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ESTRATÉGIAS DE APRENDIZAGEM DA ESCRITA PARA O OUTRO COM O USO DE SUPORTES DIGITAIS Érika Christina Kohle. Faculdade de Filosofia e Ciências UNESP/ Marília. [email protected]. GT 1: Didática e metodologias de ensino. Agência Financiadora: CAPES. Resumo Esta pesquisa propõe estratégias de auxílio à aprendizagem da escrita para crianças do Ensino Fundamental II, que ainda não se encontram alfabetizadas, pois, há uma queixa muito grande nas escolas do Ensino Fundamental II em relação aos alunos que chegam a elas sem saber escrever. Diante dessa necessidade, a pesquisa foi pensada com o objetivo de desenvolver uma proposta de trabalho para a escrita de diferentes gêneros textuais, que cumpram uma função social, por alunos do sexto ano que ainda não escrevem, propondo a escrita de gêneros escolhidos por eles em suportes digitais de acordo com suas necessidades comunicativas no momento das suas produções. Além disso, a pesquisa tem como objetivos específicos (1) verificar a eficácia do trabalho com gêneros do discurso escolhidos pelas crianças durante os atos de escrita e (2) comprovar as contribuições dos suportes digitais para o ensino da escrita. Com o estudo bibliográfico busca-se identificar os instrumentos que contribuam para a organização dessas práticas. A pesquisa se concretiza por meio do método de pesquisa-ação, pois ele permite ao pesquisador agir e intervir na prática e tentar modificá-la. E tem como suporte teórico os estudos de Vigotski sobre mediação e de Bakhtin em relação às questões do ensino da linguagem. Espera-se, pelo uso de estratégias em que a escrita em situações autênticas de comunicação, que os alunos superem suas dificuldades de produção escrita, selecionando eles mesmos os gêneros textuais, os interlocutores e os suportes que lhes interessam. Palavras chave: Aprendizagem da escrita. Suportes digitais. Gêneros textuais.

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ESTRATÉGIAS DE APRENDIZAGEM DA ESCRITA PARA O OUTRO COM O

USO DE SUPORTES DIGITAIS

Érika Christina Kohle. Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP/ Marília. [email protected].

GT 1: Didática e metodologias de ensino.

Agência Financiadora: CAPES.

Resumo

Esta pesquisa propõe estratégias de auxílio à aprendizagem da escrita para crianças do

Ensino Fundamental II, que ainda não se encontram alfabetizadas, pois, há uma queixa

muito grande nas escolas do Ensino Fundamental II em relação aos alunos que chegam a

elas sem saber escrever. Diante dessa necessidade, a pesquisa foi pensada com o objetivo

de desenvolver uma proposta de trabalho para a escrita de diferentes gêneros textuais, que

cumpram uma função social, por alunos do sexto ano que ainda não escrevem, propondo

a escrita de gêneros escolhidos por eles em suportes digitais de acordo com suas

necessidades comunicativas no momento das suas produções. Além disso, a pesquisa tem

como objetivos específicos (1) verificar a eficácia do trabalho com gêneros do discurso

escolhidos pelas crianças durante os atos de escrita e (2) comprovar as contribuições dos

suportes digitais para o ensino da escrita. Com o estudo bibliográfico busca-se identificar

os instrumentos que contribuam para a organização dessas práticas. A pesquisa se

concretiza por meio do método de pesquisa-ação, pois ele permite ao pesquisador agir e

intervir na prática e tentar modificá-la. E tem como suporte teórico os estudos de Vigotski

sobre mediação e de Bakhtin em relação às questões do ensino da linguagem. Espera-se,

pelo uso de estratégias em que a escrita em situações autênticas de comunicação, que os

alunos superem suas dificuldades de produção escrita, selecionando eles mesmos os

gêneros textuais, os interlocutores e os suportes que lhes interessam.

Palavras – chave: Aprendizagem da escrita. Suportes digitais. Gêneros textuais.

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Introdução

Esta pesquisa que pretende oferecer propostas de ensino que contribuam para o

processo de ensino-aprendizagem da escrita de dez alunos do sexto ano do ensino

fundamental a partir do trabalho com gêneros textuais significativos para eles, com a

valorização do outro no processo comunicativo e com o auxílio de suportes digitais para

a escrita escolhidos pelos próprios alunos.

