estudo comparativo dos problemas de vida em duas culturas afins: angola-brasil

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Page 1: Estudo Comparativo Dos Problemas de Vida em Duas Culturas Afins: Angola-Brasil

Estudo Comparativo Dos Problemas de Vida em Duas Culturas Afins: Angola-BrasilAuthor(s): Rene RibeiroSource: Journal of Inter-American Studies, Vol. 11, No. 1 (Jan., 1969), pp. 2-15Published by: Center for Latin American Studies at the University of MiamiStable URL: http://www.jstor.org/stable/165399 .

Accessed: 19/12/2014 16:25

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Ren? Ribeiro Professor de Antropologia Universidade Federal de Pernambuco Brasil

ESTUD0 COMPARATIVO DOS

PROBLEMAS DE VIDA EM duas

CULTURAS AFINS: angola-brasil*

A

tendencia para polarisar dialeticamente as situagoes socio-culturais

chegou a conquistar cientistas do calibre de Georges Balandier,

que investiu ha algum tempo contra os estudos de mudanga cul?

tural e contra a antropologia pratica ou aplicada1. Este trabalho, embora

nao se preocupe com "choques entre civilizagoes", tern como presuposto a possibilidade da mudanga cultural e se contem nos limites da etnopsi-

quiatria e da etnopsicologia.

Compreendendo estas disciplinas como o estudo comparativo dos

processos psicologicos e dos disturbios patologicos da conduta, em

sociedades e culturas diferentes, ha igualmente que acautelar o estudioso

contra os preconceitos difundidos sobre o metodo comparativo, precon- ceitos que favorecem as generalisagoes e as previs5es obtidas com a

aplicagao de modelos tornados as ciencias mais ou menos exatas. Nao

obstante, e Roger Bastide quern reconhece que a etnologia "permite ao

psiquiatra alcangar a importancia da dimensao cultural da personalidade morbida e Ihe mostra que os disturbios mentais sao inextricavehnente

ligados ao mundo dos valores"... E logo completa ? "bem como aquele dos simbolos" 2. Por demais conhecida e tambem a observagao de Irving

* Conferencia no Simpdsio Internacional de Psiquiatria Transcultural (Sal? vador, Brasil) 23-27 julho, 1968.

1 Balandier, G., "The colonial situation: a theoretical approach (1951)" em Social Change -The colonial situation, org. por Immanuel Wallerstein, John Wiley and Sons, Inc., New York, 1966, pags. 34-61, cit. pag. 41-52.

2 Bastide, Roger, Sociologia das Doencas Mentals, Trad, do frances por Mau- ricio Rittner, Cia. Edit. Nacional, S.Paulo, 1967, pag. 15.

There

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Estudo Comparativo de Angola e Brasil 3

A. Hallowell sobre o comportamento fobico (em termos ocidentais) dos

indios Ojibwa, do Canada, para com certas cobras, ras e um gigante canibal (Windigo) em que a realidade e distorcida pelas concepts mf-

ticas3.

No Brasil, dois exemplos bastariam para realgar a importancia dessas

novas disciplinas. O etnologo Darcy Ribeiro, quando do seu trabalho de campo entre

os fndios Kaaper (Urubu), do Maranhao, encontrou perfeitamente definida uma sindrome mental all chamada inaron, no seu polo expansivo e apiay no seu polo depressivo ? bem como institucionalizadas as con-

dutas da coletividade indigena para com os seus padecentes. Nas proprias

palavras desse pesquizador:

Constatamos que uma epidemia de gripe assolara a aldeia matando muitos inclusive um filho seu [do personagem do drama que relata] que se fazia rapaz. Uira comegou, entao, a

percorrer os caminhos prescritos pela tradi^ao tribal para os

infortunados, ficou inaron. Esta expressao Tupi que tern sido traduzida por raiva, colera, indica pra os fndios Urubus um estado patologico de extrema irritabilidade que exige o mais total isolamento para ser debelado. DSsde que alguem se declara inaron 6 imediatamente abandonado por todos, fi- cando com a casa, os bichos e toda a tralha & disposigao para o que Ihe aprouver. De ordinario cura-se rapidamente que- brando potes, flexando xerimbabos ou, nos casos mais graves, cortando punhos de r?de e derrubando a propria casa. Quando passa o ataque de 6dio feroz, voltam os parentes como se nada houvesse, reconstroi-se o destruido e a vida prossegue4.

O autor realga o respeito e a nao-interferencia do grupo indigena que nesses casos assim "se protege de conflitos e tensoes dissociativas". O seu

caso, porem, evolui, porque de inaron passa Uird a se mostrar apiay ?

