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ESTADO E INDIVIDUAÇÃO NO ANTIGO REGIME: POR UMA LEITURA NÃO-ROMÂNTICA DE ‘SHAKESPEARE’ Alexander Martins Vianna Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História Social. Orientador: Prof. Dr. Manoel Luiz Salgado Guimarães Rio de Janeiro Março de 2008

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ESTADO E INDIVIDUAÇÃO NO ANTIGO REGIME: POR UMA LEITURA NÃO-ROMÂNTICA DE ‘SHAKESPEARE’

Alexander Martins Vianna

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História Social. Orientador: Prof. Dr. Manoel Luiz Salgado Guimarães

Rio de Janeiro Março de 2008

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ESTADO E INDIVIDUAÇÃO NO ANTIGO REGIME: POR UMA LEITURA NÃO-ROMÂNTICA DE ‘SHAKESPEARE’

Alexander Martins Vianna

Orientador: Manoel Luiz Salgado Guimarães

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História Social. Aprovada por:

___________________________________________ Presidente, Prof. Dr. Manoel Luiz Salgado Guimarães

_____________________________________ Prof. Dr. Alcir Pécora _____________________________________ Prof. Dr. Jacqueline Hermann _____________________________________ Prof. Dr. Marcelo Gantus Jasmin _____________________________________ Prof. Dr. Monica Grin

Rio de Janeiro Março de 2008

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Dedico este trabalho a todos os meus ex-alunos do curso de História da FEUDUC, sem os quais estas páginas teriam sido bem menos divertidas e desafiadoras.

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Agradecimentos

Agradecimentos mais do que especiais ao Prof. Dr. Manoel Luiz Salgado

Guimarães pela oportunidade de orientação e pela atenção com que cercara o

desenvolvimento deste trabalho. Agradeço também aos professores que se fizeram

presentes à banca examinadora pelo tempo dispensado à leitura de texto tão árido.

Agradeço também à CAPES, que financiou o desenvolvimento deste trabalho durante

todo o percurso do doutorado e ao Programa de Pós-Graduação em História Social por

ter me dado mais uma oportunidade de desenvolvimento intelectual. Agradeço ao Prof.

Dr. Ricardo Benzaquen e à profª.Drª Andrea Daher pelas ótimas sugestões e críticas

durante o processo de qualificação do resultado provisório desta pesquisa em 2006.

Agradeço em especial às professoras doutoras Andrea Daher e Beatriz Catão, cujas

disciplinas assistidas durante o cumprimento dos créditos do doutorado foram

fundamentais para o desenvolvimento dos capítulos I e II deste trabalho. Agradeço aos

colegas Filipe Charbel e Luiz Cristiano de Oliveira Andrade e, mais uma vez, à Prof.

Dr. Andrea Daher pelas soirées histórico-literárias de 2005 com Montaigne e outros de

intelectual herdade.

Um outro espaço especial de agradecimento deve ser aberto ao grande amigo

Sérgio Fernandes Alois Schermann e à profª. Huston Diehl, sem a ajuda dos quais

jamais este trabalho poderia adquirir as feições atuais. Reservo também um

agradecimento muito carinhoso aos amigos eternos de meu coração – Thiago Bernardo,

Alexandre Antônio Ferreira das Neves e Adalberto de Souza Filho – pelo grande apoio

que me deram no acesso a fontes que foram estruturais para o desenvolvimento deste

trabalho.

Agradecimento muito carinhoso a Marcos Zurita Fernandes e Tânia Trigo

Fernandes, pela rara generosidade de me proporcionarem escapes bucólicos pela

Estrada do Sertão em momentos que foram cruciais para as viragens de meu trabalho.

Agradeço também aos meus pais e ao afilhote de meu coração, Rafael Ferreira

Vianna, pelo companheirismo, tolerância e compreensão pelas minhas ausências ao

nosso convívio doméstico durante os anos de desenvolvimento desta pesquisa.

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Vianna, Alexander Martins.

Estado e Individuação no Antigo Regime: Por uma leitura não-romântica de Shakespeare/ Alexander Martins Vianna. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2008.

x, 355f.:il.; 30cm Orientador: Manoel Luiz Salgado Guimarães Tese (doutorado) – UFRJ/ Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/

Programa de Pós-Graduação em História Social, 2008. Referências Bibliográficas: f.341-355 1. Antigo Regime. 2. Formação do Estado. 3. Processo de Individuação. 4.

Shakespeare. 5. Materialidade Textual. 6. Reforma Protestante. 7. Renascimento. 8. Iconoclasmo. I. Guimarães, Manoel Luiz Salgado. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em História Social. III. Título.

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ESTADO E INDIVIDUAÇÃO NO ANTIGO REGIME: POR UMA LEITURA NÃO-ROMÂNTICA DE ‘SHAKESPEARE’

Alexander Martins Vianna

Orientador: Manoel Luiz Salgado Guimarães

Resumo da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História Social.

Este trabalho tem como objetivo central demonstrar que no Antigo Regime há

uma dinâmica social e institucional específica de configuração de ordem pública e soberania estatal, e que está implicada com um processo de individuação igualmente específico. Para demonstrar isso, utilizo como fontes algumas peças do cânone shakespeareano, das quais analiso as expectativas de práticas social e política, os padrões morais e os gostos estéticos que podem estar determinando a sua configuração editorial e dos seus patrimônios retórico, temático e semântico.

A dinâmica social e institucional de Antigo Regime é aqui explicitada nos termos de uma modelização teórica eliasiana, mas já incorporando ao modelo as revisões críticas a respeito das implicações analíticas anacrônicas do uso do conceito absolutismo para se referir à dinâmica do poder soberano das monarquias européias entre os séculos XIII e XVIII. Nesses termos, acredito que muda completamente o nosso modo de entendimento das formas de distinção social, das formas de construção de vínculos político-sociais e das formas (boas ou ruins) de funcionamento da autoridade política soberana, pelo menos tal como são representadas nos enredos das peças aqui analisadas, prevenindo-nos dos riscos de uma leitura anacrônica.

Palavras-chave: Antigo Regime; Formação do Estado; Processo de Individuação; Shakespeare; Materialidade Textual; Reforma Protestante; Renascimento; Iconoclasmo.

Rio de Janeiro Março de 2008

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STATE AND INDIVIDUATION IN THE ANCIENT REGIME: FOR A NOT-ROMANTIC INTERPRETATION OF ‘SHAKESPEARE’

Alexander Martins Vianna

Orientador: Manoel Luiz Salgado Guimarães

Abstract da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História Social.

The central aim of this work is to show how there is a singular social and

institutional dynamic in the Ancient Regime, particularly in the ways of conceiving the public order and sovereign power in the State of the Modern Age. This singular social configuration makes a specific process of individuation. To prove that, I have as main sources some plays of the Shakespearean canon, in which I study the expectation of social and political practices, the moral standards, and the esthetical tastes that can be defining the material configuration of their editions, and likewise their rhetorical, thematic, and semantic patrimony.

The social and institutional dynamic of the Ancient Regime is showing here under the theoretical model of Norbert Elias, but just incorporating in it the theoretical critical revision of the concept absolutism concerning the actual functioning of the sovereign power in the monarchies between 13th and 17th century. In doing so, the forms of social distinction, the makings of social and political nexus, and the functioning or ill-functioning of the political sovereign authority, that are represented in the plots of the plays here analysed, will can be understood without anachronistic risks.

Key-words: Ancient Regime; Making of State; Process of Individuation; Shakespeare; Textual Materiality; Protestant Reformation; Renaissance; Iconoclasm.

Rio de Janeiro Março de 2008

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Sumário Convenções de Citação das Fontes e Obras de Referência...............................

9

Listagem de Ilustração.........................................................................................

10

Introdução............................................................................................................. 11 Capítulo I ‘Shakespeare’: Um nome para Textos....................................................................

18

1.1. A virada lingüística nos estudos sobre materialidade textual das peças associadas ao nome ‘Shakespeare’.............................................................................

20

1.2. ‘Shakespeare’ entre atos Editoriais (1594-1637)................................................. 28 1.3. O “Teatro do Mundo” e as configurações sociais de produção do texto teatral..........................................................................................................................

47

1.4. The Oxford Shakespeare e variações de legibilidade.......................................... 66 1.5. Regimes Editoriais e o Antigo Regime: Uma perspectiva histórico-sociológica de legibilidade.............................................................................................................

83

Capítulo II Corporidade Estatal e Poder Soberano no Antigo Regime.................................

90

2.1. Os paradoxos morais da gênese do Estado Moderno.......................................... 91 2.2. Uma configuração social específica: o Estado no Antigo Regime...................... 114 2.3. ‘Absolutismo’: Usos e equívocos de um conceito liberal.................................... 126 2.4. Despersonificação e Sacralização das Instituições Sociais e Políticas................ 146

Capítulo III O mundo às avessas e o paradoxo moral do Estado em “Ricardo III”..................

165

3.1. Uma proposta de legibilidade para o in-quarto de 1597 de “Ricardo III”.......... 168 3.2. “Ricardo III” e a retórica da ameaça ao corpo político na Inglaterra.................. 179 3.3. O Desconforto da Grandeza Régia e o Paradoxo Moral do Estado..................... 188 3.4. A Deformação Diabólica do Paradoxo Moral do Estado.................................... 204 3.5. A demonização herodesiana de Ricardo III e a sacralização cristológica de Henrique VII...............................................................................................................

223

Capítulo IV “Romeu e Julieta” e o avesso da Ordem Pública Tradicional...............................

242

4.1. Uma proposta de legibilidade para o in-quarto de 1599 de “Romeu e Julieta”.. 244 4.2. O esmorecimento da autoridade patriarcal como ameaça à corporidade estatal. 263 4.3. Idolatria e Fornicação: O olhar apaixonado de Julieta e Romeu........................ 296

Conclusão...............................................................................................................

316

Anexo Documental................................................................................................

326

Bibliografia............................................................................................................

341

Edições utilizadas referentes ao Corpus Shakespeareano.................................

354

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Convenções de Citação das Fontes e Obras de Referência

Toda vez que cito um trecho das fontes que fazem parte de meu foco central de análise, tento reproduzir os padrões tipográficos e topográficos de letras e palavras tal como são sugeridos na edição em que eu esteja me baseando e, nos casos mais necessários, dependendo das demandas de meus argumentos analíticos, insiro em minhas páginas as fotografias de páginas (ou detalhes de página) da edição que eu esteja focando no momento. Logicamente, dizer que com isso eu esteja reproduzindo a materialidade textual das edições focadas seria um contra-senso no próprio uso do conceito, mas com tal estratégia tento minimamente provocar no leitor hodierno um senso de distanciamento das formas contemporâneas de edição, assim como, evidenciar o quanto a nossa percepção do texto muda quando a sua forma editorial é alterada. No entanto, devem ser assinaladas algumas exceções nesta forma de padronização de minhas citações de fontes:

(1) Quando apresentei trechos de fontes alheias ao corpus documental Shakespeare, mas concernentes aos séculos XVI e XVII, citadas a partir de originais, de edições hodiernas ou de citações contidas em livros e artigos, dou a elas um status diferenciado ao citá-las em corpo “9” do padrão “arial” do repertório tipográfico do editor de textos “Word” do programa Office 97. Deste modo, evidencio os limites de minha legibilidade destas fontes e o quanto se diferencia do caminho de legibilidade que exercito sobre o corpus documental Shakespeare. (2) Quando faço citações diretas de obras de referência, apresento-as em corpo “9,5” do padrão “Verdana” do repertório tipográfico do editor de textos “Word” do programa Office 97, de modo a diferenciar, em página, o seu status em relação às fontes alheias e internas ao corpus documental Shakespeare. (3) Quando cito, em quadros comparativos dentro do primeiro capítulo, as chamadas editoriais de frontispício dos in-quartos das peças “Romeu e Julieta”, “Ricardo III” e “Hamlet”, apresento-as em prosa, ou seja, não reproduzi a disposição espacial e a forma tipográfica exatas das linhas e das palavras nas linhas. Em função disso, deve-se considerar que tal procedimento apaga os vestígios dos padrões tipográficos e disposições topográficas que conferiam status diferenciado, nos frontispícios, a linhas e/ou conjuntos específicos de palavras nas linhas. De qualquer forma, para o momento de meu argumento em que procedo desta maneira, o apagamento da disposição topográfica das linhas e palavras e do status tipográfico das palavras nos frontispícios não interferiu na análise, pois o objetivo dos quadros comparativos era observar nos enunciados a recorrência textual e a sobreposição ou não de referências à “autoria”, à companhia teatral, à patronagem teatral e ao aperfeiçoamento textual. O mesmo argumento vale para o anexo documental. (4) Quando cito trechos da “Bíblia de Genebra”, tento reproduzir ou indicar os padrões tipográficos e topográficos de letras, palavras e linhas – e quando estas últimas aparecem marcadas com asterisco – tal como são sugeridos na edição de 1560, pois estão implicados com determinadas ênfases temáticas de leitura específicas desta materialidade textual. No entanto, não reproduzi as referências às notas laterais, que são marcadas originalmente com letras minúsculas sobrescritas dentro do texto, pois isso não interferiu na análise que fiz dos trechos selecionados.

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Listagem de Ilustração Fotografia da página 1 da edição de Simmes-Ling de “Hamlet”(1603)..................................

74

Fotografia da página 3 da edição de Simmes-Ling de “Hamlet”(1604-05).............................

74

Fotografia da página 5 da edição de Creede-Burby de “Romeu e Julieta”(1599)..................

74

Fotografia da página 5 da edição de Danter-Allde de “Romeu e Julieta”(1597)....................

74

Fotografia das páginas 2 e 3 da edição de Hayes-Parsons de “O Mercador de Veneza”(1637)..........................................................................................................................

77

Fotografia de detalhe da página 1 da edição de Simmes-Ling de “Hamlet”(1603).................

75

Fotografia de detalhe da página 3 da edição de Simmes-Ling de “Hamlet”(1604-05)............

75

Fotografia de detalhe da página 46 da edição de Creede-Burby de “Romeu e Julieta”(1599)...........................................................................................................................

276

Fotografia do emblema moral “Cortesia”, página 51, com sua respectiva explicação, da edição de 1709 do livro “Iconologia or Morall Emblems” de Cesare Ripa...........................

283

Fotografia do emblema moral “Eloqüência”, página 32, com sua respectiva explicação, da edição de 1709 do livro “Iconologia or Morall Emblems” de Cesare Ripa...........................

285

Fotografia do emblema moral “Paz”, página 54, com sua respectiva explicação, da edição de 1709 do livro “Iconologia or Morall Emblems” de Cesare Ripa......................................

284

Fotografia do emblema moral “Rebelião”, página 64, com sua respectiva explicação, da edição de 1709 do livro “Iconologia or Morall Emblems” de Cesare Ripa...........................

293

Fotografia do emblema moral “Valor”, página 75, com sua respectiva explicação, da edição de 1709 do livro “Iconologia or Morall Emblems” de Cesare Ripa...........................

284

Fotografia do frontispício da primeira edição de “Laviathan”(1651), de Thomas Hobbes(1588-1679)..................................................................................................................

265

Fotografia do frontispício da variante 1609-A de “Tróilo e Créssida”...................................

33

Fotografia do frontispício da variante 1609-B de “Tróilo e Créssida”...................................

33

Fotografia do frontispício do in-quarto de 1597 de “Ricardo III”..........................................

169

Fotografia do frontispício do in-quarto de 1599 de “Romeu e Julieta”..................................

244

Fotografia do único emblema moral (páginas 99 e 266) do livro “His Practise in two Books”(1594-95) de regras da esgrima de Vicentio Saviolo....................................................

278

Fotografias da mancha textual da “carta ao leitor” (páginas 3 e 4) da edição de George Elde de “Tróilo e Créssida” (1609-B).............................................................................................

32

Reprodução fotográfica do quadro “Hércules e Ônfale”(1537), da oficina de Lucas Cranach (1472-1553)................................................................................................................

210

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11

Introdução

Este trabalho é o resultado de uma encruzilhada de áreas de conhecimento e

dilemas analíticos que, aos poucos, desde a década de 1980, aprenderam a se conhecer e

locupletar em função das experiências de pesquisa da história social dos modelos

culturais. No Brasil, tais experiências adquiriram uma espécie de “marca francesa” em

função da divulgação dos trabalhos e críticas desenvolvidas por Roger Chartier. Foi nas

experiências de pesquisa de Roger Chartier1 que acabei por encontrar uma inspiração

para o desenvolvimento de meu trabalho devido ao modo como articula, ao lidar com

fontes literárias, (1) as indagações analíticas da sociologia histórica de Norbert Elias, (2)

o potencial analítico da teoria literária a respeito dos patrimônios retórico-semântico e

temático de textos antigos e modernos, (3) as considerações da new bibliography

(principalmente a experiência de Donald McKenzie2) sobre a materialidade editorial das

fontes literárias, (4) o desconstrucionismo literário-filosófico e, mais especificamente,

(5) a crítica foucaultiana à tradição literária oitocentista. Tudo isso possibilitou a

relativização histórica das noções de “obra”, “autor” e “texto”3.

Como sabemos, as polêmicas da “linguistic turn” nas ciências sociais

configuraram um novo horizonte de experiência para a análise histórica.

Especificamente para os historiadores, a consciência de que seu trabalho analítico reduz

imperfeitamente a discurso a experiência social apenas tornava mais complexo o seu

fazer, uma fez que o obrigava a ser mais auto-reflexivo durante a sua pesquisa, a saber:

que ele cria seu objeto no ato que considera que o experimenta e, fundamentalmente,

que isso não o leva a negar qualquer princípio de realidade – a menos que

transformemos a própria linguagem numa equivalente de cogito cartesiano, imaginando-

a como uma estrutura radicalmente autônoma em relação às práticas sociais.

Não sem sentido, Roger Chartier se inclui na tendência dos historiadores que

consideram ilegítima a redução das práticas constitutivas do mundo social aos

princípios que comandam os discursos. Assim, se se deve reconhecer que as realidades

passadas são predominantemente acessíveis ao historiador através de fontes escritas –

cuja moldura textual inscreve-se em tradições temáticas, semânticas e retóricas que se

1CHARTIER, Roger. A Ordem dos Livros: Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XVI e XVIII. Brasília: UnB, 1994; CHARTIER, Roger. Do palco à página: Publicar Teatro e Ler Romances na Época Moderna – Séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002; CHARTIER, Roger. A história cultural. Lisboa: Difel, 1990. 2McKENZIE, D. F.. La bibliographie et la sociologie des textes. Paris: Éditions du Cercle de la Librairie, 1991. 3Em certa medida, a necessidade deste tipo de ecletismo na articulação de meios analíticos para obras literárias já havia sido sugerida por Robert Darnton em um artigo publicado, em 1986, no Australian Journal of French Studies, que foi reimpresso

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flexionam e se transformam segundo usos e demandas de cada época –, isso não

significaria postular, para a análise social das formas culturais, a identidade ou

nivelamento de duas lógicas, quais sejam: a lógica letrada, logocêntrica e hermenêutica

que governa a produção dos discursos; e a lógica prática que regula as condutas e ações

sociais4.

Ao focar-se na história das obras letradas, das produções estéticas e das práticas

de escrita, publicação e leitura entre os séculos XVI e XVIII, Chartier demonstra que

categorias como obra, opinião pública, autor ou leitor deveriam ser historicizadas, em

vez de aceitas como algo universalmente válido a partir de parâmetros atuais5. Por isso,

entende que as obras letradas e as produções estéticas devem ser inscritas no campo dos

possíveis (no sentido de Bourdieu), ou na configuração social (no sentido de Elias), que

as torna pensáveis, comunicáveis e compreensíveis. Em certa medida, isso explica a sua

concordância com Stephen Greenblatt, que afirma que as obras de arte são produtos de

uma negociação entre um criador (ou classe de criadores) e as instituições sociais e

práticas culturais de uma época e lugar6.

Desenvolvendo o que define como neo-historicismo, Stephen Greenblatt enxerga

os criadores de objetos de arte como partes atuantes no processo social – entendido

como algo dinâmico, não-linear e contingente –, em vez de abstraí-los numa noção de

processo teleológico, anônimo ou fixado por um plano previsível de causas

estereotipadas, ou seja, a antiga visão historicista de contexto como “pano de fundo

histórico” para as obras de arte7. Nesse sentido, escapando aos extremos do criticismo

literário (intencionalidade sem contexto) e do velho historicismo (contexto sem

intencionalidade), Greenblatt interpreta as performances artísticas como moldadas por e

atuantes sobre normas generativas e conflitos existentes numa determinada cultura.

Entretanto, na perspectiva de Chartier, isso que Greenblatt afirma para as obras

de arte valeria também para uma história das práticas cotidianas, pois estas seriam

igualmente invenções de sentido limitadas pelas múltiplas determinações que definem,

para cada comunidade ou ator social, os comportamentos legítimos e as normas

em: DARNTON, Robert. História da Leitura. In A Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. pp.199-236 4CHARTIER, Roger. História: Dúvidas, Desafios, Propostas. Estudos Históricos, vol.7, n.13. Rio de Janeiro: FGV-CPDOC, 1994. pp.105-106 5Ver: CHARTIER, Roger. Debate: História e Literatura. Topoi, n.1. Rio de Janeiro: PPGHIS-UFRJ/Sete Letras, 2000.pp.197-216 6CHARTIER, Roger. História: Dúvidas, Desafios, Propostas. Estudos Históricos, vol.7, n.13. Rio de Janeiro: FGV-CPDOC, 1994. p.106 7GREENBLATT, Stephen. Novo Historicismo: Ressonância e Encantamento. Estudos Históricos, vol.4, n.8. Rio de Janeiro: FGV-CPDOC, 1991.pp.244-261

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incorporadas. Isso explica a importância analítica de Norbert Elias para a crítica de

Chartier à “História das Mentalidades”. Afinal,...

“o trabalho de Elias permite...articular as duas significações que sempre se embaralham no uso do termo cultura tal como manejam os historiadores. A primeira designa as obras e os gestos que, em uma sociedade, estão ligados ao julgamento estético ou intelectual. A segunda refere-se às práticas ordinárias...que tecem a trama das relações quotidianas e exprimem a maneira como uma comunidade, em um determinado tempo e lugar, vive e reflete sua relação com o mundo e a história. Pensar historicamente as formas e as práticas culturais é, portanto, necessariamente elucidar as relações alimentadas por essas duas definições”.8

Elias torna-se uma referência eficaz na crítica de Chartier à “História das

Mentalidades”, pois livra-o de cair no ceticismo narrativista e reificante da linguagem

suscitado pela “linguistic turn”. Aliás, as críticas que Chartier fizera, em meados da

década de 1980, à “História das Mentalidades” tinha o mesmo vigor das críticas dos

micro-historiadores barthianos à forma geertzista de interpretação da cultura, que, em

certa medida, influenciou os trabalhos de Stephen Greenblatt9. Nesta conjuntura, a

“História das Mentalidades” era acusada: (1) de ser peremptoriamente ‘englobante’; (2)

de postular a unidade de um horizonte cultural (ou ‘mental’) não demonstrável,

supostamente compartilhado pelo conjunto dos atores sociais de um dado momento

histórico; (3) de reificar, com o termo “utensilagem mental”, os recursos culturais,

pensando-os de forma independente das situações específicas e das práticas sociais; (4)

de criar uma visão estanque, bipolar e, em certa medida, elitista entre “história das

idéias” (centrada na trajetória da consciência individual do homem letrado) e

“mentalidades” (no sentido de visão geral de mundo das “pessoas comuns”, quase

sempre diluída na categoria de “inconsciente coletivo”)10.

Em Elias, o termo mentalidade é compreendido como uma forma própria de

pensar e sentir inscrita num repertório sociocultural particular, com dispositivos

conceituais periodicamente selecionados e refeitos pelos indivíduos para construir

sentido e controle sobre sua corporalidade física, sua ambiência natural e suas práticas

sociais, conformando, deste modo, um habitus. Portanto, em Elias, mentalidade

8CHARTIER, Roger. História: Dúvidas, Desafios, Propostas. Estudos Históricos, vol.7, n.13. Rio de Janeiro: FGV-CPDOC, 1994. pp.106-107 9Ver: GREENBLATT, Stephen. Renaissance self-fashioning from More to Shakespeare. Chiacago/London: University of Chicago, 1984. p.259 10Neste ponto, é importante lembrar o efeito crítico dos trabalhos de Carlo Ginzburg, cujos livros e artigos começaram a ser traduzidos para o francês desde começos da década de 1980. Em meados da década de 1980, no momento mais alto da revisão crítica da “História das Mentalidades”, Ginzburg conseguiu boa aceitação para a sua discussão sobre “circularidade cultural” na revista dos Annales e, mais particularmente, de Roger Chartier e Jacques Revel. Os seus livros “O Queijo e os Vermes” e “Andarilhos de Bem” seriam, então, recorrentemente resenhados e comentados em periódicos acadêmicas.

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inscreve-se coerentemente em sua percepção de processo social como algo dinâmico,

regularmente inesgotável, sem plano predefinido e tensamente refeito pelas práticas

sociais. Nesse sentido, não se confunde com as concepções estáticas de “quadro

mental”, “estrutura mental” ou “utensilagem mental” ao modo de Lucien Fèbvre, que

estiveram muito em voga na historiografia francesa da década de 1960 através dos

estudos de Jacques Le Goff e George Duby. De igual modo, também não se confunde

com a noção de “gramática cultural” dos estudos geertzistas de Robert Darnton da

década de 197011.

A vantagem analítica da noção eliasiana de habitus era reconhecer uma margem

criativa e dinâmica de liberdade para o indivíduo dentro dos limites estabelecidos por

seu meio sociocultural, podendo imprevisivelmente refazer os limites, os usos e os

significados de seu repertório cultural. Considero particularmente eloqüente, para

demonstrar as virtudes da análise figuracional de Elias na crítica de Chartier à “História

das Mentalidades”, um trecho da obra “Mozart: Sociologia de um Gênio”:

“...os padrões e métodos pelos quais as pessoas constroem os controles dos instintos em sua vida comunitária não são produzidos deliberadamente; evoluem por longos períodos, cegamente e sem planos. Irregularidade e contradições nos controles, imensas flutuações em sua severidade ou leniência, estão, portanto, entre os aspectos estruturais recorrentes do processo civilizador...Um pouco do tipo antigo de excessiva reação civilizadora contra o instinto ainda é perceptível num padrão de pensamento cujos expoentes sempre estão dispostos a dividir a humanidade em duas categorias abstratas, denotadas em rótulos como “natureza” e “cultura”, ou “corpo” e “mente”, sem qualquer tentativa de investigar a conexão entre os fenômenos a que tais conceitos se referem. O mesmo se aplica à tendência de traçar uma clara linha divisória entre o artista e o ser humano, o gênio e a “pessoa comum”; assim como à tendência de tratar a arte como algo que flutua no ar, exterior e independente das vidas sociais das pessoas”.12

O organizador dos escritos de “Mozart: Sociologia de um Gênio” identifica

como período provável do desenvolvimento textual de Elias o biênio 1978/1979,

alertando para o fato de que, por ter morrido em 1990, ele não participou da organização

final do livro, impresso originalmente para público germanófono em 1991. Deste modo,

o livro tem um tom de “ensaio esboçado” que demonstra características recorrentes,

desde meados da década de 1930, da análise figuracional de Elias, mas num momento

em que se vivia os efeitos da “tournant critique” nas ciências sociais.

11Traduzido para o Brasil em 1986. Ver: DARNTON, Robert. O Grande Massacre dos Gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1986.pp.103-139 12ELIAS, Norbert. Mozart: Sociologia de um Gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.p.56

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15

É impressionante notar a atualidade de sua discussão: além de identificar um

“padrão de pensamento” presente no modo como se tenta desligar “arte e sociedade”

(“mente e corpo” ou “consciência e mundo”13), Elias não deixa de afirmar que os

produtos humanos que chamamos de “obra de arte” têm como uma de suas

características mais significativas o fato de seus materiais serem relativamente

autônomos em relação ao fluxo-fantasia do artista e aos padrões sociais de gosto ou

valor. Por isso mesmo, muitos produtos artísticos podem vir a serem considerados

“obras primas” apenas quando tocarem os sentimentos de pessoas de uma geração

posterior. Tendo chegado a este ponto, caberia demonstrar sucintamente o modo como

Elias indaga a relação entre material, fluxo-fantasia e padrão social, pois creio que isso

esteja no cerne da maneira singular como Roger Chartier tem tentado responder aos

desafios levantados pela “linguistic turn” para a análise social de obras letradas.

Segundo Elias, cada um dos materiais característicos de um campo artístico

particular tem suas próprias regularidades inesgotáveis e, portanto, conformam uma

resistência ao desejo do produtor de arte. Portanto, os materiais não são um mero meio

neutro de expressão da tensão e/ou conformação entre fluxo-fantasia e padrão social,

reduzindo necessariamente o campo das ações possíveis da vontade criativa e

comunicativa do artista. Nesse sentido, para que uma obra de arte venha a existir, o

fluxo-fantasia (que está enraizado na animalidade libidinal) deve adquirir forma

comunicável, o que significa ser individualizado nos termos móveis das regularidades

inesgotáveis dos materiais e dos padrões sociais de gosto e valor. Considerando isso, a

perfeita sublimação artística ocorre quando há a fusão, aparentemente espontânea,

entre material, fluxo-fantasia e padrão social.

A rigor, tal fusão é aparentemente espontânea porque, na verdade, resulta da

maior ou menor eficácia tanto no aprendizado do indivíduo dos padrões sociais de

gosto e valor quanto no domínio consciente das regularidades inesgotáveis dos

materiais, podendo até mesmo, conscientemente ou não, ultrapassar os limites de

ambos, o que significa que o artista pode, em sua obra, estar apontando tanto para uma

nova configuração social, apenas esboçada, quanto para a descoberta de novas

regularidades para os materiais. É nesse sentido que devemos entender Elias quando

13Sobre este ponto, ver também: ELIAS, Norbert. Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. Nesta coletânea de ensaios, em três momentos específicos (décadas de 1930, 1950 e 1980) da trajetória intelectual de Elias, podemos observar a sua análise sociológica da tradição cartesiana de pensamento, que tenderia, segundo a sua avaliação, a transformar-nos em “estátuas pensantes”.

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afirma que, ao operar sobre materiais específicos, o fluxo-fantasia individualiza e

energiza os padrões sociais em cada consciência14.

Assim, tal como o próprio Elias afirmara, reconhecer a autonomia relativa da

obra de arte e o complexo de problemas associados a isso torna-se também um desafio

para “compreendermos a nós mesmos como seres humanos”15, pois isso que se discutiu

metodologicamente sobre arte vale para qualquer outra atividade humana. Afinal, a

realidade humana não poderá ser adequadamente compreendida a partir de metáforas

espaciais como “dentro” e “fora”, “casca” e “cerne”, ou através de monismos filosóficos

do tipo “sentimento” e “razão”, “natureza” e “cultura”, “corpo” e “mente”16.

Ora, ao seguir as idéias sociológicas de Elias para abordar historicamente as

várias modalidades de práticas culturais, Chartier não separa os seus objetos de estudo

da configuração social que lhes confere valor, forma e significado. Além disso, tal como

Elias, deve-se notar que Chartier não entende as relações sociais como meras

“exterioridades imóveis e causais” das obras letradas, pois, embora estas estejam

inscritas naquelas, são também eventos que energizam a configuração social e podem,

em certas circunstâncias, estar apontando, tentativamente, para o nascimento de novas

configurações sociais ou para a emergência de novas formas expressivas de artefatos

culturais que desafiam os hábitos e expectativas correntes nas instituições sociais e,

cumulativamente, podem criar efeitos imprevisíveis de ressonância e encantamento.