A pesquisa organiza-se em dois eixos: o teórico e o prático; e tem como aportes

teóricos orientadores o método dialógico de Bakhtin (2003, 2006 e 2010) e os estudos

sobre o processo de mediação da linguagem de Vigostki (2001 e 2007). No eixo prático

são propostas estratégias de escrita de gêneros do discurso aos alunos que ainda não

escrevem em diferentes suportes para a escrita.

A partir da teoria da dialogia de Bakhtin, enfoca-se o uso dos gêneros do discurso,

nos quais a linguagem passa a ser vista em suas relações com o “outro”, em sua

instabilidade e considerando as múltiplas possibilidades de significação da palavra.

Conforme coloca Bakhtin:

[...] O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as

finalidades de cada campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção de recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas, acima de tudo, por sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são

igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN,

2003, p. 261-262)

Bakhtin (2003) concebe a linguagem como um objeto social e nesse sentido a

comunicação é estabelecida por meio de enunciados passíveis de entendimento, sempre

num determinado contexto discursivo e que depende do “acabamento”, que seria a

responsabilidade de resposta dos interlocutores.

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Para Colomer & Camps (2002) a necessidade de propor atividades significativas

para os alunos já é objetivo da maioria dos professores, entretanto, eles esbarram do

problema da transposição da teoria para a prática.

A necessidade de que a língua escrita seja adquirida em situações educativas que

tenham sentido por si mesmas é um princípio muito generalizado nos meios educativos,

mas, frequentemente, os professores nãos dispõem de instrumentos para traduzi-lo à

prática, sobretudo quando se avança nos ciclos escolares.

Tal dificuldade é bem explicável, já que reflete um desafio central na educação de hoje: a necessidade de reconciliar conteúdos que devem ser cada vez mais descontextualizados no que se refere à experiência concreta dos meninos e das meninas, com a desmotivação que tal processo pode provocar, pois quanto mais se distanciam os conteúdos dos interesses imediatos dos alunos, mais diminui seu envolvimento afetivo e menos se mobiliza sua capacidade de processamento da informação. (COLOMER; CAMPS, 2002, p.27).

De acordo com a teoria de Bakhtin (2006) e os estudos de Vigotski (2001) em

relação ao ensino da linguagem, o trabalho com aquisição da linguagem deve considerar

que a relação interacional é fundamental, pois é a partir da interação entre a criança e um

mediador mais experiente, que pode ser um adulto ou outra criança, ela cresce

intelectualmente e passa a desenvolver sua linguagem.

É papel da escola levar os alunos a dominar cada vez mais os gêneros do discurso

e levá-los a produzir gêneros cada vez mais elaborados para que possam fazer suas

próprias escolhas de acordo com a necessidade das situações em que se encontrarem e

dominá-los de forma cada vez mais autônoma, pois como afirma Bakhtin (2003, p.285)

Quanto melhor dominamos os gêneros tanto mais livremente os empregamos,

tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso é

possível e necessário), refletimos de modo mais flexível e sutil a situação singular da

comunicação; em suma, realizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de

discurso.

Nesse sentido buscar-se tomar cuidado para não propor atividades destituídas de

sentido aos alunos, pois dessa forma estaríamos seguindo o caminho inverso em relação

ao conhecimento. Sobre isso, vale observar a seguir uma passagem de Bakhtin:

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Como a palavra, a oração é uma unidade significativa da língua. Por isso, cada oração isolada, por exemplo “o sol saiu”, é absolutamente compreensível, isto é, nós compreendemos o seu significado linguístico, o seu papel possível no enunciado. Entretanto, não é possível ocupar uma posição responsiva em relação a uma posição isolada se não sabemos que o falante disse com essa oração tudo o que quis dizer, que essa oração não é antecedida nem sucedida por outras orações do mesmo falante. [...] (BAKHTIN, 2003, p.187)

Diante do exposto percebe-se que para Bakhtin a verdadeira compreensão do

enunciado se dá numa situação de enunciação entre os interlocutores e na busca por a

uma unidade passível de resposta e não apenas no plano linguístico. Bakhtin enfatiza a

natureza dialógica da linguagem, ou seja, a relação entre os interlocutores e entre os

discursos, pois defende o conceito de língua como construção social e ideológica.