"estado cada vez mais profundo de prostragao, de tristeza e desengano". Outro caminho, tambem "prescrito pela tradigao tribal para as

grandes crises morais" ? realga Darcy Ribeiro ?, e entao experi- mentado:

Antigamente os indios Urubus tinham inimigos nos grupos de brancos e de indios Tembe e Timbira que circundam seu terri- t6rio. Com a pacificagao so restaram os Guaja ? pequena tribo arredia que vive encravada nas matas do Pindare e constitute o

8 Hallowell, Irving A., "Cultural factors in the structuralization of perception" com. conferencia Psicol. Social na Encruzilhada, 1950, mimeografado, pags. 21 e 22.

4 Ribeiro, Darcy, "Uira vai ao encontro de Maira: as experiencias de um indio que saiu a procura de Deus". Anais da 11 Reuniao Brasileira de Antropologia, S.A. Artes Grdficas, Bahia, 1957, pags. 17-28, cit. pag. 20.

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Journal of Inter-American Studies

ultimo grupo inimigo que resta aos Urubus e, como tal, suporta todo o peso da instituigao tribal de transfer6ncia de tensoes emocionais. Cada epidemia que f az vitimas nas aldeias Urubus, engendra grupos de desesperados que vao vingar-se nos Guajd. Uira participou de um destes bandos guerreiros de compensagao emocional contra os Guajd, fez vitimas e sofreu ferimentos. De

regresso, percorreu as aldeias narrando, no estilo pantomimico dos Urubus para estes casos, os seus feitos. Representou no

patio das aldeias, com a gesticulagao mais eloquente, os corn- bates de que participou e exhibiu as cicatrizes como conde- coragoes. Mas nem assim alcangou o controle emocional que procurava. Quando regressou a sua morada continuava apiay, pensando no fllho morto e desgostando-se de tudo que a vida lhe podia oferecer. Haviam-se esgotado para Uira as fontes do

gosto de viver e nenhum consolo ou alivio lhe trouxeram as formas tradicionais de reconquistar o equilibrio emocional: o isolamento e a guerra5.

A tragedia consuma-se quando decide-se Uira enfrentar a experien? cia m&xima, pela audacia, fortaleza e animo requeridos, que e a do

encontro vivo com Maira, o criador. Enfeitou-se, armou-se e partiu com

afamilia.

Ignorante dos mitos tribais e dos costumes dos Urubus a sociedade

maranhense viu num indio nu, pintado e armado, uma ameaga e nesse

mesmo indio, apanhado, desarmado, porem sem aceitar nada da civiliza-

gao ocidental e furioso com os seus ? que haviam desesperado da

empresa ? e com todos, por nao entenderem-no, um louco ? e assim o

tratou.

Valores e simbolos, no caso, diferentes. Como diversas as condutas

por estes pautadas. O antropologo americano William H. Crocker descrevendo recente

movimento messianico dos indios Ramkokamekra-Canela, tambem no

Maranhao6, surpreendeu-se que numa tribo em que as criangas nao sao frustradas e cedo sao admitidas ao conhecimento do sexo e a cagoar sobre

este com os adultos, tribo ainda cuja atitude para com o sexo sempre f6ra de alegria e prazer mutuo, com grande liberdade antes do casamento e de-

pois dele, se haja instituido por ocasiao desse movimento, uma moralidade

puritana e castigos severos sob a forma de brutal abuso sexual. Tambem e de notar que tal aventura, tendo resultado em tragedia, com o empobre- cimento total da tribo em quatro meses (quando atravessavam os Canela

5 Ibid., pag. 21. ? Crocker, William R., "The Canela messianic movement: an introduction",

Com. & Reuniao Brasileira de Antropologia, Belem, 1966, manuscrito. Tambem, "Extramarital sexual practices of the Ramkokamekra-Canela indians". Vorkerkund- liche Abhandlugen. Band 1. Hannover, 1964, pags. 25-35.

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Estudo Comparativo de Angola e Brasil 5

um ano de prosperidade), ataque sangrento dos fazendeiros, morte de

cinco guerreiros e consequente expulsao dos seus campos, nao tenha im-

plicado em maiores consequencias para a lider fracassada ? a Maria

Castelo ? alem do simples ostracismo.

Traz esse caso, assim, mais uma vez a baila a discussao do papel das

experiencias infantis e da liberdade sexual sobre o comportamento humano e indica a complementagao do metodo etnografico com as

tecnicas psicologicas e ate uma possivel revisao de conceitos quer da

psicologia, quer da psiquiatria din&micas. O que coloca em primeiro piano a importancia das ciencias hibridas ? a etnopsicologia e a etnopsiquiatria ? no estudo das civilizagoes diferentes e de sua possivel aplicabilidade ao

conhecimento da nossa propria civilizagao.

