuma prática, nem é simplesmente a descrição da soma dos1 Apesar de hoje ser relacionado ao estruturalismo, Bourdieu na realidadeintroduziu idéias estruturalistas à sociologia, elaborando o que atualmenteconhecemos como sociologia crítica.

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hábitos e costumes de uma sociedade. Passa por todas as práticassociais e é a soma de suas inter-relações”. Em outras palavras, acultura engloba todas as práticas e significados, legitimados ounão. Nessas estruturas coletivas, “os mass media desempenhamuma função importante, na medida em que agem comoelementos activos dessas mesmas estruturas” (Wolf, 1999,p.107). Apesar de atualmente ser capaz de contribuir para oestudo dos meios de comunicação e conseqüentemente dasindústrias culturais com perspectivas renovadoras, por muitotempo também os estudos culturais se restringiram às discussõeslegitimadas pelo universo culto2 deixando de lado dados rígidossobre a comunicação de massa (Canclini, 2010, p.17). Logo,trouxeram contribuições filosóficas, mas poucos dadosconcretos, razão pela qual os estudos centrais para este trabalhosão provenientes de teóricos mais contemporâneos como NéstorGarcia Canclini, George Yúdice e Toby Miller, que atentam paraa necessidade do olhar crítico e de estudos quantitativos noâmbito das indústrias culturais.

Bourdieu e Canclini sobre a indústria cultural e a esferaculta – consequencias globais

Bourdieu oferece explicações pertinentes paracompreender as razões pelas quais a cultura de massa tem sidoconstantemente excluída da produção acadêmica. Por possuirherança do estruturalismo, o sociólogo coloca as práticas sociaisem uma perspectiva muito clara, evidenciando conflitos eestruturas sociais. Em seu livro Economia das Trocas Simbólicas(2007), o autor expõe as relações de poder no campo daprodução cultural da Europa no século XIX, do contexto desurgimento dos meios de comunicação em massa.

Bourdieu descreve o mercado dos bens simbólicos (2007,

2 A discussão sobre legitimação será retomada no próximo item.

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p.99 – 154), que são entendidos dentro do espaço que ele chamade campo da produção cultural. Esse campo envolve nãosomente produções artísticas como produções intelectuais ecientíficas (em consonância com o conceito de cultura dosestudos culturais). Existem dois campos nos quais benssimbólicos circulam: o campo da produção erudita e o campo daindústria cultural. Um se define em relação ao outro; o campo daprodução erudita se destina a um público de produtores quetambém produzem bens culturais, num rompimento com opúblico não produtor e não intelectual (p.105), enquanto que ocampo da indústria cultural está condenado a se definir emrelação à cultura legítima. Em seu contexto de surgimento, podeinovar somente utilizando as técnicas da cultura erudita e aindacorre o risco de ter tais produções não codificadas pelo seupúblico, que é o público médio, um público heterogêneo (p.143).Além disso, “obedece, fundamentalmente, aos imperativos daconcorrência pela conquista do mercado” (p. 136).

Por serem campos de circulação de bens, ambos possuemsuas plataformas de circulação. A plataforma do campo daindústria cultural é naturalmente a dos equipamentos da indústriacultural, enquanto que o campo da produção erudita conta com ocampo das instâncias de reprodução e consagração. Essas são osistema de ensino e instituições de conservação do capitalsimbólico, como museus.

Uma definição completa do modo de produçãoerudito deve incluir as instâncias capazes deassegurar não apenas a produção de receptoresdispostos e aptos a receber (pelo menos a médioprazo) a cultura feita, mas também a produção deagentes capazes de reproduzi-la e renová-la (p.117).

Assim sendo, devemos tratar o campo das instâncias dereprodução e consagração como “campo das relações deconcorrência pelo monopólio do exercício legítimo da violênciasimbólica” (p.118), onde ocorre concorrência pela consagração

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cultural. Simplificando a explicação: a produção erudita existiaem oposição à produção da indústria cultural, uma jápressupunha a legitimação e a outra estava sujeita às regras demercado e era excluída automaticamente do campo legitimadordas instâncias de reprodução e consagração (notadamente, osistema de ensino).