De acordo com Marcuschi (2008), tanto Vigotski quanto Bakhtin transpõem a

reflexão sobre a língua do campo da estrutura para o campo do discurso, ou seja, para seu

contexto sociointerativo. Desta maneira, o enunciado passa a ser a unidade concreta e

real da atividade comunicativa situada em contextos sociais reais.

As atividades pedagógicas práticas desta pesquisa ocorrem numa escola estadual

localizada numa região central do município de Marília e sempre teve o apoio da sua

equipe gestora. As intervenções são feitas com dez alunos que cursam o primeiro ano do

ensino fundamental II e que escrevem pouco, durante encontro de uma hora por semana

entre pesquisadora e aluno, no período de março a dezembro de 2015.

Os alunos que participantes dessas intervenções foram escolhidos por meio de

avaliações diagnósticas aplicadas por seus professores de Língua Portuguesa, pela

pesquisadora e pela Diretoria Regional de Ensino. Eles não só não conseguiram acertar o

mínimo de questões nas avaliações de leitura de textos, como também não conseguiram

se manifestar por escrito nas avaliações de produção textual no suporte papel e nos

suportes digitais.

A pesquisa se desenvolve pelo método de pesquisa-ação, uma vez que propõem

estratégias de ensino e modificação das práticas pedagógicas a partir de estudo teórico

sobre o tema. De acordo com Trip (2005, p.447) “[...] pesquisa-ação é uma forma de

investigação-ação que utiliza técnicas de pesquisa consagradas para informar à ação que

se decide tomar para melhorar a prática”. A pesquisa-ação permite a participação ativa

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dos pesquisadores que pretendem elucidar as condições de ação, por isso, o método da

pesquisa-ação é concebido como articulador entre o conhecer e o agir em busca da

mudança da realidade social.

Objetivos

Geral

Desenvolver uma proposta de trabalho para a escrita de diferentes gêneros

textuais, que cumpram uma função social, por alunos do sexto ano que ainda não

escrevem, propondo a escrita de gêneros escolhidos por eles em suportes digitais

de acordo com suas necessidades comunicativas no momento das suas produções.

Específicos

Verificar se o trabalho com gêneros do discurso escolhidos pelas crianças e

endereçados para um interlocutor real por meio de suportes digitais contribuiu para

a apropriação da escrita como uma forma de interação com o outro.

Desenvolvimento:

Durante a pesquisa, no seu desenvolvimento os gêneros textuais são escolhidos

pelos próprios sujeitos da pesquisa de acordo com suas necessidades para serem enviados

a receptores reais, possibilitando a produção de textos de forma contextualizada e repleta

de sentidos.

Os trabalhos de produção escrita adquirem mais sentido quando se elege um

determinado gênero do discurso, do que quando trabalhadas de forma compartimentada

e isolada, como nos exercícios com frases soltas, artificiais e descontextualizadas. Ao

escrever a partir dos gêneros do discurso os sujeitos têm um interlocutor real, que orienta

suas escolhas.

Para Bakhtin,

[...] A vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha de um certo gênero de discurso. Essa escolha é determinada pela especificidade de um dado campo da comunicação discursiva, por considerações semântico objetais (temáticas) pela situação concreta da comunicação discursiva, pela composição pessoal dos seus participantes, etc. A intenção discursiva do falante, com toda a sua individualidade e subjetividade, é em seguida

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aplicada e adaptada ao gênero escolhido, constitui-se e desenvolve-se em uma determinada forma de gênero. [...] (BAKHTIN, 2006, p. 282)

A cada novo gênero conhecido os alunos têm mais possibilidades comunicativas,

por isso a escola deve oferecer uma variada gama de gêneros textuais aos alunos para que

sejam cada vez mais autônomos e para que seu conhecimento dê-lhes mais possibilidades,

pois sabe-se que a falta desse conhecimento dos gêneros criaria dificuldades para uso da

escrita na vida.

A cada nova produção os alunos questionam-se sobre os receptores para quem

gostariam de produzir seus enunciados. Quando essa questão é colocada para os alunos

há um enorme contentamento, pois eles percebem que diferentemente do que a escola

determinava, o projeto propõe a escrita para alguém.