Tomo estas duas últimas expressões de Stephen Greenblatt, para o qual

ressonância refere-se ao poder de o artefato cultural – exibido numa certa circunstância

– alcançar um mundo para além de seus limites formais, evocando para quem o observa

as forças complexas e dinâmicas das quais emergiu. Por sua vez, o encantamento refere-

se ao poder de o objeto prender a atenção do espectador, de transmitir um sentimento

arrebatador de unicidade, de evocar uma atenção exaltada17. No entanto, deve-se estar

atento ao fato de que todo senso de encantamento tem as marcas convencionais da

cultura, das relações de poder e das formas de distinção social da época e lugar em que

ocorre.

Por isso mesmo, se todo senso de encantamento é circunstancial e contingente,

também não podemos esquecer que participa da ressonância de um artefato cultural.

14ELIAS, Norbert. Mozart: Sociologia de um Gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.p.137. 15ELIAS, Norbert. Mozart: Sociologia de um Gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.p.57 16Ver: ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, vol.I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1994.pp.223-226; ELIAS, Norbert. Mozart: Sociologia de um Gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.p.56 17GREENBLATT, Stephen. Novo Historicismo: Ressonância e Encantamento. Estudos Históricos, vol.4, n.8. Rio de Janeiro: FGV-CPDOC, 1991.pp.244-261

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Portanto, se o senso de encantamento gera o desejo de conhecer aquilo que parece

portentoso e incomum – ou cria o sentimento de que seja portentoso e incomum –, não

se pode negar que os fatores que modulam tal senso de encantamento influenciam a

forma como a ressonância irá acontecer para o espectador. Em termos eliasianos, poder-

se-ia afirmar que as regularidades inesgotáveis dos materiais de uma obra de arte, o

fluxo-fantasia de quem a observa e os padrões socioculturais de gosto e valor

determinam o senso de encantamento18. Ora, podemos perceber isso, por exemplo, nos

projetos editoriais de “obras reunidas” de ‘Shakespeare’ que, desde a coleção de 1709-

1714 de Nicholas Rowe (1674-1718), tiveram como um de seus efeitos cumulativos

imprevistos a construção do cânone romântico de um ‘Shakespeare-autor’.

Como poderemos perceber, os capítulos que se seguem – cada um em sua

especificidade temática – visam romper com o sentido romântico de encantamento

sobre as peças associadas ao nome ‘Shakespeare’ e, deste modo, pensar uma forma de

ressonância que as inscreva hipoteticamente no universo sociocultural e político

protestante da Inglaterra elizabetana e jacobita, o que torna particularmente relevante

partir das próprias edições de peças deste período. Em larga medida, a sedução por tal

possibilidade de estudo foi inicialmente motivada pelo ensaio de Ricardo Benzaquen e

Viveiro de Castro de finais da década de 1970: “Romeu e Julieta e a Origem do

Estado Moderno”19.

Em tal ensaio, observei os mesmos elementos que há certo tempo me seduziam

em alguns trabalhos de Norbert Elias e José Antonio Maravall: a possibilidade de

explorar obras literárias como fontes para tratar do tema da formação do Estado na

Idade Moderna e da sua correlação histórico-sociológica com transformações

comportamentais que estariam associadas a um processo específico de individuação.

Nesses termos, pensar ‘Shakespeare’ tornou-se um desafio particularmente sedutor, pois

o seu cânone literário contemporâneo ainda estaria marcado por uma tradição de leitura

romântico-liberal, tanto mais presente pelo fato de críticos literários e cientistas sociais

no Brasil terem se acomodado ao hábito analítico teleológico de interpretar a Inglaterra

como uma espécie de berço histórico do pensamento e instituições liberais.

Assim, o que aconteceria se eu retomasse a proposta temática de Ricardo

Benzaquen e Viveiro de Castro, mas a tratasse à luz de uma modelização teórica,

conceitos e métodos distintos daqueles utilizados por estes autores? Em outras palavras,

18Ver: ELIAS, Norbert. O processo civilizador, vol.I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p.32

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o que mudaria na nossa forma de lidar com as peças associadas ao nome ‘Shakespeare’

quando (1) as interpretamos fora do par analítico “vida/obra” da crítica literária

romântica, quando (2) as inscrevemos ativamente na dinâmica social do Antigo Regime,

quando (3) as situamos no interior dos patrimônios retórico-temáticos renascentistas e

protestantes, quando (4) as tratamos – à luz do debate crítico sobre materialidade

textual – como um evento social-institucional coletivo e contingente e, por fim, quando

(5) pensamos as suas formas de figuração do poder soberano régio, ou de qualquer outra

forma jural de autoridade político-social, à luz da revisão crítica recente do conceito

absolutismo?

Os capítulos que se seguem pretendem responder a estas questões.

19CASTRO, E.B. Viveiros de; ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. “Romeu e Julieta e a Origem do Estado”. In Arte e Sociedade: Ensaios de Sociologia da Arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. pp.130-169

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Capítulo I ‘Shakespeare’: Um nome para Textos

Quando lidamos contemporaneamente com textos teatrais consagrados,

tendemos habitualmente a pensar que sejam obras imutáveis de um autor percebido

como gênio individualizado. Nessa perspectiva, com toda margem que possa haver de

liberdade para a apropriação de uma “obra”, aqueles que tomam a responsabilidade de

encenar um “autor” não podem se perder daquilo que os comentários autorizados

definem como a sua “linguagem”. Tal forma de proceder inscreve-se na tradição da

crítica literária romântica, que gira em torno das seguintes noções: (1) a identificação da

obra com um texto escrito fixo e parte de um gênero estético, que pode, assim, ser

manipulado, em vez de ser entendido como um evento circunscrito a um ritual e,

portanto, irrepetível; (2) a idéia de que a obra é produzida para um leitor silencioso e

solitário, mesmo que esteja num espaço público; (3) a caracterização da leitura como

um trabalho interpretativo de busca de significados, em vez de ser encarado como a

realização/performance/mimesis de um significado – neste último caso, o texto (escrito

ou oral) seria um evento de arrebatamento e mistério, ou seja, a manifestação de

inspirações transcendentes e heteronímicas (Musas, Gênio, Deus, Natureza, etc)20.

A partir do século XIX, quando nos referimos a “nomes” do mundo teatral que

se tornaram cânones literários e nacionais, o par “autor/obra” torna-se uma moldura

analítica que cria margens para muitos anacronismos. Este ponto foi exemplarmente

demonstrado por João Adolfo Hansen para o caso de ‘Gregório de Mattos Guerra’ e o

fenômeno do enquadramento acadêmico de seu nome, junto ao corpo disciplinar do

Departamento de Letras da Universidade de São Paulo, como exemplo de “autor” de

“literatura colonial”21. O que dizer, então, de algo mais internacionalmente canonizado

como o nome ‘Shakespeare’?

Em minha perspectiva analítica, entendo ‘Shakespeare’ como um nome que

autoriza uma tradição editorial de textos, para os quais não me proponho identificar

uma linguagem ou empréstimos lingüísticos que os singularizem como um corpo

autoral, pois definir o que é singular demanda comparação – e, logicamente,

equivalência de recursos e fontes para comparação. Nesse sentido, o mais difícil ao

20Ver: CHARTIER, Roger. Do palco à página: Publicar Teatro e Ler Romances na Época Moderna – Séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.pp.19-20; LIMA, Luiz Costa. Vida e Mimesis. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. pp.63-67 21Ver: HANSEN, João Adolfo. A Sátira e o Engenho: Gregório de Matos e a Bahia do Século XVII. São Paulo: Ateliê Editorial/UNICAMP, 2004.

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propor uma sociologia histórica para peças associadas ao nome ‘Shakespeare’ é

justamente vencer o hábito de entendê-lo como um autor individualizado e genial, como

uma espécie de demiurgo de uma linguagem própria. Frente a tal desafio, o objetivo

principal deste capítulo é propor uma perspectiva de análise que apresente as peças

associadas ao nome ‘Shakespeare’ como um evento social-institucional contingente, à

luz das discussões existentes sobre crítica editorial, materialidade textual e práticas de

publicar livros entre os séculos XVI e XVIII22.

A ênfase analítica no caráter contingente da associação editorial do nome

‘Shakespeare’ às peças que o monumentalizaram a partir do fólio de 1623 é uma

forma deliberada de romper com o cânone autoral construído desde a crítica

literária romântica de finais do século XVIII, quando muitas peças associadas ao

seu nome começaram a ser lidas, particularmente pelo movimento Sturm und

Drang, como exemplos excelentes de oposição estética e temática ao paradigma

clássico francês, aceito e adotado como regra eterna pela elite nobre alemã23.

Assim, se efetivamente operarmos um olhar externo à perspectiva analítica

romântica, alguns enunciados ou apelativos de valor nos frontispícios das peças

impressas e associadas ao seu nome entre 1594 e 1637 deixarão de ser entendidos,

anacronicamente, como se fossem regidos pela preocupação de preservação de

uma “integridade intelectual-textual de Shakespeare”.

Tal perspectiva desemboca na crítica que desenvolvo a respeito do projeto

editorial “The Oxford Shakespeare”, pois demonstro em que medida a materialidade

textual de tal edição inscreve-se num senso romântico de encantamento24 que

dificultaria uma legibilidade das peças de acordo com a época das primeiras edições que

lhe serviram de base textual. Em função de tal demanda, nos dois últimos itens deste

capítulo, tomo as peças “Romeu e Julieta” e “Ricardo III” como amostragens

comparativas centrais de contingência editorial, observando as edições de tais peças que

22CHARTIER, Roger. A Ordem dos Livros: Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XVI e XVIII. Brasília: UnB, 1994; CHARTIER, Roger(org.). Práticas da Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001; CHARTIER, Roger. Do palco à página: Publicar Teatro e Ler Romances na Época Moderna – Séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002; GRAZIA, Margreta de; STALLYBRASS, Peter. “The Materiality of the Shakespearean Text”. Shakespeare Quartely, volume 44, 1993(3): pp.255-283; MARCUS, Leath S.. “Levelling Shakespeare: Local Customs and Local Texts”. Shakespeare Quartely, volume 42, 1991(2): pp.168-178; WERSTINE, Paul. “Narratives about printed Shakespeare Texts: ‘Foul Papers’ and ‘Bad’ Quartos”. Shakespeare Quartely, volume 41, 1990(1): pp.65-86; WERSTINE, Paul. “The Textual Mistery of Hamlet”. Shakespeare Quartely, volume 39, 1988(1):pp.1-26; WARD, David. “The King and Hamlet”. Shakespeare Quartely, volume 43, 1992(3):pp.280-302; FREEDMAN, Barbara. “Shakespeare Chronology, Ideological Complicity, and Floating Texts: Something is rotten in Windsor”. Shakespeare Quartely, volume 45, 1994(2): pp.190-210 23Ver: ELIAS, Norbert. O processo civilizador, vol.I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. pp.32-35; CARLSON, Marvin. Teorias do Teatro. São Paulo: UNESP, 1997.pp.137-158 24GREENBLATT, Stephen. “Novo Historicismo: Ressonância e Encantamento”. Estudos Históricos, vol.4, n.8. Rio de Janeiro: FGV-CPDOC, 1991.pp.244-261

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serviram como base textual para o projeto oxfordiano, respectivamente: o “good” in-

quarto de 1599; o “bad” in-quarto de 1597 e o fólio de 1623. Ao exemplificarmos

algumas diferenças tipográficas e topográficas no projeto editorial “The Oxford

Shakespeare” em comparação aos textos que lhe serviram de base, poderemos perceber

o quanto a sua materialidade textual interferiria em minha intenção de fazer, ao modo de

Norbert Elias, uma análise histórico-sociológica dos tipos dramáticos, caracteres

sociais/cênicos e recorrências temáticas (políticas e/ou moralizantes) de tais peças.

1.1. A virada lingüística nos estudos sobre materialidade textual das peças

associadas ao nome ‘Shakespeare’

Em 2001, David S. Kastan lançou mais um trabalho centrado nas condições de

edição dos dramas dos séculos XVI e XVII, atentando para o caso das peças associadas

ao nome de William Shakespeare (1564-1616). Na introdução de seu trabalho, lembrava

a sua inegável dívida com David Trotter que, embora não estudando produções textuais

do mesmo período, tinha uma extraordinária sensibilidade em relação tanto às palavras

nas páginas quanto às condições intelectuais e institucionais necessárias para elas

estarem lá25. É tal pressuposto que Kastan traz para seu trabalho e que nos permite

superar alguns cânones da antiga análise bibliográfica nos estudos textuais do drama nos

séculos XVI e XVII.

Para Kastan, a forma material e a localização da palavra escrita são fatores

ativos para o significado daquilo que está sendo lido26. Isso significa que os modos e

matrizes de apresentação de um texto tornam-se inevitavelmente parte de sua estrutura

significativa e não um epifenômeno, pois o suporte material de certo modo configura

como ele será entendido ou valorizado. Nesse sentido, não são vazios de efeito

significativo num texto o tipo de papel que se usa, o formato que o sustenta (panfleto,

in-quarto, fólio, etc...) e a forma gráfica (se é manuscrito de próprio punho, se é

manuscrito entregue a terceiros, se as duas coisas se misturam27, ou se é um texto

impresso em tipos móveis), tanto quanto a sua estruturação temática, retórica e

sintático-semântica. Em todo este conjunto há, mais ou menos implícita, uma vontade

configuradora da recepção, que pressupõe determinadas condições de uso para o texto.

25KASTAN, David Scott. Shakespeare and the Book. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. p.XI 26KASTAN, Ibdem Op. cit. pp.2-3 27Sobre estes pontos, ver: BOUZA, Fernando. Imagen y Propaganda: Capítulos de Historia Cultural del Reinado de Felipe II. Madrid: Akal, 1998. pp.39-43

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As condições de criação e escolha do suporte material do texto, a forma da

disposição espacial (e a escolha do tipo de letra) para as palavras em tal suporte

material, assim como o modo da estruturação sintático-semântico, temática e retórica do

texto, definem aquilo que chamamos de materialidade do texto28. Tal conceito permite-

nos historicizar a relação autor/obra e, assim, escapar da armadilha romântica quando se

pensa as peças associadas ao nome ‘Shakespeare’. Em termos gerais, podemos dizer

que, conforme tempo e lugar, a materialidade do texto interfere no significado que os

leitores podem ter dele29, criando efeitos díspares de encantamento.30 Certamente, há

neste caminho analítico ecos evidentes da “linguistic turn” sobre a “new bibliography”,

cujo exemplo marcante é Donald McKenzie, que renovou seu campo de abordagem31.

No caso dos estudos de textos associados ao nome ‘Shakespeare’, um dos

efeitos desta “virada” foi justamente a tentativa de se superar a preocupação – de

recorte metafísico – de encontrar ou depurar os “textos originais” do “autor”, ou

de estabelecer hierarquizações qualitativas das peças impressas em formato

“fólio” ou “in-quarto” a partir de parâmetros que mediriam a sua maior ou menor

“proximidade” em relação a manuscritos ou “foul papers” em que a “mão/mente”

de ‘Shakespeare’ supostamente se manifestasse sem a “revisão” ou “corrupção”

de editores ou dos membros de sua companhia.

Neste mesmo universo de hierarquizações, principalmente no que se refere às

versões de peças em “in-quarto” que surgiram durante o período de vida de

Shakespeare, criou-se uma tradição bibliográfica de classificar os in-quartos em

“bad” ou “good”. Inicialmente, nos trabalhos dos bibliógrafos sobre as peças

associadas ao nome ‘Shakespeare’, tais terminologias referiam-se às qualidades

gráfica e textual dos textos impressos, supondo-se que as boas impressões

tivessem passado por uma “revisão autoral”. No entanto, desde a década de 1980,

sem perder completamente esta expectativa autoral, as classificações “good” e

“bad” não se referem mais à qualidade gráfica e textual das impressões.

Como poderemos observar na forma como Stanley Wells organiza a edição

oxfordiana “not-spelling” de “Complete Works” de ‘Shakespeare’32,

28Sobre este conceito, ver também: GRAZIA, Margreta de; STALLYBRASS, Peter. “The Materiality of the Shakespearean Text”. Shakespeare Quartely, volume 44, 1993(3): pp.255-283 29MARCUS, Leath S.. “Levelling Shakespeare: Local Customs and Local Texts”. Shakespeare Quartely, volume 42, 1991(2): pp.168-178. 30GREENBLATT, Stephen. “Novo Historicismo: Ressonância e Encantamento”. Estudos Históricos, vol.4, n.8. Rio de Janeiro: FGV-CPDOC, 1991.pp.244-261 31McKENZIE, D. F.. La bibliographie et la sociologie des textes. Paris: Éditions du Cercle de la Librairie, 1991. 32WELLS, Stanley; TAYLOR, Gary (eds.). The Oxford Shakespeare: The Complete Works. Oxford: Claredon Press, 1998.

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independentemente da qualidade gráfica, “good” in-quartos compreenderiam

atualmente as peças impressas a partir de “manuscritos autênticos” (“foul papers”)

de ‘Shakespeare’, ou transcritos pelos escribas de sua companhia, quando eram

ainda encenadas e ele estava vivo, supondo que tenham passado de alguma forma

por um crivo autoral – mesmo que Shakespeare nunca tenha pessoalmente se

empenhado em editá-las, diferentemente do que fizera Ben Jonson (1572-1637)

com suas próprias peças. Por sua vez, os “bad” in-quartos seriam os textos

impressos que não descenderiam, em linha direta, dos manuscritos do autor.

Portanto, Stanley Wells define claramente que os juízos “bad” e “good” não se

reportam à qualidade gráfica da peça impressa, mas à sua maior ou menor

proximidade em relação à “mão/mente” do “autor”. Além disso, supõe que os

“bad” in-quartos seriam textos mais “teatrais” (i.e., mais próximos de suas

primeiras performances)33.

Stanley Wells acredita que os “good” in-quartos seriam o resultado de uma

maior preocupação dos líderes da companhia teatral de Shakespeare em controlar

o surgimento de “cópias corruptas” e, assim, darem a público versões de melhor

qualidade de seu “gentle Shakespeare”. Stanley Wells constrói este argumento

centrado nas impressões que tira das chamadas editoriais dos frontispícios dos in-

quartos publicados no contexto de Shakespeare, das cartas e poesias introdutórias

do fólio de 1623 e, em âmbito mais inespecífico, das “cartas ao leitor” de outras

edições de peças teatrais em que livreiros, oficiais tipográficos, poetas cênicos e

organizadores/revisores diziam ter corrigido e ampliado a sua versão de uma peça,

criticando as “cópias corruptas”. De modo anacrônico, Stanley Wells entendeu

esta preocupação com as “cópias corruptas” como um esmero editorial de

preservar a proximidade com a “mão/mente” do “autor”.

Vale lembrar que, nesta época, não havia interesse por parte das companhias

teatrais de perder o exclusivo sobre os textos de seu repertório, o que acontecia

toda vez que uma peça era impressa. Além disso, não havia ainda a noção de

direito autoral ou propriedade intelectual, de modo que, por diferentes caminhos,

aquele que primeiro registrava um texto teatral no Stationer adquiria o direito de

imprimi-lo – este direito de impressão poderia ser transferido de um “livreiro”

para outro, ou de um “oficial tipográfico” para outro. No entanto, não era

33WELLS, Stanley. “General Introduction”. In The Oxford Shakespeare: The Complete Works. Oxford: Claredon Press, 1998.pp.XXIII-XXIV

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incomum que os líderes/sócios de companhias teatrais valessem-se da autoridade

ou prestígio de seu patrono nobre para impedirem, no Stationer, que fosse

(re)vendido ou (re)comprado o direito de publicação de peças de seu exclusivo

corporatista. De qualquer forma, como muitos textos, ao longo dos anos e por

diferentes vias (legais ou não), saíram do exclusivo da companhia teatral de

Shakespeare, reuni-los postumamente para publicá-los num único volume, como

foi o caso do projeto editorial do fólio de 1623, significava entrar em conflito com

vários registros de direito de publicação no Stationer.

O próprio fato de a família Jaggard ter assumido o trabalho de impressão do

fólio de 1623 é um forte indício disso. Para o ano de 1619, o acervo da British

Library permite-nos identificar oito títulos de peças associadas ao nome

‘Shakespeare’ que foram impressas pela oficina de William Jaggard.(Vide anexo

documental) Quatro anos depois, William Jaggard e o seu filho Isaac, associados a

Edward Blount34(c.1565-1632), estavam com o contrato de impressão do fólio

para John Heminge (c.1556-1630) e Henry Condell (m.1627), que eram, desde a

morte de Richard Burbage (c.1567/68-1619) e William Shakespeare (1564-1616),

os membros-líderes da companhia teatral e, portanto, detinham a auctoritas sobre

o seu acervo textual.

Nesse sentido, a preocupação com as “cópias corruptas” não estaria

relacionada com uma preocupação de preservar a integridade intelectual de um

“Shakespeare autor”, mas com o interesse mais prosaico de os “livreiros” ou

“oficiais tipográficos” preservarem seu monopólio sobre textos impressos; ou com

uma preocupação de as companhias teatrais evitarem que seu acervo de repertório

dramático fosse vendido e divulgado em página sem sua autorização, o que

tornava o texto mais facilmente acessível a trupes concorrentes, ou que o nome da

companhia fosse associado a versões de peça que poderiam ser mais ofensivas a

alguns poderes constituídos ou mesmo ao seu patrono35.

34Antes do fólio de 1623, Edward Blount havia tido três outras grandes experiências editoriais: “Giovanni Florio's Italian-English Dictionary”(1595), “Florio's Translation of Montaigne's Essays”(1603, primeira edição inglesa) e “Thomas Shelton's Translation of Don Quixote” (1612, primeira edição inglesa da obra de Miguel de Cervantes). Possivelmente, Blount foi o responsável, juntamente com Heminge e Condell, pela revisão e projeto gráfico dos escritos que associaram ao nome ‘Shakespeare’. 35Sobre este ponto, ver as hipóteses analíticas de Paul Werstine, David Ward e Mark Matheson a respeito das diferenças entre as edições de “Hamlet” em Q1, Q2 e F1: WERSTINE, Paul. “The Textual Mistery of Hamlet”. Shakespeare

Quartely, volume 39, 1988(1):pp.1-26; WARD, David. “The King and Hamlet”. Shakespeare Quartely, volume 43, 1992(3):pp.280-302; MATHESON, Mark. “Hamlet and A matter tender and dangerous”. Shakespeare Quartely, volume 46, 1995(4): pp.383-397. Ver também estudo de Barbara Freedman sobre “As Comadres Alegres de Windsor”: FREEDMAN, Barbara. “Shakespeare Chronology, Ideological Complicity, and Floating Texts: Something is rotten in Windsor”. Shakespeare Quartely, volume 45, 1994(2): pp.190-210

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Desde finais da década de 1970, com o avanço dos estudos sobre o universo

social da escrita dramática e seu circuito editorial na Inglaterra dos séculos XVI e

XVII, o cânone autoral romântico começou a ser posto à prova. Observou-se que,

até meados do século XVII, as peças impressas advindas do repertório das trupes

teatrais não tinham estatuto literário, e eram as poesias que preferencialmente

conferiam alguma distinção social para quem as escrevia. No entanto, segundo o

decoro nobiliárquico, se tomarmos Sir Philip Sidney (1554-1586) como

parâmetro, as poesias escritas por nobres bem letrados deveriam circular entre

seus escolhidos na forma de manuscritos não autografados. O decoro pedia que,

caso impressa e associada a um nome, uma poesia ou reunião de poesias deveria

ser feita muito depois da morte de seu “autor”, pois um nobre não poderia dar a

entender que retiraria algum provento pecuniário de qualquer tipo de prática

escriturária. É mais do que oportuno falar em “autor”(entre aspas) porque associar

o “nome” a uma poesia seria, segundo Sidney, rebaixá-la – na verdade, rebaixar a

tradição de um gênero e se rebaixar socialmente, pois seria dar a entender que, tal

como um “sofista”, vivia do comércio de seus escritos 36.

Até início do século XIX, não havia ainda a idéia do gênio como indivíduo,

ou seja, a referência ao indivíduo como “gênio”. Mesmo durante o século XVIII, a

questão do gênio – e, consequentemente, a do talento – era posta em termos de um

dom natural ou um legado ocasional da natureza. Assim, era como se o dom

possuísse o indivíduo, a saber, havia um “gênio” que caprichosamente tomava o

indivíduo, que se encarnava nele, instrumentalizava-o a serviço da natureza, da

razão, da arte e – é bom lembrar – de um patrono (caso não fosse suficientemente

abastado e “bem nascido”). Nesse sentido, no limite, o que havia eram indivíduos

de “gênio”, indivíduos que serviam ao “gênio”37.

No universo letrado moderno, antes da “Querela entre Antigos e

Modernos”(1687-1719)38, considerava-se que um indivíduo expandia e criava

variações ao serviço de uma tradição ou gênero temático-expressivo, renovando-o

sem rupturas. Portanto, estar possuído pelo “gênio” não implicava passividade,

mas sim que era dada à energia mental-corporal do indivíduo, por providência ou

36Ver edição em português: DOBRÁNSZKY, Enid Abreu (org.). Defesas da Poesia: Sir Philip Sidney & Percy Bysshe Shelley. São Paulo: Iluminuras, 2002.pp.128-129 37Ver: BARIANI, Edison. “Indivíduo, Sociedade e Genialidade: Norbert Elias e o caso Mozart”. Revista Eletrônica Urutágua, n.8. Maringá: Departamento de Sociologia da UEM, 2005. 38Ver o recente estudo de: DeJEAN, Joan. Antigos contra Modernos: As Guerras Culturais e a Construção de um ‘fin de siècle’. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

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ao acaso, um senso aguçado de criar/perceber ordem, proporção e direção nas

coisas, uma “capacidade/engenho/ espírito” de criar formas a partir de um gênero.

Porém, em última instância, dependia da escolha deste indivíduo se, em suas

ações de edificação e auto-edificação, elevaria ou rebaixaria a sua dádiva e a si

mesmo. Enfim, até o último terço do século XVIII, a noção de gênio não estava

associada a um self romântico wertheriano, não estaria a serviço de uma verdade

interior e, nesse sentido, autônomo e contrafeito em relação a “formas externas”

tradicionalmente autorizadas e autorizadoras39.

Outra forma de desconstruir o cânone autoral romântico é buscar uma

aproximação com os estudos sobre a prática de publicar dramas nos séculos XVI e

XVII. Os estudos sobre o universo da escrita dramática e seu circuito de

publicação na Inglaterra dos séculos XVI e XVII vêm demonstrando que as peças

impressas eram predominantemente resultantes do trabalho de quem as fixava em

página (fosse por encomenda de um “livreiro” e/ou de um “oficial tipográfico”) e

que, portanto, conferia a elas uma nova forma que não se confundia com o texto

originalmente oferecido em palco – embora alguns enunciados de chamadas de

frontispícios pretendessem atenuar, ficticiamente, esta diferença.(Vide anexo

documental) Isso significa que, antes de ganhar uma forma impressa, os textos do

acervo das companhias teatrais eram mutáveis e resultados de um trabalho

colaborativo que envolvia o “poeta cênico”, os atores e, em certa medida, as

expectativas conjunturais quanto à época (feriados religiosos, homenagens,

comemorações cívicas, etc) e localização (social e espacial) da audiência40.

Anteriormente, como ignorava a lógica institucional que configurava as

condições de escrita e publicação de dramas nos séculos XVI e XVII, as análises

bibliográficas projetaram para as peças associadas ao nome ‘Shakespeare’ uma

noção de autoria e escrita de viés marcadamente romântico. Partindo-se deste

chão, desde a década de 1930, constituiu-se cânones analíticos que foram

questionados ao longo das décadas de 1980 e 1990 pelos estudos literários e

bibliográficos sobre Shakespeare41, que ganharam um impulso especial com a

39MORAES, Aline de Jesus. “Kultur versus Zivilisation: Distinção Social e Desconforto Burguês em Werther”. Revista Espaço Acadêmico, n.49. Maringá: UEM/Departamento de Sociologia, 2005; ELIAS, Norbert. Mozart: Sociologia de um Gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. 40MARCUS, Leath S.. “Levelling Shakespeare: Local Customs and Local Texts”. Shakespeare Quartely, volume 42, 1991(2): pp.168-178; TROUSDALE, Marion. “A Second Look at Critical Bibliography and the Acting of Plays”. Shakespeare Quartely, volume 41, 1990(1): pp.87-96. 41WERSTINE, Paul. “Narratives about printed Shakespeare Texts: ‘Foul Papers’ and ‘Bad’ Quartos”. Shakespeare

Quartely, volume 41, 1990(1): pp.65-86; GRAZIA, Margreta de; STALLYBRASS, Peter. “The Materiality of the Shakespearean Text”. Shakespeare Quartely, volume 44, 1993(3): pp.255-283

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renovação do debate historiográfico trazido pela história social dos modelos

culturais, particularmente os trabalhos de Roger Chartier sobre a história do livro

impresso e das práticas de leitura42.

No entanto, a “linguistic turn” que marca os estudos sobre a materialidade

dos textos de ‘Shakespeare’ está inscrita num debate maior que ganhara corpo

desde as décadas de 1960 e 1970, quando as críticas desconstrucionistas aos

estruturalismos lingüístico e sociológico trouxeram, respectivamente, novos

problemas a respeito da relação entre sujeito, idéia e linguagem na literatura,

assim como a respeito da relação entre sujeito e estruturas sociais na antropologia,

sociologia e história social. No caso específico da história social (principalmente

quando seus objetos ou fontes são artefatos artístico-literários), a “linguistic turn”

levantou a questão de se conceder maior autonomia para a linguagem, deixando

de concebê-la como meio ou mero suporte neutro para a expressão de estruturas

sociais ou para a passagem das idéias. Nos termos de Elias, a linguagem – tais

como os materiais característicos de um campo artístico particular – possuía as

suas próprias regularidades inexauríveis43.

Ora, uma vez que a linguagem deixa de ser concebida como um canal neutro

para as (e subordinado às) idéias, ou os sentidos possíveis para estas deixaram de

ser concebidos como independentes das formas de linguagem, torna-se vã a

pretensão platônica da antiga análise bibliográfica de depurar as peças impressas e

associadas ao nome ‘Shakespeare’ em busca da “idéia original” e “intenção” do

autor, ou mesmo a prática editorial de fusão de versões diferentes, mas

contemporâneas a Shakespeare, de uma “mesma” peça para se chegar a um texto

“mais completo” ou para corrigir “falhas” e, por esta via, conseguir uma melhor

“aproximação” em relação à “genialidade” da “mão/mente” do autor. Justamente

devido aos regimes de escrita e publicação implicados nas peças, a “intenção

autoral” (se por autor se entende um gênio individual, inspirado, isolado e criador

de significados fixos a serem decifrados) simplesmente não está disponível para

nós.

Foi justamente isso que Paul Werstine demonstrou, em 1988, num artigo

sobre os “mistérios de Hamlet”, em que termina, sintomaticamente, citando a

42CHARTIER, Roger(org.). Práticas da Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001[1985]; CHARTIER, Roger. A Ordem dos Livros: Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XVI e XVIII. Brasília: UnB, 1994; CHARTIER, Roger. Do palco à página: Publicar Teatro e Ler Romances na Época Moderna – Séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002; CHARTIER, Roger. Os Desafios da Escrita. São Paulo: UNESP, 2002.

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crítica de Michel Foucualt à metafísica das essências e afirma o caráter

contingencial dos textos de “Hamlet”44. Ao estudar o suposto “mistério” de

“Hamlet”, Paul Werstine afirmou que tal tema é uma invenção da crítica literária

por basear suas análises em edições da peça que seguem o cânone editorial que,

desde o século XVIII, funde linhas de Q2(1604-05) e F1(1623). Como alternativa

de legibilidade, Paul Werstine sugere que Q2 e F1 sejam apreendidos em sua

autonomia discursiva e editorial, pois guardam coerências específicas de

movimento dramático e caracterização de personagens (como Hamlet, Claudius,

Laertes, Fortimbrás e Gertrudes), que se perdem, ou parecem incoerentes, quando

se lê as versões fundidas da peça.

