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A Cuba das jóias patrimoniais e das “majestosas montanhas verdes” FUGAS | Público | Sábado 25 Abril 2015 PAULO PIMENTA ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 9141 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

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PAULO PIMENTA ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 9141 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

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4 | FUGAS | Público | Sábado 25 Abril 2015

ViagemCuba

Cuba colonial e afrancesada

Estamos longe de Havana, geográfi ca e, sobretudo, mentalmente, e tão pouco temos praias a intrometerem-se. Longe dos cartazes turísticos, portanto, mas perto da essência cubana, que se faz de história e natureza. De Remédios a Cienfuegos, daqui até Trinidad, percorremos cidades que são jóias patrimoniais. Andreia Marques Pereira (texto) e Paulo Pimenta ( fotos)

O carnaval é uma parranda

É verdade que o poeta (Ary dos San-

tos) escreveu que o “Natal é quando

um homem quiser” mas não espe-

rávamos encontrá-lo em Maio em

Cuba – falha nossa porque o poema

segue: “Natal é em Dezembro/ Mas

em Maio pode ser”.

Não é comum, mesmo em Remé-

dios, a pequena cidade do norte da

ilha que é, a poucos quilómetros da

costa, passagem (quase) obrigatória

a caminho dos cayos Santa Maria e

Las Brujas. Neste sentido somos pri-

vilegiados – fez-se Natal, literalmente,

para turista ver.

E aqui em Remédios isso signifi -

ca uma batalha musical e de fogos

de artifício, num ritual centenário

que começou como forma de levar

as pessoas à igreja para a missa do

galo. Não só resultou como evoluiu

para esta espécie de carnaval fora do

tempo, Parrandas de Remedios, que

é hoje uma das maiores festas popu-

lares cubanas. E então é sexta-feira

e uma pequena multidão surge para

nos dar música e muita confusão na

praça principal da cidade que é uma

das mais antigas do país: a data ofi -

cial aponta para a fundação em 1578,

a data informal para 1513 (o que faria

dela a segunda mais antiga, à frente,

por exemplo de Trinidad) – a dife-

rença é que em 1513 era propriedade

privada.

O sol é inclemente nesta espécie

de plaza mayor de Remédios (monu-

mento nacional), que leva o nome de

Jose Martí. É aqui que parece concen-

trar-se a vida desta cidade pequena e

sem atractivos de maior excepto os

que a arquitectura colonial nos dá e

as gentes preenchem. Há quem veja

nela uma mini-Trinidad, os edifícios

coloridos a desenharem-na baixa e

em harmonia, com algum comércio

e um dia-a-dia que parece passar sem

pressas.

Sentados no café Louvre, na praça

Martí, quase defronte à igreja de São

João Baptista, a principal da cidade,

edifício volumoso e atarracado que

apenas sobe na torre sineira de três

andares, é fácil entrar nesse ritmo

lânguido que, inevitavelmente, o

calor acentua. A conversa fl ui fácil,

os estrangeiros são sempre fonte de

curiosidade. Fidel – sim, “em home-

nagem ao comandante”, diz sem

qualquer pergunta – fala-nos do 25

de Abril, dos claveles, e de Eça de

Queirós; mas fala-nos mais da “vida

boa” de Remédios. “Não nos falta

nada”, desde casa, onde vai fazen-

do uns arranjos sempre que pode,

a trabalho, a qualidade de vida. “A

minha irmã conseguiu ir para Hava-

na. Ela não o diz, mas sinto que está

arrependida.”

Remédios está muito longe de Ha-

vana. Não são só as cinco horas de

viagem, é toda a maneira de estar. Es-

tá até longe de Santa Clara, a apenas

45 quilómetros de distância, cidade-

ícone da revolução cubana, palco da

sua última batalha. Quem aqui chega

já está com as praias paradisíacas da

costa e dos cayos na mente e é fácil

desacelerar, sobretudo se se vem da

capital. Não há multidões a solicitar a

atenção para comprar CD e fi lmes pi-

rateados, charutos ou apenas a pedir

dinheiro. Talvez seja por os turistas

serem poucos que Remédios se man-

tém como que parado no tempo.

Cienfuegos

Holguín

Bayamo Guantánamo

Havana

TrinidadTopes de Collantes

Remedios

BAAMAS

CUBA

100km

Mar das Caraíbas

OCEANO ATLÂNTICO

Golfo do México

HAITI

EUA

O coreto da praça Martí até ajuda a

transportar-nos para o passado, ain-

da que os vendedores ambulantes

rondem a zona, a única na praça à

sombra de árvores e as ocasionais

palmeiras. Encostado à parede la-

teral da Igreja de São João Baptista,

Juanillo prefere o sol e a sua banca

improvisada é uma máquina do tem-

po: revistas Life e National Geogra-

phic dos anos 50, velhos símbolos da

Coca-Cola, relógios de bolso, postais

antigos descolorados pelo tempo.

Sentimo-nos como se estivéssemos

a revirar um baú antigo, esquecido

num qualquer sótão empoeirado.

Durante alguns séculos também

estiveram esquecidos os 13 altares de

ouro da igreja de São João Baptista,

escondidos debaixo de tinta acres-

centada para enganar piratas. Ainda

antes da revolução foram devolvidos

ao convívio da população e hoje são

uma atracção turística que enqua-

dra uma imagem da Nossa Senho-

ra grávida. A caminho de se tornar

numa, está a outra igreja da praça

(algo invulgar) a del Buen Viaje, da

Boa Viagem, actualmente em obras

de restauro.

Há obras em vários locais da cida-

de e um investimento turístico algo

invulgar – hotéis boutique, como mais

uma forma de atrair turistas para

mais do que uma passagem rápida.

Nós que até seguimos as tendências

actuais do turismo em Remedios e

fi camos poucas horas temos então

o privilégio de ver, de participar, nas

parrandas que têm direito a um mu-

seu que não chegamos a conhecer.