Canclini retoma esse quadro trazendo outras informaçõesrelevantes sobre as classes baixas excluídas, consumidoras da“cultura média”, em seu livro Consumidores e Cidadãos (2010).Antes de progredir, é relevante notar que a leitura de CulturasHíbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade (1995),também de Canclini, mostra como esta estrutura descrita porBourdieu – entre outras - foi herdada especificamente pelaAmérica Latina. Com relação a Consumidores e cidadãos, oestudioso descreve a formação de conceito de espaço públiconeste mesmo cenário europeu do século XIX. Nesse espaçopúblico, membros da sociedade exerciam sua cidadania atravésdo voto e do esclarecimento político. “Mas as regras e os rituaisde ingresso aos salões da burguesia democratizadora limitavam odebate sobre o interesse comum àqueles que podiam informar-selendo, compreendendo o social a partir das regras comunicativasda escrita” (2010, p.37-8). Aí se encontra a correspondência comas estruturas do campo da cultura erudita e com o campo dasinstâncias de reprodução e consagração de Bourdieu, bem comocom as suas relações com o campo da indústria cultural: oconceito de espaço público como lugar de exercício da cidadaniae de esclarecimento, bem como o direito de exercer essacidadania, foi criado dentro do campo da produção erudita e eraautomaticamente legitimado pelos sistemas de ensino, excluindoo público ligado ao consumo da cultura de massa. Por isso,Canclini continua, foi exatamente pelos meios de comunicaçãoem massa que irromperam as classes populares européias -mulheres, operários, camponeses (Canclini, 2010, p.38). E atéhoje no século XXI o conceito de espaço público se baseia nessaconcepção criada no século XVIII e consagrada no século XIX.

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Essa discussão será retomada mais adiante. Percebe-se então,através desses dois e mais tantos estudiosos do campo dasociologia e dos estudos culturais, que a esfera da comunicação edas indústrias culturais existiu em oposição ao universo cultolegitimador. Aí reside o motivo pelo qual o olhar para ofenômeno da comunicação em massa durante muito tempocareceu de perspectivas críticas da sociologia e se voltou paraaspectos administrativos. Até mesmo o campo dos estudosculturais sofreu com essa oposição, como anteriormenteexplicado. Em virtude disso, a globalização, fenômeno de sumaimportância na compreensão de nossas sociedades, por ocorrerno campo da comunicação de massa ainda é entendida apenasparcialmente. Os estudos do campo da comunicação ainda estãoencerrados em discussões endógenas, quando há mais de meioséculo os intercâmbios culturais entre EUA (um dos principaiscentros da globalização) e América Latina ocorrem muito maisnas indústrias de comunicação do que na cultura legitimada(Canclini, 2010, p.17). O entendimento parcial faz com quepaíses periféricos voltem seus olhares para o nacional e para alegitimação de práticas folclóricas ou de outro tipo paramanterem sua identidade em oposição à globalização. Aspolíticas culturais e a academia, portanto, apesar dos avanços nosestudos da comunicação, conservam uma “miopia anacrônica” deações voltadas à “preservação de patrimônios monumentais efolclóricos e na promoção (com cada vez menos recursos) dasartes cultas” (p.18). A globalização é entendida através de duasopções: globalizar-se ou perder a identidade. No âmbito dasindústrias musicais, mundialmente o fenômeno continua poucocompreendido. Como a arte continua sendo colocada em conflitocom o conceito de produto (herança do tempo da formação doscampos citados), o resultado é que dados sobre o funcionamentodas indústrias musicais e reflexões sobre suas práticas sãonegligenciados, deixando a indústria funcionar da maneira quebem entenda. Hesmondhalgh (2007) é um dos poucos autores aexporem as contradições da indústria da música. Lawrence

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Lessig, criador do Creative Commons, delibera sobre o quãoobsoleto é o conceito de direitos autorais no mundo da Internet esobre como as grandes companhias influenciam governos eacadêmicos a acreditarem que seu modo de distribuir música é oúnico possível, “trancando a cultura e controlando acriatividade”, nas palavras do título de seu livro (2004).