Aliás, vale lembrar, como sugere David S. Kastan, que os textos encenados

(“staging texts”), guardados como scripts e mantidos em poder de uma companhia

teatral, não são equivalentes às suas formas impressas (“printing texts”). Como ele

demonstra, tratam-se de momentos distintos de estruturação textual e, portanto,

não haveria uma relação textual de causa e efeito entre ambos45, mas sim, eu

acrescentaria, uma relação social: dificilmente uma peça publicada em in-quarto,

por exemplo, seria configurada para página sem antes ter sido experimentada (e

com algum sucesso) em palco.

Como podemos notar, o debate desconstrucionista trouxe o desafio de se

pensar que nenhuma idéia é anterior à configuração do discurso46, a que as

preocupações sobre a materialidade textual – a exemplo de Chartier e Kastan –

acrescentam a necessidade de se estar também atento às condições sociais e

institucionais em que o discurso materialmente se manifesta. Em parte, tal

pressuposto explica o interesse renovado, na história social dos modelos culturais,

de se estudar o universo editorial entre os séculos XVI e XVIII e, em particular, o

caminho que levava um texto que era palco (stage) a tornar-se página (page)47.

Um desdobramento óbvio desta virada historiográfica, como notou Paul Werstine,

foi justamente questionar a validade, nos estudos de textos associados ao nome

‘Shakespeare’, de categorias hierarquizadoras como “bad” ou “good” in-quarto,

43ELIAS, Norbert. Mozart: Sociologia de um Gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.pp.64-65 44WERSTINE, Paul. “The Textual Mistery of Hamlet”. Shakespeare Quartely, volume 39, 1988(1):pp.1-26 45KASTAN, Ibdem Op. cit. pp.14-78. 46POSTER, Mark. Cultural History plus Postmodernity: Disciplinary Readings and Challenges. New York: Columbia University Press, 1997.134-158 47KASTAN, Ibdem Op. cit. pp.14-49; CHARTIER, Roger. Do palco à página: Publicar Teatro e Ler Romances na Época Moderna – Séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.

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ou “foul papers”48, ou relacionar unidimensionalmente uma determinada forma

textual ao consumo de determinada classe ou agrupamento social49. Desde meados

da década de 1980, os estudos europeus sobre “História da Leitura” apontaram

para esta mesma direção50.

Os efeitos destas novas questões analíticas nos estudos sobre a materialidade

dos textos associados ao nome ‘Shakespeare’ estão bastante presentes nos estudos

de David S. Kastan. Para ele, não há um desenho interno do texto que se

corromperia em um suporte material imperfeito, pois isso seria cair, mais uma

vez, na metafísica platônica das idéias; pelo contrário, apenas podemos ler algo

que se apresenta a nós a partir do efeito que a materialidade do texto produz em

nós. Ora, tal forma pressupõe um hábito de olhar, ou um desafio ao hábito de

olhar, como foi o caso do projeto editorial do fólio de 1623.

1.2. ‘Shakespeare’ entre atos Editoriais (1594-1637)

A diversidade de origem das peças que formam o corpo do fólio de 1623 é

demonstrada pela própria despadronização na configuração dos textos: alguns

foram divididos em atos e cenas, tanto de forma regular (como, por exemplo, no

caso de “Ricardo III”) quanto irregular (como, por exemplo, no caso de

“Hamlet”); outros em atos apenas (como, por exemplo, no caso de “O Mercador

de Veneza”); além dos casos em que as referências a ato e cena aparecem

somente na página introdutória da peça (como, por exemplo, no caso de “Romeu

e Julieta”), sendo o seu corpo um texto contínuo (i.e., sem divisão efetiva em atos

e cenas), tal como ocorria na maioria dos in-quartos anteriores ao fólio. Frente a

isso, como dever-se-ia entender a chamada de frontispício do fólio, em que se lê

“Mr. William Shakespeares Comedies, Histories & Tragedies. Published

according to the true originall copies”?

Segundo Roger Chartier, haveria nesta chamada uma clara intenção de

diferenciar a peça como composição para performance (stage) da peça como

composição para leitura (page). Para Chartier, tal tópica retórica sugeriria que,

48WERSTINE, Paul. “Narratives about printed Shakespeare Texts: ‘Foul Papers’ and ‘Bad’ Quartos”. Shakespeare

Quartely, volume 41, 1990(1): pp.65-86. 49MARCUS, Leath S.. “Levelling Shakespeare: Local Customs and Local Texts”. Shakespeare Quartely, volume 42, 1991(2): pp.168-178. 50Para conhecer um balanço sistemático parcial deste tema (pois que originalmente publicado em 1986), ver: DARNTON, Robert. O Beijo de Lamourette: Mídia, Cultura e Revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.pp.146-172. Ver também: CHARTIER, Roger(org.). Leituras e Leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: UNESP, 2004[1987]; CHARTIER, Roger(org.). Práticas da Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001[1985].

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somente através da leitura da forma impressa, a obra poderia ser acolhida tal como

foi “originalmente concebida” pelo “autor/poeta”. Ele atribui esta forma de

conferir valor às peças de ‘Shakespeare’ no fólio de 1623 à influência do projeto

editorial do fólio de 1616 de Ben Jonson (1572-1637). No caso específico da

Inglaterra, segundo Chartier, Ben Jonson seria a experiência modelar da

deliberada tentativa de um “poeta cênico” construir um status individualizado

para “seus” textos, em contraponto ao ethos do trabalho colaborativo das

companhias teatrais. Chartier afirma que Ben Jonson foi participativo na

organização de seus “Workes” e pretendia criar para si a auctoritas canônica dos

poetas antigos e consagrados, construindo uma analogia de sua obra com os

“Works of England’s Arch-Poet”(1611), que reunia os trabalhos poéticos de

Edmund Spenser (c.1552-1599)51. Neste ponto, enquanto fenômeno editorial,

seria inegável a sua importância na gradativa construção de uma “dignidade

poética e literária” para os “poetas cênicos” ingleses na primeira metade do século

XVII.

No entanto, não creio que seja pertinente a tentativa de Chartier fazer um

paralelo analógico e implicativo entre os “Workes”(1616) de Ben Jonson e o fólio

de ‘Shakespeare’(1623). No caso do fólio de 1623, o aparente “deslocamento

retórico” de valor do “texto encenado” (performance) para o “texto impresso”

(leitura), assim como do trabalho coletivo da companhia teatral para o trabalho

individual do dramaturgo (“poeta cênico”), é “cotejável”, se seguirmos os

próprios critérios de Chartier, em alguns in-quartos associados ao nome

‘Shakespeare’. No entanto, mesmo estes não seguem uma trajetória linear entre

1594 (ano da primeira recorrência de peças impressas posteriormente associadas

ao nome ‘Shakespeare’) e 1637 (ano da morte de Ben Jonson), mesmo quando

consideramos os anos de 1616 e 1623 como pontos de inflexão. (Vide anexo

documental) Assim, se efetivamente há na chamada editorial do fólio de 1623 um

deslocamento retórico de valor do “palco” para a “página” e se isso está implicado

com a influência do fólio de Ben Jonson, Chartier apresenta bases documentais

muito frágeis para demonstrar a validade de sua hipótese.

Em vez de dizer que o fólio de 1623 estaria marcado pela mesma retórica de

valor dos “Workes” de Ben Jonson, seria mais plausível pensar que, em 1623,

51CHARTIER, Roger. Do Palco à Página: Publicar Teatro e Ler Romances na Época Moderna, séc. XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.pp.72-74

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Heminge e Condell, ao criarem um Volume/Monumento em homenagem a

Shakespeare, configuraram uma marca editorial para antigos textos da companhia

teatral que efetivamente os situasse como fazendo parte de seu repertório de

performances. Em minha opinião, seria estranho imaginar que dois dos principais

sócios da companhia King’s Men pensassem em conferir valor póstumo ao nome

‘Shakespeare’ – através de um Volume – em detrimento de seu próprio negócio: a

performance teatral.

Ao lermos os textos de homenagem inscritos nas páginas introdutórias do

fólio de 1623, não é possível identificar nada que aponte para uma valorização da

página impressa do “autor” em detrimento do trabalho colaborativo da companhia

teatral52. Aliás, todos os “companheiros” da companhia King’s Men (vivos ou

mortos) foram citados numa das páginas introdutórias do fólio, em cujo

cabeçalho se lê: “The Workes of William Shakespeare, containing all his

Comedies, Histories, and Tragedies: Truely set forth, according to their first

ORIGINALL”(“Os Trabalhos de William Shakespeare, contendo todas as suas

Comédias, Histórias e Tragédias, verdadeiramente estabelecidas de acordo com

os primeiros originais delas”). Abaixo desta chamada, aparece a lista dos

principais membros da companhia teatral, intitulada deste modo: “The Names of

the Principall Actors in all these Playes” (“Os Nomes dos Principais Atores em

todas estas Peças”)53. Portanto, a referência a ‘Shakespeare’ não o situa em

contraposição ao coletivo da companhia teatral, já que foram os seus membros

que, através da performance, primordialmente tornaram públicas as “suas cópias

originais”.

Na ordem de apresentação dos nomes próprios da listagem de atores do fólio

de 1623, o nome de William Shakespeare (1564-1616) encabeça a lista, com seu

“W” como letra capital, sendo seguido por Richard Burbage (c.1567/68-1619),

John Heminge (c.1556-1630), Augustine Phillips (m.1605), William Kemp

(m.1603), Thomas Pope (m.1603), George Bryan, Henry Condell (m.1627),

William Sly (c.1573-1608) e mais outros dezessete nomes que se seguem a estes.

Se na ordem em que são dispostos estes nomes houver alguma intenção implícita

de hierarquizá-los entre si, poderíamos fazer a seguinte especulação: com exceção

52JAGGARD, Isaac; BLOUNT, Edward. Mr. William Shakespeares Comedies, Histories, & Tragedies. London: Iaggard-Blount, 1623.pp.1-15 53JAGGARD, Isaac; BLOUNT, Edward. Mr. William Shakespeares Comedies, Histories, & Tragedies. London: Iaggard-Blount, 1623.p.11

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de George Bryan, para o qual não identifiquei qualquer referência de período de

vida, possivelmente os únicos vivos citados entre William Shakespeare e William

Sly, no momento da edição do fólio, são Condell e Heminge, o que os colocaria

no topo, em importância, da lista dos vivos. Esta hipótese é corroborada pelo fato

de Condell e Heminge terem se tornado os principais sócios da companhia King’s

Men depois das mortes de Shakespeare e Burbage.

É muito frágil os argumentos de Chartier quando considera que apenas uma

frase de frontispício (“according to the true originall copies”) seria suficiente para

estabelecer o paralelo analógico e implicativo entre a retórica de valor para os textos do

fólio de 1623 e aquela dos “Workes” de Ben Jonson. Ao proceder assim, Chartier

desconsidera todo um conjunto de páginas, entre o frontispício e o corpo das peças, que

desmentiriam a sua hipótese se tão somente lhes aplicássemos os mesmos critérios de

análise que ele utiliza para os casos editoriais de Ben Jonson (1572-1637) e Moliére

(1622-1673)54. Portanto, uma chamada de frontispício (por sinal, nada original e cuja

recorrência é anterior ao fólio de Ben Jonson) não é um indício suficiente para se

deduzir que Henry Condell e John Heminge entendessem a obra que configuraram e

associaram ao nome ‘Shakespeare’ na mesma dimensão que Ben Jonson pretendia

inventar a si mesmo como “poeta cênico” individualizado de seus “Workes”. Podemos

explorar este mesmo problema por outra ângulo.

Quando analisamos as chamadas editoriais dos in-quartos associados ao nome

‘Shakespeare’ entre 1594 e 1637, podemos observar que, muitas vezes, tal como ocorre

no fólio de 1623, a alusão a “textos originais” pode aparecer paralelamente à alusão à

companhia teatral, de forma que torna-se difícil generalizar que isso implica

necessariamente uma afirmação de valor da leitura poética do texto impresso (captação

através de página) em detrimento de sua percepção como texto poético encenado

(captação através de palco). Tentarei demonstrar isso através da variação editorial de

“Tróilo e Créssida” em 1609 e da trajetória editorial, entre 1597 e 1637, dos in-

quartos de “Hamlet”, “Romeu e Julieta” e “Ricardo III”, analisando as suas

chamadas editoriais a partir de quatro tópicos temáticos: (1) referência à patronagem,

(2) referência à performance; (3) referência ao “poeta cênico”; (4) referência a texto

“corrigido” e/ou “aumentado”.

54CHARTIER, Roger. Do Palco à Página: Publicar Teatro e Ler Romances na Época Moderna, séc. XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.pp.13-96

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No primeiro in-quarto de “Hamlet”(1603), a chamada editorial do frontispício

situa o nome “William Shake-speare” após o título da peça. Além disso, destaca-se o

fato de que ela foi “acted by his Highnesse seruants in the cittie of London” e lembra-se

que ela também foi representada “in the two vniuersities of Cambridge and Oxford” –

ou seja, referências às audiências “vulgar” e “nobre”, respectivamente. No caso dos in-

quartos de “Hamlet” entre 1604 e 1637, já podemos observar uma recorrência editorial

que aparentemente desloca o valor do texto de sua encenação para a leitura, mantendo o

nome do “poeta cênico” na mesma posição que observamos no in-quarto de 1603.

Assim, a partir de 1604, desaparecem as referências à trupe teatral, à sua patronagem e à

audiência. No entanto, ampliando o quadro de comparações, poderemos perceber que,

em si mesmas, as chamadas editoriais de “Hamlet” são indícios muito precários para

sustentarem a hipótese de que, em seu caso, teria havido um deliberado deslocamento

de valor para o “poeta cênico” em detrimento da trupe teatral.

Como nas versões de in-quartos de “Hamlet” entre 1603 e 1637 não há a

presença do “autor” através de “carta ao leitor”, não é possível rastrear a tópica retórica

da relutância do “poeta cênico” de publicar os seus escritos ou, pelo contrário, o desejo

de o “autor” oferecer um texto impresso mais “completo”, “perfeito” ou “ampliado” em

relação àquele oferecido durante as performances. Enfim, em si mesmas, as chamadas

editoriais de “Hamlet” não possibilitam afirmar que haja um interesse editorial de

construir valor para o texto em página (page) em contraponto ao texto em palco (stage).

Sobre este ponto, considerando (entre 1594 e 1637) o conjunto dos in-quartos de

‘Shakespeare’ no acervo da British Library, a única ressalva a ser feita refere-se ao caso

da impressão, na oficina de George Eld, dos in-quartos (variantes A e B) de 1609 da

peça “Tróilo e Créssida”. Na variante B, há o único exemplo conhecido de uma “carta

ao leitor” que traça uma clara distinção qualitativa entre página (page) e palco (stage)

para a fruição do “engenho de Shakespeare”, embora não seja, obviamente, uma carta

dele:

De um escritor inconstante para um constante leitor. Notícias.

Eterno Leitor, vós tendes aqui uma nova peça, jamais estragada com a encenação em Palco, jamais insultada com as palmas do vulgo e mesmo vivido completamente da palma cômica, pois ela nasce de vossa mente, que jamais incumbiu-se de qualquer coisa cômica inutilmente. E, mesmo que os nomes vãos das comédias fossem mudados para os títulos de Conveniências ou de Peças de Apelação, vós veríeis todos esses grandes censores – que agora se deixam atingir por tais vaidades – acorrerem para elas pela graça principal de suas gravidades, especialmente para as

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Comédias deste autor, que são tão adequadas para a vida que servem para os mais comuns dos Comentários de todas as ações em nosso dia a dia, demonstrando tamanha destreza e poder de engenho que os mais insatisfeitos com Peças satisfazem-se com suas Comédias. E mesmo aqueles de espírito mais lento e obtuso, se nunca são hábeis para o engenho de uma Comédia, vindo assistir às suas encenações devido à sua fama, encontram nelas esse engenho que nunca acharam em si mesmos, e vão embora mais engenhosos do que quando vieram, sentindo delinear sobre suas mentes um fio de engenho que jamais sonharam que tivessem de afiar. Tal sal de engenho em suas Comédias é tão saboroso que elas parecem (por sua intensidade de prazer) ter nascido nesse oceano de onde emergiu Vênus. Entre todas as coisas, não há nada mais engenhoso do que isso. E tivesse eu tempo, falaria a respeito disso,embora soubesse ser desnecessário. Por mais

A E P Í S T O L A

que venhais a pensar ser vossa opinião bem dada, tivesse muito valor ou valor nenhum, eu saberia incumbir-me disso. A peça merece tal labor, tanto quanto a melhor Comédia em Terêncio ou Plauto. E, acreditai, quando Shakespeare tiver partido e suas Comédias estiverem fora de venda, vós disputá-las-eis e instalareis uma nova Inquisição Inglesa. Considerai isso um aviso e – no risco de vossos prazeres se perderem e de vossos Juízos não recusarem menos, nem gostarem menos, de não serem prejudicados pela respiração esfumada da multidão – apenas agradecei a fortuna por esta peça ter entre vós existido. Acredito que, através dos testamentos de grandes donatários, vós rogaríeis por elas, em vez de serdes por elas rogados. Deste modo, pelo estado

de saúde de seu entendimento, por aquilo que não será louvado, deixo tudo isso para ser rogado.

Vale.55

As duas variantes (A e B) de “Tróilo e Créssida” foram impressas no mesmo

ano (1609) para os mesmos “livreiros” (R. Bonian e H. Walley). Além do acréscimo de

folhas para uma “carta ao leitor”, o in-quarto B de “Tróilo e Créssida” diferencia-se do

in-quarto A por não possuir, em seu frontispício, nenhuma menção à performance,

optando o editor pelo resumo da trama: “A Famosa História de Tróilo e Créssida,

expressando de forma excelente o início de seu amor, com o namoro engendrado por

Pandarus, Príncipe de Licia. Escrita por William Shakespeare”56. Por sua vez, no

frontispício da variante A, lê-se: “A História de Tróilo e Créssida, tal como foi

encenada pelos servidores da Majestade Régia no Globe. Escrita por William

Shakespeare”57. Vejamos as fotos que se seguem dos frontispícios:

Variante A Variante B

55ELDE, George. The famous historie of Troylus and Cresseid..., by William Shakespeare. London: Eld-Bonian-Walley, 1609(B).pp.3-4. (As palavras grifadas em negrito e negrito sublinhado são minhas hipóteses de tradução, dada a ambigüidade de referente pronominal em português quando se pensa, na terceira pessoa (singular e plural), as referências a ‘Shakespeare’ e às ‘suas comédias’). 56ELDE, George. The Famous Historie of Troylus and Cresseid..., by William Shakespeare. London: Eld-Bonian-Walley, 1609(B).p.1 57ELDE, George. The Historie of Troylus and Cresseida..., by William Shakespeare. London: Eld-Bonian-Walley, 1609(A).p.1

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Portanto, há no frontispício da variante A a alusão ao “público vulgar” que, na

“carta ao leitor” da variante B, é condenado por atrapalhar, com sua “respiração

esfumada”(“smoaky breath”), um melhor juízo sobre as peças, especialmente no caso

das comédias. Assim, o “constante leitor” teria a chance de melhor aproveitar o

“engenho do autor” se pudesse contemplá-lo em página. No entanto, qualquer tentativa

de fazer, a partir da experiência editorial dos in-quartos de 1609 de “Tróilo e

Créssida”, um paralelo analógico com o caso Ben Jonson – pelo menos tal como este é

pensado por Chartier –, esbarraria numa série de problemas. Vejamos:

(1) A “carta ao leitor” da variante B de “Tróilo e Créssida” é a única que se conhece entre os in-quartos de peças impressas e associadas ao nome ‘Shakespeare’ quando o homem Shakespeare ainda estava vivo; porém, de qualquer forma, não é uma carta do “autor” para o “leitor”, o que já impediria fazer um paralelo analógico com o caso “Ben Jonson”. No frontispício da variante B, há a alusão exclusivamente ao “poeta cênico”, diferentemente do que ocorre com a variante A. Nesta última, aparecem na chamada editorial do frontispício alusões à performance, ao “poeta cênico” e à patronagem, e não há qualquer alusão explícita de que o texto oferecido em página (page) tenha sido corrigido ou aumentado em relação àquilo que foi apresentado em palco (stage). (2) Na “carta ao leitor” da variante B de “Tróilo e Créssida”, há a tópica que qualitativamente distingue o texto como página (page) do texto para palco (stage), embora se trate de uma ficção editorial, pois entre as variantes A e B não há, segundo a crítica erudita da British Library, emenda ou ampliação. (3) Na “carta ao leitor” da variante B de “Tróilo e Créssida”, há a sugestão de que as circunstâncias de performance não possibilitam que se tenha um juízo completo sobre o “engenho do autor”. No entanto, parece-me que somente na “carta ao leitor” da variante

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B de “Tróilo e Créssida” há efetivamente uma oposição valorativa entre palco (stage) e página (page). Isso poderia aproximar, analogicamente, a “carta ao leitor” da variante B de “Tróilo e Créssida” ao “caso Ben Jonson”, se não fosse o fato de a peça não ter sido publicada e apresentada por Shakespeare. (4) O fato de a variante B de “Tróilo e Créssida” ser o único caso registrado na British Library de in-quarto associado ao nome ‘Shakespeare’ em que aparece, quando Shakespeare ainda estava vivo, uma “carta ao leitor” que não é do “autor” corrobora com a hipótese historiográfica de David S. Kastan, que distingue o “caso Shakespeare” do caso “Ben Jonson” pelo fato de o primeiro não parecer ter demonstrado, em vida, uma preocupação de tornar públicas as “suas” peças através de páginas impressas58. (5) Além disso, não há paridade analógica entre o “caso Ben Jonson” e a variante B de “Tróilo e Créssida” porque, na “carta ao leitor”, a censura às circunstâncias de performances que “estragam o juízo” sobre o texto do “poeta cênico” não é seguida pela apresentação efetiva de um novo texto “corrigido” e/ou “ampliado” – e mesmo que o fosse, não haveria como provar se isso seria resultado de uma ação efetiva de um “Shakespeare autor”. Portanto, isoladamente, uma chamada editorial apenas serviria para provar que

um livreiro, ou uma oficina tipográfica, tendia a associar, por interesse comercial, os

nomes dos principais membros de uma companhia teatral prestigiosa aos textos de seu

repertório que foram, ou tivessem sendo, exibidos em performances nos grandes centros

teatrais urbanos – fossem tais textos obtidos por meios lícitos ou não. Desde começos

do século XVII, ‘Shakespeare’ tornara-se um nome de prestígio no meio profissional

teatral, tanto como delineador de enredos para peças quanto pelo fato de ser um dos

sócios diretores de uma companhia teatral igualmente prestigiosa em Londres. Deste

modo, em duplo sentido, o seu nome autorizava uma tradição textual ligada à sua

companhia. Podemos afirmar isso usando como referência o próprio Chartier: ao fazer

uma digressão pelo teatro espanhol do século XVII, ele lembra que o dramaturgo de

uma companhia teatral é chamado de “el poeta” e o diretor da companhia de “el autor

de comedias”59, ou seja, o diretor ou diretores de companhias teatrais eram “autor” ou

“autores” porque estavam autorizados (logo, detinham auctoritas) – através de alvarás

ou licenças régias – para comprarem ou apresentarem textos de escritores de peças (“el

poeta” ou “ingenio”), fossem eles antigos ou modernos. Vale lembrar que Shakespeare

é designado como “Scenicke Poet” (poeta cênico, tal como tenho usado no decorrer do

capítulo) no título introdutório da poesia-dedicatória de Hugh Holland no fólio de

162360. Portanto, enquanto esteve vivo, como “poeta cênico” e um dos sócios diretores

58Ver: KASTAN, David Scott. Shakespeare and the Book. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. 59CHARTIER, Roger. Do Palco à Página: Publicar Teatro e Ler Romances na Época Moderna, séc. XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.p.83 60JAGGARD, Isaac; BLOUNT, Edward. Mr. William Shakespeares Comedies, Histories, & Tragedies. London: Iaggard-Blount, 1623.p.15

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Saint Dunstons Church yeard in Fleetstreet. Vnder the Diall, 1611.” Quarto in-quarto, 1622:

“The tragedy of Hamlet Prince of Denmarke. Newly imprinted and inlarged, according to the true and perfect copy lastly printed. By William Shakespeare. London: printed by W. S. [William Stansby] for Iohn Smethwicke, and are to be sold at his shop in Saint Dunstans Church-yard in Fleetstreet: Vnder the Diall, [1622].

Quinto in-quarto, 1637:

“The tragedy of Hamlet Prince of Denmark. Newly imprinted and inlarged, according to the true and perfect copy last printed. By William Shakespeare. London: printed by R. Young for Iohn Smethwicke, and are to be sold at his shop in Saint Dunstans Church-yard in Fleet-stteet [sic], under the Diall, 1637.”

Fonte: British Library (www.bl.uk/treasures/shakespeare/)

Assim, observando as variações de chamadas editoriais de “Hamlet”,

percebemos que “tragicall historie” foi reduzida para “tragedy”, e houve mudanças de

oficiais tipográficos e “livreiros”. Além disso, quando chegamos ao in-quarto de 1622,

a chamada editorial passa de “according to the true and perfect coppie [ou coppy]”

para “according to the true and perfect copy lastly printed”, que se repete em 1637.

Portanto, as chamadas editoriais de “Hamlet” são inscritas numa tradição de textos

teatrais impressos que apaga completamente as alusões à performance, à trupe, à

patronagem e à audiência, que estiveram presentes na edição de 1603. No entanto, é

importante lembrar que as sucessivas edições desta peça estão condicionadas pelo seu

sucesso em performances durante os anos do governo de James I (1566-1625), rei da

Inglaterra desde 160361. Por isso, quando nos aproximamos cronologicamente do fólio

de 1623, o nome próprio ‘Shakespeare’ já autoriza, no mercado editorial de peças

impressas, uma tradição textual de in-quartos de “Hamlet”.

Além disso, se considerarmos a conjuntura de sucesso do projeto editorial do

fólio de Ben Jonson desde 1616 e a polêmica de William Jaggard e Thomas Pavier com

a companhia King’s Men em 1619 sobre os direitos de impressão sobre dez peças do

repertório da companhia, poder-se-ia especular que o projeto editorial de Heminge e

Condell – ao estabelecer como chamada de frontispício “Mr. William Shakespeares

Comedies, Histories & Tragedies. Published according to the true originall copies”,

que era semanticamente equivalente à expressão “according to the true and perfect

coppie” que observamos nos in-quartos de “Hamlet” a partir de 1604 – pretendia, na

verdade, inventar uma distinção editorial de venda em relação a textos de

61Ver: KERNAN, Alvin. Shakespeare, the King’s Playwright: The Theater in the Stuart Court, 1603-1613. Yale University Press, 1995.

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‘Shakespeare’ já publicados em formato in-quarto e que voltariam a aparecer, em novo

formato editorial, no fólio de 1623.

No entanto, pelos indícios apresentados, não é possível depreender disso que

haja na apresentação do fólio de 1623 um deslocamento retórico de valor do “texto

encenado” (colaboração coletiva e contingente) para o “texto impresso” (criação

individual e fixadora) com a intenção de inventar uma unidade autoral ‘Shakespeare’ ao

modo de Ben Jonson, mesmo porque não seria isso que garantiria o exclusivo

corporatista de publicação dos textos da companhia e, de qualquer forma, a solução

editorial do fólio resulta da convergência contingente e despadronizada de in-quartos

anteriormente publicados sem a interferência direta de Shakespeare. Deste modo, o fólio

tanto cumpriria o papel de ser um monumento em Volume destinado a levar a glória ao

nome ‘Shakespeare’, com efeitos mais perduráveis do que o monumento em “cobre e

mármore” de Stratford – tal como afirmava Leonard Digges em sua poesia-dedicatória62

–, quanto conferir distinção literária para parte do repertório textual da companhia

teatral que, originalmente ou não, tenha sido autorizado ou delineado por

‘Shakespeare’.

Como podemos perceber, antes do advento do fólio de 1623, ao estabelecerem

as peças com o nome ‘Shakespeare’, os livreiros e/ou tipógrafos não pretendiam marcá-

las com a essência individual de um “gênio literário de todas as épocas”, mas sim com

sua persona social, pois buscavam algum proveito comercial, com o menor risco

financeiro possível, em torno de um nome que autorizava peças de uma trupe teatral

notabilizada por suas performances e patronagem. Façamos, agora, uma análise

comparada das tópicas temáticas que aparecem nas chamadas editoriais dos in-quartos

de “Romeu e Julieta”, pois, modelarmente, seguem uma trajetória bastante distinta

daquela que encontramos em “Hamlet”:

Primeiro in-quarto, 1597:

“An excellent conceited tragedie of Romeo and Iuliet. As it hath been often (with great applause) plaid publiquely, by the Right Honourable the L. of Hunsdon his seruants. London: printed by Iohn Danter [and Edward Allde], 1597.”

Segundo in-quarto, 1599:

“The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. Newly corrected, augmented, and amended: as it hath bene sundry times publiquely acted, by the Right Honourable the Lord Chamberlaine his seruants. London: printed by Thomas Creede, for Cuthbert Burby, and are to be sold at his shop neare the Exchange, 1599.”

62JAGGARD, Isaac; BLOUNT, Edward. Mr. William Shakespeares Comedies, Histories, & Tragedies. London: Iaggard-Blount, 1623.p.9

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Terceiro in-quarto, 1609:

“The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. As it hath beene sundrie times publiquely acted, by the Kings Maiesties seruants at the Globe. Newly corrected, augmented, and amended: London: printed [by Iohn Windet] for Iohn Smethwick, and are to be sold at his shop in Saint Dunstanes Church-yard, in Fleetestreete vnder the Dyall, 1609.”

Quarto in-quarto, 1622:

“The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. As it hath beene sundrie times publikely acted, by the Kings Maiesties seruants at the Globe. Newly corrected, augmented, and amended. London: printed [by William Stansby] for Iohn Smethwicke, and are to bee sold at his shop in Saint Dunstanes Church-yard, in Fleetestreete vnder the Dyall, [1622].”

Variante do quarto in-quarto, 1622:

“The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. As it hath beene sundrie times publikely acted, by the Kings Maiesties seruants at the Globe. Written by W. Shake-speare. Newly corrected, augmented, and amended: London: printed [by William Stansby] for Iohn Smethwicke, and are to bee sold at his shop in Saint Dunstanes Church-yard, in Fleetestreete vnder the Dyall, [1622].”

Quinto in-quarto, 1637:

“The most excellent and lamentable tragedie of Romeo and Iuliet. As it hath been sundry times publikely acted by the Kings Maiesties servants at the Globe. Written by W. Shake-speare. Newly corrected, augmented, and amended. London: printed by R. Young for John Smethwicke, and are to be sold at his shop in St. Dunstans Church-yard in Fleetstreete, under the Dyall, 1637.”

Fonte: British Library (www.bl.uk/treasures/shakespeare/

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preferencialmente à performance (“As it hath beene sundrie times publikely

acted”), em co-ocorrência, depois de 1597, com os apelativos de venda do texto

enquanto página (“Newly corrected, augmented, and amended”) – ou seja, o

mesmo paralelismo temático que podemos observar no conjunto dos enunciados

editoriais que precedem o corpo de peças do fólio de 1623. Portanto, o apelativo

de venda relacionado a “aperfeiçoamento textual” não é necessariamente

acompanhado pela referência ao nome ‘Shakespeare’. Além disso, deve-se notar

que, na edição de 1597, o apelativo de venda referenda-se exclusivamente na

patronagem e na boa recepção da performance: “As it hath been often (with great

applause) plaid publiquely, by the Right Honourable the L. of Hunsdon his

seruants”(Grifo meu). Vejamos, agora, as chamadas editoriais de “Ricardo III”:

Primeiro in-quarto, 1597:

“The tragedy of King Richard the third. Containing, his treacherous plots against his brother Clarence: the pittiefull murther of his iunocent [sic] nephewes: his tyrannicall vsurpation: with the whole course of his detested life, and most deserued death. As it hath been lately acted by the Right Honourable the Lord Chamberlaine his seruants. At London: printed by Valentine Sims, [and Peter Short] for Andrew Wise, dwelling in Paules Chuch-yard [sic], at the signe of the Angell, 1597.”