Afi nal, de repente somos envolvidos

por uma turba que simboliza as duas

“facções” em que a cidade se divide,

correspondendo a dois bairros: São

Salvador, a norte, e Carmen, a sul,

com a praça principal como fron-

teira.

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FUGAS | Público | Sábado 25 Abril 2015 | 5

primeira no país a aplicar os novos

conceitos urbanísticos – um corte

com a herança colonial.

Porém, entramos em Cienfuegos

longe desse conglomerado que lhe

dá a fama: os arredores são feitos de

casas mais ou menos anódinas, onde

sobressaem as guareperas, invariavel-

mente rodeadas de gente à espera de

se refrescar com o guarapo, sumo de

cana do açúcar – pouco aconselhável

a diabéticos, está visto –, espremido

na hora, que se calhar é mais univer-

sal em Cuba do que o rum, antes de

começarem a surgir bairros residen-

ciais feitos de prédios entre parques.

Isto é Cienfuegos que transbordou,

em muito, dos 25 quarteirões origi-

nais, construídos a partir de 1819 por

imigrantes franceses, muitos vindos

do Louisiana (EUA), que lhe deram

o nome de Fernardina de Jagua, ho-

menagem ao rei espanhol da altura

e ao povo indígena que ocupou esta

área, na baía de Majagua.

Como nova cidade, Cienfuegos

imbui-se do ar do tempo e foi a pri-

meira na América Latina a aplicar as

novas ideias de planeamento urba-

nístico, higiene e modernidade que

abriam caminho nas (velhas) cida-

des europeias, que derrubaram as

suas muralhas para as concretizar.

Por este motivo, a UNESCO distin-

guiu a cidade como património da

humanidade (2005) – por este e por

uma certa homogeneidade arquitec-

tónica ditada por uma regulamen-

tação restrita que não permitia, por

exemplo, a construção em madeira

e impunha um determinado modelo

aos edifícios, com as características

arcadas a predominarem. Começou

por ser neoclássica, abriu-se poste-

riormente ao eclectismo cubano da

República, mas nunca perdeu o es-

pírito primevo.

Não é, porém, sob os auspícios da

uniformidade que fazemos a primei-

ra paragem cienfueguera. Na verda-

de, o edifício parece-nos tanto um

ovni quanto o estádio de basebol

que iremos ver da baía, duas palas

de cimento enormes a sobressair

entre o casario, onde joga a equipa

da província conhecida como “Los

Elefantes”. Chamar-lhe capricho

pode ser exagerado, mas é Cuba a

fi ngir Granada com o rosa e o verde

a pintarem os traços neo-mudéjares

predominantes, carregados de ferro

forjado, do Palácio del Valle, constru-

ído para residência, quase conver-

camente ao telemóvel. “Trabajar con

orden, disciplina y exigencia”, “Hay

que producir más la tierra”, “Por un

socialismo prospero y sostenible”, lê-se

em muros e cartazes; a efígie de Che

Guevara é omnipresente, os perfi s

de Fidel e Camilo Cienfuegos acom-

panham por vezes. “Puede decirse

que Cienfuegos nunca ha fallado”,

“Cienfuegos Património Cultural de

la Humanidad” – estes são os slogans

locais, específi cos desta “Pérola do

Sul”, cidade que tem nome de revo-

lucionário mas é a um antigo gover-

nador que o deve, cidade de “cem fo-

gos”, portanto, mas que se distingue

pela sua baía, cidade de nome bem

espanhol mas de fundação francesa,

cidade recente mas também pioneira

(e até única) no país.

Tem, por exemplo, o único arco

de triunfo do país, construído com

dinheiro angariado pelos trabalhado-

res para celebrar a república. E foi a

Trinidad (foto maior) tem fama de ser a mais bela cidade cubana e vive leve e esfusiante.Em baixo, as parrandas de Remédios

Há galos e águias pelo meio por-

que são as mascotes de cada lado,

desfi lam uns mini-carros alegóricos,

erguem-se faixas e cartazes pintados

com ditos provocatórios, há fogue-

tes e outros engenhos pirotécnicos

à solta. Mas o que realmente se des-

taca é a música incessante acom-

panhada de corpos bamboleantes.

Tambores, trombones, trompetes,

cornetas, chocalhos, apitos, buzinas,

latas num caldeirão de tudo o que faz

ruído misturado em rumbas e linhas

de conga. Não é um Carnaval, mas

parece: só que as parrandas duram

oito dias que vimos condensados em

meia-hora, com algumas dezenas de

participantes. Em Dezembro é a ci-

dade toda que se mobiliza, transfor-

mando-se numa versão caribenha de

sambódromo. Mas aberto a todos.

Pérola do sul

Dirigimo-nos ao sul, entre slogans re-

volucionários, entre a reforma agrá-

ria – mais sonhada do que concre-

tizada, pela quantidade de campos

que vemos abandonados. Por acaso,

às portas de Cienfuegos não é o ca-

so, há muita gente a lavrar campos,

passam carroças e cavalos e ainda se

encontra tempo para falar entusiasti-

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6 | FUGAS | Público | Sábado 25 Abril 2015

ViagemCuba

tido em casino anexo ao hotel con-

tíguo, resgatado para a cultura pela

revolução, ancorado por um museu,

um restaurante e um bar. Estamos

num dos extremos de Punta Gorda,

uma língua de terra que é um bairro

a abraçar a baía com mansões sump-

tuosas, algumas com a mesma mistu-

ra de estilos que enforma o Palácio

del Valle: é que se à primeira vista

é o estilo mourisco que sobressai,

rapidamente percebe-se que esse é

apenas o traço mais saliente de um

ecletismo onde cabe desde o estilo

gótico ao bizantino, do românico

ao barroco, tudo encimado por um

miradouro glorioso para a cidade e

a baía.