A cultura popular na América Latina: modernismo emodernidade

Por tratar-se de estruturas globais, trazidas para aAmérica Latina no processo de conquista e colonização e depoispela expansão do capital, também o Brasil é afetado pelosmesmos processos acima descritos, mas com suas peculiaridades.Como lembra Canclini, a globalização não é simples e completaabsorção de estruturas nacionais e locais por estruturas globais,nem o triunfo do pensamento único. A globalização é sim, um“processo de fracionamento articulado do mundo e derecomposição de suas partes” (2010, p.1). A própria formação denossos campos da produção cultural (referência a Bourdieu) e osurgimento de um conceito de cultura popular legitimado pelosistema de ensino e museus comprovam que nossa formação nãopode ser entendida como simples cópia dos modelos europeus enorte-americanos.

Voltando ao modelo de Bourdieu, e os dois campos deprodução cultural, o da indústria cultural, onde reside a culturamédia, e o da cultura erudita, produzida por e para as elites eautomaticamente legitimada: Também esses dois campos existemem nosso país, mas suas interações são possivelmente maiscomplexas. O centro dessa complexidade reside no movimentomodernista da década de 1920. Renato Ortiz3 (2001) cunha o

3 Ortiz é referência de muitos teóricos dos estudos culturais latino-americanos.Sua idéia de modernismo sem modernidade foi retomada por Canclini e Miller

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termo “modernismo sem modernidade”, referindo-se à escassezno país de equipamentos industriais que caracterizam o adventodos modernismos europeus por um lado, e a existência de umregime institucionalizado e a ‘proximidade da revolução social’no outro4. Em outras palavras, tivemos um movimento derenovação nas artes, nos quais a rica produção artística dasclasses populares - mas não produção cultural como um todo, jáque as classes baixas não puderam produzir conhecimentocientífico/intelectual legitimado – foi colocada no centro dostrabalhos acadêmicos e artísticos das elites, rompendo comtradições artísticas européias, que antes constituíam o universolegitimado brasileiro. Não tínhamos, entretanto, um equipamentoindustrial que se igualasse ao europeu (modernidade) - problemacom o qual industrialistas de São Paulo se ocuparam, unindo-sena Federação de Indústrias de São Paulo (FIESP). Elesconstruíram redes sociais para promover ideais de progresso,liberalismo e industrialização, defendendo um modernismo euma modernidade alinhada com os centros industriais e culturaisda Europa (Miller & Yúdice, 2002, p.130). Muitas instituiçõesculturais surgiram paralelamente à fé dos industrialistas namodernização, como a USP, em 1934 e o MASP, em 1947.Concomitante à construção de equipamentos culturais na EraVargas está o desenvolvimento de um mercado da música ondecirculava produção de artistas oriundos de camadas populares,que fez institucionalizar principalmente o Samba. Assim surge oconceito de popular no Brasil, cenário que é explicado pelosteóricos americanos dos estudos culturais Miller & Yúdice(2002) da seguinte maneira: “O que caracterizou esses países5 foium pacto entre elites alinhadas ao estado quepromoveram industrialização por substituição de importações, e

& Yúdice. 4 Em referência a Anderson, 1983.

5 Miller e Yúdice analisam o surgimento do conceito do popular nos países latino americanos como um todo.

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um nacionalismo popular também alinhado ao estado quebuscava bem estar social nas formas corporativistas dos anos1920 e 1930” (p.131). Esse é o retrato do contexto de surgimentodo conceito de cultura popular e dos equipamentos e setores quedifundiram essa cultura: educação, o rádio (indústria musical),filmes (indústria cinematográfica) e instituições antropológicas.

