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TAB CADERNO B 10 CYAN MAGENTA AMARELO PRETO B10 | JB CADERNO B | Jornal do Brasil Domingo, 17 de janeiro de 2010 [email protected] QUADRINHOS Estranhos, Lançamento no Brasil das mais de 17 mil tiras de ‘Peanuts’ mostra a evolução de Charlie Brown e sua turma e destaca a influência de Charles Schultz sobre as gerações posteriores SCHULZ, NA DÉCADA DE 50 Quadrinista mantinha uma relação íntima com seu trabalho. Até o fim da vida, em 2000, ele desenhou sozinho suas tiras diárias, sem contar com colaboradores Bolívar Torres Quando desenhou sua primeira tira de Peanuts , em 2 de outubro de 1950, Char- les Monroe Schultz certa- mente não fazia ideia que aquele retrato desencantado da infância americana iria ocupar por completo os pró- ximos 50 anos de sua exis- tência. Desde então, o qua- drinista americano, morto em fevereiro de 2000, não fez outra coisa senão se de- dicar diariamente às histó- rias de Charlie Brown e sua turma, que iriam se tornar um sucesso planetário e in- fluenciar milhares de dese- nhistas. A história integral deste esforço aparece em Peanuts completo, compila- ção das 17.897 tirinhas (das quais, 2.506 edições domi- nicais) feitas por Schulz. O primeiro volume, que abrange o período entre 1950 e 1952, acaba de chegar às livrarias; já o segundo, com tiras de 1952-1954, de- ve sair em março. – Schulz é um caso único dos quadrinhos – diz Caro- line Chang, editora do livro. – No mundo inteiro, não houve nada parecido. Ele criou um grupo amplo de personagens e manteve uma tira diária durante quase cin- co décadas, sem nenhuma ajuda de colaboradores. Pela produção massiva do quadrinista, a coleção demo- rará para chegar até o volume final. Schulz só aposentou a tira em janeiro de 2000, já cas- tigado pelo câncer, e quase da tateia, afinando as carac- terísticas fisionômicas e psi- cológicas dos personagens. Outra mudança significati- va é Snoopy. Como observa o próprio Schulz numa excelen- te entrevista ao editor da Fan- tagraphics Gary Croth publicada no anexo desta edição, o ex- cêntrico beagle quase não pensava em seus primórdios. Foi preciso esperar alguns me- ses para que ele fizesse algo mais do que andar de um lado para o outro, ou seja, agir co- mo um cachorro normal e não como um personagem fanta- sioso que imagina ser um ás da Segunda Guerra Mundial. Há diferenças gráficas sig- nificativas. Até 1952, Schulz quase não varia os enquadra- mentos, apresentando seus personagens em primeiro pla- no. Se os cenários sempre fo- ram abstratos, aqui pratica- mente não existem. Entretan- to, mais do que os desenhos, é mesmo o espírito da tirinha que causa estranheza. Só a par- tir de seu segundo ano que ela vai ficando mais sombria, com um humor sofisticado e diá- logos que questionavam o sen- tido da vida. Uma tira de 1950, porém, já mostra um Charlie Brown neurastênico, refletin- do sobre a solidão com o seu incofundível tom amargo-do- ce – e comprovando que, ape- sar da vontade dos editores ori- ginais, Peanuts nunca foi uma tira para “crianças”. – Os álbuns dos Peanuts sempre venderam bem na nos- sa editora, e acredito que a maior parte dos adultos os compram para si – avalia Ca- roline. – É algo que tem tanto apelo para o público infantil do que para o adulto. Justamente por escapar da in- fantilização, Peanuts é um marco nos quadrinhos. Para muitos, foi a primeira tira beat da história. Sem se meter em teorias filo- sóficas, Schulz lançava seus per- sonagens em inquietações exis- tenciais. A melancolia está sem- pre lá, na solidão e decepções daquelas crianças fofas, mas “es- tranhas”, como todos nós. Tira saiu diariamente entre 1950 e 2000, e chegou a ser publicada em mais de 2.600 jornais sem conseguir enxergar. Para os fãs – especialmente os mais jovens – fica a curiosidade de ver, nesta primeira edição, o nascimento da saga. Em seu primeiro ano, as tiras parecem um esboço do Peanuts que fi- cou cravado no imaginário popular. Charlie Brown ainda não usava sua camiseta listrada característica. Patty não era “pimentinha” nem ostenta- va nariz esquisito, e ainda não se tornara narcoléptica e má aluna. Na verdade, sua personalidade se mistura com a da agressiva Lucy, que apareceria naquele mesmo ano, mas numa versão em- brionária, com o nome de Violet. E Schroeder, o vir- tuoso do piano, era apenas um bebê. O quadrinista ain- Reprodução