É pela baía que chegamos à nossa

próxima paragem – e continuamos

longe do centro histórico de Cien-

fuegos: Punta Gorda foi um dos ca-

minhos, o mais opulento, do cresci-

mento da cidade a partir dos seus 25

quarteirões originais. De barco apor-

tamos, então, ao Clube Náutico de

Cienfuegos, um “clube à americana”,

onde “os sócios pagam quotas para

aceder às instalações desportivas e

fazer refeições”, explicam-nos, po-

rém nem esta incursão aquática nos

permite ter uma ideia mais clara da

geografi a que nos rodeia – uma baía

de 88 quilómetros quadrados cuja

entrada está guardada pela Fortaleza

de Nuestra Señora de los Ángeles de

Jagua (século XVIII) e onde na déca-

da de 1970 uma empresa canadiana

decidiu colocar caiaques no que foi

o início de uma bela relação turística

com o Canadá.

Saídos do clube náutico, é o Paseo

del Prado que nos levará até à órbita

da antiga Praça de Armas, actual Par-

que Martí – é a avenida mais longa de

Cuba, marginada por árvores e atra-

vessando Cienfuegos. Numa parte,

ao unir Punta Gorda e Pueblo Nuevo,

que apesar do nome é constituído pe-

lo núcleo histórico da cidade, faz-se

malécon, cara a cara com o mar, com

cafés, esplanadas e até um clube de

jazz. O Paseo del Prado foi e continua

a ser a via estruturante da cidade.

No seus primórdios, o Prado, como

é mais conhecido, era uma espécie

de passeio público, centro da vida

social, “onde as senhoras passea-

vam para arranjar marido”, tudo sob

“uma série de códigos restritos que

formavam parte do encanto e que

ainda hoje lhe empresta uma aura

especial”, explica Yomary, a guia.

Hoje continua a ser um ponto es-

sencial da vida cultural e recreativa

da cidade e continua a surpreender

pela sua arquitectura com um sime-

trismo notável na sua disposição e

na predominância de fachadas com

colunas encimadas por arquitraves, a

desenharem passeios-galerias contí-

nuas. Um classicismo notável com o

seu twist das Caraíbas: o (inevitável)

arco-íris que o pinta normalmente

com molduras brancas. É a partir do

Paseo del Prado que melhor se per-

cebe a originalidade de Cienfuegos,

com o seu traçado em quadrícula,

“como um tabuleiro de xadrez”, de

ruas largas e rectas pontuadas por

parques e praças.

Nada melhor do que caminhar e o

nosso percurso levou-nos a percorrer

o boulevard como é conhecida a prin-

cipal artéria comercial (e pedonal)

de Cienfuegos, que une o Prado ao

Parque Martí. Não vimos outra igual

em Cuba, nem sequer em Havana.

Esqueçam-se todos os estereótipos:

aqui o comércio é intenso e as mul-

tidões passeiam calmamente, des-

frutando da oferta (dos cachorros

quentes da esquina, aos sorvetes ou

fl ores) e sente-se uma certa prosperi-

dade. Passamos edifícios majestosos,

muitas vezes com loggias no primei-

ro andar, que albergam restauran-

tes (de cadeias e independentes, em

grandes casonas), cafés, armazéns

de produtos para casa, super e mi-

nimercados, lojas de fotografi a, de

roupa, de calçado e barbearias onde

os clientes estão virados para a rua

enquanto lhes cuidam das pilosida-

des. Entramos no que descobrimos

ser o Palacio Blanco (apesar de estar

pintado de verde água), recentemen-

te recuperado para dar casa a artesão

locais. Miguel, que “toma conta disto

das sete às sete”, vê mais cubanos do

que turistas a entrarem pela porta e

deixa-nos espreitar o andar superior,

ainda não ocupado. Da escadaria de

madeira, em caracol duplo, diz-nos

que “só há outra assim, em França

ou Itália”, não se recorda. No rés-do-

chão que desemboca num pátio cen-

tral alinham-se bancas com marro-

quinaria variada, bijutaria, dominós,

os familiares “ches”. Caminhando

mais, vemos o centro da grande rua

ocupada por mais artesãos e algumas

instalações artísticas, há pequenas

árvores em vasos e a Casa Arco, “don-

de lo cubano se hace arte”.

E desembocamos na Parque José

por palmeiras e um coreto. A toda a

volta alinham-se edifícios oitocentis-

tas e do início do século XX, no estilo

ecléctico tão caro aos cubanos do pe-

ríodo da República. O Teatro Tomás

Terry destaca-se pela monumentali-

dade e intricado da fachada, ao lado

o Colégio San Lorenzo pelo clássico

irrepreensível, o palácio Ferrer pelo

azul céu da fachada – como centro

cívico, encontram-se aqui a catedral,

a câmara municipal. E um dos seus

centros profanos, o Café Palatino,

música ao vivo e esplanada debaixo

de arcadas.

Há quem diga que Cienfuegos é a

Paris que Paris seria se estivesse nas

Caraíbas. Não vamos tão longe, mas

certamente Cienfuegos é uma Cuba

(umas Caraíbas, na verdade) absolu-

tamente singular.

O arco-íris colonial

Deixamos Cienfuegos e a Cuba afran-

cesada para mergulhar no seu este-

reótipo de cidade arco-íris colonial.

de mármore do edifício cinza e de

cúpula vermelha do agora Museu

Provincial e, ironicamente, antigo

casino. É o primeiro edifício que

vemos no parque que é mais uma

praça, com a estátua marmórea de

Martí ao centro em linha recta com

o singelo arco do triunfo, rodeado

Martí, o quilómetro zero de Cienfue-

gos assinalado, neste centro cívico da

cidade. “Desde este lugar el coman-

dante em jefe Fidel Castro Ruiz en su

marcha trinfual hacia La Habana

dirigio la palabra al heroico pueblo

cienfueguero em la madrugada de 7

de enero de 1959”, lê-se numa placa

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FUGAS | Público | Sábado 25 Abril 2015 | 7

Para Trinidad nunca foram avaros

os encómios e, na verdade, nunca

lhe pesaram. Tem fama de ser a mais

bela cidade cubana e vive leve e es-

fusiante, como se não fosse nada

com ela, numa espécie de cha cha

cha interminável de que aqueles dois

homens que tocam e cantam num

banco de jardim aos pés do Museu

Nacional da Luta Contra os Bandidos

(curiosamente, um antigo convento)

são o melhor exemplo. Poderíamos

pedir melhor fi nal de tarde? Se ca-

lhar poderia complementar-se com

uma visita ao Floridita Trinidad, ti-

rar uma fotografi a com (o busto de)

Hemingway e beber daiquiris na rua,

um empedrado que parece ser feito

das mesmas pedras que saíram dos

galeões espanhóis há séculos (pelo

menos o desenho urbano não sofreu

alterações signifi cativas nos seus 500

anos de vida).