Segundo in-quarto, 1598:

“The tragedy of King Richard the third. Conteining his treacherous plots against his brother Clarence: the pitiful murther of his innocent nephewes: his tyrannicall vsurpation: with the whole course of the detested life, and most deserued death. As it hath been lately acted by the Right Honourable the Lord Chamberlaine his seruants. By William Shake-speare. At London: printed by Thomas Creede, for Andrew Wise, dwelling in Paules Church-yard, at the signe of the Angell, 1598.”

Terceiro in-quarto, 1602:

“The tragedie of King Richard the third. Conteining his treacherous plots against his brother Clarence: the pittifull murther of his innocent nephewes: his tyrannicall vsurpation: with the whole course of his detested life, and most deserued death. As it hath bene lately acted by the Right Honourable the Lord Chamberlaine his seruants. Newly augmented, by William Shakespeare. London: printed by Thomas Creede, for Andrew Wise, dwelling in Paules Church-yard, at the signe of the Angell, 1602.”

Quarto in-quarto, 1605:

“The tragedie of King Richard the third. Conteining his treacherous plots against his brother Clarence: the pittifull murther of his innocent nephewes: his tyrannicall vsurpation: with the whole course of his detested life, and most deserued death. As it hath bin lately acted by the Right Honourable the Lord Chamberlaine his seruants. Newly augmented, by William Shake-speare. London: printed by Thomas Creede, and are to be sold by Mathew Lawe, dwelling in Paules Church-yard, at the signe of the Foxe, neare S. Austins gate, 1605.”

Quinto in-quarto, 1612:

“The tragedie of King Richard the third. Containing his treacherous plots against his brother Clarence: the pittifull murther of his innocent nephewes: his tyrannicall vsurpation: with the whole course of his detested life, and most deserued death. As it hath beene lately acted by the Kings Maiesties seruants. Newly augmented, by William Shake-speare.

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London: printed by Thomas Creede, and are to be sold by Mathew Lawe, dwelling in Paules Church-yard, at the signe of the Foxe, neare S. Austins gate, 1612.”

Sexto in-quarto, 1622:

“The tragedie of King Richard the third. Contayning his treacherous plots against his brother Clarence: the pittifull murder of his innocent nephewes: his tyrannicall vsurpation: with the whole course of his detested life, and most deserued death. As it hath been lately acted by the Kings Maiesties seruants. Newly augmented. By William Shake-speare. London: printed by Thomas Purfoot, and are to be sold by Mathew Law, dwelling in Pauls Church-yard, at the signe of the Foxe, neere S. Austines gate, 1622.”

Sétimo in-quarto, 1629:

“The tragedie of King Richard the third. Contayning his trecherous plots, against his brother Clarence: the pittifull murther of his innocent nepthewes [sic]: his tiranous vsurpation: with the whole course of his detested life, and most deserued death. As it hath beene lately acted by the Kings Maiesties sernauts [sic]. Newly agmented [sic]. By William Shake-speare. London: printed by Iohn Norton, and are to be sold by Mathew Law, dwelling in Pauls Church-yeard, at the signe of the Foxe, neere St. Austines gate, 1629.”

Oitavo in-quarto, 1634:

“The tragedie of King Richard the third. Contayning his treacherous plots, against his brother Clarence: the pitifull murder of his innocent nephewes: his tyranous vsurpation: with the whole course of his detested life, and most deserued death. As it hath beene lately acted by the Kings Maiesties seruants. Written by William Shake-speare. London: printed by Iohn Norton, 1634.”

Fonte: British Library (www.bl.uk/treasures/shakespeare/)

Em “Ricardo III”, as chamadas editoriais configuram um julgamento sobre

como o personagem-título deve ser entendido: por ter se mostrado odioso, devido ao

assassinato de seus sobrinhos e à traição ao seu irmão Clarence, a morte de Ricardo

torna-se “mais do que merecida”. Afinal, é em contraste com o que Ricardo III

representa de legendariamente odioso para a Inglaterra que se constitui o lustre

distintivo da dinastia Tudor e, indiretamente, depois de 1603, da dinastia Stuart. Assim,

chama a nossa atenção o fato de o apelativo editorial da obra ter se mantido o mesmo

até a sua inclusão no fólio de 1623. Além disso, podemos observar outros detalhes: (1)

somente a partir da variação editorial de 1598 aparece a alusão ao nome de Shakespeare

como “poeta cênico” de “Ricardo III”; (2) antes de 1602, a referência à performance

(“As it hath been lately acted by the Right Honourable the Lord Chamberlaine his

seruants”) não é posta em paralelo valorativo com a página impressa, o que somente

ocorre quando começa a aparecer nos frontispícios esta expressão “Newly augmented,

by William Shakespeare”; (3) a chamada editorial do in-quarto de 1605 repete o

frontispício de 1602, a ponto de reproduzir o apelativo social “acted by the Right

Honourable the Lord Chamberlaine his seruants” num momento em que a trupe de

Shakespeare já havia se tornado “Kings Maiesties seruants”. Tal referência apenas

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aparece corrigida por Thomas Creede (oficial tipográfico aludido nos frontispícios

desde 1598) na edição de 1612.

Portanto, a partir de 1602, diferentemente de “Hamlet” e semelhante a “Romeu

e Julieta”, a trajetória editorial dos in-quartos de “Ricardo III” segue um sentido em

que se mantém o apelativo de venda ligado à performance e à patronagem da trupe,

posto em co-ocorrência valorativa com o fato de a peça ter sido “ampliada” e, nesse

sentido, de estar sendo dada a “ler”(page) diferentemente de “assistir”(stage). No

entanto, como podemos notar, não há em “Ricardo III” uma regularidade e linearidade

cronológica entre estas tópicas de valorização do texto impresso: embora a edição de

1629 reproduza as mesmas tópicas de valor da edição de 1622, quais sejam, referências

ao aperfeiçoamento textual, ao “poeta cênico”, à performance e à patronagem, podemos

observar na edição de 1634 um deslocamento de tópica de valor que “apaga” a

referência anterior ao aperfeiçoamento textual e faz alusão tão somente ao “poeta

cênico”, à performance e à patronagem, mantendo o resumo condenatório contra

Ricardo III no frontispício da edição. Neste ponto, “Ricardo III” distingue-se da

trajetória editorial de “Romeu e Julieta”, já que nesta as alusões ao aperfeiçoamento

textual e ao autor se mantiveram na sua edição de 1637.

Dada a irregularidade das formas de apresentação das peças associadas ao nome

‘Shakespeare’, não é possível deduzir seguramente que a diferença entre as chamadas

de frontispícios dos in-quartos esteja relacionada a uma opção editorial por valorizar

alternativamente o texto como “página” (individualidade autoral fixadora) ou como

“palco” (colaboração coletiva contingente). Tal advertência caberia particularmente

para o caso da trajetória editorial de “Hamlet”, pois, considerando-se comparativamente

os casos editorais de “Ricardo III” e “Romeu e Julieta”, as chamadas editoriais de

“Hamlet” entre 1604 e 1637 não possibilitariam deduzir com segurança uma opção

deliberada de valorização do texto por critérios contrapostos àqueles da edição do in-

quarto de 1603, a menos que pudéssemos encontrar um fenômeno editorial semelhante

ao caso das variantes A e B de “Tróilo e Créssida”(1609).

De qualquer forma, considerando as quatro tópicas sugeridas anteriormente,

quando as aplico a todo o conjunto das chamadas editoriais dos in-quartos de

Shakespeare entre 1594 e 1637, minhas conclusões não alteram o que já vinha

sugerindo ao me focar mais especificamente no caso dos in-quartos de “Hamlet”,

“Romeu e Julieta” e “Ricardo III”: tal amostragem demonstra que não há

correspondência necessária entre a referência ao “poeta cênico” e a tópica do texto

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“corrigido” e/ou “ampliado”. Tomando todo o conjunto dos in-quartos, constato

também a existência de três experiências editoriais em que não se faz referência a

nenhuma das quatro variáveis temáticas: são os casos de 1594 e 1600 de “Henrique VI,

parte II”, e o caso de 1598 de “Henrique IV, parte I”. Nestas três experiências

editoriais, a chamada editorial preferencialmente resume os enredos. Por fim, embora

haja os casos em que se faz alusão exclusivamente ao “poeta cênico”, não há casos de

referência à performance sem que haja deferência à patronagem – o mesmo padrão

podemos observar na carta-dedicatória aos patronos do fólio de 1623.

Quando voltamos nosso foco para o fólio de 1623, podemos observar em seus

textos introdutórios referências elogiosas ao “poeta cênico”(Shakespeare), aos seus

companheiros de palco e aos usos de “suas” peças em performances como algo que

tornara mais delicada e sutil a arte cênica. Além disso, outro elemento central na

atribuição de valor ao volume é a sua entrega à patronagem nobre. No caso do fólio, os

seus patronos foram William (3º Conde de Pembroke) e Philip (Conde de

Montgomery), filhos de Mary Hebert (1561-1621)63 e Henry Hebert (c.1538-1601) –

nobres notabilizados na corte de Elizabeth (1533-1603) como grandes patronos de artes.

Como, desde 1559, nenhuma trupe teatral poderia funcionar na Inglaterra sem estar sob

a proteção de uma patronagem nobre, Henry Hebert (2º Conde de Pembroke) foi

patrono de uma companhia de teatro entre 1591 e 1593, da qual Shakespeare e Richard

Burbage fizeram parte antes de passarem, em 1594, para a patronagem de Henry Carey

(m.1596), 1º Lord Hunsdon.

Desde 1585, Henry Carey detinha o ofício de Lord Chamberlain, o que

transformava Shakespeare e Burbage, a partir de 1594, em Lord Chamberlain’s Men. O

seu filho, George Carey, sucedeu-o como Lord Chamberlain em 1597, mantendo sob

sua patronagem a trupe de Shakespeare e Burbage. No entanto, em 1603, com a

sucessão de James I (1566-1625) ao trono, o novo rei tomaria para si a patronagem dos

membros da trupe, que então se tornaram King’s Men. Conhecer todo este circuito

social é importante para se entender o uso das tópicas retóricas da entrega humilde e de

subserviência presentes na “carta dedicatória” de Heminge e Condell “aos mais nobres

63Mary “Hebert” (nascida “Sidney”) se destacou na corte de Elizabeth por ser bem letrada e ótima tradutora. Ela foi irmã de Sir Philip Sidney (1554-1586), que lhe dedicou a sua “Arcádia” e se notabilizou como cortesão, poeta, homem de Estado, soldado nobre e patrono das artes. Dele é também um opúsculo chamado “Defesa da Poesia”, em que faz um apelo eloqüente sobre o valor social da “ficção imaginativa”, escrito provavelmente em 1582-1583. Ver edição em português: DOBRÁNSZKY, Enid Abreu (org.). Defesas da Poesia: Sir Philip Sidney & Percy Bysshe Shelley. São Paulo: Iluminuras, 2002.

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e incomparáveis pares de irmãos”, genealogicamente oriundos das casas ilustres de

Pembroke, Dudley, Warwick e Leicester.

Em tal “carta”, Heminge e Condell falam dos riscos de sua empreitada editorial

e, por conseguinte, da importância de um Volume ser entregue a uma ilustre

patronagem. Segundo Heminge e Condell, a patronagem emprestaria ao Volume de

textos de ‘Shakespeare’ o seu especial valor, tal como um deus confere valor especial a

bolos, velas e incensos – em si mesmos, coisas insignificantes – ao aceitá-los como

oferendas em seu altar. Com esta analogia, Heminge e Condell consideram poder se

aproximar, respeitosamente, com suas “oferendas/textos insignificantes” da alta

dignidade dos Condes de Pembroke e de Montgomery. Outra analogia igualmente

significativa da patronagem literária é a relação Guardiães/Órfãos: Heminge e Condell

se referem aos Condes de Pembroke e de Montgomery como “tutores/guardiães” que

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teatral. Veja o exemplo da carta “à grande variedade de leitores” de Heminge e

Condell:

F

Rom the most able, to him that can but spell : There you are number'd. We had rather you were weighd. Especially, when the fate of all Bookes depends vp-on your capacities : and not of your heads alone, but of your purses. Well ! It is now publique, & you wil stand for your priuiledges wee know : to read, and censure. Do so, but buy it first. That doth best

Desde os mais capazes até aquele que mal consegue soletrar, vós sois numerosos. No entanto, nós tínhamos ponderado que vós fostes [numerosos], especialmente quando o destino de todos os Livros depende de vossas capacidades – não apenas de vossas mentes, mas também de vossos bolsos. Eis que agora o livro é público e vós representareis vossos privilégios, que bem conhecemos: ler e censurar. Então fazei,mas o comprai primeiro.Isso é o que melhor recomenda um Livro, diz o Stationer. Então, por mais estranhas que vossas mentes sejam, ou vosso bom

commend a Booke,the Stationer saies. Then,how odde soeuer your braines be, or your wisedomes, make your licence the same,and spare not. Iudge your six-pen'orth, your shillings worth, your fiue shil-lings worth at a time, or higher, so you rise to the iust rates, and wel-come. But, whateuer you do, Buy. Censure will not driue a Trade, or make the Iacke go. And though you be a Magistrate of wit, and sit on the Stage at Black-Friers, or the Cock-pit, to arraigne Playes dailie, know, these Playes haue had their triall alreadie, and stood out all Ap-peales ; and do now come forth quitted rather by a Decree of Court, then any purchas'd Letters of commendation.

It had bene a thing, we confesse, worthie to haue bene wished, that the Author himselfe had liu'd to haue set forth, and ouerseen his owne writings ; But since it hath bin ordain'd otherwise, and he by death de-parted from that right, we pray you do not enuie his Friends, the office of their care, and paine, to haue collected & publish'd them; and so to haue publish'd them, as where (before) you were abus'd with diuerse stolne, and surreptitious copies, maimed, and deformed by the frauds and stealthes of iniurious impostors, that expos'd them : euen those, are now offer'd to your view cur'd, and perfect of their limbes; and all the rest, absolute in their numbers, as he conceiued the'.Who,as he was a happie imitator of Nature, was a most gentle expresser of it.His mind and hand went together: And what he thought, he vttered with that easinesse, that wee haue scarse receiued from him a blot in his papers. But it is not our prouince, who onely gather his works, and giue them you, to praise him. It is yours that reade him. And there we hope,to your diuers capacities, you will finde enough, both to draw, and hold you : for his wit can no more lie hid, then it could be lost. Reade him, therefore; and againe, and againe : And if then you doe not like him, surely you are in some manifest danger, not to vnderstand him. And so we leaue you to other of his Friends, whom if you need, can bee your guides : if you neede them not, you can leade your selues, and others. And such Readers we wish him.65

senso, dai-vos a mesma licença e não economizai. Julgai que vale vossos seis pens, vossos shillings, os vossos cinco shillings, de uma vez ou mais. Então, elevai ao preço justo e sede bem-vindos. Mas, o que quer que façais, Comprai. Censura não levará a uma Troca ou fará o João andar. E embora sejais um engenhoso Magistrado e senteis no Palco do Blackfriars ou do Cockpit para condenar as Peças diariamente, sabei que estas já foram julgadas e venceram todas as Apelações, e são agora publicadas por um Decreto da Corte e não por Cartas compradas de recomendação. Há uma coisa, nós confessamos, que valeria a pena ter sido desejada: que o próprio Autor tivesse vivido para estabelecer os seus escritos e supervisioná-los. No entanto, como outra coisa aconteceu e a morte o separou deste direito, nós vos pedimos que não invejeis de seus Amigos o ofício que se incumbiram e a dificuldade de coletar e publicar os seus escritos. E, então, para publicá-los – uma vez que, antes, vós fostes desrespeitados com diversos roubos e cópias sub-reptícias, danosas e deformadas por fraudes e furtos de injuriosos impostores, que as expuseram mesmo assim – são agora oferecidos bem cuidados aos vossos olhos, e aperfeiçoados em suas partes e em todo o resto, absolutos em seus números, tal como ele os concebeu. Quem, senão ele, foi um feliz imitador da Natureza, o seu mais nobre intérprete. A sua mente e a sua mão andavam juntas; e o que ele pensava ele proferia com tamanha facilidade que nós dificilmente recebíamos dele uma rasura em seus papéis. Mas isso não é nosso domínio, que somente reunimos os seus trabalhos e vo-los damos para que o louveis. Este livro é vosso para lê-lo. E assim desejamos, de acordo com as vossas capacidades diversas, que encontreis o bastante para vos atrair e prender, pois o engenho dele não pode mais permanecer escondido, sob o risco de se perder. Lede-o, portanto, e de novo, e de novo. E se então não gostardes dele por não entendê-lo, certamente estais em algum manifesto perigo. E, assim, deixamo-vos com outros de seus Amigos, que podem, se precisardes, ser vossos guias. Se não precisardes deles, vós podeis conduzir vós mesmos e outros. Isso, Leitores, é o que desejamos para ele.

Como a carta “à grande variedade de leitores” nos permite entrever, é

anacrônico entender, como faz Stanley Wells66, “cópias corruptas” no sentido

contemporâneo de “pirataria” ou “plágio”, pois não há, no contexto do mercado

editorial de peças impressas dos séculos XVI e XVII, a noção de propriedade intelectual

65JAGGARD, Isaac; BLOUNT, Edward. Mr. William Shakespeares Comedies, Histories, & Tragedies. London: Iaggard-Blount, 1623.p.7 66WELLS, Stanley. “General Introduction”. In The Oxford Shakespeare: The Complete Works. Oxford: Claredon Press, 1998.pp.XV-XXXIX

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ou de autor como gênio individualizado a ser preservado em sua integralidade ou

originalidade. No máximo, poder-se-ia falar em “pirataria” quando um livreiro e/ou

oficial tipográfico imprimisse uma versão de peça que estava sob domínio de outrem no

Stationer, o que em parte explicaria as tentativas de criar – quando um direito de

impressão era, licitamente ou não, transferido para outrem, como deixa transparecer

acima Heminge e Condell – marcas de distinção para variações editoriais (reais ou

fictícias), seja sugerindo-se que o texto fora “corrigido” e/ou “ampliado” em relação a

uma situação anterior (de impressão ou performance), seja sugerindo-se a tópica do

texto impresso “tal como encenado” em determinada ocasião pela companhia teatral

deste ou daquele patrono. Em todo caso, nesses artifícios editoriais não havia uma

preocupação de aproximação ou preservação da autoria no sentido que concebemos

contemporaneamente – tanto é verdade que a tópica do texto corrigido e/ou ampliado

em alguns in-quartos entre 1594 e 1637 não é necessariamente seguida, como já se

assinalou, pelo nome ‘Shakespeare’. Sobre este ponto, gostaria de fazer uma breve

digressão.

Ao final desta tese, como anexo documental, há uma tabela com todas as

chamadas editoriais dos in-quartos de ‘Shakespeare’ entre 1594 e 1637, organizada a

partir dos dados disponíveis no sítio virtual da British Library. Tomando como

referências principais as chamadas editoriais de “Henrique IV, parte I” entre 1598 e

1632, podemos observar que somente a partir da sua chamada editorial de 1622 é que

aparece um “ponto final” separando “Newly corrected”(cuja primeira ocorrência

manifesta-se na edição de 1599) de “By William Shake-speare”. Antes da edição de

1622, o que aparecia era “Newly corrected by W. Shakespeare”. No entanto, conforme

comparação com as chamadas editoriais de outras peças, a forma “by + nome próprio” é

exclusivamente regida por “Written”, mesmo que este verbo não esteja explicitado, ou

que não apareça ponto ou vírgula entre “by” e outras formas de particípio (ex.: “Newly

corrected” ou outra expressão equivalente). Portanto, a forma “(Written) by William

Shakespeare” é autônoma em relação ao conjunto de vozes passivas que venham a

aparecer nas chamadas editoriais – tanto é assim que ela pode ser deslocada para

qualquer posição no interior das chamadas, antes ou depois dos demais verbos no

particípio. Nesse sentido, quando observamos na edição de 1632 de “Henrique IV,

parte I” o “ponto final” (que aparecia em 1622) ser substituído por “vírgula”, isso não

altera o fato de que o verbo regente de “by” é, implicitamente, “Written”, em vez de

“corrected”.

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É de suma importância lembrar de tais convenções para se evitar que

hodiernamente se leia a expressão “

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Considerando isso, podemos notar que o processo de conversão de uma peça

para página não é simples, pois scripts para serem atuados não são equivalentes a

peças configuradas para serem lidas (silenciosamente ou publicamente). Logo, o

que lemos hoje associado ao nome ‘Shakespeare’ como página (page) está longe

de ser o que efetivamente existiu como palco (stage) enquanto ele esteve vivo.

Nesse sentido, tal como sugere David S. Kastan, a peça impressa não é nem um

texto pré-teatral, nem um texto pós-teatral; ela é tão somente um texto não-

teatral68. No entanto, disso não se deve deduzir que as peças impressas estejam

vazias de elementos de teatralidade.

1.3. O “Teatro do Mundo” e as configurações sociais de produção do texto

teatral

A teatralidade no drama impresso é cotejada através do discurso direto dos

personagens e da existência de didascálias, que criam um efeito de ambientação

cênica e de movimento de caracteres de modo diferente das narrativas à maneira

de romances. Através das didascálias e do discurso direto dos personagens é que

podemos conhecer as suas intenções e os seus pensamentos “silenciosos” –

geralmente expressos em “à parte” e solilóquios –, as suas ações em cena, os

balanços moralizantes dos eventos já ocorridos e os anúncios ou suspenses sobre

os vindouros. Como o texto dramático não é uma narrativa, os eventos

(acontecidos ou porvir) são explicados – geralmente no início ou ao final de

algumas seqüências dramáticas – à “audiência/leitor” através de coros ou dos

caracteres encenados, tornando possível identificar uma teleologia configurada

para explicitar uma ou mais teses morais sobre a peça ou sobre determinado

personagem.

No entanto, para além desse sentido mais estrito, a teatralidade no drama

impresso deve também ser entendida no sentido da tópica do “teatro do mundo”.

O tema central desta tópica é a relação entre escolha individual e vicissitudes das

circunstâncias, que afetam a realização no mundo de uma máscara social69. Nos

séculos XVI e XVII, num momento de maior mobilidade social e espacial devido

à complexificação da vida social, a recorrência de tal tópica demonstra, como

68KASTAN, David Scott. Shakespeare and the Book. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. 69Ver discussão sobre decoro das posições e deformação de caracter em: HANSEN, João Adolfo. “O Discreto”. In Libertinos e Libertários. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.pp.77-102; CARERI, Giovanni. “O Artista”. In O Homem do Barroco. Lisboa: Presença, 1995. pp.256-261

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notara Maravall70 e Bercé71, uma ansiedade de fixar, sem ambigüidade, as marcas

de distinção social, o que significava entender que o mundo, de forma

contingente, oferece uma agenda predefinida de opções de trilhas de ação – i.e.,

performances de uma máscara social e/ou moral, idéia também representada no

inglês elizabetano por termos como “self”, “(un)fashion”, “(un)shape” e

“(un)seeming”72.

Como poderemos perceber através das peças aqui estudadas, se há na tópica

do “teatro do mundo” uma moral defensora das hierarquias sociais como condição

de ordem e harmonia para a sociedade, isso não significa que seja necessariamente

fixista em relação às posições que o indivíduo possa vir a ocupar no seu interior73.

Aliás, como bem lembra a prática teatral nos séculos XVI e XVII, um ator poderia

(mesmo durante a performance de uma única peça) fazer papéis diferentes, mas,

como em qualquer plano dramático, previamente delimitados, sendo julgado por

sua capacidade de encenar adequadamente os caracteres de sua máscara. Nesse

sentido, pode-se afirmar, genericamente, que as agendas de opções de “máscaras

sociais” estão dadas e não são ainda questionadas, mas que há cada vez mais um

desconforto – expresso num consciente autodistanciamento subjetivo – em relação

às formas tradicionais de se fixar o indivíduo nas obrigações de uma máscara.

Justamente por isso, David S. Kastan demonstra o potencial de o teatro, nos

séculos XVI e XVII, provocar questionamentos a respeito de uma moral fixista

das posições e privilégios adquiridos por herança, principalmente quando um ator

conseguia representar nos palcos das Liberties, com graça e perfeição, os

caracteres régios e nobres, demonstrando, deste modo, que encená-los é muito

mais uma questão de treino, educação e circunstância do que algo herdado pelo

sangue. Além disso, a encenação de incidentes que derrubam ou alteram posições

aparentemente sólidas, particularmente nas tramas de traição e vingança,

demonstrariam o caráter circunstancial e contingente da localização do indivíduo

70MARAVALL, José Antonio. Cultura do Barroco. São Paulo: EDUSP, 1997. pp.251-279 71BERCÉ, Yves-Marie. O Rei Oculto: Salvadores e Impostores – Mitos Políticos e Populares na Europa Moderna. São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo/EDUSC, 2003.pp.249-285 72Como exemplo, ver cena de abertura de “Ricardo III”: SIMS, Valentine; WISE, Andrew. The Tragedy of King Richard the third. London: Sims-Wise, 1597.pp.3-4. Ver também admoestação de Frei Lourenço a Romeu: CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.pp.53-54 73Para uma perspectiva comparada desta questão, ver: MARAVALL, José Antonio. Cultura do Barroco. São Paulo: EDUSP, 1997; ELIAS, Norbert. Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001; BERCÉ, Yves-Marie. O Rei Oculto: Salvadores e Impostores – Mitos Políticos Populares na Europa Moderna. São Paulo: EDUSC/Imprensa Oficial de São Paulo, 2003; BOUZA, Fernando. Palabra e Image en la Corte: Cultura oral y visual de la nobleza en el Siglo de Oro. Madrid: Abada, 2003; GREENE, Thomas. “A Flexibilidade do Self na Literatutra do Renascimento”. História & Perspectivas, n.32, jan/jun 2005. Uberlândia: EDUFU.

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numa máscara social. Kastan também assinala o potencial de o teatro

dessacralizar a deferência à figura régia devido ao fato de a performance, em si

mesma, submeter reis e nobres à censura e avaliação do “vulgo”74, ou pelo fato,

poderíamos acrescentar, de expor em palco, alegoricamente ou não, tanto a

fragilidade da justiça frente à possibilidade de manipulação das formas oficiais de

inculpação quanto os mecanismos de mistificação da autoridade75.

No entanto, no final das contas, considerando o conjunto das peças que

estudo, tenho a impressão que as idéias de que “ninguém está verdadeiramente

seguro” e de que o “mundo é movimento” – temas recorrentemente associados à

tópica do “teatro do mundo” – guardam em si mesmas, como já assinalei, a

demanda por ordem ou segurança a partir das hierarquias sociais existentes, sendo

questionada não propriamente a existência dos dispositivos institucionais de

ordem e autoridade – algumas vezes aludidos como pharmacon –, mas sim

quando os seus usos são deformados pela vilania, pela tirania ou pela paixão do

indivíduo. A tentativa de Norbert Elias de tipificar e diferenciar “arte de artesão”

de “arte de artista”, justamente por demonstrar padrões histórico-sociológicos

epocais distintos da relação entre produção de arte e consumo, permite-nos uma

aproximação analítica pertinente para esta questão76.

Para Elias, na “arte de artesão”, a produção de arte é feita para um patrono

pessoalmente conhecido, cujo status social é muito superior àquele do produtor de

arte. Assim, vale lembrar que, desde 1559, as companhias teatrais inglesas apenas

seriam autorizadas a funcionar se estivessem sob o patronato de um nobre.

Segundo Elias, na “arte de artesão”, a imaginação do produtor de arte se subordina

ao padrão de gosto do patrono, embora deva-se ter clareza que a situação de

“domésticos” ou “servidores” de uma casa nobre, para o caso dos membros de

uma companhia teatral da geração de Shakespeare, não seja exatamente

equivalente àquela, estudada por Elias, para o caso dos Mozart. Certamente, entre

1603 e 1613, na qualidade de dramaturgo principal da trupe King’s Men,

Shakespeare era obrigado a fazer as honras a seu patrono régio, James I, mas não

74KASTAN, David Scott. “Proud Majesty made a subject: Shakespeare and the Spectacle of Rule”. Shakespeare Quartely, volume 37, 1986(4):pp.459-475 75Ver: BREIGHT, Curt. “Treason doth never prosper: The Tempest and the Discourse of Treason”. Shakespeare Quartely, volume 41, 1990(1):pp.1-28 76ELIAS, Norbert. Mozart: Sociologia de um Gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.p.135

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podia perder de vista que tinha de agradar ao vulgo (audiência não-cortesã) que,

indo ao Globe, respondiam por 85,9% das rendas de sua companhia77.

De qualquer forma, as montagens nas Liberties não podiam ofender o rei e a

moral religiosa, não só pelo temor de perder a permissão de funcionamento dos

teatros e/ou das companhias teatrais, mas também porque tais montagens serviam

de ensaio geral para o clímax da temporada teatral: o ciclo de festividades

natalinas na corte, que iam do dia de Santo Estevão (26 de dezembro) à Epifania,

ou Noite de Reis (6 de janeiro), e por vezes até a Quaresma, logo após o Carnaval.

Sendo assim, temos que entender Shakespeare como artista a serviço da corte

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como eles gostariam de se ser e, ao mesmo tempo, tal como os reis e príncipes

governantes os queriam ver82. Todo este sistema de controle explicaria o

desconforto wertheriano da geração artística de Goethe e Mozart83.

Portanto, Frederico considera a tragédia clássica francesa como a expressão,

por excelência, da “boa forma” ou “bom gosto” literário adequado à audiência da

“boa sociedade”(nobreza cortesã). Pensando nisso, Norbert Elias afirmou que

seria possível estabelecer uma relação implicativa entre o “gosto alemão cortesão”

pelo classicismo das tragédias francesas e as “exigências sociais e

comportamentais da vida cortesã”, quais sejam: a exigência de controle dos

sentimentos individuais pela razão; a exigência de comportamento reservado e a

eliminação de todas as expressões plebéias na fala, nos gestos e nas vestimentas.

Deste modo, Elias afirma haver um vínculo claro entre forma de distinção social e

forma de regulação do gosto estético84. No entanto, disso não se deve depreender

que Elias pense haver uma relação linear entre uso da forma estética e origem

social de seus usuários, senão a própria crítica de Frederico a Goethe seria

historicamente inviável.

Mozart (1756-1791) não teria a longevidade de Goethe (1749-1832) para

viver as mudanças de configuração social que justamente o permitissem escapar

ao tipo de função cortesã de restrição supervisionadora do gosto estético

exemplificado por Frederico. Somente quando tal função enfraquece, ou tão

simplesmente muda de padrão numa sociedade de vínculos sociais mais

anônimos, é que podemos observar o delinear daquilo que Elias chama de “arte de

artista”, emergente em campo literário na virada do século XVIII para o XIX. Na

configuração da “arte de artista”, o produtor de arte está completamente voltado

para um mercado de compradores anônimos – ou seja, está menos dependente de

patronos –, havendo uma mudança nas relações de poder em favor do artista, que

desfruta de maior autonomia em relação aos padrões de valor e gosto da

sociedade, o que significa que há para ele uma margem maior de poder de indução

do consenso público a respeito de seu talento e de seu valor individual criativo.