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TAB CADERNO B 10CYAN MAGENTA AMARELO PRETO

B10 |JB CADERNO B|Jornal do BrasilDomingo,17de janeirode2010 [email protected]

QUADRINHOS

Estranhos,Lançamento noBrasil das maisde 17 mil tirasde ‘Peanuts’mostra aevolução deCharlie Browne sua turma edestaca ainfluência deCharles Schultzsobre asgeraçõesposteriores

SCHULZ, NADÉCADA DE 50 –Quadrinistamantinha umarelação íntimacom seutrabalho. Até ofim da vida,em 2000, eledesenhousozinho suastiras diárias,sem contar comcolaborador es

Bolívar Torres

Quando desenhou suaprimeira tira de Peanuts, em2 de outubro de 1950, Char-les Monroe Schultz certa-mente não fazia ideia queaquele retrato desencantadoda infância americana iriaocupar por completo os pró-ximos 50 anos de sua exis-tência. Desde então, o qua-drinista americano, mortoem fevereiro de 2000, nãofez outra coisa senão se de-dicar diariamente às histó-rias de Charlie Brown e suaturma, que iriam se tornarum sucesso planetário e in-fluenciar milhares de dese-nhistas. A história integral

deste esforço aparece emPeanuts completo, compila-ção das 17.897 tirinhas (dasquais, 2.506 edições domi-nicais) feitas por Schulz. Oprimeiro volume, queabrange o período entre1950 e 1952, acaba de chegaràs livrarias; já o segundo,com tiras de 1952-1954, de-ve sair em março.

– Schulz é um caso únicodos quadrinhos – diz Caro-line Chang, editora do livro.– No mundo inteiro, nãohouve nada parecido. Elecriou um grupo amplo depersonagens e manteve umatira diária durante quase cin-co décadas, sem nenhumaajuda de colaboradores.

Pela produção massiva doquadrinista, a coleção demo-rará para chegar até o volumefinal. Schulz só aposentou atira em janeiro de 2000, já cas-tigado pelo câncer, e quase

da tateia, afinando as carac-terísticas fisionômicas e psi-cológicas dos personagens.

Outra mudança significati-va é Snoopy. Como observa opróprio Schulz numa excelen-te entrevista ao editor da Fan -tagraphics Gary Crothpublicadano anexo desta edição, o ex-cêntrico beagle quase nãopensava em seus primórdios.Foi preciso esperar alguns me-ses para que ele fizesse algomais do que andar de um ladopara o outro, ou seja, agir co-mo um cachorro normal e nãocomo um personagem fanta-sioso que imagina ser um ás daSegunda Guerra Mundial.

Há diferenças gráficas sig-nificativas. Até 1952, Schulzquase não varia os enquadra-mentos, apresentando seuspersonagens em primeiro pla-no. Se os cenários sempre fo-ram abstratos, aqui pratica-mente não existem. Entretan-to, mais do que os desenhos, émesmo o espírito da tirinhaque causa estranheza. Só a par-tir de seu segundo ano que elavai ficando mais sombria, comum humor sofisticado e diá-logos que questionavam o sen-tido da vida. Uma tira de 1950,porém, já mostra um CharlieBrown neurastênico, refletin-do sobre a solidão com o seuincofundível tom amargo-do-ce – e comprovando que, ape-sar da vontade dos editores ori-ginais, Peanuts nunca foi umatira para “crianças”.