Trinidad surge-nos no horizonte

ao fi nal do dia como um sonho: não

sabemos se os contornos são reais ou

uma visão. Numa península do sul

de Cuba, a cidade foi um importan-

te porto: primeiro para a conquista

espanhola da América Latina, depois

para o escoamento de produtos, so-

bretudo do açúcar, que fez a glória

da região e agora é atracção turística

por vezes fantasmagórica (já lá ire-

mos). O mar das Caraíbas anda per-

to, portanto, mas não o chegamos a

ver. A cidade de 50 mil habitantes

pede tempo para ser desfrutada: não

é grande, mas merece ser percorrida

tão lentamente quanto possível, não

recusando os convites às paragens

em esplanadas, pequenas praças,

tascas e bares. Faz parte do charme

deste recanto com sabor crioulo que

não permite tristezas, pois tem a ale-

gria plasmadas nas paredes azuis,

amarelas, vermelhas, ocres, verdes,

tons carregados, sempre, e na músi-

ca que é omnipresente mesmo que

não descubramos de onde vem. Está

na rua e é na rua que se está bem em

Trinidad.

A UNESCO não fi cou indiferente

à cidade fundada em 1514 e consa-

grou-a Património da Humanidade,

distinguindo-a pela excepcional ho-

mogeneidade e continuidade da sua

construção, que compõem um todo

harmonioso. Porém, não se espere

encontrar uma Disneylândia colo-

nial. Esta é uma cidade vivida pelos

trinitarios, os turistas são convida-

dos a espreitar, a ver para além das

fachadas, quase todas dos séculos

XVIII e XIX, altura em que se come-

çou a construir com pedra, depois do

início do ciclo da cana de açúcar. É

assim que vagueamos entre edifícios

marcadamente coloniais, ao estilo

andaluz e estremenho, portanto, so-

bressaindo as varandas de madeira

pintadas em forte contraste com as

paredes, e outros que já integram

formas neoclássicas. Nem todos são

palácios – longe disso – nem todos

estão exemplarmente conservados

e este é o segredo da autenticidade

de Trinidad, atrevemo-nos.

Na esquina da San Procopio com

a Jesu Maria, carne de porco em san-

des, cães a catar migalhas no chão,

mulheres com rolos gigantes na ca-

beça, velhas a pedir um peso. Dejec-

tos de cavalo na rua, joga-se xadrez

nas soleiras das portas viradas para

as ruas. As janelas das casas estão

abertas e ouvem-se as vozes para lá

dos gradeamentos (às vezes madeira

a compor uma espécie de marqui-

se) que são ornamentos (e uma das

imagens de marca dos rés-do-chão de

Trinidad) mas também pragmáticos:

por vezes nem vidros ou portadas

existem, deixando as casas abertas

à mais leve brisa. É sábado à tarde

e a cidade fervilha numa mescla de

locais e turistas. Os cavalos a puxar

carroças partilham as ruas estreitas

e tortas do centro histórico, algumas

inclinadas até perder de vista, com

motorizadas ruidosas e alguns car-

ros e carrinhas, estas sobretudo nas

cargas e descargas – como se espe-

ra, não há qualquer disciplina neste

trânsito, que até é proibido em parte

da zona.

Seja como for, não incomodam en-

quanto passeamos – e todos os cami-

nhos parecem ir dar à Plaza Mayor,

inclinada e irregular, com jardim cen-

tral arrumado em porções relvadas

guardadas por gradeamentos baixos

e palmeiras nos cantos, e fachadas

que parecem cenários brilhantes.

Tanto é assim que lá passamos de

amiúde. De uma vez conseguimos

espreitar a igreja da Santíssima Trin-

Guia prático

ONDE FICAR

RemédiosHotel Barcelona (hotel boutique)Calle José A. Peña, 67, entre La Pastora y Antonio MaceoTel.: (+53) 42 395144

CienfuegosHotel JaguaAvenida 2 | Punta GordaTel.: (+53) 43 551003www.hoteljagua.com

TrinidadBrisas Trinidad del MarPenínsula Ancón Email: [email protected]

ONDE COMER

RemédiosLa PalomaParque Martí, 4Tel.: (+53) 42 39 54 90

CienfuegosEl Marinero(Cienfuegos Yacht Club)Calle 37, entre av. 10 e 12Tel.: (+53) 43 43 51 28 91

TrinidadRestaurante Santa Ana(Carcel Real)Plaza Santa AnaTel.: (+53) 41-998257

Manaca IznagaPoblado Manaca Iznaga Km. 12, TrinidadTel.: (+53) 41 997241

dade, quando escutamos os cânticos

do serviço religioso, tempo apenas

para distinguir um altar neo-gótico;

da segunda vez fi camos à porta, com

Fulgencio, que faz artesanato de pa-

lha, por companhia. “Já está fechada,

até às 10h de amanhã. É pena que

não a vejam, é uma das igrejas mais

bonitas da América latina”, garante.

Não é que tenha viajado muito, mas

já foi “a Havana, a Matanzas”, e não

tem dúvidas de que Trinidad “é a me-

lhor cidade para se viver”. “É bonita,

histórica e tranquila. A vista daqui

não tem preço” – e lança o olhar so-

bre esta tarde abafada.