A t6se central desta conferencia e que o estudo comparado dos

problemas de vida que afligem aos individuos em duas sociedades etnica

e culturalmente afins, mas de situagao diversa ? situagdo no sentido de

Balandier, uma colonial e outra desenvolvimentista ? e de tempo social

tambem diferente ? uma em conjuntura colonial e a outra em processo de "demarrage" ? revela sua ligagao com as tradigoes culturais e com a

conjuntura socio-economica peculiares a estas sociedades. Elementos

estes, nao ha duvida, que estao na base das tensoes e dos conflitos que por certo influem no equihbrio mental e no ajustamento de suas populagoes.

Considerando que nas sociedades influenciadas pelo catolicismo os

mais intimos desejos e as mais profundas angustias encontram satisfagao e lenimento nas promessas aos santos milagrosos e populares, lembramo-

nos de utilizar os pedidos dos devotos, sob a forma de bilhetes depositados

junto com esportulas nos santuarios de Sto. Antonio (no Recife, Brasil) e de Nossa Senhora de Muxima (proximo a Luanda, Angola).

No Recife, inscrigoes nas paredes da capela e do pateo externo

do convento de Sto. Antonio substituem ultimamente os bilhetes

desencorajados pelos trades. Estas inscrigoes, em ntimero de 509, foram

copiadas pela snrta. Anaisa Vergolino (Assistente de Etnografia do Brasil.

Univ. Fed. Para, entao estagiando conosco) enquanto 300 bilhetes a N.S.

de Muxima, recolhidos pelo Pe. A. da Silva Rego (Diretor do Centro de

Estudos Historicos Ultramarinos, Lisboa) nos foram enviados por esse

magnSnimo historiador portugues. O correio, como seria de esperar, dispoz-se a colaborar no estudo,

extraviando dois pacotes e reduzindo o material de Angola a 1/3. Do

material do Recife tiramos, entao, uma amostra aleatoria simples (1 em

cada 3 inscrigoes) perfazendo 187 pedidos. De Angola foram apurados 164 pedidos. Tanto as inscrigoes como os bilhetes continham em varios

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casos mais de um pedido. A amostra do Recife ficou assim compensada do erro da repetigao (a mesma pessoa costuma duplicar a sua inscrigao uma ves e mais) com o que pensam os fieis mover o santo. Eis os tipos de

problemas por ordem de frequencia:

Brasil Angola N=187 N=164

% % Amor 56 29,9 10 6,1 Estudo 35 18,7 6 3,7 Emprego 21 11,2 7 4,3 Melhora economica 19 10,2 47 28,7 Satide 14 7,5 38 23,2 Maleficio (magia) .... .... 19 11,5 Felicidade 9 4,8 1 0,6 Paz, socego 2 1,1 12 7,3 Vicios 4 2,1 1 0,6 Habitagao 1 0,5 4 2,4 Vago, criptico 16 8,6* Outros __10 5,3 19 11,5

187 99,9 164 99,9 * Como as inscrigoes, ao contrario dos bilhetes, sao publicas, compreende-se

a cautela de alguns devotos em so se f azer entender pelo santo.

As preocupagoes maiores no Recife sao com problemas amorosos

(Sto. Antonio e santo reputadamente casamenteiro), com o sucesso nos

estudos, a obtengao especifica de um emprego e melhoria economica de

um modo geral. Em Angola, a afligao maior e de natureza economica

bdsica, logo com a saude e em seguida, com o maleficio e praticas magicas. O amor, ali, conta menos que a paz e o socego...

O dominio do idioma portugues, como seria de esperar, e muito

maior no Brasil, mas os erros gramaticais e de grafia sao aqui ainda

numerosos, demonstrando o nivel educacional consideravelmente baixo

desses devotos. Para Angola, e flagrante a incompleta e precaria escolari- dade dos missivistas. Realga ainda uma particularidade nas cartas a N.S. de Muxima: a intimidade com a santa e a ingenuidade tocante dos seus devotos. Senao vejamos este exemplo: no 73 ... "ai ai ai nossa Senhora

queremos Riqueza para sustentar a familia e andar bem: com o nosso filho que esta estudar: e vever bem como os outros". Ou este bilhete datado de Lau, 12 de setembro de 1966: "Minha estimada mae Maria da Teresa Muxima. Antes de tudo desejo- lhe 4 beijinhos a Nossa Senhora. Eu ca enviou os cumprimentos Nossa mae", etc. (no 32).

A diferenga mais fundamental entre os dois materiais e a pre- ocupagao com a magia, componente saliente da religiao angolana e ele-

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mento onipresente em todos os aspetos das culturas da Africa Ocidental.

