estética de ricardo reis

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Agrupamento de Escolas de Ponte da Barca Escola Secundária de Ponte da Barca Cód. Agr.: 152626 AEPB Página 1 de 3 RICARDO REIS “Cada um de nós não deve procurar os prazeres violentos, e não deve fugir às sensações dolorosas que não sejam extremas. Buscando o mínimo de dor, (…) o homem deve procurar sobretudo a calma, a tranquilidade, abstendo-se do esforço. (…) A obra de Ricardo Reis, profundamente triste, é um esforço lúcido e disciplinado para obter uma calma qualquer.Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação De formação clássica, Reis procura fazer renascer o paganismo dos gregos e dos romanos, valorizando como filosofia de vida duas das grandes formas da especulação pagã, o estoicismo e o epicurismo. 1. O epicurismo O epicurismo é uma escola filosófica grega fundada por Epicuro (sécs. IV-III a. C.) que procura ensinar o caminho para uma felicidade relativa como forma de evitar a dor que os prazeres da vida sempre causam: o repouso e a ataraxia (uma indiferença capaz de evitar a perturbação) e o gozo em profundidade do momento presente, o chamado carpe diem horaciano (“Goza o dia de hoje, preocupando-te o menos possível / Com o que acontecerá amanhã”). Todavia, não é o prazer grosseiro que importa, mas aquele que provém da cultura do espírito e da prática da virtude. O prazer verdadeiro consiste na ausência da dor (esta é facilmente vencida, dado que é breve e transitória). “Cada dia sem gozo não foi teu (Dia em que não gozaste não foi teu): Foi só durares nele. Quanto vivas Sem que o gozes, não vives. Não pesa que ames, bebas ou sorrias: Basta o reflexo do sol ido na água De um charco, se te é grato. Feliz o a quem, por ter em coisas mínimas Seu prazer posto, nenhum dia nega A natural ventura!” No poema “Vem sentar-te comigo, Lídia”, aparece, claramente, a noção da brevidade/efemeridade da vida e de que não vale a pena insurgirmo-nos ou preocuparmo-nos com o nosso Fado: “Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos. Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio. Mais vale saber passar silenciosamente E sem desassossegos grandes. Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz, Nem invejas que dão movimento demais aos olhos, Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria, E sempre iria ter ao mar. Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos, Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias, Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro Ouvindo correr o rio e vendo-o.” Há que fruir o momento presente, tranquilamente. Melhor ainda: há que renunciar ao próprio gozo, tendo em conta a fugacidade da vida e a proximidade da morte. O ideal de vida é a passividade e o silêncio: “Vê de longe a vida. Nunca a interrogues. Ela nada pode Dizer-te. A resposta Está além dos deuses.” (cf. Fado)

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Temáticas da poesia de Ricardo Reis

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Page 1: Estética de Ricardo Reis

Agrupamento de Escolas de Ponte da Barca Escola Secundária de Ponte da Barca

Cód. Agr.: 152626

AEPB Página 1 de 3

RICARDO REIS

“Cada um de nós não deve procurar os prazeres violentos, e não deve fugir às sensações dolorosas que não sejam extremas. Buscando o mínimo de dor, (…) o homem deve procurar sobretudo a calma, a tranquilidade, abstendo-se do esforço.

(…) A obra de Ricardo Reis, profundamente triste, é um esforço lúcido e disciplinado para obter uma calma qualquer.”

Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação

De formação clássica, Reis procura fazer renascer o paganismo dos gregos e dos romanos,

valorizando como filosofia de vida duas das grandes formas da especulação pagã, o estoicismo e o

epicurismo.

1. O epicurismo

O epicurismo é uma escola filosófica grega fundada por Epicuro (sécs. IV-III a. C.) que

procura ensinar o caminho para uma felicidade relativa como forma de evitar a dor que os prazeres

da vida sempre causam: o repouso e a ataraxia (uma indiferença capaz de evitar a perturbação) e o

gozo em profundidade do momento presente, o chamado carpe diem horaciano (“Goza o dia de hoje,

preocupando-te o menos possível / Com o que acontecerá amanhã”). Todavia, não é o prazer grosseiro

que importa, mas aquele que provém da cultura do espírito e da prática da virtude. O prazer

verdadeiro consiste na ausência da dor (esta é facilmente vencida, dado que é breve e transitória). “Cada dia sem gozo não foi teu (Dia em que não gozaste não foi teu): Foi só durares nele. Quanto vivas Sem que o gozes, não vives. Não pesa que ames, bebas ou sorrias: Basta o reflexo do sol ido na água De um charco, se te é grato. Feliz o a quem, por ter em coisas mínimas Seu prazer posto, nenhum dia nega A natural ventura!”

No poema “Vem sentar-te comigo, Lídia”, aparece, claramente, a noção da brevidade/efemeridade

da vida e de que não vale a pena insurgirmo-nos ou preocuparmo-nos com o nosso Fado: “Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos. Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio. Mais vale saber passar silenciosamente E sem desassossegos grandes. Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz, Nem invejas que dão movimento demais aos olhos, Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria, E sempre iria ter ao mar. Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos, Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias, Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro Ouvindo correr o rio e vendo-o.”