Sol para um lado, nuvens pousa-

das na serra do Escambray. Subimos

às alturas para mirar a paisagem e

a quadrícula insubmissa de Trini-

dad até à praia de Ancón – não mui-

to longe o palácio Cantero oferece

vista semelhante (mais o bónus de

ser o museu municipal que preser-

va irrepreensivelmente o fausto da

residência original), mas há uma

certa simbologia em observá-la do

convento São Francisco feito então

Museu Nacional da Luta Contra os

Bandidos, sendo que os “bandidos”

são os contra-revolucionários que en-

tre 1960 e 1965 fi zeram a guerrilha

contra o governo dos “barbudos” de

Fidel na serra de Escambray, que já

havia sido território guerrilheiro na

luta que depôs Fulgêncio Baptista.

É o eterno ciclo da história a exibir-

se em Trinidad. O mesmo que con-

verteu a Plaza Mayor em museu vivo

recuperando as mansões dos antigos

donos do açúcar, transformando-as

mesmo em espaços expositivos, on-

de se mantém a opulência de outros

tempos na arquitectura, mobiliário

e decoração – veja-se o Museu de Ar-

quitectura e a Casa Brunet. O mesmo

que, por exemplo, transformou o an-

tigo Carcel Real em restaurante, onde

a sala é muitas vezes o pátio central, e

um velho teatro em ruínas há várias

décadas em Casa da Cerveja, um bar

com certeza, todo ao ar livre, entre

paredes ocres interrompidas, colu-

nas e arcos incompletos – especiali-

dade: cerveja com mel e açúcar.

Mas esta não é a bebida-ícone de

Trinidad, que até tem taberna com

o mesmo nome, bem perto da re-

centemente aberta La Bodeguita

del Medio – uma cópia da original

habanera, aqui a brilhar de nova.

Essa bebida – e taberna – é La Can-

chánchara, rum, mel e sumo de

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8 | FUGAS | Público | Sábado 25 Abril 2015

ViagemCuba

O riso é geral na

praça central de Las Terrazas – na

verdade, a única praça de Las Ter-

razas. Em nosso redor desenvolve-

se o centro desta aldeia que aqui

se vê cidade em miniatura, com

centro médico, biblioteca, cinema,

café, discoteca, lojas de artesanato,

mas nós estamos agora a rodear a

grande árvore, tronco largo e alto,

ramagem farta, a que chamam “do

turista”, “põe-se vermelha e des-

casca-se”. É um almácigo, explica

o guia. Se nos tivéssemos aventura-

do fl oresta adentro teríamos visto

mais, quem sabe teríamos até visto

o pássaro mais pequeno do mundo,

o zunzuncito, como é aqui conhe-

cido. Mas a nossa visita é curta e as

caminhadas poucas. Ironia, porque

neste canto a menos de 80 quilóme-

tros de Havana o que se pede não

são tergiversões, mas imersões: é

terreno Reserva da Biosfera desde

1985, a primeira em Cuba. E este

é também o destino primeiro do

ecoturismo cubano, que tem em

Las Terrazas a sua plataforma gi-

ratória.

Não é um rumo turístico (ainda)

habitual o Oeste de Cuba, que de-

semboca em Pinar del Río, onde,

diz-se, se cultiva o melhor tabaco

do mundo. Nós fi camos a meio ca-

minho entre Havana e a origem dos

puros, em pleno território guajiro.

A província agora é Artemisa, há

quatro anos era ainda a Província

de Havana, entretanto dividida em

duas. Da capital a Las Terrazas o

caminho dura menos de uma hora

pela autoestrada Este-Oeste (auto-

estrada mas não demasiado: cru-

zamo-nos com carroças puxadas

a cavalo) que rompe um cenário

de planícies verdes que começam

a aninhar-se em pequenos vales

à medida que nos afastamos, en-

quanto as casas vão perdendo pose,

tornam-se escassas até que desapa-

recem do cenário.

As árvores aglomeram-se, a vege-

tação compacta-se até tudo parecer

um volume impenetrável, com pal-

meiras reais a elevarem-se acima.

O porto de Mariel não se vê, mas

merece referência orgulhosa do

guia quando nos deparamos com

o seu rasto de obras na órbita da

autoestrada – afi nal, é o maior in-

vestimento em curso no país, e será

o maior porto cubano, libertando

o porto de Havana apenas para o

turismo.

É o turismo, ecológico e sustentá-

vel, a bandeira de Las Terrazas, al-

deia transformada em complexo tu-

rístico - diríamos éden turístico. São

25 mil hectares de fl orestas monta-

nhosas, rasgadas por rios, ribeiros,

lagoas e cascatas, com 800 espécies

botânicas (mais de 200 endémicas),

uma avifauna notável, cerca de 100

espécies, entre migratórias (MIA-

MI) e endémicas (como o tocororo,

símbolo de Cuba), e outras curiosi-

dades como um dos mais pequenos

sapos do mundo e o minúsculo (e

colorido) chipojo, um réptil.

Las Terrazas abraçam o rio San

Juan e, apesar da distinção da

UNESCO ter chegado em 1985, a

verdade é que a integração no en-

torno natural sempre foi uma prio-

ridade. Na verdade, a natureza foi

um dos motivos da construção da

comunidade, em 1968, quando a

revolução era uma criança a dese-

nhar utopias.

Depois do período áureo do café,

a decadência desta produção levou

as populações locais à extracção de

carvão o que agudizou o derrube

da fl oresta e o surgimento de uma

bolsa de pobreza extrema, com as

pessoas a viverem isoladas, longe

de cuidados de saúde e acesso à

educação. Foi neste contexto que o

governo criou aqui uma espécie de

reforma agrária, com um programa

bicéfalo: por um lado, promover o

desenvolvimento rural, por outro

restabelecer o equilíbrio ecológico.

A aldeia foi criada em 1968 como

pólo aglutinador das pessoas que

viviam dispersas pelas montanhas

que receberam a missão de refl o-

restar a zona. Foi assim até 1991,

quando uma nova variável foi in-

troduzida neste ecossistema – o tu-

rismo, comunitário e sustentável.