Houve grande satisfação por parte dos alunos quando souberam que poderiam

escolher o assunto a ser abordado em seus textos e os diferentes suportes de acordo de

com os gêneros eleitos.

O sujeito ao construir enunciados utilizando os gêneros tem a visão do todo do

conjunto discursivo e a partir daí pode fazer previsões sobre o conteúdo a ser escrito.

Essa pesquisa procurou comprovar se é possível aprender a escrever escrevendo

espontaneamente, diferentemente do que se faz no processo de alfabetização com

exercícios de ensino da escrita como transcrição da fala, pois como afirma Smolka sobre

essa metodologia:

[...] Os efeitos desse ensino são tragicamente evidentes, não apenas nos índices de evasão e de repetência, mas no resultados de uma alfabetização sem sentido que produz uma atividade sem sentido que produz uma atividade sem consciência: desvinculada da práxis e desprovida de sentido, a escrita se transforma num instrumento de seleção, dominação e alienação. (SMOLKA, 1998, p.37-38)

Nessa situação a escrita tem um fim em si mesma, e não serve para nada. A

solução para isso seria ensinar a escrever propondo a escrita de gêneros textuais

significativos para as crianças.

De acordo com Cardoso (2003, p. 36) o ensino da escrita na escola brasileira ainda

se apoia na concepção mecanicista e associativa do processo de aprendizagem, apesar da

grande divulgação dos trabalhos de Ferreiro (1985) desde os anos 80, que possibilitou

alternativas para o ensino da leitura e da escrita. Na prática, ocorre a

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aprendizagem fragmentada da escrita, que se dá a partir das unidades da língua (fonemas,

sílabas ou letras) de forma descontextualizada.

Nessa perspectiva, uma criança é considerada alfabetizada no momento em que

desenvolve as habilidades instrumentais, ou seja, a cópia, a memorização e a habilidade

de fazer correspondências entre sons e letras, no entanto, não lê nem escreve

efetivamente. Assim, a escrita espontânea da criança só será permitida após a aquisição

do sistema de correspondência sons/letras proposta pelo método fônico. Uma alternativa

para esse tipo de método seria propor a escrita a partir dos gêneros do discurso, formas

de enunciações, conforme afirma Bakhtin a seguir,

Nós assimilamos as formas da língua somente nas formas de enunciações e justamente com essas formas. As formas da língua e as forma típicas dos enunciados, isto é, os gêneros do discurso, chegam à nossa experiência em conjunto e estritamente vinculadas. Aprender a falar significa aprender a construir enunciados (porque falamos por enunciado e não por orações isoladas e, evidentemente, não por palavras isoladas). Os gêneros do discurso organizam o nosso discurso quase da mesma forma que organizam as formas gramaticais (sintáticas). Nós aprendemos a moldar nosso discurso em formas de gênero e, quando ouvimos o discurso alheio, já advínhamos o seu gênero pelas primeiras palavras [...]. (BAKHTIN, 2003, p. 283).

Os gêneros do discurso fazem sentido para os alunos por estarem presentes nas

situações reais de comunicação, entretanto, quando se trata a escrita como uma técnica

de memorizar sinais gráficos e reproduzi-los, de acordo com Bakhtin, as palavras são

reduzidas a um sinal, porque

[...] O sinal é uma entidade de conteúdo imutável; ele não pode substituir, nem refletir, nem refratar nada; constitui apenas um instrumento técnico para designar este ou aquele objeto (preciso e imutável) ou este ou aquele acontecimento (igualmente preciso e imutável). O sinal não pertence ao domínio da ideologia; ele faz parte do mundo dos objetos técnicos,... Esses sinais, considerados em relação ao organismo que os recebe, isto é, ao organismo sobre o qual eles incidem, nada têm a ver com as técnicas de produção. (BAKHTIN, 2020, p. 96 – 97)