Há que fruir o momento presente, tranquilamente. Melhor ainda: há que renunciar ao próprio

gozo, tendo em conta a fugacidade da vida e a proximidade da morte. O ideal de vida é a passividade

e o silêncio: “Vê de longe a vida. Nunca a interrogues. Ela nada pode Dizer-te. A resposta Está além dos deuses.” (cf. “Fado”)

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Para ilustrar esta teoria de vida, há um poema famoso que conta a reação de dois jogadores

persas de xadrez quando a sua cidade foi invadida e incendiada: “Ardiam casas, saqueadas eram As arcas e as paredes, Violadas, as mulheres eram postas Contra os muros caídos, Trespassadas de lanças, as crianças Eram sangue nas ruas…”,

enquanto eles continuavam, perto da cidade, o seu jogo, “À sombra de ampla árvore”, e com “Um

púcaro com vinho” refrescavam “Sobriamente a sua sede.”

E o poema, num tom moralista, termina com um conselho: “Aprendamos na história Dos calmos jogadores de xadrez Como passar a vida. Tudo o que é sério pouco nos importe, O grave pouco pese. O natural impulso dos instintos Que ceda ao inútil gozo (Sob a sombra tranquila do arvoredo) De jogar um bom jogo. O que levamos desta vida inútil Tanto vale se é A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida, Como se fosse apenas A memória de um jogo bem jogado E uma partida ganha A um jogador bem melhor. A glória pesa como um fardo rico, A fama como a febre, O amor cansa, porque é a sério e busca,

A ciência nunca encontra, E a vida passa e dói porque o conhece… O jogo do xadrez Prende a alma toda, mas, perdido, pouco Pesa, pois não é nada.”

(…) Imitemos os persas desta história”, entregues “ao jogo predileto / Dos grandes indif’rentes.”

Tal como Epicuro defendia, há que mostrar indiferença face às circunstâncias (boas ou más),

não ceder aos impulsos dos instintos, encarar como inutilidade tudo quanto faça sofrer, entregar-se ao

momento presente (carpe diem), viver a sábia indiferença e levar a vida sem competições inúteis. Em

suma, é a apologia do desprendimento, do prazer moderado e do equilíbrio disciplinado.

2. O estoicismo e o fatalismo

O estoicismo é um sistema filosófico grego (séc. IV a. C.) que defende uma vida conforme a

Natureza, libertos das paixões, indiferentes às circunstâncias, aceitando voluntariamente um Fado

involuntário.

“Suporta e abstém-te” era a máxima dos estóicos que aconselhavam a resignação nas

dificuldades e a abstenção de todos os prazeres. Ricardo Reis, por sua vez, dirá: “Abdica / E sê rei de ti próprio.”

Como os epicuristas, os estóicos tentam também uma resposta para a questão fundamental da

dor e da morte. Propõem a renúncia aos prazeres, o moderado apego ao momento presente, a

indiferença, a renúncia, aceitando voluntariamente um destino involuntário, isto é, que nos foi

imposto.

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Trata-se de uma poesia com fortes influências clássicas, não só a nível morfossintático, como

também a nível do recurso à mitologia (“nas mãos o óbulo último” = morrer…) e à simbologia do rio e

da flor (efemeridade e fugacidade da vida). “Senta-te ao sol. Abdica E sê rei de ti próprio.”

“Só esta liberdade nos concedem Os deuses: submetermo-nos Ao seu domínio por vontade nossa. Mais vale assim fazermos Porque só na ilusão da liberdade A liberdade existe.” “Quer pouco: terás tudo. Quer nada: serás livre. O mesmo amor que tenham Por nós quer-nos, oprime-nos.” “Que os deuses me concedam que, despido De afetos, tenha a fria liberdade Dos píncaros sem nada. Quem quer pouco tem tudo; quem quer nada É livre; quem não tem, e não deseja, Homem, é igual aos deuses.”

Como o Destino é implacável, o que temos a fazer é imitar os deuses, submetendo-nos,

voluntariamente, a um Destino que nos é superior e que nos é fatalmente imposto: “Não consentem os deuses mais do que a vida. Tudo pois refusemos, que nos alce A irrespiráveis píncaros, Perenes sem ter flores. Só de aceitar tenhamos a ciência.” “Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo… (…) Ele sabe que a vida Passa por ele e tanto Corta à flor como a ele De Átropos a tesoura.” “Prefiro rosas, meu amor, à pátria, E antes magnólias amo Que a glória e a virtude. (…) E o resto, as outras coisas que os humanos Acrescentam à vida, Que me aumentam na alma? Nada, salvo o desejo de indif’rença E a confiança mole Na hora fugitiva.” (…) “Este é o dia, Esta é a hora, este é o momento, isto É quem somos, e é tudo. Perene flui a interminável hora, Que nos confessa nulos. (…) Colhe o dia, porque és ele.”

Prof. Luís Arezes