“Até 1991 fomos subsidiados pelo

Estado. Desde então, com o desen-

volvimento da actividade turística,

conseguimos auto-fi nanciar-nos,

com todo o produto reinvestido na

comunidade”, sublinha Fernando

Paredes, o director-geral.

É assim que chegamos a Las Ter-

razas, equilibrada entre o turismo e

o quotidiano rural. Somos turistas

típicos quando desembocamos à

beira de um lago – artifi cial – onde

funciona um centro de acolhimen-

to. Relvados bem tratados, longo

ancoradouro, um dos restaurantes

do complexo – e toda a natureza lu-

xuriante a emaranhar-se no nosso

horizonte. A aldeia fi ca para o outro

lado e está embutida nos socalcos

que dão nome à comunidade e for-

ma à paisagem que se começam a

ver as casas brancas pré-fabricadas,

individuais, assentes em pilares

com pequeno terreno em volta. “Os

habitantes estavam habituados a ter

o seu quintal, não quisemos tirar

isso”, explica Fernando Paredes.

Esta foi a primeira fase do pueblo, a

segunda sobe um pouco em altura,

com edifícios de dois andares e va-

A Oeste a revolução é verde

limão, originalmente servida quente

aos revolucionários cubanos que no

século XIX lutavam, aqui na região,

pela independência, e que nos ser-

vem numa taça de barro com pedras

de gelo.

E numa cidade tão hedonista, ne-

nhuma visita pode passar ao lado

da Casa de la Música, profanamen-

te instalada mesmo ao lado da igreja

da Santíssima Trindade – uma longa

escadaria de pedra é a nave, o altar é

a esplanada no cimo, a liturgia é sal-

sa, son, cha cha cha. E a música, que

aquece a partir das 22h, enche todo

o centro histórico, competindo, é

certo, com dezenas de outros locais,

mais pequenos mas igualmente com

sabor cubano. Excepção notável: o

bar Yesterday, Beatles reloaded todas

as noites, servidos por músicos locais.

Se Trinidad é assim hoje é porque

no século XVIII se descobriu “ouro”

em forma de cana do açúcar, desen-

volvendo-se uma fl orescente indús-

tria. Herança que chegou até hoje

no Valle de los Ingenios, onde até

ao fi nal do século XIX funcionaram

55 engenhos de açúcar, tendo por

aqui passado 30 mil escravos. Está

às portas de Trinidad a melhor vista

sobre ele – que na verdade são três

– um miradouro (com restaurante)

onde o olhar chega até ao mar de um

lado e mergulha nos verdes mil do

vale do outro. Há algo de nostálgico

na paisagem abandonada, coroada

por palmeiras reais.

Do miradouro seguimos para

Manaca Iznaga entre paisagem ru-

ral profunda, com casas esparsas.

A aldeia é a antecâmara do ingenio

Manaca Iznaga, que preserva a casa

principal (museu e restaurante), as

barracas dos escravos e moinhos de

cana. Singular é a torre que com os

45 metros é a mais alta da região açu-

careira da América e Caraíbas e de

onde os donos e capatazes vigiavam

todos os trabalhos. Agora, lá do alto,

vê-se abandono – ou turismo: aos pés

uma série de mulheres vestidas de

branco vendem artesanato, sobre-

tudo linhos bordados.

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FUGAS | Público | Sábado 25 Abril 2015 | 9

um colar ou um broche, por exem-

plo, as cascas de coco e mexilhão

alinham-se em colares.

Se o convívio com os habitantes é

uma das premissas do turismo co-

munitário, aqui este pode fazer-se

tanto em ateliers de artistas, nos

vários paladares que com os res-

taurantes (incluído o El Romero,

considerado o melhor vegetariano

do país) formam a oferta gastronó-

mica, e até no alojamento, onde há

a opção de fi car em casas de famí-

lias. É um projecto do Hotel Moka,

edifício que leva ao extremo a ca-

mufl agem na natureza: construído

em torno de uma “árvore do turis-

ta” (que se escapa por uma clara-

bóia), distribui-se quase como que

sendo uma continuação imaginária

da ramagem.

As árvores verdadeiras que com-

põem a sinfonia verde são também

“estrada” para uma aventura em

zip-line, uma das propostas mais

radicais deste complexo turístico.

Caminhadas, trekking, andar a cava-

lo, observação de pássaros, kayak

no lago, mergulhos em cascatas são

outras opções. Como o nosso tem-

po é curto, seguimos o caminho das

ruínas de uma plantação de café do

início do século XIX, para ver in situ

a história da região.

E esta é a história de imigrantes

franceses que depois da revolução

no Haiti aportaram a Cuba para se

dedicarem à plantação de café. Co-

meçaram pela costa ocidental da

ONDE FICAR

Hotel MokaKm 51 da autoestrada para Pinar del RíoComunidade Las Terrazaswww.hotelmoka-lasterrazas.com

Hotel Horizontes Villa SoroaCandelaria, SoroaTel.: (+53) 5 3853861

ONDE COMER

Ranchón del SaltoSoroa

ilha, mas aqui chegaram a existir

mais de cem plantações. Na área de

Las Terrazas estão sinalizadas seis,

a maioria ruínas dispersas, mas a

Buena Vista poderia ser cenário de

um fi lme de época, recuperada que

foi em 1994. Fica num dos topos da

Serra do Rosario e a vista permite

que os nossos olhos cheguem até ao

mar das Caraíbas – aliás, como esta-

mos no ponto mais estreito da ilha,

31 quilómetros, alguns locais ofere-

cem como horizonte a costas norte

e sul. É difícil largar os miradouros

naturais, mas há um avistamento

de torococo – não o conseguimos

descortinar entre o rendilhado de

vegetação.