Os exemplos tirados dos bilhetes a N.S. de Muxima permitem destacar as

tensoes e motivos de ansiedade relacionados a crenga na magia; crenga na

influencia de espiritos malevolos ou simplesmente de familiares defuntos

descontentes ? no 79 "sou [so] se tenho algum que me esta a fazer isso

seja homem mulher parente quero que afaste e deixa me em paz"; no 1

"Os demonios que nos perseguem dia e noite pesso que se avastem ao pe de mim seja homem ou mulher conhecido ou desconhecido"; no 37 "por?

que pela sorte que tenho julgo que esta unma alma m& que me persegue";

crenga em perseguigdo mdgica ? no 80 "A noga senhora e que sabe, se

tenho um feitisseiro que quero [quere] mal de mim"; no 82 "e tenho

chorado porque a mama maria Santissima me deichou assim sem me

tomar conta na minha vida. Toda gente tern dito porque ? eno muene mo ? sao voces que estao a feitigar os vossos filhos e vossas parentes da

familia", etc.; consequencias economicas mas do depender de feitigeiros ? no 75 "o meu companheiro ter conteigao de vir ca fazer divida nos

homem do Quimbado nao deixa"; cristianismo e magia ? no 82 "nao

somos como os outros que fazem vao a igreja como cristaos e chegam fora

sao grandes demonios para ir nos Quimbandas", etc., ou entao os riscos

de frequentar a magia ? no 74 "desde que eu vim no Quibando ja se meti

com um homem"...

A inexistencia de bilhetes a Sto. Antonio em que sejam feitas referen-

cias a magia, como verifica-se para Angola, corresponde, no nosso en-

tender, a uma diferenga de momento no processo transculturativo. Para

esbogar uma sistematica podemos dizer que: 1) A situagao initial, quando do contato de povos e culturas, e a de

integridade dos cultos e das religioes tradicionais. Ha entao equilibrio entre culto ancestral, culto aos deuzes nativos e prdticas magicas.

2) Avangada a situagao de contato ou influencia cultural, especial- mente nas situagoes coloniais, ha pressao direta ou indireta, conciente ou

subliminar, da cultura dominante e da religiao prestigiosa, com repressao e ou desmoralizagao das religioes tradicionais e da estrutura desses cultos,

consequente sincretismo para disfarce dentro da igreja dominante, graus diversos de clandestinidade, tentativas de reorganizagao e afirmagao sob

a forma de messianismo e tambem, aumento da magia.

3) Num ultimo estagio, o do desenvolvimento independente, con-

temporaneo com frequencia a faze madura de auto-governo, a transcul-

turagao e seus consequentes sincretismos sao levados mais longe, com a

reestruturagao de crengas, sua contengao em novas igrejas e cultos (no sentido de Troeltsch) e desligamento da igreja dominante ou prestigiosa.

Desaparecem desta as formas primitivas de magia que se transforma em

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cartomancia, yoga, quiromancia, etc., ou entao se apresenta a magia sem

subterfugios, noutro contexto e noutros ritos, incorporada aos novos

cultos. Os movimentos messianicos que entao surgem tornam-se acomo-

daticios, ou perdem o seu carater reinvindicatorio e ate se vem frustrar

ou limitar-se ao profetismo individual (como e o caso atual no Brasil). O material brasileiro reflete nitidamente a conjuntura desenvolvi-

mentista. Ai a obtengao de sucesso nos exames, de emprego, de bem estar

economico, constitue a razao maior de angustia e o objeto de apelo ao

sobrenatural.

Eis alguns flagrantes de situagoes individuais: no 105 "Meu Glorioso

Santo Antonio f azei com que eu tenha bom exito nas minhas provas e que F. seja meu, somente meu e de mais ninguem. A quern muito ama"

(assinado); no 25 "Oh meu Sto. Antonio fazei que R. passe no vestibular

de Medicina"; no 142 "Meu glorioso Sto. Antonio mi conseda a graga de

meu filho passar no colegio" ? o que confirma nao somente a importancia de passar, como corrobora o depoimento do universitario que disse no

inquerito promovido pelo prof. Jose Arthur Rios: "Somos induzidos a

uma norma de vida estudantil, onde o lema e passar a qualquer prego" 7.

A necessidade de emprego e assim expressa: no 7 "Meu milagroso Sto. Meu glorioso Santo, fassa-me este pedido que eu ate o dia de abril

arrume um trabalho que cirva pra mim"; no 31 "Meu S.Antonio quarido, se eu arrumar um emprego o primeiro dinheiro que eu pegar eu reparto

para os pobres de um mesmo que sofri" (assinado); no 50 "Meu Santo

Antonio me ajudai a veneer como vendedor desta firma que eu trabalho"; no 51 "Meu glorioso Santo Antonio fazei com que A arrume emprego efetivo e protegeio. Amen. Agradece" (iniciais). A necessidade economica

de varias ordens leva a pleitos como estes; no 52 "Meu glorioso Santo

Antonio faga o milagre para ser vendida a casa"; no 84 "Meu Santo

Antonio fazei que dessa vez eu e minha familia nao presisem de vender o

carro e nunca econtega nada com ele. Ouve-me"; no 157 "Fazei haver

justiga no meu salario tocai no coragao daqueles dirigentes e fazei eles me

nivelarem que 6 justo. Agradego com pao aos pobres"; no 53 "Meu

glorioso S. Antonio eu darei 500,00 cr. aos vossos pobres se eu receber o

meu dinheiro em gratidao. Ajudai-me meu S.Antonio".