O autor afirma ainda que o sinal não terá nenhum valor linguístico enquanto for

percebido pelo receptor como apenas um sinal; ele passa a ter significado para seus

receptores, quando passa a ser orientado por um contexto, que o constitui como um signo,

que possui mobilidade para ser compreendido no seu sentido particular, “isto é, a

apreensão da orientação que é conferida a palavra por um contexto e uma situação

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precisos, uma orientação no sentido da evolução e do não imobilismo” (BAKHTIN,

2010, p.97)

Segundo Cardoso (2003), para que a comunicação se concretize, a sociedade cria

formas relativamente estáveis de textos que funcionam como mediadores entre

enunciador e o destinatário, que são os gêneros do discurso. Os gêneros dependem da

situação de produção; o enunciador reconhece e elege o gênero para o seu enunciado para

atender as suas necessidades de interação nas várias esferas de ação.

Os enunciados possuem uma padronização constituída historicamente, e por isso

são enunciados de extrema relevância no aprendizado de nossa língua, pois:

As formas da língua e as formas típicas de enunciados, isto é, os gêneros do discurso, introduzem se em nossa experiência e em nossa consciência juntamente e sem que sua estreita correlação seja rompida. Aprender a falar é aprender a estruturar enunciados (porque falamos por enunciados e não por orações isoladas e, menos ainda, é óbvio, por palavras isoladas). Os gêneros do discurso organizam nossa fala da mesma maneira que a organizam as formas gramaticais (sintáticas) (BAKHTIN, 2006, p. 301-302).

Conto, para ilustrar a afirmação acima, um episódio ocorrido na produção do

segundo texto do aluno F. (11 anos). Inicialmente o aluno disse que os receptores de sua

produção seriam alguns colegas da sua classe. De acordo com Bakhtin (2006, p. 301) a

cada gênero do discurso e a cada situação comunicativa existe uma concepção típica de

destinatário.

Para Marcuschi (2008, p.78) o problema das redações escolares é que não se sabe

a quem o aluno se dirige ao escrever, por isso, escreve textos sempre para o mesmo

interlocutor (o professor) e nunca troca de auditório, de tal forma que não é levado a fazer

seleções lexicais diversas e nem a produzir em diferentes níveis de formalidade.

Em seguida foi eleito o gênero a ser escrito: uma história (narrativa). Os alunos

ao elegerem o gênero textual a ser escrito, passaram enxergar os atos de escrita como

necessários para a vida e não como viam em situações de cópia ou de atividades

destituídas de sentido. Pesquisamos algumas narrativas na internet e nos livros da sala de

leitura. Lemos algumas narrativas e o aluno disse que queria escrever uma história de

aventura. Os modelos de narrativas foram buscados, pois de e acordo com o ponto de

vista de Orlandi (1988, p. 91): “A reprodução de modelos é previsível e até desejável em

certas situações de linguagem [...]”. Depois, F. desejou escolher uma imagem para o

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seu texto, e selecionou a imagem do personagem Cebolinha da Turma da Mônica gritando

entre um leão e um tigre.

Etapas do percurso de produção de F.- primeira versão:

FIGURA 1 - Aluno F. texto 2 – versão1.

Antes mesmo de dar um desfecho ao seu texto, F. mostrou-se incomodado com as

letras em caixa alta e perguntou-me como fazia para mudá-las. Só após mudá-las o aluno

continuou com a escrita de sua narrativa. Durante as produções escritas que fazem sentido

para os alunos, eles desenvolvem de maneira reflexiva e contextualizada as normas

institucionalizadas da língua.

Outro fato interessante ocorreu durante a terceira versão:

FIGURA 2 - Aluno F. texto 2 – versão 3.

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Após a elaboração dessa versão, começamos e fazer reflexões sobre a linguagem

presente no texto e as intenções de escrita do aluno.

Sobre o vazio existente entre as atividades linguísticas e as metalinguísticas,

presentes nos atos de escrita, de acordo com Miller (2003, p.10) pode-se preenchê-lo com

as atividades epilinguísticas:

A atividade de reflexão sobre a linguagem, realizada durante o processo de escrita de textos e voltada para o uso que se faz dos conceitos linguísticos presentes na situação de comunicação com que se está trabalhando (atividade epilinguística), preenche esse vazio que propicia condições de o aluno melhor gerir esse processo. (MILLER, 2003, p.10)

Trecho da sexta versão:

FIGURA 3 - Aluno F. texto 2 – versão 6.