A casa principal foi totalmente

recuperada e alberga por estes dias

um restaurante e ao lado enfren-

tamos terraços quase como se es-

tivéssemos perante uma pirâmide

pré-colombiana. Mas a estrutura

que se organiza em amplos terra-

ços atravessados por uma enorme

escadaria representa parte do ciclo

do café, que depois de colhido era

colocado nos degraus a secar, an-

tes de ser separado da casca numa

tahona (um moinho movido por es-

cravos, cujos alojamentos se avis-

tam em ruínas) que é o culminar da

nossa ascensão.

Deixamos os vestígios franceses

da região para avançar em direcção

ao “arco-íris de Cuba”, como Soroa

é conhecida. Continuamos na serra

do Rosário e o Jardim Botânico/ Or-

quidário de Soroa, disposto numa

encosta abrupta, é um paraíso para

orquidiófi los mas difi cilmente al-

guém sai incólume daqui. São mais

de 750 espécies de orquídeas, cerca

de 20 mil exemplares, num entor-

no natural luxuriante, que inclui

outras seis mil espécies de plantas.

Mas voltamos ao arco-íris: dizem

que se desenha junto da cascata

conhecida como Salto de Soroa,

quando sol e nevoeiro se cruzam

sobre a queda de água de 22 metros

de altura. É um mergulho na fl ores-

ta tropical, percorrendo os trilhos

que descem até desembocarem nas

piscinas desenhadas pelas cascatas.

Sabe bem a fruta que o senhor Jose

aqui vende, todos os dias, “sobre-

tudo a cubanos” – saberia melhor

um mergulho na água. Andreia Marques PereiraA Fugas viajou a convite

do FITCuba 2014

mos vê-la de outro lado, na subida

para o hotel Moka, ícone do com-

plexo e do ecoturismo cubano.

Por enquanto, paramos no cen-

tro da aldeia, uma praça ampla on-

de se reúnem todos os serviços que

emulam uma mini-cidade e onde se

destaca o edifício do cinema, que

acompanha o desnível da sala, em

escadaria invertida, para aprovei-

tar o espaço de baixo para uma

discoteca e bar. Rosario não vai à

discoteca, mas gosta de saber que

ela está lá. Ainda se lembra da vida

na montanha, “dura”, e a mudança

para Las Terrazas mudou-lhe o des-

tino. Tem uma banca de artesanato

aqui na praça, utiliza gorgónia para

inventar pulseiras e brincos, com o

nácar desenha formas com embute

em metal que depois pode ir para

Na ilha das grandes montanhas verdes aposta-se agora no turismo ecológico e sustentável

Ver fotogaleria emfugas.publico.pt/

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CapaCuba

Deixamos Trini-

dad para trás quando a tarde come-

ça a cair e o sol doura ainda mais o

arco-íris edifi cado que é esta cidade

colonial. Temos pena de sair daqui

— facilmente acreditamos em Ful-

gencio, 59 anos — “sim, Fulgencio

como o outro”, ri-se —, quando diz

que Trinidad é a melhor cidade para

se viver em Cuba. “É bonita, histó-

rica e tranquila. A vista daqui não

tem preço.”

Sentado nos degraus da Igreja

Paroquial da Santíssima Trindade,

a entrelaçar palha que há-de trans-

formar-se em pequenos animais que

vende aos turistas, Fulgencio lança

o olhar sobre esta tarde abafada. Sol

para um lado, nuvens pousadas na

serra do Escambray. É justamente

para lá que vamos, para a serra do

Escambray. Deixamos, portanto, Tri-

nidad envolta numa luz mágica de

fi m de tarde e começamos a viagem

o nome genérico para uma paisa-

gem natural de 200 quilómetros

quadrados que está organizada em

seis pequenos parques: Guanayara,

Codina, Altiplano Topes de Collan-

tes, El Cubano, El Nicho e Cayo Las

Iguanas”, conta o guia, enquanto

o camião vai subindo a custo algu-

mas das encostas pejadas de árvores

mais ou menos gigantes, arbustos

vários, vegetação rasteira — e tudo

o mais que de verde houver.

A serra já cá estava, bem enten-

dido, mas o povoado de Topes de

de cerca de uma hora até Topes de

Collantes. Uma hora ou mais, dizem-

nos, que entretanto a noite há-de

chegar e tornará o trajecto curva-

contracurva ainda mais difícil. De

Trinidad a Topes de Collantes são

25 quilómetros numa estrada pouco

própria para cardíacos.

Eis-nos, então, na província de

Sancti Spíritus, a desbravar terre-

no naquele que é o segundo sistema

montanhoso mais elevado de Cuba,

só suplantado pela serra Maestra.

Temos luz apenas nos primeiros

quilómetros, o breu há-de tomar

conta da jornada em breve. E só na

manhã seguinte temos noção de on-

de estamos.

“Welcome to the jungle”, cumpri-

menta Andrés Santana, o guia que

nos recolhe no Hotel Los Helechos

para nos acompanhar numa cami-

nhada pelo Parque Guanayara — mas

lá chegaremos. Por agora, subimos

ao camião de Andrés e ouvimos-

lhe as primeiras explicações sobre

Topes de Collantes, uma área pro-

tegida administrada pelo Grupo

Gaviota.

“O Parque Topes de Collantes é

Collantes nasceu por iniciativa de

Fulgencio Batista, que ali mandou

construir um sanatório para tuber-

culosos. A mulher do ditador so-

freria da mesma doença e terá sido

numa quinta privada na serra do Es-

cambray que convalesceu por largas

temporadas. Tendo-se apaixonado

pelas montanhas, terá infl uenciado

o marido a erigir o antigo hospital,

que abriu portas em 1954. O gigan-

tesco edifício, bem ao estilo sovi-

ético, foi entretanto reconvertido

para a hotelaria — o Kurhotel per-

manece de portas abertas e, apesar

de continuar a privilegiar o turismo

de saúde, também aceita outro tipo

de hóspedes.

Andrés explica-nos isto tudo e pá-

ra entretanto na Casa Museu do Café.