Logo, comparativamente, o “teatro de Shakespeare” não se inscreve ainda numa

81Sobre esta discussão, ver também: CARLSON, Marvin. Teorias do Teatro. São Paulo: UNESP, 1997.pp.87-190 82ELIAS, Norbert. O processo civilizador, vol.I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. pp.32-35 83Ver: MORAES, Aline de Jesus. “Kultur versus Zivilisation: Distinção Social e Desconforto Burguês em Werther”. Revista Espaço Acadêmico, n.49. Maringá: UEM/Departamento de Sociologia, 2005; ELIAS, Norbert. Mozart: Sociologia de um Gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. 84ELIAS, Norbert. O processo civilizador, vol.I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. pp.32-35

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configuração social de “arte de artista”, embora a geração do movimento literário

e artístico Sturm und Drang tenha criado para Shakespeare este tipo de

legibilidade.

Robert Darnton pode justamente nos fornecer referências comparativas que

corroboram com as indagações de Norbert Elias sobre o caso Mozart. Ao estudar

os arquivos de um inspetor de polícia que atuava junto ao mundo das “repúblicas

de letras” na França de meados do século XVIII, Robert Darnton notou que,

geralmente, um produtor de arte buscava suficiente prestígio para seu talento, de

modo a atrair um protetor e, assim, conseguir postos na administração régia, numa

casa rica, numa localidade ou casamentos frutíferos (para si mesmo ou parentes),

que pudessem proporcionar teias sociais úteis para novas formas

(preferencialmente mais seguras e nobilitantes) de proventos85. Nesses termos,

embora não haja provas documentais diretas, é verossímil especular que o

aumento dos investimentos imobiliários da família de Shakespeare em Stratford-

upon-Avon (onde comprou a segunda maior casa da região, New Place) e os

casamentos que conseguira para suas filhas (em 1607, Susanna com John Hall,

médico em Stratford; em 1616, Judith com Thomas Quiney, comerciante de

vinho) estejam relacionados ao fato de sua companhia teatral, a partir de 1603, ter

passado para a patronagem régia, o que situava o “nome” e a “casa” de

Shakespeare numa nova escala86 no interior das relações sociais de sua terra natal.

Nesse sentido, a imagem de um dramaturgo independente e vivendo

exclusivamente de seus escritos – com toda a áurea de prestígio com que isso é

contemporaneamente investido – não existiria no tempo de Shakespeare.

Aliás, mesmo no contexto estudado por Darnton, quem vendia seus escritos

para livreiros ou casas editoriais raramente alcançava grande preço – e, quando

alcançava, era pago de uma única vez, não havendo, em regra, cotas de direitos

autorais sobre as vendas. Além disso, aqueles produtores de arte que alçaram

grande prestígio para seu talento através de um bom patronato – e, com isso,

outras fontes de proventos (particularmente ligados a cargos e rendas fundiárias),

como foi o caso de Voltaire (1694-1778) – tentavam desvincular a sua imagem de

“homens de letra” daqueles que ainda tentavam tirar alguma fonte de rendimento

85Ver: DARNTON, Robert. O Grande Massacre dos Gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1986.pp.218-228 86Aqui, ‘escala’ deve ser entendida como a extensão quantitativa e qualitativa, tanto em diversidade social quanto espacial, da interconexão de pessoas sociais. Portanto, escala é aqui entendida como um aspecto da organização social. (Ver: BARTH, Fredrik. Scale and Social Organization. Oslo/Bergen/Tromso: Universitetsfoglaget, 1972. pp.253-272)

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alguma analogia, um século e meio antes, com o retiro do velho Voltaire. No

entanto, o monumento em “cobre e mármore”, feito para Shakespeare por seus

familiares em Stratford, celebrava-o pelo poder de sua pena e não como

terratenente, já que foi pelo sucesso social e material de “seus escritos” e de sua

companhia teatral que ele pôde nobilitar, na escala social de Stratford, a sua

família com novas propriedades (New Place) e brasão (para o pai). Na poesia-

dedicatória no fólio de 1623, Leonard Digges91 hiperboliza o Volume de “seus

escritos” como um monumento superior àquele em Stratford e, portanto, celebra-o

como gentle poeta-cênico:

TO THE MEMORIE

of the deceased Authour Maister W. S H A K E S P E A R E .

À MEMÓRIA do falecido Autor, Mestre

W. S H A K E S P E A R E .

Hake-speare, at length thy pious fellowes giue The world thy Workes : thy Workes, by which,out-liue Thy Tombe, thy name must when that stone is rent,

Shakespeare, finalmente os teus devotos companheiros dão ao mundo os teus Trabalhos, pelos quais sobrevives à tua Tumba. O teu nome perdurará

And Time dissolues thy Stratford Moniment, Here we aliue shall view thee still. This Booke, When Brasse and Marble fade, shall make thee looke Fresh to all Ages : when Posteritie Shall loath what's new, thinke all is prodegie That is not Shake-speares; eu'ry Line, each Verse Here shall reuiue, redeeme thee from thy Herse. Nor Fire, nor cankring Age, as Naso said, Of his, thy wit-fraught Booke shall once inuade. Nor shall I e're beleeue, or thinke thee dead. (Though mist) vntill our bankrout Stage be sped (Imposible) with some new straine t'out-do Passions of Iuliet, and her Romeo ; Or till I heare a Scene more nobly take, Then when thy half-Sword parlying Romans spake. Till these, till any of thy Volumes rest Shall with more fire, more feeling be exprest, Be sure, our Shake-speare, thou canst neuer dye, But crown'd with Lawrell,liue eternally.92

quando a pedra rachar e o tempo dissolver o teu Monumento em Stratford. Aqui, ainda podemos te ver vivo. Este Livro, quando o cobre e o mármore perecerem, far-te-á parecer vivo para todas as Idades. Quando mostrar-se relutante a Posteridade, pensar que tudo é prodígio, que não é Shakespeare, aqui, cada linha, cada verso, restaurar-te-á, salvar-te-á de teu Féretro. Nem Fogo, nem Época pestilenta, como dizia Ovídio, nenhuma vez invadirão o teu engenhoso Livro, nem devo eu já te pensar ou acreditar morto. Não obstante turvo, até que nosso Palco falido volte a ser próspero, é impossível, com algum esforço, superar-te nas Paixões de Julieta e seu Romeu. Ou até que eu considere uma cena mais nobremente tomada do que quando a tua pena fez falar os eloqüentes Romanos, até tudo isso, enquanto existir quaisquer de teus Volumes, esteja certo, nosso Shakespeare, que com mais fogo, mais sentimento a expressar, tu nunca morrerás, mas, coroado com Laurel, eternamente viverás.

No entanto, o Shakespeare celebrado por Leonard Digges não é comparável,

em auctoritas textual, a Voltaire. Para o caso da Inglaterra, Ian Watt nos permite

perceber esta passagem com a emergência da forma romance no primeiro terço do

91Em 1622, Leonard Digges havia traduzido “Poema Trágico del Español Gerardo, y desengaño del amor lascivo”(1615-1617), de Gonzalo de Céspedes y Meneses (c.1585-1638).

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seriam: (1) a superioridade dos “Modernos” sobre os “Antigos”; (2) a existência

do progresso artístico e científico que explicaria tal superioridade; (3) a

formulação nuançada da doutrina do julgamento pessoal, do direito ao gosto

individual e da independência crítica. Portanto, o grande dilema aberto pela

“Querela entre Antigos e Modernos” era saber se as bases dos valores culturais

seriam o julgamento pessoal ou a crença na tradição98.

Ora, com algumas tensas ressalvas relativas ao debate religioso reformado na

Inglaterra de finais do século XVI99, o grande dilema cultural aberto pela

“Querela entre Antigos e Modernos” na França de finais do século XVII não

estava ainda posto no contexto cultural de Shakespeare, em que o status da

imitação relacionava-se à capacidade de se criar variações de formas a partir de

leis, padrões ou significados recebidos pela tradição. Portanto, a tradição era um

princípio ordenador da vida intelectual, social e política, cujo duplo filosófico era

a noção de Natureza100. Aliás, desde finais do século XV, a Natureza era

considerada pelos humanistas como o “freio” e a “regra” com que o indivíduo

pelejava para imitar as suas formas (natura naturata), ou a sua capacidade de

criar formas (natura naturans). Portanto, se havia em tal contexto alguma

soberania para o artista101, certamente não seria aquela que desfrutaria no contexto

do romantismo, particularmente se pensarmos no exemplo literário da obra “Os

sofrimentos do jovem Werther”(1774), cujo personagem-título lia a Natureza

como uma potência criativa espontânea, ou seja, indiferente às regras de arte

advindas da tradição cortesã de regulação do gosto estético102. Era justamente este

“espelho de espontaneidade da Natureza” que deveria servir, na consciência

romântica, como contraponto ao ethos aristocrático cortesão103. Foi com este olhar

que a geração de Goethe vislumbrou Shaskespeare e consolidou um cânone

romântico de legibilidade para as peças associadas ao seu nome.

97Ver: WATT, Ian. A Ascensão do Romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.pp.12-30 98Ver: DeJEAN, Joan. Antigos contra Modernos: As Guerras Culturais e a Construção de um ‘fin de siècle’. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 99DIEHL, Huston. Staging Reform, Reforming the Stage: Protestantism and Popular Theater in Early Modern England. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997; CROCKETT, Bryan. The Play of Paradox: Stage and Sermon in Renaissance England. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1995. 100Ver: ROSSET, Clément. A Anti-Natureza. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1988.pp.11-121 101KANTOROWICZ, Ernst. “La souveraineté de l’artiste: note sur quelques maximes juridiques et les théorie de l’art à la Renaissance”. In Mourir pour la Patrie. Paris: PUF, 1984. pp.31-57 102Ver: GOETHE, Wolfgang. Os sofrimentos do jovem Werther. São Paulo: Martin Claret, 2002.pp.16-22 103MORAES, Aline de Jesus. “Kultur versus Zivilisation: Distinção Social e Desconforto Burguês em Werther”. Revista Espaço Acadêmico, n.49. Maringá: UEM/Departamento de Sociologia, 2005.

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Na poesia-dedicatória de Ben Jonson no fólio de 1623, podemos notar que

Shakespeare é elevado à categoria de “estrela [guia] dos poetas”, pois mostrou ser

o melhor seguidor das inspirações da Natureza. Nesse sentido, retoricamente, Ben

Jonson ainda não fala como se estivesse pregando o primado do julgamento

pessoal e do progresso do saber ao modo iluminista, mas sim como se estivesse

constatando que seu “gentle Shakespeare” foi agraciado com tanto “engenho”

pela Natureza que seria o melhor a saber traduzir os seus desígnios em trama

poética. Assim, como aquele que soube, melhor do que ninguém, “bater o ferro na

bigorna das Musas”, Shakespeare seria agora um fundamento eterno para os

demais poetas. Portanto, ele não representaria o progresso de uma forma estética,

mas sim a ocasional tradução perfeita das regras da Natureza. Seria isso que lhe

conferiria a posição soberana de poeta de “todas as eras”. Enfim, o hiperbolismo

da homenagem póstuma de Ben Jonson celebra Shakespeare como uma

encarnação mais alta e perfeita do self poético, como um bom “nome” para a

“família da Natureza”. Além disso, podemos observar que a referência à

soberania poética de Shakespeare co-ocorre com a referência a ele como a

“maravilha de nosso palco”:

To the memory of my beloued,

The AV T H O R MR.W I L L I A M S H A K E S P E A R E :

A N D what he hath left vs.

À memória de meu amado, O AUTOR

MR.W I L L I A M S H A K E S P E A R E : E

que nos deixou.

O draw no enuy (Shakespeare) on thy name, Am I thus ample to thy Booke, and Fame:

While I confesse thy writings to be such,

Shakespeare, para não atrair inveja para teu nome, sou, pois, suficiente para teu Livro e Fama, mas confesso ser teus escritos de tal monta

As neither Man, nor Muse, can praise too much.

'Tis true, and all men's suffrage. But these wayes

Were not the paths I meant vnto thy praise; For seeliest Ignorance on these may light, Which, when it sounds at best, but eccho's right; Or blinde Affection, which doth ne're aduance The truth, but gropes, and vrgeth all by chance; Or crafty Malice, might pretend this praise, And thine to ruine, where it seem'd to raise. These are, as some infamous Baud, or Whore, Should praise a Matron. What could hurt her more? But thou art proofe against them, and indeed Aboue th' ill fortune of them, or the need. I, therefore will begin. Soule of the Age ! The applause ! delight ! the wonder of our Stage ! My Shakespeare, rise; I will not lodge thee by Chaucer, or Spenser, or bid Beaumont lye

que nem Homem, nem Musa e – é verdade – toda a humanidade poder-te-iam elogiar o bastante. Mas tais vias não foram as trilhas que eu pretendia para teu elogio, pois a mais cega Ignorância pode iluminá-las quando, na melhor das hipóteses, ela ressoa,ou ao menos ecoa, certa. Ou a Paixão cega, que nunca avança a verdade, pois tudo procura às cegas e tudo incita ao acaso. Ou a Malícia astuta: naquilo que parece elevar, pode estar fingindo tal elogio e à tua ruína te levar. Eis como uma Proxeneta infame, ou Puta, elogiaria uma Matrona. O que mais poderia feri-la? Mas tu efetivamente a elas resistes e estás acima de sua má fortuna, ou da necessidade. Começarei, então, [o meu elogio]. Espírito da Época! O aplauso! Regozijo! A maravilha de nosso Palco! Meu Shakespeare, erga-te! Não te trocarei por Chaucer, Spenser ou por Beaumont bendito. Repousa um pouco mais e torna-te um edifício. Tu és um Monumento sem uma tumba e restarás vivo enquanto teu Livro viver.

104JAGGARD, Isaac; BLOUNT, Edward. Mr. William Shakespeares Comedies, Histories, & Tragedies. London: Iaggard-Blount, 1623.pp.13-14

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empresta valor ao texto) ou simplesmente “textos originais” (referência a uma

potência criativa que se inscreve numa tradição, e não a uma novidade ruptiva).

Afinal, não se pode esquecer que é somente com o advento sociocultural da

“forma romance” que se configurou o veículo literário lógico de uma cultura que

conferiu um valor sem precedentes à originalidade/novidade105. A performance e a

publicação de peças teatrais na Inglaterra de Shakespeare ainda se reportavam a

um mundo social em que a fidelidade adaptativa aos princípios reguladores de

uma tradição literária clássica, a patronagem, a autoridade patriarcal, a hierarquia

estamental, o nome de linhagem, a religião, os costumes e a lógica social dos

privilégios delimitavam o campo dos possíveis para a ação do indivíduo e

modulavam o julgamento individual106.

No entanto, como já se afirmou antes, um princípio regulador para o gosto

estético, mesmo inscrito numa dinâmica específica de distinção social, não é tão

sobredeterminante a ponto de provocar uma coincidência perfeita entre origem

social e consumo de formas específicas de bens culturais. Ora, se acreditarmos no

que Heminge e Condell afirmam em sua carta-dedicatória aos condes de

Pembroke e Montgomery, a ousadia de buscarem tão ilustre patronagem para o

fólio de 1623 é, em parte, justificada porque as peças de ‘Shakespeare’ haviam

caído em seu gosto quando foram encenadas. Afirmar isso significa,

indiretamente, dizer que o gosto dos condes de Pembroke e Montgomery era bem

distinto daquele de seu tio, Sir Philip Sidney(1554-1586) – pelo menos, tal como

este se representa como cortesão viril, bem letrado e cioso dos referenciais da

retórica clássica107.

A partir do que podemos cotejar de seu gosto em “Defesa da Poesia”, Sir

Philip Sidney define os papéis instrutivos decorosos que deveriam ter as tragédias

(provocar a admiração elevada) e as comédias (provocar o prazer ininterrupto),

condenando a sobreposição ou contaminação de um gênero por outro108. Além

disso, o prazer ininterrupto que as comédias poderiam provocar não deveria ser

105WATT, Ian. A Ascensão do Romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. pp.14-15 106Para se ter uma perspectiva comparada desta questão, ver: MARAVALL, José Antônio. Cultura do Barroco. São Paulo: EdUSP, 1997; ELIAS, Norbert. Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001; BOUZA, Fernando. Palabra e Image en la Corte: Cultura oral y visual de la nobleza en el Siglo de Oro. Madrid: Abada, 2003. 107Ver: DOBRÁNSZKY, Enid Abreu (org.). Defesas da Poesia: Sir Philip Sidney & Percy Bysshe Shelley. São Paulo: Iluminuras, 2002. 108Ver as suas definições do papel das comédias e das tragédias em: DOBRÁNSZKY, Enid Abreu (org.). Defesas da Poesia: Sir Philip Sidney & Percy Bysshe Shelley. São Paulo: Iluminuras, 2002.pp.130-139

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confundido com o riso ou a gargalhada, sendo condenável ridicularizar o que

deveria ser lamentado. Sobre este último ponto, Sidney afirma:

“...que benefício há em fazer com que o público fique boquiaberto diante de um desventurado mendigo ou um bufão disfarçado de mendigo; ou, infringindo as leis de hospitalidade, troçar de forasteiros porque não falam inglês tão bem quanto nós?”109

Há neste trecho uma referência bem clara que opõe o ideal cortesão de decoro

e discrição ao vulgar e grotesco: a referência a “boquiaberto” (i.e., a gargalhada)

representa o oposto da admiração elevada (apregoada para a tragédia) e do prazer

ininterrupto (afirmado para a comédia), pois deforma a figura, aproximando as

pessoas do bestial110. Nesse sentido, seria verossímil afirmar, por exemplo, que

tragédias como “Rei Lear” ou “Otelo” seriam consideradas por Sir Philip Sidney

(se tivesse vivido para assistir às suas performances) como próprias ao “gosto

plebeu” pelas tragicomédias111, por mais que pudessem sofrer variações de enredo

e de caracterização de personagens para responderem aos perfis das audiências da

corte ou do teatro aberto nas Liberties do contexto de Shakespeare 112.

No caso específico de “Rei Lear”, Claire McEachern identifica, como parte

da caracterização de Lear na sua relação com Cordélia, a tópica cômica

renascentista do “blocking father” – ou seja, do pai possessivo que cria meios ou

desculpas para impedir a sua filha de se casar e, deste modo, manter controle

sobre a sua mente e seu corpo113. Por sua vez, Robert S. Miola identifica em

“Otelo” a presença temática de “Hercules Furens” de Sêneca114, mas com uma

clara diferença na caracterização de Iago como tragicômico demônio (ou vilão

dramático) que, valendo-se de sua malícia astuta, atenta e manipula o juízo de

Otelo contra a sua fiel esposa (Desdêmona como analogia da civilidade cortesã) e

contra si mesmo, enredando-o numa trama em que se torna um “corno

109DOBRÁNSZKY, Enid Abreu (org.). Defesas da Poesia: Sir Philip Sidney & Percy Bysshe Shelley. São Paulo: Iluminuras, 2002.p.133. Verena Alberti identificou este mesmo tipo de admoestação em Thomas Hobbes (1588-1679). Ver: ALBERTI, Verena. O riso e o risível. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. 110Aliás, não é preciso um esforço muito grande de memória para se lembrar que, na iconologia dos séculos XVI e XVII, há recorrências de formas expressivas que desqualificam moralmente um personagem (ou a idéia ou conceito que ele alegoriza) ao conferir-lhe feições deformadas, seja através da gargalhada ou, quando não, representando-o com a boca aberta, com feições animalizantes ou com trajes indignos para sua posição. Ver: RIPA (OF PERUGIA), Caesar. Iconologia or Morall Emblems. London: P. Tempest & Benjamin Motte, 1709. 111DOBRÁNSZKY, Enid Abreu (org.). Defesas da Poesia: Sir Philip Sidney & Percy Bysshe Shelley. São Paulo: Iluminuras, 2002.pp.130-139 112Sobre isso, ver estudo de: MARCUS, Leath S.. “Levelling Shakespeare: Local Customs and Local Texts”. Shakespeare

Quartely, volume 42, 1991(2): pp.168-178; MIOLA, Robert S.. “Othello Furens”. Shakespeare Quartely, volume 41, 1990(1):pp.49-64 113McEACHERN, Claire. “Fathering Herself: A Source Study of Shakespeare’s Feminism”. Shakespeare Quartely, volume 39, 1988(3):pp.269-290. 114MIOLA, Robert S.. “Othello Furens”. Shakespeare Quartely, volume 41, 1990(1):pp.49-64

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imaginário” – tópica cômica, por excelência, explorado exemplarmente nas várias

edições de “As Comadres Alegres de Windsor”115.

Segundo Robert Miola, tal como Hércules, Otelo é um viajante forte e cheio

de histórias e aventuras para contar, tendo vivido boa parte de sua vida nas

margens do mundo cortesão. Por isso mesmo, torna-se presa fácil de Iago que, ao

torná-lo cenicamente e cinicamente um cômico “corno imaginário”, alimenta todo

o movimento trágico da peça e revela a face oculta mais bestial do Mouro: uma

fúria insensata e cega, inicialmente projetada na peça como um atributo do Turco

que ameaçava Veneza. Como lembra Miola, o Hércules senequiano tornara-se

furioso devido a artifícios de Juno e, como conseqüência desta fúria, mata a sua

esposa e filhos justamente quando tenta ter uma vida sedentária e cortesã. Esta

fábula teria uma grande fortuna literária no Renascimento, seja como tema

trágico, seja como tema cômico, seja como tema tragicômico116.

Em todo caso, Hércules/Otelo representaria a força de pouco engenho que

perde facilmente o discernimento por se deixa enredar pela malícia astuta de

alguém que é diabolicamente mestre na manipulação das aparências. Tal tópica

literária é recorrentemente utilizada para representar os paradoxos da vida cortesã

e seus perigos para os mais incautos117, pois “viver das aparências” é tanto uma

condição para a configuração social cortesã quanto uma ameaça potencial para

aqueles que fazem parte dela. Além disso, deve-se também considerar que, para

um “leitor/audiência” da Inglaterra de inícios do século XVII, tal tópica se

sobreporia tematicamente à crítica protestante contra os perigos de um “olhar

idólatra e fornicador” que, quanto mais busca “prova ocular” ou se deixa

“seduzir pelos olhos”, mais se perde da revelação da verdade118.

Aliás, os caracteres e exigências comportamentais da vida cortesã foram

eficazmente manipulados por Desdêmona para enganar o pai e, deste modo, casar-se à

sua revelia com Otelo, cujo caracter viril (não-cortesão e não-branco) trouxe muitas

glórias militares para a aristocracia de Veneza, que, deste modo, promovia uma “força

bestial amiga” (o Mouro) contra uma “força bestial inimiga” (o Turco), combatendo,

115FREEDMAN, Barbara. “Shakespeare Chronology, Ideological Complicity, and Floating Texts: Something is rotten in Windsor”. Shakespeare Quartely, volume 45, 1994(2): pp.190-210; MARCUS, Leath S.. “Levelling Shakespeare: Local Customs and Local Texts”. Shakespeare Quartely, volume 42, 1991(2): pp.168-178 116MIOLA, Robert S.. “Othello Furens”. Shakespeare Quartely, volume 41, 1990(1):pp.49-64 117Como teremos a chance de observar no capítulo III, tal tema é levado ao paroxismo através da figuração dramática do Duque de Gloucester, na peça “Ricardo III”. 118DIEHL, Huston. Staging Reform, Reforming the Stage: Protestantism and Popular Theater in Early Modern England. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997.pp.125-155; DIEHL, Huston. “Infinite Space: Representation and Reformation in Measure for Measure”. Shakespeare Quartely, volume 49, 1998(4): pp.393-410

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maquiavelicamente, um mal maior (o Turco) com um mal menor (o Mouro). No

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Todas as “tragédias” e “histórias” reunidas e associadas ao nome

‘Shakespeare’ no fólio de 1623 misturam, em alguma medida, pathos trágico com

loci cômicos121, o que é bem diferente daquilo que Sir Philip Sidney representava

como “bom gosto” em sua “Defesa da Poesia”. De qualquer forma, se

acreditarmos mais uma vez no que Heminge e Condell afirmam sobre o gosto

especial que os condes de Pembroke e Montgomery tinham pelas peças de

‘Shakespeare’, podemos justamente perceber, tal como nos estudos de Roger

Chartier sobre a “bibliothéque bleu”122, que não há uma relação necessária entre

estilos/formas literárias e o lugar social de seu consumidor. No entanto, é

importante notar que apenas tem sentido solicitar, deferentemente, a “tão nobre

patronagem” dos condes de Pembroke e Montgomery porque as peças foram

reunidas para serem publicadas em fólio – i.e., num Monumento/Volume.

Nesse sentido, é num formato editorial mais nobre que as peças são

oferecidas no “altar dos deuses”, não havendo registro documental da entrega de

qualquer in-quarto de ‘Shakespeare’ a patronos (nobres ou não). Portanto, a

patronagem e o formato editorial fólio alteravam o valor das peças num mercado

específico de bens culturais: davam-lhes uma dignidade literária que jamais

tiveram enquanto Shakespeare viveu, pois o fólio construía uma equivalência

simbólica com as poesias impressas, tais como aquelas de Edmund Spenser

(c.1552-1599) em “Works of England’s Arch-Poet”(1611). Justamente por

terem sido elevadas editorialmente à dignidade poética – fenômeno já preludiado

pelos “Workes” de Ben Jonson –, as peças impressas no fólio de 1623 deveriam

ser convencionalmente apresentadas como se fluíssem da imaginação às mãos,

quase sem rasura, tal como afirmavam Heminge e Condell na carta “à grande

variedade de leitores”, pois isso figuraria Shakespeare como o soberano tradutor

dos desígnios da Natureza em trama poética.

A tópica do poeta perfeito pressupunha que Shakespeare fosse um perfeito

canal expressivo, mas não passivo, da “inspiração das Musas”. Nesse sentido,

diferentemente de qualquer experiência editorial anterior com peças de seu

“gentle Shakespeare”, “somente eles” (Heminge e Condell) teriam as suas “cópias

verdadeiras e originais” e, portanto, poderiam estabelecer em página algo distinto

de tudo que já se havia feito. Por este viés, podemos pensar que o fólio de 1623

121A menor incidência disso ocorre nas três partes de “Henrique VI”. 122CHARTIER, Roger. A história cultural. Lisboa: Difel, 1990.pp.141-187

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era uma proposital idealização editorial que visava ir ao encontro de um tipo de

leitor com outra exigência de gosto – e que, em princípio, poderia pagar por um

fólio –, ao mesmo tempo que reforçava a sua distinção editorial em relação às

peças já impressas em in-quartos.

No entanto, o trabalho editorial de Heminge e Condell de estabelecer um

corpo textual para o nome ‘Shakespeare’ não tornava invisíveis para seus

contemporâneos os princípios – habituais para eles – que condicionavam os

regimes de escrita e publicação das peças teatrais que foram impressas em fólio.

Nesse sentido, considero que David S. Kastan exagera os “efeitos” do fólio para a

construção posterior de um cânone autoral romântico para Shakespeare123.

Preferencialmente, eu reportaria a sua tese para os efeitos posteriores, durante os

séculos XVIII e XIX, do cânone editorial de Nicholas Rowe(1674-1718), pois a

sua edição (1709-1714) das peças de ‘Shakespeare’ efetivamente converteu-as, ao

modo do caso William Congreve (1670-1729) estudado por Donald McKenzie124,

para um formato clássico em que as marcas do trabalho dos editores de 1623

desapareceram completamente125.

Sustento esta posição porque, quando observo a materialidade textual do fólio

de 1623, o fato de Heminge e Condell terem criado um novo registro editorial de

consumo para as peças de sua companhia não apagava o ethos corporatista em que

se inscreviam, passível de percepção pela própria despadronização textual das

peças no corpo do Volume. Além disso, em “à grande variedade de leitores”,

Heminge e Condell não deixam de afirmar, retoricamente, que o ideal seria que o

próprio Shakepeare tivesse vivido para estabelecer os “seus” textos no Volume.

Como isso não seria possível, Heminge, Condell e, possivelmente, Blount tiveram

que aperfeiçoá-los em “suas partes e em todo o resto...tal como ele os concebeu”.

Por outro lado, isso reforça a tese de Kastan da descontinuidade textual entre

palco e página126.

123Ver: KASTAN, David Scott. Shakespeare and the Book. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. 124McKENZIE, D. F.. La bibliographie et la sociologie des textes. Paris: Éditions du Cercle de la Librairie, 1991. Ver também como Robert Darnton retoma esta discussão em: DARNTON, Robert. O Beijo de Lamourette: Mídia, Cultura e Revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.pp.167-172 125Esta forma editorial de atualização da linguagem expressiva das peças, assim como a percepção de Shakespeare como autor individualizado e produtor de carácteres individualizantes, foi continuada por Alexander Pope (1688-1744). A sua proposta de legibilidade aparece num prefácio originalmente escrito para o seu The Works of Shakespeare (Londres, 1725). Ver tal prefácio, conforme a segunda edição de 1728, apresentado por: LYNCH, Jack. “Preface to Shakespeare”. In http://andromeda.rutgers.edu/~jlynch/Texts/pope-shakespeare.html 126KASTAN, David Scott. Shakespeare and the Book. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.

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A hipótese de Kastan dos efeitos do fólio de 1623 na construção de um

cânone autoral romântico para Shakespeare se fragiliza se considerarmos que, até

finais do século XVIII, mesmo quando o texto teatral deixou de ser

predominantemente colaborativo, ainda não se vivia o tempo da preservação da

identidade textual/intelectual de um “autor” quando era (re)apresentado em palco

ou página. O nome de um “autor glorioso” tendia a se tornar uma marca

autorizadora de uma tradição textual. Indiretamente, Chartier demonstrou isso ao

estudar o processo, em 1660-1661, de transposição de “Hamlet” para palco, feita

por Sir William Davenant (1606-1668) a partir do sexto in-quarto (1637)127.

Segundo Chartier, para converter a página (page) em palco (stage), Davenant

reformou estilo e falas de personagens, excluiu 850 linhas do in-quarto de 1637,

além de ter expurgado do texto tudo que fosse considerado sacrílego ou obsceno,

para fazer o texto caber tanto nas suas necessidades de performance quanto nas

exigências de valores e censuras morais do período da Restauração. O seu script

para o “Hamlet” de ‘Shakespeare’ foi a base para a publicação do in-quarto de

1676128. Portanto, uma dada experiência de performance precedeu (ou justificou

comercialmente) o (re)assentamento de um texto em página, não se apagando a

deferência ao nome ‘Shakespeare’.

Resumidamente, consideremos os seguintes pontos: (1) a lógica corporatista e

hierárquica de funcionamento das companhias teatrais na Inglaterra do tempo de

Shakespeare, que distinguia “poeta cênico” de “autor”, mas que, no caso

‘Shakespeare’, os dois papéis já se sobrepunham ao final do século XVI; (2) a

ausência da noção do gênio enquanto indivíduo; (3) a ausência da noção de

preservação da integridade intelectual dos autores/textos teatrais – sendo, pois,

habitual a construção de variações textuais a partir de uma base volátil de escritos

–; (4) a produção teatral como algo imerso naquilo que Elias chamou de “arte de

artesão”; e, por fim, (5) que aqueles que adquiriam junto ao Stationer o direito de

imprimir e vender as variações de uma peça, advinda (licitamente ou não) do

repertório de uma companhia teatral, poderiam impedir novas impressões, mas

não exerciam qualquer controle sobre o funcionamento das companhias teatrais ou

sobre suas escolhas para performance. Com isso, não deve surpreender que

127CHARTIER, Roger. Do Palco à Página: Publicar Teatro e Ler Romances na Época Moderna, séc. XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.pp.84-85 128CHARTIER, Roger. Do Palco à Página: Publicar Teatro e Ler Romances na Época Moderna, séc. XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.pp.84-85

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Heminge e Condell tenham associado ao nome ‘Shakespeare’ um conjunto de 35

peças (36, se considerarmos a inserção de “Tróilo e Créssida” em alguns

exemplares do fólio de 1623), das quais apenas três advinham efetivamente de

manuscritos autografados por Shakespeare129.