Considerando esse cenário, nós brasileiros possuímos apeculiaridade de ter visto nossa produção artística oriunda dascamadas baixas se legitimar tanto pelo campo da indústriacultural como pelo campo da produção erudita. Miller & Yúdice(2002, p.131) chamam esse contexto de “paradoxal”: as elitesindustrialistas e o estado populista, em aliança, criam umaidentidade oriunda do “popular”, das camadas baixas. Logo, oantagonismo entre os campos de Bourdieu continua: a culturapopular é legitimada pelo campo de produção erudito (classespopulares continuaram politicamente excluídas) e difundidapelos meios de comunicação em massa (campo da indústriacultural) devido à industrialização tardia e à necessidade decriação de uma identidade nacional forte. O resultado é queculturas populares hoje estudadas na academia ou subsidiadaspor políticas culturais geralmente devem se encaixar no conceitode popular de quase um século atrás, e são (de novo,paradoxalmente) aquelas que não sejam ou não foramoriginalmente produzidas para o consumo em massa (ex: oChoro, o Fandango, o Maracatu, o Boi, etc). Essa é a “miopiaanacrônica” da qual Canclini fala (2010, p.18), explicada nocapítulo anterior.

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Contribuições

Até agora expliquei acontecimentos e processosrelevantes ao estudo das indústrias culturais de acordo com aperspectiva dos estudos culturais, perspectiva que evidencia anecessidade de um olhar para a indústria na academia. Agorapassarei para as mudanças na realidade que a corrente reivindica.Essas mudanças passam pela revisão de certos conceitos: dopróprio popular, do consumo e da cidadania. Em primeiro lugar odo popular. De acordo com Canclini, o conceito foi se “tornandoinapreensível pela multiplicidade de encenações com que ofolclore, as indústrias culturais e o populismo político orepresentam” (2010, p.44). O estudioso coloca uma pergunta demanifestações políticas latino-americanas como objeto deanálise: “Se este não é o povo, onde o povo está?” (2010, p.42),evidenciando a dificuldade de se falar em nome do popular, jáque movimentos de esquerda, socialistas ou democráticos falhamem atuar dentro dos cenários decisivos hegemônicos (p.43). Como tempo, esse termo foi substituído por “sociedade civil”, emoposição aos porta-vozes do Estado. Mas assim como o conceitode popular, o conceito de sociedade civil não representaadequadamente a “variedade de seus representantes, o caráteramiúde antagônico de suas reivindicações e a adesão quasesempre minoritária que os sustenta” (p.44). Seria, portanto umconceito totalizador a negar o heterogêneo. O ideal seria perceberque para que se viva em uma sociedade realmente democrática,“é indispensável admitir que o mercado de opiniões cidadãsinclui tanta variedade e dissonância quanto o mercado da moda edo entretenimento” (Canclini, 2010, p.45). Aí entra o pontoprincipal para repensarmos nossas políticas culturais e também oestudo acadêmico: Nós cidadãos também somos consumidores.Esse é o ponto central do livro de Canclini, Consumidores eCidadãos (2010).

De acordo com ele, devido à globalização e aocrescimento da indústria, a participação social é organizada

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muito mais através do consumo do que mediante o exercício dacidadania. Identidades se organizam cada vez menos em torno desímbolos nacionais e passam a se formar a partir do quepropõem, por exemplo, Hollywood e MTV (2010, p.13). Assim,o entendimento de si mesmo se espelha e se constrói noconsumo: a música que se ouve, as roupas que se escolhecomprar, os canais de televisão que se assiste, tudo isso revela eao mesmo tempo forma identidades. Decisões cidadãs, baseadasem perguntas como “quem representa nossos interesses?”, “comoobtemos informações sobre essas pessoas?”, “a que lugarpertencemos e que direitos isso nos dá?”, são respondidas “antespelo consumo de bens privados e meios de comunicação do quepelas regras abstratas da democracia ou pela participação emorganizações políticas desacreditadas” (p.14 e p.29). Ascampanhas eleitorais se mudam do comício para a televisão, aspolêmicas doutrinárias para o confronto de imagens e apersuasão ideológica para as pesquisas de marketing (p.29). Otítulo do capítulo de Canclini que trata desse assunto nos leva àreflexão: “Consumidores do século XXI, cidadãos do XVIII”.Nós latino-americanos somos então consumidores globalizados emodernizados, e, ao mesmo tempo, nosso conceito de cidadaniaestá atado ao século XVIII, como explicado no item 3.Candidatos não possuem propostas condizentes com todas asidentidades contidas na sociedade, coisa que o consumo dá contade identificar. Candidatos de esquerda, socialistas oudemocráticos e movimentos sociais falham em atuar em cenáriosdecisivos, não dando conta de representar nossas múltiplasidentidades. Também por esse motivo, nossa participação ematos de cidadania é mínima: grande parte da população se abstémnas eleições de países em que o voto não é obrigatório, e nospaíses em que é, muitos não sabem em quem votar uma semanaantes dos comícios. (p.43). O deslocamento da cidadania para oconsumo é, portanto, central em muitos outros trabalhos atuaisno campo dos estudos culturais, como os trabalhos aqui citadosde Toby Miller e George Yúdice.