Há mais de dois séculos que o café é

cultivado nesta região montanhosa e

o pequeno complexo aqui instalado

permite aos visitantes mergulharem

no seu processo produtivo. Começa-

se pelo jardim das variedades, onde

se expõem cerca de 25 diferentes

plantas de café, passa-se pelo núcleo

A farmácia a céu aberto de Topes de Collantes

Cuba não é só Havana e praias de postal ilustrado. Tem também uma natureza pujante que quer mostrar ao mundo — e, apostamos, que o mundo quer conhecer. Sandra Silva Costa (texto) e Paulo Pimenta ( fotos)

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FUGAS | Público | Sábado 25 Abril 2015 | 11

museológico e termina-se a provar

um delicioso café preparado manu-

almente “à maneira crioula” — ao

lume, sobre brasas.

“Certamente que já ouviram elo-

gios ao café da Colômbia. Mas os

cafés de Cuba e da Jamaica são os

melhores do mundo”, garante An-

drés. É “em Guantánamo que está

a produção em massa”, mas aqui,

a 840 metros de altitude, “está a

melhor qualidade”. Das encostas

da serra do Escambray saem todos

os anos 200 toneladas de café arábi-

nomear as espécies que nos passam

pela frente dos olhos – distinguimos

palmeiras, naturalmente, fetos enor-

mes, alguns pinheiros, mas para che-

garmos à Cecropia peltata (yagruma,

nome comum) ou ao Ficus cubensis

(jagüey, nome comum) precisamos

da ajuda quase enciclopédica de An-

drés Santana. Atenção, meninos e

meninas, vai começar a aula.

Quando nos apeamos do camião,

já estamos no Parque Guanayara,

a postos para começar uma cami-

nhada de hora e meia dentro de um

livro vivo de botânica. Há urubus a

planar e o guia sugere que estejamos

atentos, que também vão passando,

velozes, vencejos de cuello blanco,

aves que podem voar a velocidades

meteóricas. Daqui a nada consegui-

remos escutar-lhes o canto, mas vê-

los, nem por sombras.

Vemos, isso sim, o comportamen-

to divertido das dormilonas, a quem

Andrés nos apresenta. Trata-se de

“plantas sensitivas”, que se reco-

lhem sobre si próprias quando lhes

tocamos. O nome científi co é Mimo-

sa pudica, mas por estas bandas é co-

nhecida como “a planta das mulhe-

res infi éis”, conta o guia, divertido,

acrescentando que as dormilonas

“têm propriedades soporíferas”.

“Isto aqui é como uma farmácia”,

diz ainda Andrés, enquanto nos guia

pelo trilho emaranhado — sem a sua

orientação, é certo e sabido que nos

perderíamos antes de chegarmos,

sequer, ao Salto del Rocío. “Preci-

sam de remédio para as queimadu-

ras? Aqui está, Chanel 25”, brinca

Andrés, apontando para a Piper au-

co, que se destinam em exclusivo à

exportação. “O Japão paga fortunas

pelo nosso café”, conta, orgulhoso,

Andrés, 55 anos e 16 como guia no

parque.

“A natureza e o meio ambiente são

muito importantes para Cuba, mas

são uma parte de Cuba de que pou-

co se fala no mundo”, lamenta diz

Andrés, elevando a sua voz para que

o possamos ouvir entre os roncos

do camião que se movimenta, aos

solavancos, por um colossal túnel

verde. Sozinhos não conseguimos

ritum. “E precisam de melhorar o

hálito? Aqui está a goiaba, que tem

taninos que evitam a formação da

placa bacteriana.” Mais à frente, a

palma real, “a planta que representa

todos os cubanos” e cuja raiz tem

“ácido fosfórico, que é bom para

os cálculos renais”. Também há a

“afrodisíaca” salsa parrilha e a “ma-

ta-sogras, a planta mais venenosa

de Cuba”. “Mata em 15 minutos de

infusão”, alerta Andrés Santana.

Com estas e outras, quase nem da-

mos pelo que já caminhámos. Já se

ouve, ainda que ao longe, o barulho

da cascata do Salto del Rocío, que

marca mais ou menos a metade do

trilho “Sentinelas do rio Melodio-

so” — não o cumpriremos na ínte-

gra, detivemo-nos tempo de mais

a olhar para as plantas e a contem-

plar a queda de água de 32 metros.

Espera-nos o frango da Casa de La

Gallega, um restaurante familiar

situado junto ao rio Guanayara. É

um pequeno oásis de fl ores, frutas

e melodias de água a correr onde se

experimentam os sabores de Docin-

da Amanda Sotello, 71 anos, fi lha de

pai galego, de Lugo.

Docinda ainda começa a explicar-

nos como se faz este frango que en-

che o prato aos turistas — “leva rum,

vinho branco, alho, tomate, cebola,

pimento, cominhos, pimenta, azei-

te, sal…” — mas uma chuvada mo-

numental acaba por desviar-nos da

conversa.

Talvez agora percebamos melhor

por que é que este verde é tão verde.

A Fugas viajou a convite do Grupo

Pestana e do Grupo Gaviota

Guia prático

ONDE DORMIR

A oferta não é muito abundante, pelo que a maior parte dos que chegam acabam por ir parar ao Hotel Los Helechos, um três estrelas de atmosfera decadente que pertence ao Grupo Gaviota. Os quartos são espaçosos mas muitíssimo básicos — a decoração é para lá de kitsch… — e o serviço do restaurante deixa muito a desejar.

PASSEIOS

Apesar de os parques poderem ser explorados de forma independente, talvez não seja mal pensado contratar um guia para o acompanhar nos percursos. O passeio que a Fugas fez teve a orientação de um guia do Grupo Gaviota e, não tivéssemos sido convidados, teria custado 9 CUC (trilho), mais 12 CUC para o almoço na Casa de la Gallega. O camião custa 74 CUC, mas leva 20 pessoas. Grupo GaviotaParque Topes de CollantesTel.: 53 42 54 0219Email: [email protected]; [email protected]

“A natureza e o meio ambiente são muito importantes para Cuba”