Dramatico e o apelo do migrante para a cidade grande: no 48 "Meu

Sto.Antonio Rogo-te tirai-me desta situagao. Estou longe do meu mundo

com fome, sem emprego, sem dinheiro para retorno a minha terra. Piedade

Senhor (assinado). O carater de trato, de reciprocidade e instrumentalidade da promessa,

o fiel prometendo ao santo uma recompensa e assim compelindo-o ao

7 Manchete, n? 848, 20-7-968, pag. 36.

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Estudo Comparativo de Angola e Brasil 9

atendimento ? relagao que no Recife chegou a assumir a seguinte feigao ? "Meu glorioso S.Antonio dai-me uma boa viagem e quando tiver de

volta, com sua protegao trago uma joia" (no 88, assinado com iniciais), encontra correlagao em Angola nos seguintes termos: "A nossa Senhora

se ma tender [se me atender] por este meu pedido eu posso pagar um fio

de ouro no valer de 100$00 pago mesmo dinheiro lo primeiro mez" ...

"Este meu pedido e para este ano corrente" (no 12) ? por onde se ve

que os processos de aliciamento do sobrenatural operam transcultural- mente. Esse carater de trato ja foi sobejamente apontado nas praticas magicas, que assim equivaleriam de um certo modo as promessas. Ambos os tipos de ato religioso beneficiam ainda o fiel com o efeito psicologico da liberagao de ansiedades pela antecipagao da certeza de resolugao dos seus problemas.

As preocupagoes economicas em Angola sao, de um modo geral, influenciadas pelo carater pre-industrial de sua economia (predominancia da agricultura, da coleta e extragao): "O que eu precise e isto, quero que apanho pacaga Quiombos palangos e outros animais" (no 66); ... "por tanto vem mui respeitosamente pedir socego e saude de todos seus peca- dores para podermos trabalhar os mantimentos em deversa Gengibre Feijao e Tabaco e mais que for preciso" (no 77); ... "queremos riqueza tanto o nosso trabalho do cafe e todos trabalho" (no 73); ... "tern um homem que comprou rosa [roga] de cafe e nao quer pagar o dinheiro eu sou pobre i nao tern dinheiro" etc. (no 57).

Ha quern diga em pega antologica ... "a muito tempo que venho a trabalhar com o mesmo vencimento nunca foi aumentado para cima ! ai minha mae" etc. (no 35) tambem quern pega para acertar na loteria ?

"Pelo menos tenho comprado jogo semanal nao Ihe custa nada dar pontape na bola do jogo para me sair os 250.00$00 para eu comprar o que quere" etc. (no 98) e o seguinte bilhete merece ser transcrito na Integra: (no 65) "Nossa Senhora da Conceigao Muxima. nunca ai vim, nao ha conhego, mais oigo sempre o seu nome: se tern ajudado a toda gente, espero que me

ajude tambem a mim, a meu marido e meus 5 filhos: no servigo dele todos sao mais ou menos aumentados e ele sempre na mesma: espero a sua

ajuda, conto consigo N. Sra. Conceigao da Muxima ajude-me para eu um

dia vir ate ai: a nossa vida corre or a bem, ora mal: o dinheiro s6 da para

pagar contas: nunca resta porque ? junto a portadora mando as suas es-

molas: portadora que e a minha mae: sua devota" (assinado). Um percentual de pedidos de melhoria economica em Angola mais

de duas veses superior ao do Brasil, corresponde evidentemente ao nivel

e ao carater da sua economia ? subdesenvolvida e contida nos limites do

colonialismo.

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A preocupagao com a saude em Angola e por veses perf untoria como

neste bilhete ? no 74 "Nossa Senhora da santa Ana de saude e sossego

junto o pai dos meus filhos" etc., ou uma condigao a resguardar ? no 67

... "mando esta carta para saude andar bem"; ou entao a queixar-se a

santa, que neste interessantissimo bilhete e tratada a maneira nativa ?

no 66 ... "Na minha casa sempre nao tern saude; tanto eu mesmo assim

como a familia toda nao tern saude. Mama eu nao sei porque: Disquando

pedi comida na mae o ano passado, so me deu uma vez no Novembro do

ano passado ate agora nunca mais a panhei nada. Mama medeste frutos

e estes frutos preciza de cumer e vestir, e tudo isto sei na mama-oja nao

confio noutra parte a nao ser na querida maezinha" etc. ? cujo texto foi

transcrito por extenso para transmitir o desamparo all expresso e a

dependencia da divindade em relacionamento familiar.