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Esses estudiosos examinam também como as políticasculturais deveriam ser orientadas. Em geral, o ponto éreorganizar a atual interação público-privado (analisadas nestetrabalho), tendo em mente que a cultura é elemento central,elemento que pode, ao invés de excluir e legitimar umas poucaspráticas, promover a cidadania através da legitimação peloEstado e pela academia das mais variadas práticas, que jáexistem em nossas sociedades. Para nosso ex-ministro da cultura,as instituições públicas e o Estado possuem papel central emassegurar desenvolvimento balanceado e comércio justo. Acultura é vital para esse processo justamente por promovercidadania e crescimento econômico. Mas esses dois conceitosnão podem ser entendidos separadamente; reflexão sobre essesprocessos e ultrapassar o foco na “indústria” para o foco em“economia” é, portanto, uma necessidade constante (Gil, 2008,x-xii).

A cultura engloba todas as práticas e significações.Entretanto, está sujeita às interações conflituosas descritas porBourdieu, à violência simbólica exercida pelo campo delegitimação (instâncias de reprodução e consagração). O queocorre no campo do privado (campo da indústria cultural) égeralmente excluído do saber legitimado; esse campo então sedesenvolve de acordo com a lógica do capital. Passando isso paranossa realidade brasileira, no campo da música, temos umaliteratura que se dedica quase que inteiramente ao popular e aofolclórico, políticas públicas que mantêm essa mesma posição eainda por cima concentram verbas em áreas privilegiadas - 79%das verbas da Lei Rouanet vão para a região Sudeste (MinC2010, p.7) de um lado, e uma indústria musical que crescedesordenadamente e mantém a maioria esmagadora do mercadoda música na informalidade, uma legislação de direitos autoraisem consonância com a lei internacional que favorecemultinacionais e detém a criatividade (Lessig, 2004) e umacoleta de royalties desorganizada e corrupta (Neto, 2011) poroutro lado.

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Logo, estudos impulsionados pela área dos estudosculturais ajudam não somente a reverter esse quadro através deestudos quantitativos centrados na indústria cultural, como aconstruir um espaço realmente democrático, onde todos osconsumidores e a multiplicidade de produtos consumidos sejamconsiderados marcas de identidade e de demandas sociais. Osteóricos aqui citados Canclini (2010) e Miller e Yúdice (2002)delineiam idéias para políticas culturais em seus livros. O ideal éque essas idéias sejam retomadas e então pensadas dentro decada campo da arte, fazendo surgir estudos a partir de cada umadas áreas (música, cinema, televisão). Penso que a música éelemento central construtor de identidades, e por isso estudosculturais deveriam também ser elaborados dentro da academia demúsica. O olhar para o consumo como parte do exercício dacidadania faria com que muitas práticas hoje excluídas daacademia pudessem ser legitimadas e com que gerassemmovimentação da economia e remuneração justa para produtores(já que hoje são práticas informais). Isso significa um olhar sempreconceito, uma racionalidade “que possa entender as razões decada um e a estrutura dos conflitos e das negociações” (Canclini,2010, p.23); significa, afinal, a possibilidade de construção desociedades realmente democráticas e multiculturais através doelemento principal delas: a cultura, lugar onde se legitima toda ateoria que constrói e modela o funcionamento de sociedades,bem como suas estruturas.

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