– Os álbuns dos Peanutssempre venderam bem na nos-sa editora, e acredito que amaior parte dos adultos oscompram para si – avalia Ca-roline. – É algo que tem tantoapelo para o público infantil doque para o adulto.

Justamente por escapar da in-fantilização,Peanutsé um marconos quadrinhos. Para muitos, foia primeira tira beat da história.Sem se meter em teorias filo-sóficas, Schulz lançava seus per-sonagens em inquietações exis-tenciais. A melancolia está sem-pre lá, na solidão e decepçõesdaquelas crianças fofas, mas “es-tranhas”, como todos nós.

Tira saiu diariamenteentre 1950 e 2000,e chegou a serpublicada em maisde 2.600 jornais

sem conseguir enxergar. Paraos fãs – especialmente os maisjovens – fica a curiosidade dever, nesta primeira edição, onascimento da saga. Em seuprimeiro ano, as tiras parecemum esboço do Peanuts que fi-cou cravado no imagináriopopular.

Charlie Brown ainda nãousava sua camiseta listradacaracterística. Patty não era“pimentinha” nem ostenta-va nariz esquisito, e aindanão se tornara narcoléptica emá aluna. Na verdade, suapersonalidade se misturacom a da agressiva Lucy, queapareceria naquele mesmoano, mas numa versão em-brionária, com o nome deViolet. E Schroeder, o vir-tuoso do piano, era apenasum bebê. O quadrinista ain-

Repr odução

TAB CADERNO B 11CYAN MAGENTA AMARELO PRETO

[email protected] Domingo, 17 de janeiro de 2010 |JB CADERNO B|B11Jornal do Brasil

como todos nós

– Schulz é um cara quemanteve uma produçãomonstruosa sem perder a qua-lidade – diz o quadrinista gaú-cho Allan Sieber, autor dasanimações Deus é pai (1999) eOnde andará Petrucio Felker?(2001) – Sempre gostei do seuuniverso. São personagens tri-dimensionais, há uma grandedensidade. Não é como a Tur -ma da Mônica, em que uma édentuça, o outro não toma ba-nho e outro fala errado.

Sieber ainda destaca o de-senho inconfundível do autor,que conseguia expressar umaenorme gama de sentimentosem poucos traços.

– Ele tinha um grande poderde síntese – diz. – E até o fim elemanteve a pureza, uma integri-dade artística que poucos têm.Desenhava sozinho. No final davida, já doente, com as mãostremendo, você podia ver o de-senho vacilante. Gosto disso.

Criador datira Malva -dos, o qua-drinista ca-rioca AndréDahmer consi-dera o traço de Char-les Schulz um dos mais bo-nitos dos quadrinhos.

– É simples e redondo – elo-gia. – Quem não foi influenciadopor Schulz? E vale destacar queele aprendeu a desenhar por cor-respondência. Criou um uni-

verso enorme com o pouco quederam para ele.

Para Dahmer, a timidezde Schulz também é algomarcante.

– Assim como o Crumb,era um autor fechado. Co-nheço muitos quadrinistasassim, com aversão ao pú-blico. O desenho era, paraeles, uma maneira de resta-belecer o contato. Ele falavapelo desenho.

GÊNESE –Charlie Browne Snoopy, em1950 (acima).Dois anosdepois, traçosmais próximosda versão dospersonagenseternizadajunto aosleitores

“QUE PUXA” –Charlie Brown noinício da década de50, carregando umamanta, que maistarde seria a marcaregistrada de Lino:melancolia e dúvidasexistenciais jáestavam presentes

>> Nas livrarias

Peanuts completo: 1950 a 1952Charles M. Schulz. L&PMEditores. 360 páginas. R$ 68