No Recife ha quern use a formula "Paz, saude, felicidade" (no 1),

quern pega saude genericamente "Meu Santo Antonio dai-me sempre saude a mim e minha mae" (no 27); quern pega o seu restabelecimento, no 96 "Meu glorioso Santo Antonio fazei com que logo fique boa", ou

"Santo Antonio clareai a mente de meu filho L.A." (no 289); ou entao

este dramatico apelo: no 207 "Meu Glorioso Sto.Antonio pelo amor puro e santo que vos tendes ao Divine Menino Jesus que descansa nos vossos

bragos dae calma e melhorae aquele estado de (ilegivel) em que ela M.A.

se encontra. Cure-a. Abencoa e protegeia-a". A menor preocupagao no Recife com doenga pode refletir uma

atitude mais racionalista e cientifica para com as suas causas, mas grosso- modo significa uma morbilidade maior em Angola e o melhor exito no

Brasil do homem em dominar a naturesa tropical. Em Angola, reforgado pelo culto aos antepassados, persiste o

costume dos descendentes manterem o "capelo", ou devogao de ofertar

dadivas anuais a santa, dai a queixa ? "Mai sou uma pessoa que nao

posso levar as duas capelas a minha e do falecido o meu pai vou ajuntar"

(no 52), ou a comunicagao formal: "Faleceu Exmo. Senhor F.J. no dia

10-2-1955 que tinha o capelo", etc. (no 4). Do mesmo modo percebe-se a sobrecarga da familia extensa na seguinte queixa: ... "e hoje venhe

pedir a minha mae para me dar o pao que chega [chegue] para a familia

que tenho, pai e mae e irmao nao hando bem como a zoutros nem visto

bem. estou comer estou beber estou vestir mas com a familia nao me chega tenho muitos velhos enverecer tios e tias avo pai e mai" (no 35). Final-

mente os modos tradicionais assim se refletem: "Pego a nossa Senhora

que me de esta licenga para meu filho ter mulher porque ja tern idade"

(no 85). Inumeros outros bilhetes refletem cada um seu particular problema:

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Estudo Comparativo de Angola e Brasil 11

"eu fiz para nao ter crianga morro Deus me castica" [castiga] (no 99); "estive a pedir para a minha irma M.J. ter filho e por meu lado agradego com 30,00" etc. (no 88); "desejo azeite de deos e agua Benta e que tenho

tido sonhos de uma quriatura [criatura] ou nao sei se paro mal ou Bem"

(no 81); "Nossa Senhora, sera real, que alguem estando concebida nao

faz parto ?" (no 62); "estou a espera de eu casar, para uma pessoa casar

e pressiso comprar enxoval, agora como o meu marido nao anda a tra-

balhar aonde vai encontrar o dinheiro ? e pressiso que ele trabalha" (no

80); ou entao, <(quando estao crescidos os filhos jd parece parentes fa recebo mas respostas" (no 79).

Finalmente, o problema amoroso e assim levado a N.S. de Muxima:

"quando ele tern tengao para casar com outro [outras] mulheres Nossa

Senhora nao lhe deixa" (no 75); ou, "Nossa Senhora eu ja nao quero que ele me nem dar converga porque a mulher dele antiga andava a desconfiar

que eu andava a dar comer o homem dela" (no 92); ou este flagrante "A

mulher que eu formei coela o caminho de ir de buscar ? afim de vermos

a nascencia ja nao handa comigo" ... "ca tenho mulher ja outra carnal nao

sei se sera amesma ou nao, nossa mae sabera" etc. (no 34), e este ? "Eu

que vivi como [com] esse homem durante quatro anos, eu que me sacri-

fiquei tanto por ele, que tantas vezes ele comeu com o dinheiro que eu

ganhava com o suor do meu corpo com os outros homens, sim pois ele

conheceu-me na vida, nada lhe escondi, nunca se importou, hoje Nossa

Senhora da Muxima por eu ter ido ganhar para pagar as minhas contas, e razao para mo abandonar ele que dizia gostar tanto de mim? (no 15 ).

Santo Antonio ainda recebe pedidos como estes: "Meu glorioso Sto.

Antonio fazei com que eu aumente minha casa de maneira que eu desejo

que de para minha familia. Agradego bastante" junto desenhou uma casa

(no 158); "Meu glorioso Sto. Antonio fazei com que Mamae passe bem

na operagao e que eu namore F. Agradece M.B.C." (no 60). Mas o forte,

porem, sao os pedidos sentimentais: "Meu glorioso SAntonio fazei

(ilegivel) esquega F. e volte para mim" (no 199); "Meu glorioso Santo Antonio vos ha de fazer com F. fique brando" (no 194); "Meu Sto.