Na sexta versão do texto, encontrávamos num momento em que precisávamos

narrar o que os personagens diziam com suas próprias palavras. Nessa situação de

reflexão sobre a linguagem fez-se necessário refletirmos sobre os tipos de discursos direto

existentes. Então, fizemos a pesquisa teórica sobre as formas de discurso direto e o aluno

elegeu os dois pontos e as aspas como maneira de enunciar as falas dos personagens, mas

percebeu que havia outras formas de fazer isso. Observe o resultado da reflexão na versão

a seguir:

Trecho da sétima versão:

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FIGURA 4 - Aluno F. texto 2 – versão 7.

A ferramenta corretor ortográfico do Microsoft Word possibilita que os alunos

reflitam sobre a ortografia das palavras e que confirmem suas hipóteses de escrita, essas

opções inexistem no suporte papel e deixam uma sensação de vazio. No entanto, cabe ao

professor, no papel de mediador mais experiente, fazer as intervenções necessárias para

auxiliá-lo a utilizar esse recurso. Observe:

FIGURA 5 - Aluno F. texto 2 – versão 23.

Houve situações em que o corretor ortográfico do Microsoft Word não possibilitou

a escrita correta, como ocorreu na décima segunda versão com o verbo a

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forma grafada “ em com trou” tentativa de escrita do verbo encontrar conjugado na

terceira pessoa do singular do pretérito perfeito simples do modo indicativo.

FIGURA 5 - Aluno F. texto 2 – versão 42.

No papel de mediadora mais experiente, fiz as intervenções necessárias para que

o aluno entendesse tal verbo como uma unidade e não como pensava ser, a soma de

palavras ou sílabas, como: em + com + trou.

Foi dito ao aluno inicialmente que o verbo indicava uma única ação, por isso,

configurava-se numa única palavra, mas o aluno questionou esse esclarecimento com o

exemplo de seu contraponto: a expressão “de repente” usada anteriormente em seu texto,

ele contestou que era uma única ideia, mas que é escrita com duas palavras.

Expliquei para ele, que a expressão “de repente” significa “de súbito”,

“repentinamente” e serve para indicar tempo ou modo e, portanto, é o conjunto formado

pela preposição “de” com o substantivo “repente”. E se ele perguntasse: “De que modo

aquilo aconteceu?” a reposta seria de repente, que significa de modo que não era esperado.

O aluno compreendeu minha explicação, no entanto, no caso do verbo encontrar,

foi necessário buscar contextos em textos escritos para que por meio da leitura de

exemplos o aluno compreendesse a sua escrita sem separações.

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De acordo com os estudos de Vigotski (2001, p.331) é a partir da interação entre

a criança e um mediador mais experiente, que ela cresce intelectualmente e passa a

desenvolver sua linguagem e as qualidades humanas.

O autor acredita que em colaboração, pode-se fazer mais do que sozinho, o que a

criança consegue fazer hoje com a ajuda de um mediador mais experiente, ela conseguirá

fazer sozinha amanhã.

Conclusões

Pretende-se, com esta pesquisa, que os sujeitos não só escrevem seus textos, mas

também se apropriem das funções da escrita para que se tornem autores e exerçam a

autonomia em suas produções escritas. Ao propor situações reais de escrita para

interlocutores reais, almeja-se que as dificuldades de escrita passem a ficar em segundo

plano, à medida que o desejo de escrever se torne maior por ter uma função social. Espera-

se que os alunos se sintam motivados a escrever por poderem escolher: os gêneros do

discurso a serem desenvolvidos, os suportes nos quais escreverão e o interlocutor para os

quais enviarão as suas mensagens. Além disso, espera-se constatar que os aparelhos

digitais, como: o celular, o computador e o tablete tornem-se recursos que ajudem na

trajetória da escrita dos sujeitos, pois eles disponibilizam todas as letras e sinais gráficos

para eles.

As intervenções feitas até o momento têm gerado dados positivos e confirmaram

as hipóteses de que o trabalho com gêneros significativos para os alunos e com suportes

digitais e suas ferramentas tem possibilitado o desenvolvimento dos atos de escrita de dez

alunos do sexto ano de uma escola central da cidade a Marília.

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