Todas essas indagações permitem-nos evitar a fantasia romântica da

autonomia literária, desmistificam o ato de escrever e publicar dramas nos séculos

XVI e XVII, localizam a peça impressa numa rede de intenções em que,

certamente, o dramaturgo é um fator central, mas não o determinante na produção

de um livro; além de tudo, tais indagações possibilitam não mais pensar uma

relação linear entre “staging play” e “printing play”. Nesse sentido, mesmo

quando impresso e, portanto, mais fixado, todo texto de peça permanece

provisório – não era pensado pelos editores como um monumento irretocável à

posteridade130. Portanto, até finais do século XVIII, não havia ainda um senso

editorial de preservação da integridade textual-intelectual ou estética de um

“autor” – muito pelo contrário, os textos eram periodicamente adaptados a novos

gostos e padrões morais. Por isso, depois de 1623, as peças de ‘Shakespeare’

continuaram a sofrer acréscimos, recortes e “aperfeiçoamentos estéticos” para

caber em novos padrões de gosto. Enfim, do ponto de vista dos trabalhos

editoriais, muitos ‘nomes’ associados a textos tornaram-se marcas autorizadoras

ou identificadoras de uma tradição textual – i.e., um corpus de textos

casuisticamente flexível no tempo e no espaço.

Assim, seria um equívoco pensar que usar uma versão facsimilar do fólio de

1623 seria prova de estar mais próximo de algo “autenticamente autoral”, ou

enfatizar os usos de “good” in-quartos com este mesmo propósito, como ainda

ocorre com os trabalhos editoriais de Stanley Wells – ou mesmo a sua pretensão,

ao usar mais recorrentemente os “bad” in-quartos na edição de “The Oxford

Shakespeare”, de aproximar-se do que poderia ter sido um “texto mais

teatral”131. As demandas por “autenticidade autoral”, ou por “autenticidade

performática”, não responderiam ou interfeririam em minhas questões de

129GRAZIA, Margreta de; STALLYBRASS, Peter. “The Materiality of the Shakespearean Text”. Shakespeare Quartely, volume 44, 1993(3): pp.255-283 130Aliás, vale lembrar que, para indiciar as transformações nos patamares de pudor entre os séculos XVI e XVIII, uma estratégia de pesquisa elucidativa que Norbert Elias desenvolveu foi justamente comparar as variações editoriais, ao longo de três séculos, dos “mesmos” tratados de etiquetas, fossem eles anônimos ou associados a determinados ‘nomes’. (Ver: ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, Vol.I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994) 131WELLS, Stanley. “General Introduction”. In The Oxford Shakespeare: The Complete Works. Oxford: Claredon Press, 1998.pp.XV-XXXIX

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pesquisa, mas sim as demandas por autenticidade epocal na materialização

textual das peças. Lembrar isso é fundamental para minha pesquisa, pois justifica

o fato de eu não utilizar a edição not-spelling do projeto editorial “The Oxford

Shakespeare”, publicado originalmente em 1988132, mas sim as edições das peças

disponíveis no sítio virtual da British Library e no sítio Internet Shakespeare

Editions da University of Victoria (Canadá).

No próximo item, pretendo demonstrar a tradição de convenções editoriais

em que se inscreve o projeto editorial “The Oxford Shakespeare” e no que ele se

diferencia de tal tradição. Trata-se de uma estratégia analítica que me permitirá

identificar os padrões hodiernos de materialidade textual que interfeririam na

legibilidade das peças que serão objeto de estudo nos capítulos III e IV. Deste

modo, poderei evidenciar os efeitos potencialmente anacrônicos das convenções

editoriais atuais sobre a tipificação dramática dos caracteres cênicos, morais,

políticos e sociais que compõem as peças “Romeu e Julieta” e “Ricardo III”.

1.4. The Oxford Shakespeare e variações de Legibilidade

O projeto editorial not-spelling “The Oxford Shakespeare” reúne o conjunto

de peças tradicionalmente associadas ao nome ‘Shakespeare’, baseando-se no

fólio de 1623 e em “bad” e “good” in-quartos contemporâneos a Shakespeare.

Embora a edição oxfordiana tenha feito atualizações lexicais para comportar sua

condição not-spelling, isso não descaracterizou as tópicas retóricas que se

inscrevem semanticamente no mundo social de hierarquias e de jogos de distinção

e poder específicos dos séculos XVI e XVII. No entanto, os editores oxfordianos

mantiveram como horizonte de trabalho corrigir “falhas” e eliminar

“ambigüidades” de referentes nos movimentos cênicos propostos pelas antigas

didascálias, o que apagou completamente os vestígios de como o fluxo de leitura

era proposto para o leitor/ouvinte construir mentalmente a ambientação cênica e a

caracterização de alguns personagens.

Originalmente, o projeto oxfordiano foi iniciado pelo “bibliographer”

R.B.MacKerrow, que não viveu tempo suficiente para terminar o trabalho, que passou

então para a chefia editorial de Stanley Wells, que se associou a Gary Taylor, John

Jowett e William Montgomery. Todos eles dividiram entre si o trabalho de

caracterização e estabelecimento textual das peças, fazendo um breve intróito sobre

132WELLS, Stanley; TAYLOR, Gary (eds.). The Oxford Shakespeare: The Complete Works. Oxford: Claredon Press, 1998.

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cada uma do ponto de vista das versões existentes e das possíveis “fontes literárias” que

serviram como base para sua concepção. Stanley Wells escreveu também a “General

Introduction”133, mas nenhuma das peças que utilizo em minha pesquisa ficaram sob

seu trabalho editorial direto. Em relação às peças que utilizo para o desenvolvimento

dos capítulos III e IV, o trabalho dos editores está dividido da seguinte forma: “Ricardo

III” ficou sob incumbência editorial de Gary Taylor; “Romeu e Julieta” ficou com

John Jowett.

Em 1597, surgiu o “bad” in-quarto de “Romeu e Julieta”, que seria fruto de

alguns atores interessados em explorar o sucesso da peça. No entanto, a peça

possivelmente foi escrita em 1594/1595. John Jowett seguiu o protocolo de Stanley

Wells: a versão da edição oxfordiana é baseada no “good” in-quarto de 1599, para a

qual não foi reservada nenhuma “passagem adicional” comparativa com outras edições.

Ainda em 1597, segundo os padrões classificativos dos editores oxfordianos, surgiu o

“bad” in-quarto mais bem impresso que se tem notícia de “Ricardo III”, virtude que

Stanley Wells atribui ao fato de ser possivelmente fruto da memória coletiva da

companhia de Shakespeare134.

A peça “Ricardo III” foi provavelmente delineada fora de Londres entre final

de 1592 e início de 1593. Para compor a edição oxfordiana, foi utilizada basicamente a

estrutura das linhas do “bad” in-quarto de 1597, mas os versos dramáticos são quase

todos baseados no fólio de 1623. Ao final, há uma lista separada de “passagens

adicionais” do fólio de 1623 que não foram incluídas. No entanto, notei que tal lista não

é muito rigorosa, pois nem todas as linhas ou passagens do fólio de 1623 que não foram

utilizadas estão listadas, assim como aquelas que originalmente faziam parte do “bad”

in-quarto de 1597 mas foram eliminadas em favor de linhas do fólio. No final das

contas, trata-se de um “Ricardo III” segundo os gostos e preferências editoriais de

Gary Taylor, não cumprindo o protocolo de Stanley Wells, que dizia oferecer textos

sem misturas inter-editoriais135.

É interessante observar que, nos agradecimentos da edição oxfordiana, são

reconhecidos todos os trabalhos editoriais a partir de Nicholas Rowe, que lançou (entre

1709 e 1714) o cânone editorial que perdura até hoje: listagens de elenco antes das

133WELLS, Stanley. “General Introduction”. In The Oxford Shakespeare: The Complete Works. Oxford: Claredon Press, 1998.pp.XV-XXXIX 134WELLS, Stanley. “General Introduction”. In The Oxford Shakespeare: The Complete Works. Oxford: Claredon Press, 1998.pp.XV-XXXIX 135WELLS, Stanley. “General Introduction”. In The Oxford Shakespeare: The Complete Works. Oxford: Claredon Press, 1998.pp.XV-XXXIX

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peças; sinopses de enredo; didascálias regulares sobre posições e atitudes em cena,

sobre direções de falas e ordens de entrada e saída dos personagens; regularidade nos

nomes de personagens, identificando as suas falas; divisão regular dos textos em atos e

cenas. Cabe lembrar que a divisão do texto em atos e cenas muda completamente o

parâmetro de leitura – o que é ratificado pelo surgimento de listagens de personagens e

sinopses no começo de cada peça –, pois confere aos textos uma disposição mais

próxima da leitura silenciosa de romance e, portanto, menos oralizada ou menos

exigente de memorização. Sobre estes pontos, a título de comparação, considerando as

peças que trabalho nos capítulos III e IV, podemos observar na configuração do fólio de

1623 uma irregularidade formal que não se repetiria depois que o cânone editorial

setecentista fosse estabelecido para elas: em “Ricardo III”, o texto aparece dividido em

atos e cenas de forma regular; em “Romeu e Julieta”, embora na página inicial da peça

apareça “Actus Primus. Scoena Prima”, o texto não está dividido em atos e cenas, tal

como era comum aos in-quartos desta peça que antecederam a edição do fólio.

No entanto, deve-se levar em conta que há um ponto bem específico ao projeto

oxfordiano: mesmo seguindo a tradição editorial do século XVIII em seus aspectos

formais de estabelecimento das peças em página, Stanley Wells imprimiu

preferencialmente os in-quartos “bad” ou “good” contemporâneos a Shakespeare, por

considerá-los “mais teatrais”, confrontando-os com o fólio de 1623, que ele

considerava mais “pós-teatral”. Por isso, em alguns casos, diferentemente de outros

projetos editoriais, os editores oxfordianos lançaram mão com mais profusão dos “bad”

in-quartos, estabelecendo-se ao final de algumas peças uma listagem comparativa de

“Passagens Adicionais”. No entanto, como observamos nos exemplos acima das peças

que utilizo como fontes, tais passagens não seguem um único padrão, pois estão

irregularmente referidas à versão que se escolheu para ser impressa. Assim, tais

passagens adicionais podem ser estratos comparados de in-quartos (“bad” ou “good”,

conforme o caso), do fólio de 1623 ou de reportados manuscritos e esboços do “autor”,

buscando-se com isso dar ao leitor a “visão mais teatral possível” de alguns textos.

Todo este esquema de classificação textual tornou-se cânone acadêmico a partir

da década de 1930, com o trabalho bibliográfico de R.B.MacKerrow, sistematizado em

“The Elizabethan Printer and Dramatic Manuscripts”136. Não é necessário retomar aqui

as críticas, já apresentadas anteriormente, de David S. Kastan a respeito destas

136Sobre isso, ver: TROUSDALE, Marion. “A Second Look at Critical Bibliography and the Acting of Plays”. Shakespeare Quartely, volume 41, 1990(1): pp.87-96

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hierarquizações de juízos sobre os textos associados ao nome ‘Shakespeare’, pois, como

se viu, estão basicamente ancoradas numa visão de autoria ou “autenticidade autoral”

que é anacrônica. Por isso mesmo, ao referir-se ao seu próprio projeto editorial, nada

mais normal para Stanley Wells do que afirmar que os editores tentaram apresentar as

peças de ‘Shakespeare’ “com tanto mais fidelidade em relação às suas intenções quanto

permitam as circunstâncias nas quais foram preservadas”137. Portanto, além de

considerar que é possível deduzir palco(stage) de página(page), o projeto editorial

oxfordiano pressupõe a disponibilidade para nós das “intenções autorais”, desde que se

possa realizar um estudo comparado que inclua os in-quartos e manuscritos (ou

transcritos) contemporâneos ao “autor”, assim como o fólio de 1623.

Deve-se notar que, mesmo considerando que Gary Taylor não tenha sido

rigoroso no cumprimento do protocolo de Stanley Wells, este editor tentou praticar algo

novo em termos de tradição editorial: não misturar partes de edições diferentes de uma

“mesma” peça para estabelecer um texto supostamente mais “completo”. Portanto,

como plano editorial geral, houve uma tentativa de preservar o caráter ocasional das

versões escolhidas como base de edição, tanto é verdade que um dos desdobramentos do

protocolo de Stanley Wells foi oferecer duas versões de uma “mesma” peça: no caso, a

escolhida foi “Rei Lear”.

Obviamente, uma edição “not-spelling” dos textos associados ao nome

‘Shakespeare’ não deixa de enfrentar problemas de padronização lingüística e de

tessitura textual. Em relação a isso, Stanley Wells afirma que foram feitas emendas

editoriais que ora seguiram as sugestões de trabalhos editoriais anteriores –

reportadamente, a partir de Nicholas Rowe –, ora seguiram critérios criados pelos

próprios editores do projeto oxfordiano, ora se voltaram para os “textos originais” (ou

seja, os textos impressos do final do século XVI e início do XVII, incluindo o fólio de

1623) quando se discordou da forma que foi dada às emendas em projetos editoriais

anteriores ao oxfordiano. Por isso, em sua introdução à edição oxfordiana, Stanley

Wells chama a atenção para uma série de escolhas tipográficas, topográficas e

lingüísticas específicas ao seu projeto editorial. Sobre isso, vejamos um exemplo

retirado de “Romeu e Julieta”, quando Teobaldo confronta-se com Benvoglio:

“TYBALT What, draw and talk of peace? I hate the word

“TEOBALDO O quê?! Sacas a espada e falas de paz?!

137WELLS, Stanley; TAYLOR, Gary (eds.). The Oxford Shakespeare: The Complete Works. Oxford: Claredon Press, 1998.p.XV 138WELLS, Stanley; TAYLOR, Gary (eds.). The Oxford Shakespeare: The Complete Works. Oxford: Claredon Press, 1998.p.337

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As I hate hell, all Montagues, and thee. Have at thee, coward.

They fight. Enter three or four Citizens of the watch , with clubs or partisans

CITIZENS OF THE WATCH Clubs, bills and partisans! Strike! Beat them down! Down with the Capulets. Down with the Montagues.

Enter Capulet in his gown, and his Wife CAPULET

What noise is this? Give me my long sword, ho! CAPULET’S WIFE

A crutch, a crutch – why call you for sword?”138

Eu odeio tal palavra, assim como odeio o inferno, todos os Montéquios e a ti. Tome isso, covarde!

Eles lutam. Entram três ou quatro Cidadãos da sentinela , com porretes e lanças

CIDADÃOS DA SENTINELA Porretes, coltelos e lanças! Atacai! Abatei a todos eles! Acabai com os Capuletos! Acabai com os Montéquios!

Entram Capuleto (vestido em sua toga) e sua Esposa SENHOR CAPULETO

Que barulheira é essa! Dê-me minha longa espada, anda! SENHORA CAPULETO

Uma muleta, uma muleta! Porque clamai pela espada?”

Veja como o mesmo trecho aparece na edição que serviu de base para a edição

oxfordiana (Q2, 1599), confrontado com a edição do fólio de 1623:

Q2, 1599:

Tib. What drawne and talke of peace? I hate the word, as I hate hell, all Mountagues and thee: Haue at thee coward.

Enter three or foure Citizens with Clubs or partysons. Offi. Clubs, Bils and Partisons, strike, beate them downe,

Downe with the Capulets, downe with the Mountagues. Enter old Capulet in his gowne, and his wife.

Capu. What noyse is this? giue me my long sword hoe. Wife. A crowch, a crowch, why call you for a sword?139

Fólio de 1623:

Tyb. What draw, and talke of peace? I hate the word As I hate hell, all Mountagues, and thee: Haue at thee Coward.

Fight. Enter three or foure Citizens with Clubs.

Offi. Clubs, Bils, and Partisons, strike, beat them down Downe with the Capulets, downe with the Mountagues.

Enter old Capulet in his Gowne, and his wife. Cap. What noise is this? Giue me my long Sword ho. Wife. A crutch, a crutch: why call you for a Sword?140

No projeto editorial oxfordiano, a mancha textual de cada página está dividida

em duas colunas, tal como no fólio de 1623. No trecho citado acima do projeto

oxfordiano, reproduzi exatamente os mesmos padrões de recuo e marcas tipográficas de

cada conjunto de linhas, fazendo o mesmo em relação ao Q2 e ao fólio. Assim, podemos

observar que:

(1) No projeto editorial oxfordiano, os nomes de personagens aparecem em ‘caixa alta’ como marcas bem visíveis para as suas falas e se situam no limite esquerdo de cada coluna, mas a ‘caixa alta’ não é mantida quando o nome dos personagens aparece dentro das falas ou nas didascálias. Nos primeiros in-quartos e no fólio de 1623, porém, os nomes próprios

139CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.p.5 140JAGGARD, Isaac; BLOUNT, Edward. Mr. William Shakespeares Comedies, Histories, & Tragedies. London: Iaggard-Blount, 1623.p.53 (paginação irregular)

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estão quase sempre em itálico e nunca aparecem em ‘caixa alta’, estejam eles inteiros (quando são referidos dentro das falas ou nas didascálias) ou abreviados (quando demarcam as falas a partir de um breve recuo em relação à margem esquerda da mancha textual)141. Além disso, não era incomum que, em alguns “bad” in-quartos, os personagens indiferenciados (i.e., que não possuíam nomes próprios), quando se confrontavam em cena – geralmente como pendant para a entrada dos personagens com nomes próprios –, fossem nomeados nas didascálias por suas funções e, quando apareciam suas falas, fossem demarcadas por números (em itálico ou não), igualmente situados (com um breve recuo) na margem esquerda da mancha textual. (2) No projeto oxfordiano, as palavras em itálico são exclusivamente utilizadas para diferenciar visualmente nas páginas as didascálias. Nas experiências editoriais dos primeiros in-quartos e do fólio de 1623, elas eram também diferenciadas em página com itálico. No entanto, o formato oxfordiano tende a propor didascálias mais detalhadas e algumas hipotéticas. Neste último caso, aparecem entre semi-colchetes, pois são sugestões de emendas textuais específicas do projeto oxfordiano, cujas referências ou explicações estão baseadas em dedução intratextual, ou comparação intereditorial. No entanto, confrontando as edições que utilizo em minha pesquisa e que serviram de base para o projeto oxfordiano, pude notar que não é muito rigorosa a explicitação das didascálias hipotéticas através de semi-colchetes, o que pode induzir o leitor a acreditar que aquilo que não está em semi-colchetes estaria reproduzindo as didascálias das edições que serviram de base para o projeto oxfordiano. De qualquer forma, deve-se notar que o seu horizonte comparativo são os primeiros in-quartos de cada peça e o fólio de 1623. (3) Além disso, considerando os trechos selecionados acima, podemos perceber que as complementações das didascálias entre semi-colchetes pode restringir os significados possíveis para um movimento cênico. Assim, quando a edição oxfordiana afirma que os “cidadãos” que entram em cena são da sentinela, elimina a possibilidade de imaginarmos que poderiam ser mais partidários dos Montéquios e dos Capuletos que estariam entrando armados quando inicia a confrontação entre Benvoglio e Teobaldo, formando, então, um alarido de guerra civil em “palco/página” que somente seria quebrado com a entrada da comitiva do príncipe Escalo. (4) As didascálias do projeto editorial oxfordiano, quando não aparecem entrecortando (com parênteses ou semi-colchetes) as falas de personagens, formam o recuo mais distante em relação à margem esquerda da mancha textual. Neste ponto, são semelhantes à configuração encontrada nos primeiros in-quartos e no fólio de 1623. (5) No projeto editorial oxfordiano, as falas de personagens aparecem, na maioria das vezes, num conjunto de linhas separadas dos nomes em ‘caixa alta’ que as demarcam, situando-se a partir de um recuo intermediário entre tais nomes e aquelas didascálias (sempre em itálico) que não as entrecortam. Nos primeiros in-quartos e no fólio de 1623, as falas vêm sempre na mesma linha em que aparecem os nomes em itálico que as demarcam e, se ultrapassam a capacidade espacial da linha, continuam na seguinte, sem recuo, a partir da margem esquerda da mancha textual. Portanto, a configuração visual das páginas dos primeiros in-quartos e do fólio

de 1623 era bastante distinta daquela proposta no projeto oxfordiano, mas tinham a

mesma pretensão de demarcar algum tipo de distinção visual para as didascálias, a fala

de personagens e os seus nomes. No entanto, considerando apenas as peças que utilizo

nos capítulos III e IV, ao comparar as suas versões nos in-quartos, no fólio de 1623 e no

projeto oxfordiano, há por vezes muita variação na composição das linhas e na sua

configuração em página, o que significa que nem sempre todas as linhas apresentadas

numa edição são necessariamente versos poéticos – ou que foram originalmente

141Das versões editoriais das peças em que trabalho, o único caso em que os nomes de personagens não aparecem em itálico

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editados para serem entendidos deste modo. Algumas vezes, se pensarmos no exemplo

de “Romeu e Julieta” em Q2 e no fólio de 1623, personagens cômico-vulgares (a

Ama), ou que se travestem momentaneamente de um self cômico-vulgar (Mercutio),

têm as suas falas deliberadamente representadas em página na forma de prosa. Ora, a

legibilidade de suas falas muda completamente quando, por exemplo, o projeto

oxfordiano dá para tais falas uma configuração de versos poéticos. Veja um exemplo de

fala da Ama de Julieta tal como é (re)apresentada no projeto oxfordiano e como é

representada, respectivamente, no Q2 e no fólio de 1623:

NURSE Even or odd, of all days in the year Come Lammas Eve at night shall she be fourteen. Susan and she – God rest all Christian souls! – Were of an age. Well, Susan is with God; She was too good for me. But, as I said, Oh Lammas Eve at night shall she be fourteen,[....]142

AMA Par ou impar, de todos os dias do ano, na noite de 1 de agosto, Festa da Colheita, terá quatorze anos Julieta. Susana e ela (Que Deus dê descanso a todas às almas !) tinham um ano de idade. Bem, Susana está com Deus – ela era tão boa comigo... –, mas, como eu dizia, (Oh, Festa da Colheita !) terá quatorze anos Julieta,[...]

Q2, 1599: Nurse. Euen or odde, of all daies in the yeare come Lammas Eue at

night stal she be fourteen. Susan and she, God rest all Christian soules, were of an age. Well Susan is with God, she was too good for me: But as I said, on Lammas Eue at night shall she be fourteene,[...]143

Fólio de 1623: Nurse. Euen or odde, of all daies in the yeare come

Lammas Eue at night shall she be fourteene. Susan & she, God rest all Christian soules, were of an age. Well Susan is with God, she was too good for me. But as I said, on La-mas Eue at night shall she be fourteene,[...]144

A edição oxfordiana das falas da Ama apaga completamente as configurações

editoriais de Q2 e do fólio de 1623, dando-lhes uma forma editorial mais próxima

do cortês-engenhoso do que do cômico-vulgar. As edições do Q2 e do fólio de

1623, por meios tipográficos distintos, pretendiam demarcar uma visualidade em

página que enfatizasse os primeiros momentos do carácter cômico-vulgar da Ama,

configurando a sua fala como prosa. Quando a edição oxfordiana transforma em

versos poéticos a fala da Ama, a sua caracterização como personagem cômico e

vulgar perde o reforço visual que existia na materialidade textual do Q2 e do fólio

de 1623. Nestas edições, tanto não há originalmente uma preocupação de dar à

fala da Ama a materialidade dos versos poéticos que o modo de localizar as

dentro das falas em nenhum momento é o “bad” in-quarto de 1597 de “Ricardo III”. 142WELLS, Stanley; TAYLOR, Gary (eds.). The Oxford Shakespeare: The Complete Works. Oxford: Claredon Press, 1998.p.340 143CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.p.13 144JAGGARD, Isaac; BLOUNT, Edward. Mr. William Shakespeares Comedies, Histories, & Tragedies. London: Iaggard-Blount, 1623.p.56 (paginação irregular)

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palavras nas linhas não tem o mesmo enquadramento topográfico. Tal tese pode

ser reforçada ao revés: comparando os momentos de falas corteses da peça

“Romeu e Julieta” em Q2 e no fólio de 1623, a sua maioria não sofre alteração

no modo como foram recortadas as linhas – i.e., na disposição topográfica das

palavras, por linha, com o objetivo de formar versos poéticos. Outro detalhe

também chama a atenção: embora a fala em prosa da Ama não tenha os mesmos

recortes de linha em Q2 e no fólio de 1623, em ambas as edições foi conservada a

perspectiva de distinguir, em página, o self cômico-vulgar da Ama através de

artifícios tipográficos e topográficos. Vejamos:

(1) No caso do trecho citado de Q2, o nome “Nurse” aparece em românico e sua fala em itálico, mas todos os nomes próprios que aparecem em seu interior são deixados em românico – o que denota uma deliberada inversão na materialização das linhas em comparação à materialidade do conjunto textual maior desta edição. (2) No fólio de 1623, foi mantido um padrão já assinalado anteriormente: “Nurse” em itálico, assim como os nomes próprios no interior de sua fala; e esta foi mantida completamente em padrão tipográfico românico. (3) Comparando fólio e Q2, há neste último um impacto visual muito maior para as primeiras falas da Ama, pois, além de terem sido configuradas como prosas, houve a deliberada inversão entre as letras itálicas e românicas no modo de representar, em página, a presença do self cômico-vulgar da Ama. As convenções tipográficas e topográficas do projeto oxfordiano criam (ou

reforçam) um hábito específico de ‘olhar a página’ que está mais claramente

relacionado com a forma silenciosa de leitura que busca significados fixos para os

textos. Logicamente, isso demonstra um paradoxo em relação à pretensão de Stanley

Wells de oferecer, quando possível, uma versão “mais teatral” das peças. Como

podemos notar, cada nova edição (materialidade textual) de peça deve ser lida como

uma unidade textual-criativa de valor próprio, devendo-se abandonar a pretensão

metafísica de encontrar/produzir um texto “melhor” ou mais “perfeito” a partir da fusão

ou sobreposição de edições. No entanto, dizer isso não significa abrir mão da

possibilidade de comparar edições de peças contemporâneas a Shakespeare para

perceber se há recorrências na forma de se caracterizar alguns personagens, ou seja, se

as consciências editoriais configuradoras do texto de uma peça mantiveram ou não uma

mesma legibilidade para determinados personagens. Vejamos os exemplos que se

seguem: DANTER, John; ALLDE, Edward. An excellent conceited tragedie of Romeo and Iuliet. London: Danter-Allde, 1597.p.5

CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.p.5

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SIMMES, Valentine; LING, Nicholas. The tragicall historie of Hamlet Prince of Denmarke, by William Shake-speare. London: Simmes-Ling, 1603.p.1

ROBERTS, James; LING, Nicholas. The tragicall historie of Hamlet, Prince of Denmarke, by William Shakespeare. London: Roberts-Ling, 1604-05.p.3

Nas fotografias acima apresentadas, podemos observar as páginas iniciais dos

primeiros “bad” e “good” in-quartos de “Romeu e Julieta” (1597 e 1599) e “Hamlet”

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(1603 e 1604-05). Propositalmente, escolhi as duas primeiras edições de cada uma

dessas peças porque são diferenciadas pela crítica erudita oxfordiana como pares

editoriais de versões mais oralizadas e menos oralizadas de “Romeu e Julieta” e

“Hamlet”. Quando as confrontamos, podemos perceber que alguns personagens

principais do enredo nunca são identificados de forma inespecífica (por exemplo,

número em vez de nome próprio ou de outras máscaras sociais-morais).

No Q1 de “Romeu e Julieta”, os servidores da casa Capuleto são designados na

didascália como genéricos bufões jactantes (“Seruing-men of the Capolets”) e suas falas

são marcadas com os números “1” e “2”, enquanto no Q2 eles adquirem nomes próprios

(“Sampson and Gregorie”), sem que isso altere o fato de que são genéricos bufões

jactantes postos em cena para dar pretexto para uma confrontação bélica motivada por

ninharia pouco nobilitante e, deste modo, explicitar o mecanismo descontrolado – e

subversivo às hierarquias sociais – da guerra civil, tal como descrito pouco antes pelo

primeiro prólogo. Portanto, é pelo efeito da comparação intereditorial que podemos

perceber com mais clareza, nas páginas posteriores, que personagens como Benvoglio,

Teobaldo, Príncipe Escalo, Senhores e Senhoras Capuleto e Montéquio são sempre

identificados por nomes próprios ou máscaras sociais-morais em vez de números, o que

diferencia o seu status na trama.

O mesmo argumento vale para a peça “Hamlet”, em que os sentinelas são

designados genericamente na didascália (“two Centinels”) do Q1 e têm as suas falas

identificadas com os números “1” e “2”. Aliás, vale a pena destacar que tal didascália

sofre uma espécie de descaracterização anacrônica (possivelmente de leitor,

colecionador ou arquivista do século XIX), já que foi inserida ao seu lado, em bico de

pena, uma chave explicativa em que se lê: “Agora chamados Bernardo e Francisco”.

Veja isso em detalhe nas fotografias abaixo, que são, respectivamente, do Q1 e Q2 de

“Hamlet”:

Efetivamente, é no Q2 que faz parte do projeto editorial designar os sentinelas

com nomes próprios (“Barnardo, and Francisco”). Deste modo, é pelo efeito da

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comparação intereditorial que podemos perceber mais claramente o status dramático

dos personagens Horácio e Marcelo, que são identificados em ambas as edições por

nomes próprios em vez de números. Portanto, mesmo considerando que cada edição

tenha sua independência discursiva, a percepção de que alguns personagens são centrais

para o desenrolar da trama, ou para a sua moralização, fica mais evidenciada através da

comparação. Além disso, a comparação possibilita identificar, através da variação

gráfico-fonética entre uma edição e outra de peças, alguns deslocamentos semânticos

que, para os hábitos gráfico-fonéticos do inglês atual, poderiam permanecer

imperceptíveis145.

Ao fazer tal trabalho de confrontação de materialidade textual, pude notar que

é inconsistente afirmar que alguns dos primeiros in-quartos de ‘Shakespeare’

teriam didascálias “ambíguas” ou “incompletas”, quando na verdade deveríamos

considerar que os textos seguem um hábito de leitura que não é mais o nosso. A

consciência editorial organizadora do texto, mesmo nas ditas edições mais

“oralizadas” das peças de ‘Shakespeare’, configuram uma distinção visual nas

páginas que possibilita ao leitor (de ontem e de hoje) diferenciar falas e funções

dos personagens. Por outro lado, na maioria das vezes em que há muitos

personagens em cena, é possível deduzir as direções cênicas de suas falas e os

movimentos de entrada e saída através do próprio desenrolar das falas, o que

explica aquilo que, segundo os hábitos hodiernos de leitura, pareceriam

didascálias “sumárias”, “ausentes” ou “incompletas”.

Como as peças impressas não são romances, a construção mental dos

movimentos cênicos ocorre tentativamente durante a leitura das falas. No entanto, as

edições atuais, tal como podemos observar no projeto oxfordiano, tendem a reduzir tal

esforço de atenção ao antecipar, com a inserção de novas didascálias, quase todos os

movimento cênicos que, de qualquer forma, seriam expressos ou deduzidos através das

falas. Portanto, projetos editoriais como o oxfordiano apagam completamente o padrão

de leitura das edições em que se baseiam, reconfigurando a sua legibilidade para um

novo padrão de leitura/leitor, e recriam para as peças uma nova teatralidade. Dizer isso

145Ver sub-item “Word” em: GRAZIA, Margreta de; STALLYBRASS, Peter. “The Materiality of the Shakespearean Text”. Shakespeare Quartely, volume 44, 1993(3):pp.255-283. Ver também a tradição de debate da crítica literária e bibliográfica sobre a relação entre “sun” e “son” nas versões de “Ricardo III” em: HAMMERSMITH, James P.. “This son of Yorke: Textual and Literary Criticism again”. Shakespeare Quartely, volume 37, 1986(3):pp.359-365. Um trabalho mais recente de análise dos deslocamentos semânticos e neologismos no vocabulário shakespeareano é: KERMODE, Frank. A Linguagem de Shakespeare. Rio de Janeiro: Record, 2006 (2000). Este trabalho de Kermode, em certa medida, enriquece os pontos levantados por De Grazia e Stallybrass no sub-item “Word”, pois demonstra as possíveis perdas semânticas que podem acontecer quando um editor tenta “clarificar o texto” para um leitor hodierno através de sinônimos (ou de supostos sinônimos), questão que também se resvala para a difícil arte de traduzir.