Antonio quero e nao posso me ajude" (no 151); "Meu Santo Antonio

dai-me felicidade e amor" (no 169), ou "Meu glorioso Santo antonio

me da paz e descango na minha pobre vida faga meu marido abandonar

a todas molheres orroroza eu lhe darei uma esmola para os pobizinhos" (no 208); "Meu Antonio fassa com que aparega um rapaz que queira cazar comigo" (no 26); "Glorioso Sto. Antonio vos que teu poder fazer

acabar o casamento de F. com F" (no 153). Certa urgencia transparece nos seguintes pedidos ? "Meu Santo Antonio quero que o snr. faga eu

encontrar o rapaz do carro se o fizer (ilegivel)" (no 131), "Santo Antonio

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da-me um esposo neste ano de 1968. Agradego-lhe" (no 64). Para

concluir, "Sto. Antonio fazei com que ela nao volte ao clube sosinha e

se case comigo" (no 119), e esta nota dramatica: "Meu glorioso Sto.

Antonio de Padua fazeis com que meu pai volte a ser como era e volte a

viver em paz com minha mae" duas assinaturas por extenso. (No 101).

Alinhando esses dois tipos de observagoes (o estudo de casos entre

os indios do Maranhao e o confronto entre os problemas que afligem as

populagoes devotas no Brasil e em Angola) quizemos realgar a impor? tancia do relativismo cultural e da contingencia situacional no encarar e

interpretar os dramas do homem. O universo do sofrimento e das paixSes humanas e o mesmo. Valores culturais, situagao e conjuntura 6 que acentuam as diferengas. Para tomar um exemplo, basta relembrar a

observagao de Edward Stainbrook em Salvador (Brasil): Tanto os

esquizofrenicos agudos quanto os cronicos mostravam muito menor

ansiedade em relagao a outrem do que os norteamericanos e que essa

diminuigao da ansiedade esta relacionada a adequagao da conduta a

padroes ligados a classe social e a conceitos miticos peculiares a cultura

regional baiana8.

Relativismo e contingencia tern, portanto, de ser levados em conta

tanto pelos antropologos, quanto pelos sociologos, psicologos, penologos, e psiquiatras. Sob o risco de equivocos dramaticos, como o que vimos

acima e de comportamentos lesivos a integridade pessoal e cultural dos

individuos de cultura diferente da nossa.

Experiencia interessante, nessa linha, e a que esta sendo feita, por

exemplo, na Nigeria, pelo psiquiatra T. Adeoye Lambo com as suas

comunidades terapeuticas de um novo estilo: all, os casos psiquiatricos sao mantidos em convivencia tribal e sob a agao da trama das relagoes sociais tradicionais e da cultura indigena. ? sua convicgao que a "confis-

sao, a danga, os rituais, as sugestoes inherentes aos cultos tradicionais, a

flexibilidade e a tolerancia do ambiente" possam ser mobihsadas e utiliza-

das como agentes psicoterapeuticos poderosos, especialmente nas psico- neuroses. E essa integragao ao ambiente cultural do paciente chega a

tal ponto que ele e seu colega sudanes Tigani El Mahi admitem uma

"colaboragao nao-ortodoxa com os tradicionais curandeiros" 9. A dife-

renga com o tratamento do "susto" ou mal de espanto, da America Central

8 Stainbrook, Edward, "Some characteristics of the psychopathology of schi? zophrenic behavior in Bahian society", Am. J. Psychiatry, Vol. 109, (1952) pags. 330-34, especialmente pag. 333.

9Lambo, T. Adeoye, "Patterns of psychiatric care in developing African coun? tries" em Magic, Faith and Healing, organiz. por Ari Kiev, The Free Press, New York, 1964, pags. 444-53, citacoes pags. 450 e 449.

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Estudo Comparativo de Angola e Brasil 13

e essa colaboragao do psiquiatra com o curandeiro, inexistente neste

ultimo caso.

Alem disso, devemos reconhecer com Jules H. Masserman, que as

motivagoes, as avaliagoes, os padroes de interagao social e "outras que tais abstragoes categoricas da conduta tern uma quasi infinita amplitude de variagao em qualquer cultura, e que suas interrelagoes adquirem signi- ficado e sentido somente quando estudadas do ponto de vista do individuo

como este se desenvolveu originalmente, segundo suas proprias capaci- dades e experiencias, no interior do setor especial de sua ordem social" 10.

fi o que se exigiria para compreendermos a Uird, aos dois chefes Canela

que nao aderiram, tampouco puniram a Kee-Khwei (Maria Castelo);

para aceitarmos os beijinhos mandados a santa de Angola; para enten-

dermos a urgencia da promogao social passando nos exames, ou a pre- mencia de casar e ate de vender um carro e finalmente, de sendo ex-

prostituta voltar a vida apenas o bastante para pagar as contas. Para nao

falar na magia que e um capitulo aparte. Em suma, as varias sociedades, para enfrentar os problemas da

ansiedade, chegaram a formulas tambem varias para sua resolugao ?

possessao, magia, jogo, messianismo, nao-conformismo, hippismo e

outras condutas socialmente sancionadas e as veses admitidas como alter-

nativas culturais.

Essa admissao da influencia da cultura, nao nos deve levar, contudo, a um excesso culturalista porquanto e ainda o renomado psiquiatra de

Chicago quern nos acautela ? "cada um de nos, embora culturalmente

dirigido, ve seu universo de acordo com seu proprio entendimento, e reage a suas proprias interpretagoes das ameagas e dos valores, reais e sim-

bolicos, por meio de padroes de comportamento unicos e carateristicas

que variam de modo extremamente amplo em cada sociedade" X1. Na pratica clinica tern o psiquiatra, portanto, de pesar o que seria

valido psicologicamente ou culturalmente, e de compreender o inter- relacionamento dos f atores de uma e outra naturesa. ? o que deduz Ari Kiev do seu estudo de psicoticos procedentes das Indias Ocidentais e recolhidos a hospitais da Inglaterra:

Embora as ideias delirantes dos pacientes tenham fundamento em crengas culturalmente aceitaveis, usualmente nao sao elas identicas a estas e podem ser reconhecidas como anormais pela maioria dos membros de uma determinada cultura. Em alguns

10 Masserman, Jules H., Discussao do artigo "The Problem of invariance in the field of personality and culture" por Jules Henry, em Aspects of Culture and Personality, organiz. por Frencis L. K. Hsu, Abelard-Shuman, New York, 1954, pags. 161-68, cit. pag. 166.

ii Ibid., pag. 167.

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casos, as ideias delirantes sao suficientemente peculiares e a vida do paciente tao desorganizada que nao apresentam difi- culdade diagnostica alguma. Em outros casos, porem, o conte- udo delirante equivale as crengas e apresenta um problema diag- nostico. Em tais casos, deve-se acentuar menos a estranhesa das ideias do que a relagao que elas tSm com a inseguranga interna e com as experiencias morbidas do paciente. Na aus6n- cia de evidencias outras de sintomas psiquiatricos, por exemplo, as crengas em obeah, em duendes, ou no poder de "matar e eurar" nao podem ser tomadas como ideias delirantes. Nos casos

equivocos essas crengas devem ser consideradas em relagao com outras facetas da conduta do individuo. Alem disso, o medico deve procurar os exageros, as interpretagoes falsas e as dis- torsoes de crengas culturalmente aceitaveis; a identificagao de tais elementos, naturalmente, exige tanto a familiaridade com a cultura quanto a consulta a membros representatives desta12.

Finalmente, ha que avisar ao psiquiatra, do levante da criatura contra

o criador que representa a acusagao de "engajado" a Malinowski, por nao alinhar a antropologia pratica a agao revoluncionaria.

O autor do funcionalismo era um inconformado, um louco por musica que nao deixava de comparecer a Opera de Londres e, de casaca, deitava-se no corredor em protesto contra o maugosto grandioso da rep-

resentagao ? comportamento snob que em outra sociedade e noutra

cultura que nao a metropolitana da classe alta inglesa nao seria tolerado.

Tambem, da pretensao de anular o conceito cultura e substitui-lo pelo de sistema social, contestado por Linton ha varios anos ja apos frizar que a sociedade e um agregado organizado de individuos, enquanto a cultura e um agregado organizado de ideias, habitos e respostas emocionais con-

dicionadas, instrumentadas e transmitidas pelos membros da sociedade.

Nas suas palavras:

O termo cultura tern sido usado aqui com o significado que lhe foi dado desde o principio das ciencias antropologica e sociolo?

gical (...) "Um sistema social, segundo o uso comum, e a colegao de status e papeis segundo os quais se organizam os membros de uma sociedade. Como tal ele e um componente da cultura como um todo. file representa as solugoes que foram desenvolvidas para fazer face a certos problemas inherentes a vida social do mesmo modo que outro setor da cultura indica a solugao ao problema da produgao econ6mica, e outro mais, o da religiao e da magia, responde aos sentimentos individuals

12 Kiev, Ari, "The Study of folk psychiatry" em Magic, Faith and Healing cit. acima, pags. 3-35.

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Estudo Comparativo de Angola e Brasil 15

de inseguranga e de inadequagao ante situagoes que lhes esca-

pam ao controle13.

? para concluir com a analogia, com a qual concordamos inteiramente, embora Linton nao tenha dado o devido lugar, na sua definigao acima, ao

sistema interrelacional, de que a cultura esta para a sociedade como a

personalidade para o individuo.

13 Linton, Ralph "What we know and what we don't" em Aspects of Culture and Personality, cit. acima, pags. 187-210, cit. pag. 196.

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