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não significa afirmar que não haja nos in-quartos e no fólio de 1623 erros editoriais

quanto ao modo de definir a localização da fala para o nome de um personagem. No

entanto, quando comparamos edições diferentes de uma “mesma” peça, devemos ter o

cuidado de não considerar “erro”, principalmente no caso de caracteres secundários, a

troca de um personagem por outro na composição de uma cena. Geralmente, os

personagens “trocados” possuem marcas posicionais equivalentes: em “Ricardo III”,

por exemplo, muitas ações que são atribuídas a Sir William Catesby no in-quarto de

1597 são atribuídas a Sir Richard Ratcliffe no fólio de 1623.

No projeto editorial oxfordiano, há especificamente duas formas de convenção

tipográfica/topográfica a que nos habituamos e que considero também interferirem na

legibilidade das peças: (1) o destaque em caixa-alta, dado ao nome dos personagens,

quando referido às suas falas; (2) a listagem de personagens no começo de cada peça.

Esta última é um indício significativo de mudança não apenas da prática de leitura de

peças impressas, mas também, num sentido mais abrangente, das práticas sociais desde

o advento do fólio de 1623. Devemos lembrar que, entre 1594 e 1637, a única

ocorrência documental de in-quartos associados ao nome ‘Shakespeare’ em que aparece

uma lista de personagens (The Actors Names”146) antecipando o corpo da peça é a

edição de 1637 de “O Mercador de Veneza”. Vejamos:

146“Names” é o nome que o ator vai ter em cena, ou seja, é a máscara posicional que encarna na trama. Uma tradução literal poderia induzir ao que entendemos hoje como “lista de elenco” (Cast), ou seja, a relação dos atores contratados para assumirem personagens de uma trama.

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Esta topografia editorial tornar-se-ia um padrão depois da edição de “The

Works of Mr. William Shakespear; Revis'd and Corrected”(6 vol., 1709; 9 vol.,

incluindo poemas, 1714), de Nicholas Rowe (1674-1718). No caso do fólio de 1623, de

forma ainda bastante irregular, a lista de personagem aparece em sete peças e, mesmo

assim, situada ao final de cada texto. Esta variação topográfica no fólio de 1623 não

pode ser ignorada por nós, pois pode estar relacionada a uma forma específica de

conceber personagens para o plano de ação das peças147. Lembrar isso é uma forma de

evitar anacronismos quando se lida com a convenção editorial oxfordiana, pois os

hábitos editoriais contemporâneos de destacar os nomes de personagens, assim como de

antecipar sinopses e listas de personagens ao corpo das peças, inscrevem-se numa

legibilidade em que os personagem são tomados como identidades psicológicas de

ação, quando na verdade eles foram concebidos como identidades ou marcas

posicionais de ação148. Portanto, como já foi dito, algumas aparentes ambigüidades de

referências para nomes próprios, as trocas de falas de personagens entre uma edição e

outra de peças da época de Shakespeare, ou a simples omissão de nomes (o uso de

números a que me referi acima) não devem ser encaradas, a partir dos critérios

contemporâneos de depuração textual, como “insuficiências tipográficas” ou “textuais”

que “devam ser corrigidas”.

Além disso, devem ser consideradas outras questões que interferem na

legibilidade da edição oxfordiana. Entre os séculos XVI e XVIII, os critérios de

pontuação textual eram vistos muito mais como uma tarefa de editor (e de escribas e

preparadores de “prompt-books”, no caso das companhias teatrais) do que propriamente

de “autor”. Além disso, a sintaxe do inglês era muito mais fluida do que a atual. Por

isso, a aplicação inadvertida do sistema atual de regra gramatical de pontuação geraria

problemas sérios de compreensão dos textos impressos de peças teatrais, pois o sistema

imporia uma definição unívoca e reduziria a ambigüidade de um universo textual que,

por excelência, é propositalmente plástico. Certamente, tais dilemas são vividos com

mais intensidade no trabalho de tradução para outro idioma contemporâneo (no meu

caso, a língua portuguesa), pois o tradutor – a partir das escolhas de sentidos dos

editores elizabetanos e jacobitas – tenderá a fazer seleções de significados que acabam

147GRAZIA, Margreta de; STALLYBRASS, Peter. “The Materiality of the Shakespearean Text”. Shakespeare Quartely, volume 44, 1993(3): p.267 148CARLSON, Marvin. Teorias do Teatro. São Paulo: UNESP, 1997.pp.13-190

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por depurar a ambigüidade semântica (no uso de determinados termos e expressões) que

somente pode ser percebida na leitura em inglês149.

Levando em consideração a necessidade de preservar as margens de

ambigüidade semântica das peças teatrais, os editores oxfordianos resolveram não

aplicar a concepção sistêmica hodierna de pontuação gramatical na sua edição. No

entanto, foram atualizados determinados usos que hoje dificultariam a compreensão de

algumas sentenças: por exemplo, o hábito de usar o ponto “?” tanto para interrogação

quanto para exclamação, assim como certos usos idiossincráticos de parênteses. Como

princípio geral, os editores oxfordianos trabalharam a pontuação das peças

completamente a partir dos textos da época de Shakespeare, não utilizando as sugestões

de outras edições. Assim, neste ponto do trabalho editorial, constituíram seus próprios

critérios de escolha. Como afirma Stanley Wells, algumas atualizações de pontuação

devem ser entendidas essencialmente como “indicações leves” (light pointings), em vez

de significarem a imposição da moldura gramatical contemporânea150. De qualquer

forma, mesmo que “leve”, tal moldura impõe ao texto uma nova materialidade que

interfere na percepção de sua leitura, pois, por exemplo, apaga as marcas específicas de

recitação características das formas editoriais dos períodos elizabetano e jacobita.

As demandas de atualização e padronização textual do projeto editorial “not-

spelling” oxfordiano foram cumpridas seguindo o critério básico de não

descaracterizar aquilo que Stanley Wells chamou de “linguagem de Shakespeare”.

Assim, alguns termos não foram alterados, por exemplo: ay não se tornou yes; ye

não se tornou you; eyne não se tornou eye; hath não se tornou has. No entanto,

todas as vezes que “ay” aparece como “I” nos textos de base, para não haver

confusão com o pronome “I”(Eu), foi editado como “ay”. Além disso, alguns

prefixos, inflexões e elisões foram mantidos, mesmo que atualmente fossem

obsoletos; quando algumas palavras ou prosódias terminadas em “-ed” requeriam

alongamento de pronúncia, usou-se o acento grave (ex.: formèd, movèd) como

marca tipográfica. Deve-se considerar também que palavras que apareciam num

mesmo texto com grande variação de pronúncia ou solução gráfica, e que

poderiam atualmente levar a interpretações equivocadas, foram padronizadas,

149Ver estudo comparado dos primeiros in-quartos de “Ricardo III”, assim como a sua versão editorial no fólio de 1623 em: HAMMERSMITH, James P.. “This son of Yorke: Textual and Literary Criticism again”. Shakespeare Quartely, volume 37, 1986(3):pp.359-365. Ver também o subitem “words” em: GRAZIA, Margreta de; STALLYBRASS, Peter. “The Materiality of the Shakespearean Text”. Shakespeare Quartely, volume 44, 1993(3): pp.255-283 150WELLS, Stanley. “General Introduction”. In The Oxford Shakespeare: The Complete Works. Oxford: Claredon Press, 1998.pp.XV-XXXIX

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tendo como critério um termo correspondente que também aparecesse no texto

original e cujo sentido fosse comum à compreensão hodierna. Assim, por

exemplo, usou-se “ensign” em vez de “ancient”, quando o sentido deste último se

referia a níveis militares, da mesma forma que se substituiu por “ensign” todas as

variações gráficas e fonéticas de “ancient”(aunciant, auncient, auntient, etc). Tal

critério, reconhece Stanley Wells, era novo em relação à tradição editorial até

então seguida, mas foi avaliado como necessário para se evitar equívocos para um

leitor comum atual.

No entanto, como regra geral, não se mexeu em expressões ou palavras que

pudessem alterar a métrica, embora seja verdade afirmar que os editores

oxfordianos recriaram a configuração métrico-espacial de algumas falas, o que

interfere negativamente, como notamos no caso da Ama em “Romeu e Julieta”,

na caracterização de alguns personagens. Esta preocupação editorial com a

métrica é outro detalhe importante para a minha análise das peças, já que a

estrutura de versificação participa muitas vezes da caracterização social e cênica

de certos personagens e, portanto, está implicada com o seu status e aquele de seu

interlocutor (outro personagem, o coro ou a própria ‘audiência/leitor’). Nesse

sentido, embora o texto teatral impresso não reflita a realidade cotidiana de uma

sociedade como um jogo simples de espelhamento, isso não nos leva

necessariamente a uma leitura anti-referencialista, pois o formulário retórico de

um texto não é uma entidade radicalmente autônoma em relação a seus modos de

usos e preenchimentos semânticos, que estão necessariamente referidos a práticas

sociais de uma época151.

O uso das formas prosa e poesia nas falas teatrais do Renascimento estava

ligado, em várias ocasiões, à encenação das hierarquias sociais e configuração de tipos

cênicos: a primeira é configurada para (1) caracterizar cenicamente personagens

“vulgares”, para (2) representar situações de maior intimidade entre personagens

(corteses ou vulgares) ou para (3) figurar, em alguma medida, perda ou ausência de

deferência entre eles; a segunda forma é basicamente reservada para (i) os personagens

“corteses” e (ii) para as situações que exigem um jogo retórico de deferência152. Ao

afirmar isso, podemos medir o quanto que edições contemporâneas e traduções que

151Sobre esta discussão, ver exemplo de: HANSEN, João Adolfo. A Sátira e o Engenho: Gregório de Matos e a Bahia do Século XVII. São Paulo: Ateliê Editorial/UNICAMP, 2004. pp.29-190 152BRUSTER, Douglas. “The Politics of Shakespeare’s Prose”. In Rematerializing Shakespeare: Authority and Representation on the Early Modern English Stage. New York: Palgrave Macmillan, 2005.pp.95-114

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alterem a estrutura tipográfica e topográfica das peças de finais do século XVI e início

do XVII podem apagar completamente uma leitura social específica presente na

dinâmica dos personagens em algumas situações e que seria visualmente óbvia para um

leitor desta época que fosse minimamente acostumado com as convenções tipográficas,

topográficas e retóricas do mercado editorial.

Portanto, os usos de tais formas podem variar quando, em dada circunstância,

um personagem (“cortês” ou “vulgar”) encena posturas e humores de deferência, de

insolência, de incontinência cômica, de deliberado desrespeito ou de censura (séria ou

cômica) perante o seu interlocutor153. Além disso, como demonstra a tratadística cortesã

nos séculos XVI e XVII, as formas de expressão de oralidade contavam no modo como

as hierarquias sociais seriam encenadas (no palco do teatro ou no “teatro do mundo”),

representando assim as distinções estamentais, principalmente contra parvenus154.

Como não compartilhamos mais os mesmos referentes culturais de distinção social,

pode passar despercebido o quanto é risível um personagem usar uma “fala cortês”, por

exemplo, com um criado ou dono(a) de taberna – é inevitável não lembrar de “Dom

Quixote” –, em vez de usá-la para seu equivalente ou superior em posição.

Nos séculos XVI e XVII, o leitor implícito nos in-quartos ainda não demanda a

antecipação do personagem como uma unidade psicológico-ontológica do discurso, pois

entende os personagens como alegorias morais e/ou – quando mais individualizados por

nomes próprios e nos planos de ação – como metonímias ou máscaras sociais referidas a

nível, família, honra, gênero e idade – estes sim considerados como fatores

determinantes em sua figure-action, edificação ou auto-edificação. Não se figurar

adequadamente torna um personagem objeto de censura (cômica ou séria). Num dos

trechos de “Romeu e Julieta” citados anteriormente, pudemos observar que a Senhora

Capuleto censura (com efeito cômico) o marido que, já avançado em idade, pede de

forma fálica e viril a sua “longa espada” (guerra/impetuosidade/juventude); a isso ela

contrapõe, desfalicamente, a “muleta” (placidez/circunspecção/velhice). A alusão à

“muleta”(crutch) informa o instrumento/comportamento mais adequado a um velho – e

é a inversão da idéia de guerra ou luta corporal, que seria uma coisa mais própria a

153Ver: WRIGHT, George T.. “An almost oral art: Shakespeare’s language on the stage and page”. Shakespeare Quartely, volume 43, 1992(2): p.168; KERMODE, Frank. A Linguagem de Shakespeare. Rio de Janeiro: Record, 2006 (2000). Para comparação, ver também: ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, vol.I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994; ELIAS, Norbert. Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001; BOUZA, Fernando. Palabra e Image en la Corte: Cultura oral y visual de la nobleza en el Siglo de Oro. Madrid: Abada, 2003. 154Ver: BOUZA, Fernando. “‘Si habla...’: El Ideal Cortesano de la Voz”. In Palabra e Image en la Corte: Cultura oral y visual de la nobleza en el Siglo de Oro. Madrid: Abada, 2003.pp.35-48

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jovens impetuosos e viris. Ora, este mesmo elemento, como notara Ian Watt, também

tornava particularmente risível o livresco e fantasista senhor De la Mancha155.

No contexto de Shakespeare, o ponto central para o desenrolar do enredo de uma

peça refere-se tanto ao modo como a posição do personagem é posta em ação (seja por

suas escolhas pessoais, seja pelas escolhas alheias) quanto à maneira como tal posição é

honrada ou desfigurada (unfashioning) por tal ação, constituindo um efeito moralizante

específico ao final de cada versão de drama. Logicamente, esta forma posicional de

conceber personagens está inscrita numa tradição teatral que não é exclusiva aos “poetas

cênicos” da época de Shakespeare156. No entanto, considero possível identificar

preenchimentos semânticos a esta tradição textual que são específicos da configuração

social de onde emergiram as peças da companhia de Shakespeare.

Como poderemos notar mais claramente nos próximos capítulos, tal forma

posicional de conceber figuras e caracteres de ação (seja para o drama no palco, seja

para o “teatro do mundo”) não é incompatível, como bem notaram Elias e Maravall,

com a emergência de formas mais individualizadas – i.e., com interioridade – de

personagens, que estão contextualmente implicadas com o surgimento das formas

estatais de configuração da sociedade patrimonial-estamental157. Por isso, é anacrônico

associar a noção liberal de individualismo ao aflorar do indivíduo nas peças da

companhia de Shakespeare.

Nos estudos literários, como ainda podemos constatar no fazer dos editores

oxfordianos, um dos efeitos da expectativa romântico-liberal de individuação é a

fascinação de encontrar Shakespeare como um “autor isolado e inspirado”, o que levou

muitas gerações de leitores e pesquisadores a ignorarem que ele jamais escrevera livros,

que ele não estabeleceu o cânone autoral do fólio de “obras reunidas” para peças

teatrais, que ele não criou listagem de personagens para peças impressas e nem

concebeu personagens como unidades psicológicas dramáticas.

Embora alguns personagens centrais se destaquem pelo seu maior ou menor grau

de interioridade – particularmente quando demonstram autodistanciamento e reflexão

sobre a sua própria condição, sentimento e ação (neste ponto, o primeiro solilóquio de

Julieta e muitos proferidos por Ricardo III tornam-se exemplares) –, são as questões

155Ver: WATT, Ian. Mitos do Individualismo Moderno: Fausto, Dom Quixote, Dom Juan, Robinson Crusoe. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. 156Ver: CARLSON, Marvin. Teorias do Teatro. São Paulo: UNESP, 1997.pp.13-190 157MARAVALL, José Antônio. Cultura do Barroco. São Paulo: EdUSP, 1997; MARAVALL, José Antonio. Estado moderno y Mentalidad Social, 2 vols.. Madrid: Alianza, 1986; ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, 2 vols.. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

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relativas aos seus caracteres sociais, morais e cênicos – i.e., se suas escolhas

individuais e sua (auto-)edificação representam a realização ou a ameaça à honra, à

dignidade do nome, à posição social e à estabilidade das demais instituições sociais e

políticas – que norteiam o desenvolvimento dos enredos das peças. Como voltarei a este

ponto em capítulos específicos, gostaria de retomar o ponto relativo ao regime de

produção das peças impressas para demonstrar como que isso participa adequadamente

da legibilidade que proponho para elas.

1.5. Regimes Editoriais e o Antigo Regime: Uma perspectiva histórico-

sociológica de legibilidade

Nos séculos XVI e XVII, um livro de peças impressas não é o resultado de uma

encomenda feita a autores que foram pagos para tal trabalho – portanto, nisso já há uma

distinção em relação ao regime editorial da segunda metade do século XVIII. No caso

dos artistas de corte, ou associado a um patronato nobre, seria desonroso viver ou

conceber sua escrita nesses termos. Nesse sentido, se no começo do século XVII

algumas peças impressas foram associadas ao nome ‘Shakespeare’, isso se devia menos

ao fato de um editor reconhecer as suas qualidades literárias de autor individual e

isolado – categoria impossível num tipo de atividade cujo regime de escrita era

colaborativo – do que à sua posição de sanior pars (portanto, de “autor”/auctoritas)

dentro da companhia teatral Chamberlain’s Men (King’s Men com a patronagem de

James I a partir de 11 de maio de 1603). Deste modo, para efeito de pesquisa, melhor

seria pensar todo texto dramático impresso nessa época como um evento social e

institucional contingente, em vez de uma criação individual, isolada e tendente à

fixação.

Antes dos efeitos da “linguistic turn” na “new bibliography”, era comum

classificar os textos associados ao nome ‘Shakespeare’ em “altos” e “baixos”,

“bons” e “ruins”, como se fosse possível estabelecer uma escala de autenticidade

para as peças impressas a partir de um “Shakespeare original”. Em função de tal

cânone analítico, muitos textos considerados “baixos” foram deixados em

segundo plano, como se fossem menos dignos da atenção dos especialistas dos

séculos XIX e XX, que os consideravam “derivações corrompidas” de uma

suposta unidade e integridade artística de ‘Shakespeare’. No entanto, seguindo os

efeitos da “linguistic turn”, muitos trabalhos publicados ao longo das décadas de

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1980 e 1990 tornaram a quebra do cânone autoral e literário algo familiar entre os

estudiosos de ‘Shakespeare’.

Não sem sentido, as muitas variações locais de textos impressos no contexto

de Shakespeare passaram a ser entendidas como “versões diferentes”, “variações

textuais”, em vez de “versões corrompidas” e, portanto, deveriam ser igualmente

levadas em conta pelos estudos shakespeareanos158. Em certa medida, mas de

forma ainda muito inicial, este debate afetou a configuração do projeto editorial

oxfordiano, à medida que a este foram incorporados “bad” in-quartos e,

dependendo do editor responsável, evitou-se misturar versões de uma “mesma”

peça para corrigir supostas insuficiências textuais. Além disso, um efeito evidente

da “linguistic turn” no projeto editorial oxfordiano – e pioneiro no mercado de

edições de “obras completas” de autores consagrados pela tradição crítica

oitocentista – foi a apresentação integral de duas variações de “Rei Lear”, quais

sejam: aquela do in-quarto de 1608 e aquela do fólio de 1623. No entanto, como

já foi dito, o projeto editorial de Stanley Wells entende os “good” in-quartos

como formas textuais mais próximas da “mão/mente” individualizada de

Shakespeare, enquanto os “bad” in-quartos foram entendidos como textos “mais

teatrais” e, de forma ainda mais equivocada, os textos do fólio de 1623 foram

considerados “pós-teatrais”159.

Ora, quando lidamos com remodelações editoriais de peças, devemos estar

conscientes de que representam inevitáveis perdas semânticas e expressivas em

relação às experiências de performance160. Portanto, diferentemente das

expectativas do projeto editorial oxfordiano, a experiência textual daquilo que fora

apresentado em palco (stage) não é deduzível da experiência textual de página

(page). Mesmo que os “bad” in-quartos sejam textos escritos a partir da

“memorização auditiva” de atores interessados em lucrar com a venda de uma

peça que tivera sucesso de performance em determinada conjuntura, as

convenções editoriais para que o texto seja lido em página não fixam (ou captam

para a página) aquilo que, por ventura, tenha sido a sua performance. Como todo

158MARCUS, Leath S.. “Levelling Shakespeare: Local Customs and Local Texts”. Shakespeare Quartely, volume 42, 1991(2): pp.168-178; WERSTINE, Paul. “Narratives about printed Shakespeare Texts: ‘Foul Papers’ and ‘Bad’ Quartos”. Shakespeare Quartely, volume 41, 1990(1): pp.65-86 159Tais critérios de classificação já foram objetos de crítica de David S. Kastan, apresentada na primeira seção deste capítulo. Aliás, um simples vislumbre da irregularidade de tessitura textual do fólio demonstraria que suas matrizes textuais não estariam cronologicamente distantes de bases textuais contemporâneas a Shakespeare. Além disso, em 1992, David Ward levantou a hipótese de o texto matriz de “Hamlet” no fólio de 1623 ter sido anterior àquele do segundo in-quarto (Q2, 1604). Ver: WARD, David. “The King and Hamlet”. Shakespeare Quartely, volume 43, 1992(3):pp.280-302 160Ver: DILLON, Janette. “Is there a performance in this text?”. Shakespeare Quartely, volume 45, 1994(1): pp.74-86

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evento, a performance é irrepetível e contingente. No entanto, a crítica

desconstrucionista leva esta mesma questão ao texto em página, já que “cada

leitura” de um texto criaria um “novo texto”161.

A crítica desconstrucionista representou o fim da universalidade de algumas

idéias totalizantes da “instituição literária” oitocentista, tais como: autor (como

unidade criativa e isolada de idéias e portadora unidimensional de significados),

obra (como fonte de significados fixos da unidade autoral), comentário

(interpretação ou doxa autorizada por um campo institucional de saber e que

define as chaves de entendimento sobre os significados de uma obra e seu autor),

gênero (moldura estética aonde o comentário inscreve o autor e a sua obra), gênio

(unidade individualizada criativa referida a um gênero). No entanto, a idéia

desconstrucionista de um pluralismo radical de leitura e escrita foi infelizmente

confundida por alguns autores com um ecletismo cínico ou com um cético “tanto-

faz” superficial, pretendendo-se esvaziar a teoria social em favor de uma crítica

literária toda-abrangente162.

A História Social dos Modelos Culturais foi uma das respostas não-céticas

possíveis à “linguistic turn” na história social francesa e na crítica à “instituição

literária” oitocentista. Deste modo, definindo para si um campo específico de

experiência de pesquisa, a História Social dos Modelos Culturais demonstrou ser

central repensar a historicidade das práticas de leitura e escrita na Idade Moderna,

assim como das condições lingüísticas, sociais e institucionais da performance e

da publicação de dramas na Idade Moderna.

As experiências de pesquisa da História Social dos Modelos Culturais

demonstraram que, no interior da companhia teatral de Shakespeare, os roteiros e

soluções de enredo para palco – que deviam seguir de perto os decoros morais e de

hierarquias sociais e políticos – eram configurados no interior de um regime

colaborativo de trabalho textual, cuja finalidade era produzir um efeito sonoro visível e

compreensível para letrados e iletrados, variável e revisável conforme as circunstâncias,

sem a preocupação de se estar rigorosamente fiel a um cânone literário “acadêmico” e

“elevado”163. De qualquer forma, percebeu-se que a produção teatral da época moderna

161FEITOSA, Charles. “Desconstrução”. In Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX: As Grandes

Transformações do Mundo Contemporâneo – Conflitos, Cultura e Comportamento. Rio de Janeiro: Campus, 2004. pp.208-209 162Ver: DARNTON, Robert. “No início era Shakespeare...”. Caderno Mais!, Folha de São Paulo: 31 de março de 1996.p.4 163DARNTON, Robert. “No início era Shakespeare...”. Caderno Mais!, Folha de São Paulo: 31 de março de 1996.pp.4-6; CHARTIER, Roger. Do palco à página: Publicar Teatro e Ler Romances na Época Moderna – Séculos XVI-XVIII. Rio de

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ilustraria uma tensão entre: (1) as exigências do patrocínio – que punham o teatro a

serviço dos jogos de poder, exigências morais e distinção social dos patronos –; (2) as

regras de gosto da “república de letras” – que não necessariamente coincidiam com o

gosto estético e interesses de lazer de todos os patronos de teatro –; e (3) o julgamento

do público (i.e., fora da ambiência das cortes), pois era o efetivo responsável pelo

sucesso ou fracasso material das peças – e, por conseguinte, pelo interesse ou não das

oficinas tipográficas ou dos livreiros em publicá-las164.

Não é preciso ir muito longe para observar esta tensão, basta lembrar das

censuras de Sir Philip Sidney àquilo que chamava de “tragicomédia plebéia”165, pois tal

alcunha seria facilmente aplicável, por exemplo, a “Romeu e Julieta”. No entanto, o

fato de a companhia de Shakespeare ter ficado sob a patronagem sucessiva de Lord

Chamberlain e James I, assim como o fato de “seu” fólio ter tido a patronagem dos

condes de Pembroke e Montgomery (sobrinhos de Sir Philip Sidney) e o fato de as

peças de sua companhia terem sido encenadas “publicamente” (audiência dos teatros

abertos das Liberties) e “privadamente” (audiência cortesã), demonstram que não havia

um exclusivismo social quanto a gosto por determinados “gêneros”166. Segundo Barrol

Leeds, a rainha Ana e os nobres da corte de James I demonstravam muito mais

entusiasmo pela patronagem de espetáculos teatrais do que o próprio rei167. Nesse

sentido, o ‘Shakespeare’ celebrado no fólio de 1623 não é o mesmo da “instituição

literária” dos séculos XIX e XX, tanto quanto as peças associadas a seu nome e que

sobreviveram até nós em página (page) não são a expressão textual cabal do que as

audiências corteses e vulgares assistiram em palco (stage).

Janeiro: Casa da Palavra, 2002.p.11. Ver também: MARCUS, Leath S.. “Levelling Shakespeare: Local Customs and Local Texts”. Shakespeare Quartely, volume 42, 1991(2): pp.168-178; GRAZIA, Margreta de; STALLYBRASS, Peter. “The Materiality of the Shakespearean Text”. Shakespeare Quartely, volume 44, 1993(3): pp.255-283 164Ver: DARNTON, Robert. “No início era Shakespeare...”. Caderno Mais!, Folha de São Paulo: 31 de março de 1996.pp.4-6. Entretanto, deve-se considerar as críticas específicas ao neo-historicismo, principalmente quando tende, à maneira de Stephen Greenblatt, inscrever o potencial subversivo do teatro no próprio poder, hipostasiando possíveis resistências a ele. Sobre estas questões críticas em estudos shakespeareanos, ver exemplos de: KASTAN, David Scott. “Proud Majesty made a subject: Shakespeare and the Spectacle of Rule”. Shakespeare Quartely, volume 37, 1986(4):pp.459-475; DAWSON, Anthony B.. “Measure for Measure, New Historicism, and Theatrical Power”. Shakespeare Quartely, volume 39, 1988(3):pp.328-341; SACKS, David Harris. “Searching for ‘Culture’ in the English Renaissance”. Shakespeare Quartely, volume 39, 1988(4):pp.465-488; HOWARD, Jean E.. “Crossdressing, the Theatre, and the Gender Struggle in Early Modern England”. Shakespeare Quartely, volume 39, 1988(4):pp.418-440. 165DOBRÁNSZKY, Enid Abreu (org.). Defesas da Poesia: Sir Philip Sidney & Percy Bysshe Shelley. São Paulo: Iluminuras, 2002.pp.130-139 166Sobre esta discussão, ver: CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre Práticas e Representações. Lisboa: Difel, 1990.pp.121-213; MARCUS, Leath S.. “Levelling Shakespeare: Local Customs and Local Texts”. Shakespeare Quartely, volume 42, 1991(2): pp.168-178; WERSTINE, Paul. “Narratives about printed Shakespeare Texts: ‘Foul Papers’ and ‘Bad’ Quartos”. Shakespeare Quartely, volume 41, 1990(1): pp.65-86; TROUSDALE, Marion. “A Second Look at Critical Bibliography and the Acting of Plays”. Shakespeare Quartely, volume 41, 1990(1): pp.87-96. 167BARROLL, Leeds. “A New History for Shakespeare and his Time”. Shakespeare Quartely, volume 39, 1988(4):pp.441-464

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Nos períodos elizabetano e jacobita, quando um editor de peças estabilizava uma

forma tipográfica para determinadas palavras, ele escolhia um sentido entre vários

possíveis num universo de expressões orais propositalmente concebidas para figurarem

em palco de modo ambíguo, variável e revisável168. Por isso, as aparentes “anomalias”

de expressões e palavras – que tanto incomodavam a antiga análise bibliográfica – não

significariam necessariamente deficiência ou erro, pois, no universo cultural de

Shakespeare, as palavras ainda não tinham sido estabilizadas gramaticalmente. Isso não

quer dizer que a noção de transgressão lingüística não existisse, caso contrário não

haveria a percepção do risível nos trocadilhos fonéticos e/ou semânticos de palavras

encenadas ou impressas. De qualquer forma, o fundamental a depreender disso é que

não foi através das escolhas semânticas de Shakespeare (o homem), mas sim a partir

daquelas realizadas pelos editores elizabetanos e jacobitas, que os editores do projeto

oxfordiano puderam fazer as suas próprias escolhas de configuração textual e semântica

das peças.

Ora, dizer tudo isso é, mais uma vez, lembrar: (1) que uma peça impressa nos

séculos XVI e XVII é muito mais um trabalho de “editor’ do que de “autor”, embora

alguns “poetas cênicos” (Ben Jonson e Molière, por exemplo) tenham demonstrado

algum interesse em controlar a edição de seus escritos no comércio livreiro; (2) que a

forma editorial reconfigura e delimita o campo dos significados daquilo que um dia foi

performance no palco; (3) que, portanto, a indisponibilidade para nós de uma “intenção

de Shakespeare” não impede – mas sim situa fora da “instituição literária” oitocentista –

uma leitura histórico-sociológica das peças impressas dos séculos XVI e XVII; (4) que

o par biográfico “autor/obra” da “instituição literária” oitocentista não é o melhor

caminho para se fazer uma sociologia histórica dos tipos teatrais e caracteres sociais

presentes nas peças associadas ao nome ‘Shakespeare’.

Em termos gerais, pode-se afirmar que a cultura dramática do Renascentismo

inglês (em palco ou página) encorajava os deslizamentos semânticos, sendo as palavras

encaradas como campos de significados abertos e multidimensionais. Logicamente,

devido ao jogo expressivo cênico dos atores e à proposital fluidez de prosódia, os

deslizamentos semânticos ficariam mais evidenciados para a audiência do que quando

as palavras adquiriam a “fixidez das páginas” (i.e., a forma da restrição semântico-

fonética dos trabalhos editoriais). Malgrado a “fixidez das páginas” – canal documental

168GRAZIA, Margreta de; STALLYBRASS, Peter. “The Materiality of the Shakespearean Text”. Shakespeare Quartely, volume 44, 1993(3): pp.263-266

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levar pela paixão, o que é a antípoda das virtudes da prudência, temperança e virilidade,

que devem se combinar equilibradamente para que o discernimento funcione de modo a

adequar o status do indivíduo às circunstâncias e, deste modo, impedir que a sua

máscara social seja desfigurada170.

Portanto, com base em tudo que foi dito até aqui, a materialidade textual do

projeto oxfordiano interfere inevitavelmente na legibilidade das peças, mas, em alguns

momentos, isso não me impede de focá-las por uma perspectiva histórico-sociológica

que inclua os elementos definidores do mundo social e político do Antigo Regime. É a

partir de tal perspectiva que analiso os seus caracteres cênicos, sociais e morais, o seus

lugares retóricos e temáticos, assim como as expectativas de práticas sociais e políticas

que atravessam os seus enredos. No entanto, preferirei sempre partir das próprias

edições em que se baseia a edição oxfordiana das peças com que trabalho, de modo a lê-

las em sua materialidade do final do século XVI. De qualquer forma, recorrerei à edição

oxfordiana quando houver dúvida na compreensão de algumas palavras e para

identificar em que medida as próprias escolhas gráfico-fonéticas oxfordianas interferem

ou não nos campos semânticos de algumas palavras e na perspectiva analítica que

proponho para “Ricardo III” e “Romeu e Julieta”.

Em larga medida, como se pode notar, a minha perspectiva analítica inspira-se

no modo como Norbert Elias analisa as obras letradas dos séculos XVI e XVII,

buscando sempre inscrevê-las naquilo que ele chama de ethos da sociedade de corte171.

Elias torna-se uma chave de leitura importante porque defendo a idéia de que as peças

tradicionalmente associadas ao nome ‘Shakespeare’ devem ser inscritas, como hipótese

contextual-interpretativa, naquilo que modelizo teoricamente, no próximo capítulo,

como Estado no Antigo Regime, em vez de serem estudadas como portadoras de uma

espécie de essência preparatória de um ethos burguês liberal, anti-aristocrático e

romântico.

170Ver: HANSEN, João Adolfo. “O Discreto”. In Libertinos e Libertários. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.pp.77-102 171Ver: ELIAS, Norbert. Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

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Capítulo II Corporidade Estatal e Poder Soberano no Antigo Regime

Neste capítulo, pretendo demonstrar como estou entendendo e operando a noção

de Estado no Antigo Regime, de modo que não se confunda com Absolutismo. Com

isso, espero poder abordar os fenômenos da centralização política e da soberania no

Antigo Regime fora de uma chave interpretativa que os associe à formação de

burocracias nacionais. Além disso, demonstrarei a utilidade de implicar analiticamente

as noções de despersonificação e sacralização das instituições sociais e políticas com o

processo de individuação para se chegar a uma legibilidade histórico-sociológica de

algumas peças associadas ao nome ‘Shakespeare’ que as explore, tematicamente, à luz

de expectativas morais, modelos culturais e de práticas sociais específicas do Antigo

Regime, cujos índices de valor mais marcantes são: referência (figurar ou representar

adequadamente os signos de pertencimento social); diferença (constituir grupos

definidos por desigualdades estamentais de nascimento); reverência (figurar ou

representar estrategicamente a submissão); deferência (executar voluntariamente atos de

submissão). Para tanto, será fundamental convergir inferências analíticas e conceituais

advindas, dentre outros, de trabalhos de Ernst Kantorowicz, de Norbert Elias, Marcel

David, de José Antonio Maravall e de António Manuel Hespanha, mas nos livrando de

qualquer expectativa teleológica de imaginar os fenômenos da centralização política e

da soberania no Antigo Regime como realizadores da “transição para o capitalismo”, ou

como fatores formativos do Estado Nacional.

Essa forma de encaminhar meus argumentos se justifica porque é necessário

revisar um hábito analítico, ainda muito recorrente, que enfoca as estruturas de poder

patrimoniais-estamentais na Europa da Idade Moderna (e em suas extensões coloniais)

como algo que deve ser necessariamente superado para que o Estado possa existir em

sua “plenitude institucional”. Daí, como ainda é recorrente na historiografia, o conceito

geminado de Antigo Regime é o conceito de Absolutismo. Nesta perspectiva geminada,

o sentido histórico da formação do Estado seria a despersonificação e a

despatrimonialização das instituições sociais e políticas, ou seja, restringe-se a noção de

Estado à noção weberiana de racionalização burocrática172. Por isso, não surpreende que

a ciência política – por um viés marcadamente tocquevilleano – e a história do direito –

172TORRES, João Carlos Brum. Figuras do Estado Moderno. São Paulo: Brasiliense, 1989.pp.53-75

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por um viés constitucionalista liberal – classicamente associem o Estado à formação de

uma burocracia ou, restringindo mais ainda o seu significado, reduzam Estado à noção

de poder soberano central/centralizador que concentra os meios coercitivos de poder.

Como alternativa a tais implicações analíticas, penso que o fenômeno da

despersonificação – ligado historicamente na Europa às diferentes formas de

sacralização das instituições sociais e políticas e à centralização política – não é

necessariamente dependente do fenômeno da despatrimonialização e, quando ocorre

sem estar associado a este último, seria suficiente para demonstrar o advento histórico

de uma forma específica de Estado. No entanto, tal forma específica de Estado – em

que os meios coercitivos de constituição da ordem pública não fazem parte de uma

burocracia estatal – demanda, junto às elites nobres governantes, uma transformação

comportamental: a dinâmica estatal de interdependência social está historicamente

ligada à superação gradativa, pela nobreza, do ethos guerreiro medieval. Ora, se

seguirmos nesse aspecto uma chave interpretativa eliasiana, o Estado no Antigo

Regime torna-se necessariamente um fenômeno histórico-sociológico coetâneo a uma

forma específica de processo de individuação.

Logicamente, sei que não é fácil abrir mão de um hábito analítico consolidado

por tanto tempo na historiografia nacional e, em certa medida, na estrangeira. No

entanto, as variações conceituais que proponho ao longo deste capítulo servem

justamente para escaparmos do complexo civilizador – e metafísico – de definir uma

configuração social a partir do que supostamente “falta”, pois isso tem como

conseqüência imediata abordá-la como mera preparação de uma promessa de futuro. Por

isso mesmo, acredito que todo o esforço de variação conceitual e modelização teórica

que desenvolvo neste capítulo permitirá que possamos pensar, alternativamente, uma

legibilidade para alguns planos de enredo e personagens de peças associadas ao nome

‘Shakespeare’ que efetivamente as inscreva nos índices de valor e dinâmica social do

Antigo Regime.

2.1. Os paradoxos morais da gênese do Estado Moderno

A partir da Querela das Investiduras (1057-1122), o conflito de precedência de

prerrogativas de poder político entre o Papa e o Imperador delineou o contexto jurídico-

teológico em que se desenvolverá gradativamente as personae estatais da Idade

Moderna. Durante tal querela, alguns juristas pro imperator começaram a defender a

idéia de que a dignidade imperial seria “sagrada” independentemente da unção papal,

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que simplesmente ratificaria algo preexistente. Logicamente, isso não queria dizer que

houvesse qualquer pretensão imperial de legislar em matéria de fé. No entanto, este

debate doutrinal fundiu elementos do direito canônico com o direito romano, alterando

definitivamente o sentido dos atributos que este último dava ao Imperador na Roma

Antiga: algo que era visto como provisório (ou politicamente excepcional), como o

título de imperator, ganharia os atributos de eternidade antes exclusivos ao corpus

mysticum do Papa e, por isso mesmo, deixaria de estar sujeito à ratificação periódica via

unção papal – donde a difusão renovada da máxima latina “imperium semper est” (“o

império é eterno”).

Entretanto, como bem notara Ernst Kantorowicz173, o debate jurídico-teológico

advindo do conflito político entre Papa e Imperador teria uma repercussão inesperada

durante a Baixa Idade Média: outros poderes feudais começaram a tomar para si a nova

noção de “imperio” (domínio eterno e soberano de direitos próprios) e aplicá-la-iam

para circunscrever a autonomia de suas jurisdições. Na prática, isso significava: (1) não

ceder, em autonomia, a autoridades superiores externas (Papa e Sacro Imperador); (2)

relativizar as autonomias corporatistas de suas unidades constitutivas internas. No caso

das monarquias, um indício importante no século XV que aponta para tal mudança de

sentido é a difusão da máxima jurídica: “Rex in regno suo est Imperator”(“o Rei é

imperador em seu reino”). No caso das cidades-república, como na península itálica,

renova-se o sentido da máxima jurídica bartoliana de que a “Civitas sibi princeps” (“a

Cidade é de si Príncipe”).

Desde finais do século XII, no quadro de sua campanha contra o Império e em

favor da Igreja, vários canonistas já vinham exaltando os direitos dos reinos seculares

contra a potestade imperial. Contudo, além dos juristas a serviço de Felipe IV (1268-

1314) – cognominado o Belo, cujo reinado se estendeu de 1285 a 1314 –, coube a

Bartolo (1313/14-1357) e a Baldo (1327-1400) dar o passo de introduzir a doutrina de

poder imperial eterno no corpo do direito civil e, deste modo, encetar a passagem

decisiva para a articulação do moderno conceito legal de Estado e aplicá-lo aos

agregados políticos extensos baixo-medievais174. No corpo doutrinal bartoliano,

podemos justamente observar os fundamentos de um ataque jurídico bem articulado

contra os glosadores e demais defensores do Sacro Império: como as cidades seriam

governadas por “povos livres” que possuiriam seu próprio Imperium, podia-se dizer que

173KANTOROWICZ, Ernst H.. Os Dois Corpos do Rei. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 174SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.p.33

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elas eram princeps de si mesmas – ou seja, eram livres de qualquer interferência externa

na gestão de seus negócios políticos internos. Ora, posto isso, pouco faltava para se

estender essa doutrina das cidades italianas para os reinos da Europa setentrional e,

assim, chegar à máxima política de que “Rex in regno suo est Imperator”.

Outro indício histórico doutrinal importante para se apreender o surgimento da

personalidade jurídica do Estado foi a tendência de os juristas aplicarem, por analogia, a

noção eclesiástica de corpus mysticum às diferentes instâncias de ação administrativa

infra regno ou infra civitas, que, deste modo, adquiriam juridicamente uma identidade

perpétua de forma (dignitas). Como têm demonstrado os trabalhos de Kantorowicz175,

o efeito prático e doutrinal desta transposição conceitual foi gradativamente inscrever os

dispositivos de atuação administrativa (régia ou civil) numa aura institucional sagrada

de legitimidade – expressa, por exemplo, em termos como “morrer pela pátria”, “ordem

pública”, “interesse público”, “bem comum” etc – qualitativamente distinta daquela do

tradicional pater familia, embora ambas as esferas institucionais de autoridade

mantivessem analogias de papéis quanto às responsabilidades de proteger, perpetuar,

ampliar os seus negócios, assim como, de cultivar entre seus dependentes, parentes,

servidores, aliados, súditos ou cidadãos um consciencioso senso de reciprocidade

hierárquica.

Ao serem figurados com uma aura qualitativamente distinta dos dominia, os

dispositivos institucionais políticos e sociais de utilitas totius regni (ou de utilitas totius

civitatis) começaram a ser pensados nos termos de uma estabilidade de forma

sucessiva no tempo e, portanto, com uma natureza autônoma e, em princípio,

prefigurativa da ação administrativa (potestas) de quem as encarnasse. Associada a tal

inovação teológico-jurídica esteve, entre os séculos XV e XVI, a tendência de os

autores humanistas se interessarem em focar a virtus dos governantes mais do que a

virtus do pater familia. É possível depreender desta mudança de foco de interesse um

elemento novo que os humanistas introduziram nos estudos tardios da virtus: a idéia

(adaptada da “Política” de Aristóteles) de que as qualidades que merecem ser admiradas

num príncipe podem ser distintas daquelas que suscitariam a admiração num cidadão

particular176, ou seja, a condição de “princeps” (ou publica potestas) é tão distinta do

“pater familia” (indivíduo particular ou linhagens dominiais) que a sua virtus, tal como

175KANTOROWICZ, Ernst H.. Os Dois Corpos do Rei. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.pp.146-153; KANTOROWICZ, Ernst. “Mystère de l’État: Un Concept Absolutiste et ses Origines Médiévales (bas Moyen Age)”. In Mourir pour la Patrie. Paris: PUF, 1984. pp.75-103 176SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.pp.146-185

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exemplarmente notara Maquiavel (1469-1527), jamais poderia excluir completamente o

vício. Eis o paradoxo moral da Razão de Estado.

Embora tivesse sofrido uma leitura demonizada ao longo dos séculos XVI e

XVII, o pensamento político de Nicolau Maquiavel evidenciava, na verdade, o próprio

paradoxo constitutivo da vida terrena do cristão: a cisão radical entre verdade moral-

religiosa particular e realidade política177. Ao longo dos séculos XVI e XVII, à medida

que o pensamento político e teológico foi se defrontando com as tensões políticas e

instabilidades sociais decorrentes das guerras religiosas, ocorreu na prática um

reconhecimento céptico geral de que aquilo que era publicamente útil deveria se

sobrepor àquilo que era privadamente correto ou desejoso quando o assunto fosse a

manutenção da reciprocidade hierárquica no interior do corpo político178. Eis o

paradoxo moral inerente ao nascimento do Estado.

A tensão entre Ser (Interior Psicológico/Animalidade Libidinal) e Parecer

(Dignidade Institucional/Persona Social) é uma tópica literária recorrente nos séculos

XVI e XVII que funda o que aqui passo a chamar de moral do parecer. Esta moral

configura a seguinte expectativa de prática social: pouco importa o humor pessoal, o

que se pense ou se sinta enquanto corporalidade físico-psicológica, ao figurar ou

representar uma dignitas um indivíduo deve adequar a sua ação aos atributos, regras ou

virtudes associados a ela, pois isso é necessário para a manutenção de sua estabilidade

funcional e, por conseguinte, da ordem social numa corporação política. Portanto, a

moral do parecer cobra do indivíduo um exercício periódico de autocontrole e um

consciente autodistanciamento de sua esfera subjetiva libidinal, para que possa, deste

modo, realizar com adequação os atributos vinculados à mascara social ou institucional

que venha a figurar179. Como veremos adiante, além de ser um índice histórico do

processo de individuação, a moral do parecer está implicada com o processo de

despersonificação das instituições sociais e políticas.180

A moral do parecer em Maquiavel fundamenta a prática da Razão de Estado,

que não pode ser confundida com “tirania”, pois Maquiavel associa esta última à

“corrupção”, definindo-a, em seus “Discursos”, como a incapacidade de alguém dedicar

suas energias ao bem comum, assim como, a tendência a colocar os interesses

177Sobre esta discussão, ver: DUMONT, Louis. O Individualismo. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.pp.44-65 178Ver: SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.pp.270-273 179Ver: ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, 2 vols.. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 180Ver: TORRES, João Carlos Brum. Figuras do Estado Moderno. São Paulo: Brasiliense, 1989.pp.127-165

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pouco “temperada” que poderia pôr em risco a sua honra estamental como cavalheiro e

primogênito Montéquio. Em certa medida, considerando a teleologia moral da peça, a

admoestação de Frei Lourenço é uma resposta ao primeiro solilóquio de Julieta, em que

pedia para Romeu “jogar fora” o seu “nome” (de linhagem). Vejamos primeiramente o

solilóquio de Julieta:

“JULIET (not knowing Romeo hears her) O Romeo, Romeo, wherefore art thou Romeo?

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animalização dos jovens. Isso explicaria as metáforas utilizadas por Frei Lourenço em

sua censura a Romeu, quando este ameaça matar-se para arrancar de si as implicações

sociais de sua corporidade Montéquio:

“FRIAR LAURENCE Hold thy desperate hand.

Art thou a man? Thy form cries out thou art.

Thy tears are womanish, thy wild acts denote

The unreasonable fury of a beast.

Unseemly woman in a seeming man,

And ill-beseeming beast in seeming both!

Thou hast amazed me. By my holy order,

I thought thy disposition better tempered.

Hast thou slain Tybalt? Wilt thou slay thyself,

And slay thy lady that in thy life lives

By doing damnèd hate upon thyself?

Why rail’st thou on thy birth, the heaven, and earth,

Since birth and heaven and earth, all three, do meet

In thee at once, which thou at once wouldst lose?

Fie, fie, thou sham’st thy shape, thy love, thy wit,

Which like a usurer abound’st in all,

And usest none in that true use indeed

Which should bedeck thy shape, thy love, thy wit.

Thy noble shape is but a form of wax,

Digressing from the valour of a man;

Thy dear love sworn but hollow perjury,

Killing that love which thou hast vowed to cherish;

Thy wit, that ornament to shape and love,

Misshapen in the conduct of them both,

Like powder in a skilless soldier’s flask

Is set afire by thine own ignorance,

And thou dismembered with thine own defence.

What, rouse thee, man! Thy Juliet is alive, For whose dear sake thou wast but lately dead : There art thou happy. Tybalt would kill thee, But thou slewest Tybalt : there art thou happy. The law that threatened death becomes thy friend, And turns it to exile : there art thou happy. A pack of blessings lights upon thy back, Happiness courts thee in her best array, But, like a mishavèd and sullen wench, Thou pout’st upon thy fortune and thy love. Take heed, take heed, for such die miserable. Go, get thee to thy love, as was decreed. Ascend her chamber; hence and comfort her.”(...)186

“FREI LOURENÇO Detém a tua desesperada mão. És um homem? Tua forma apregoa que és... As tuas lágrimas são de mulher, teus atos selvagens denotam a fúria insensata de uma fera. Mulher deformada em forma de homem, e mal formada fera em forma de homem e mulher! Assombrado me deixas. Por minha Santa Ordem, pensei que tua disposição fosse melhor temperada. Mataste Teobaldo? Queres matar a ti mesmo, e matar tua jovem senhora que em tua vida vive, voltando condenável ódio contra ti mesmo? Por que injurias teu nascimento, o céu e a terra, se todos os três – nascimento, céu e terra – encontram-se em ti ao mesmo tempo, os quais queres perder de uma só vez? Cuidado, cuidado! Tu envergonhas tua forma, teu amor, teu engenho. Tal como um usurário, tudo tens em abundância, e nada usas conforme o verdadeiro uso, o que realçaria a tua forma, o teu amor, o teu engenho. Tua nobre forma é apenas uma imagem de cera, desprovida do valor de um homem. Tua cara jura de amor é apenas um oco perjúrio, que mata tal amor ao qual devotavas estima. Teu engenho, esse ornamento de tua forma e amor, deformado na condução de ambos, como a pólvora no polvarinho de um soldado inábil, inflama-se devido à tua própria ignorância, e tu te mutilas com teu próprio meio de defesa. Quê, anima-te, homem! Tua Julieta, por quem há pouco morrias de amor, está viva. Nisso tu és feliz. Teobaldo queria te matar, mas tu mataste Teobaldo. Nisso tu és feliz. A lei, que ameaçava com morte, torna-se tua amiga, e converte morte em exílio. Nisso tu és feliz. Um fardo de bênçãos recai em tuas costas, a felicidade te corteja em seus melhores paramentos. No entanto, como uma moça malcomportada e rabugenta, tu desdenhas tua fortuna e teu amor. Preste atenção, preste atenção! Por isso se morre miserável. Vai, obtenha para ti teu amor, como estava decidido. Sobe até seu quarto e, então, console-a(...)”.

186WELLS, Stanley; TAYLOR, Gary (eds.). The Oxford Shakespeare: The Complete Works. Oxford: Claredon Press, 1998.pp.354-355

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Nesse sentido, domar a bestialidade e a inconstância dos humores para se

conformar a uma dignitas é um dos modos possíveis de cada indivíduo ou personagem,

ao usar adequadamente a sua inteligência/espírito/engenho (wit, no inglês), mostrar-se

como Imago Christi (i.e., ser nascimento, céu e terra ao mesmo tempo), adequar-se à

corporidade estatal, honrar a sua linhagem e garantir o seu êxito social. No entanto,

quando Viveiros de Castro e Ricardo Benzaquen escreveram o ensaio “Romeu e Julieta

e a Origem do Estado”187, não tiveram a mesma percepção. Aliás, fizeram uso de uma

edição que não se diferenciava da tradição que enforma a edição oxfordiana que cito

acima. Portanto, considerando as questões analíticas levantadas no ensaio, a

materialidade editorial utilizada por Viveiros de Castro e Ricardo Benzaquen não os

impediria de fazer uma leitura da peça mais próxima dos índices de valor, lógica

institucional e expectativas de prática social do Antigo Regime.

No entanto, em seu ensaio, eles interpretaram as mortes de Julieta e Romeu, o

fim do faccionismo e a estabilidade do governo do príncipe Escalo como o primado da

lei concentrando-se “no alto”, com as lealdades tornando-se unidirecionais e

homogêneas, ou seja, não mais mediadas por fronteiras internas de unidades políticas

“privadas”, sendo tudo substituído por um dualismo concêntrico príncipe/indivíduo188.

Segundo tais autores, haveria uma complementaridade de sentido entre o poder do

príncipe (desvinculado, segundo eles, da tradição política estamental) e a força

individualizante do amor de Romeu e Julieta – estes não apenas teriam superado a

obrigação de fidelidade às suas famílias, mas também se submetido diretamente às leis

de Escalo. Assim, os autores concluem afirmando que o “psicológico aparece quando o

social passa a ser visto como o estatal, o oficial, o central, aquilo que é essencialmente

exterior à dimensão interna dos indivíduos”189(Grifo meu).

Obviamente, a exploração temática da peça feita por Viveiros de Castro e

Ricardo Benzaquen é bastante oportuna para o assunto aqui tratado, embora o meu

encaminhamento analítico não me conduza às suas mesmas conclusões. Penso que tal

diferença se deve ao fato de eles usarem a peça para exercitarem, dedutivamente, as

categorias analíticas de Louis Dumont (individualismo vs. holismo) e de Radcliffe-

187CASTRO, E.B. Viveiros de; ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. “Romeu e Julieta e a Origem do Estado”. In Arte e Sociedade: Ensaios de Sociologia da Arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. pp.130-169 188CASTRO, E.B. Viveiros de; ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. “Romeu e Julieta e a Origem do Estado”. In Arte e

Sociedade: Ensaios de Sociologia da Arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. pp.148-149 189CASTRO & ARAÚJO, Ibdem Op. cit..p.160

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Brown (amor vs. esfera jural)190, e por entenderem o “estatal” estritamente como

“centralização burocrática”. Ora, é certo afirmar que o “psicológico aparece quando o

social passa a ser visto como o estatal” e que isso, como vimos anteriormente, suscita o

paradoxo moral inerente ao nascimento do Estado. Contudo, entender o “estatal”

estritamente como um “dualismo concêntrico príncipe/indivíduo” não inscreve

adequadamente a teleologia moral da peça e a caracterização de seus personagens na

lógica institucional e expectativas de prática social do Antigo Regime. Afinal, em sua

admoestação, Frei Lourenço afirma a necessidade de Romeu seguir os efeitos da lei de

Escalo, mas sem negar a sua obrigação de manter, perpetuar e honrar a linhagem

Montéquio.

No início da Idade Moderna, o desconforto frente à ampliação do horizonte de

mobilidade social e espacial dos indivíduos, assim como a consciência da sua

dependência em relação a forças anônimas e distantes (e, por isso mesmo, mais

abstratas, com toda a sensação de insegurança implicada nisso), criaram uma ânsia

social difusa – expressa na literatura e em outros artefatos culturais dos séculos XVI e

XVII – por um senso contratual de adequação comportamental e de previsibilidade de

ação do indivíduo no seio das instituições sociais e políticas, por maior controle dos

costumes e pela ratificação periódica do enquadramento hierárquico dos indivíduos em

dignidades estamentais, de modo a se manter as fronteiras sociais que alimentavam a

sensação de segurança e de continuidade dos princípios tradicionais de reciprocidade

hierárquica e autoridade191. Com tal perspectiva em mente, a nossa leitura da peça

“Romeu e Julieta” distancia-se completamente do caminho proposto por Viveiros de

Castro e Ricardo Benzaquen.

Até a “terceira discórdia civil”, tal como é anunciada pelo príncipe Escalo,

constatamos que os patriarcas das casas Capuleto e Montéquio não se trabalhavam

conscienciosamente para se ajustarem ao corpo político da fictícia Verona; no entanto,

ironicamente, isso abriu brechas em sua própria autoridade que permitiram, à revelia de

sua vontade e por qualquer ninharia, que seus parentes, aliados e servidores agissem

arrogantemente como “feras selvagens” no espaço público. Além disso, podemos

constatar que, se há guerras fatricidas que se perdem no tempo entre as “duas casas

iguais em dignidade”, isso se deve ao fato de o príncipe Escalo ter se mantido leniente

190CASTRO & ARAÚJO, Ibdem Op. cit..pp.132-144 191Uma obra clássica de Maravall permanece atual no modo como percebe, na literatura do século XVII, a recorrência temática da relação entre medo do anonimato e desejo de ratificação do paradigma estamental de ordem social: MARAVALL, José Antonio. Cultura do Barroco. São Paulo: EDUSP, 1997.

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na sua função de ajustar as partes ao todo, a ponto de esperar que se chegasse a uma

“terceira discórdia civil” para tomar medidas efetivamente duras que forçassem os

patriarcas Capuleto e Montéquio, através do efeito da mesma penalidade, a manterem

um compromisso de paz pública.

Por ironia trágica, quando os patriarcas Capuleto e Montéquio chegam a este

compromisso na Vila Franca, o mecanismo da guerra civil já havia tomado um grau

descontrolado de autonomia nas mãos de jovens individualidades desregradas. Por

conseguinte, somente através de perdas lamentáveis adviria o aprendizado da

necessidade instrumental de cada homem saber estabelecer limite para si mesmo e,

deste modo, adequar-se como parte constitutiva da unidade orgânica da fictícia Verona.

Portanto, as três linhagens de autoridade em “Romeu e Julieta” falham em manter os

dispositivos tradicionais de reciprocidade hierárquica e autoridade, ou seja, falham em

fazer de “Verona” um conjunto qualitativamente maior ou mais importante do que todas

as demandas particulares de suas partes constitutivas. Daí, na teleologia moral da peça,

quando Escalo perde Mercutio (que estimava Romeu) e Páris (que estimava Julieta),

sente-se tão punido quanto os patriarcas Capuleto e Montéquio, que perderam os seus

únicos descendentes. Deste modo, a solução dramática da peça aponta para uma

expectativa de ordem social imerso em padrões senhoriais-corporatistas de constituição

de vínculos sociais e políticos. No capítulo IV, desenvolverei mais detalhadamente tal

hipótese.

Ora, não deve nos surpreender tal tipo de demanda por ordem social na

teleologia moral de “Romeu e Julieta”, mas devemos estar atento para o fato de que a

peça expunha uma demanda de corporidade estatal que não se inscrevia na tradição

teológica aristotélico-tomista. Cada vez mais, ao longo dos séculos XVI e XVII, a noção

de Razão de Estado esteve implicada com a percepção do Estado como um artifício ou

engenho mecânico (também metaforizado como uma nau que enfrenta os imprevistos

do Mar/Fortuna) que deveria conter ou apascentar artificiosamente as forças

tempestivas de suas partes constitutivas. Nesse sentido, a concepção do Estado como

artifício não pressupunha que cada parte, desde sempre, estivesse organicamente

implicada com as demais. Por isso mesmo, a sua existência demandava que cada parte

tivesse sido conscienciosamente trabalhada de modo a se ajustar ao conjunto. No

entanto, a nau do Estado tinha uma demanda moral cujo efeito prático era orgânico-

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corporatista: uma vez que o todo fosse artificiosamente configurado, tornava-se

qualitativamente maior ou mais importante do que todas as partes.

Logo, isso significava que a metáfora do Estado como mecanismo, instrumento

ou artifício não era incompatível com a noção finalista da metáfora orgânica tradicional

da sociedade como corpo192. Como havia notado Louis Dumont, a idéia de Estado

como um todo orgânico (Universitas), herdada do pensamento antigo e medieval,

jamais se extinguiu completamente na Idade Moderna, pois era muito difícil dispensar

tal idéia quando se queria considerar o corpo social e político em sua unidade193.

Portanto, seria equivocado imaginar que, nos séculos XVI e XVII, a noção de Estado

como artifício estivesse ligada, de modo unidimensional, à percepção nominalista de

que nada mais existia de ontologicamente real além do ser humano particular, ou de que

a prática do direito se ligasse ao ser humano particular194. Aliás, embora fosse avesso à

visão teológica aristotélico-tomista de ordem social, Calvino (1509-1564) não deixa de

pensá-la em termos orgânicos quando afirma que:

“...it is worth noting that no mortal possesses the maximum of every kind of gift or is capable of undertaking everything at once, however great and varied his talents...To keep us all within our limits, let us learn how God has designed and ordered the affairs of the human race, so that each individual is endowed with only a limited amount of gifts, on which depends also the distribution of duties. The world is not lighted by a single ray of the sun; light is produced by all its rays together, as each makes its own contribution at the same time. In the same way God, to keep men in mutual association and good will by a sacred and unbreakable bond, dispenses his gifts variously. He does not raise anyone inordinately above the rest by bestowing on him absolute perfection, and so he binds all men together...And Paul records that he himself was inflicted with the breath of Satan's messenger so that he might not be too much puffed up by the sublimity of God's revelation to him”. 195

“...vale perceber que nenhum mortal possui o máximo de todo tipo de dom, ou é capaz de incumbir-se de tudo de uma única vez, por mais que sejam grandes e variados os seus talentos...Para manter-nos em nossos limites, deixai-nos aprender como Deus configurou e ordenou os negócios da raça humana de modo que cada indivíduo seja dotado somente de um limitado conjunto de dons, do qual também depende a distribuição dos deveres. O mundo não é iluminado por um único raio de sol; a luz é produzida conjuntamente por todos os seus raios quando cada um faz a sua própria contribuição ao mesmo tempo. Do mesmo modo, para manter o homem em associação mútua e boa vontade através de um vínculo sagrado e inquebrantável, Deus distribuiu os seus dons de forma variada. Ele não elevou ninguém extraordinariamente acima dos demais outorgando-lhe perfeição absoluta. Deste modo, mantém todos os homens unidos...E o próprio Paulo relata que sofreu com a inspiração do mensageiro de Satanás de modo a não ficar excessivamente arrogante pela magnificência da revelação de Deus para ele”.

Assim, nos séculos XVI e XVII, fosse o Estado metaforizado como um

organismo, fosse ele metaforizado como um mecanismo, o fato era que os teóricos

católicos e protestantes pensavam como condição de sua possibilidade a necessária

desigualdade de potência (dons) entre as suas partes constitutivas, o que justamente

192MARAVALL, José Antonio. Estado Moderno y Mentalidad Social, vol.1. Madrid, Alianza, 1986. pp. 33-79 193DUMONT, Louis. O Individualismo. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.pp.79-89 194HESPANHA, António Manuel. “O Imaginário da Sociedade e do Poder”. In Panorama Histórico do Mundo Jurídico

Moderno.pp.53-68 (Mimeo. Revisto e ampliado como tradução de: HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Europea: Síntesis de un Milénio. Madrid: Tecnos, 1998. pp.58-72)

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deveria ensinar aos homens viverem em reciprocidade hierárquica e controlarem a sua

soberba. Deste modo, independentemente do fato de os debates jurídico-teológicos

afirmarem que a origem dos agregados sociais e políticos estivesse numa essência

finalista inscrita por Deus na matéria (i.e., a visão aristotélico-tomista da essência social

inscrita no homem desde a sua criação e que marcaria o seu lugar necessário nas coisas

do mundo), ou de afirmarem que tais agregados tivessem origem na vontade pragmática

e instrumental do indivíduo isolado, o efeito prático e doutrinal do direito nesse período

continuava ligado à percepção de que a ordem social somente se constituía quando os

indivíduos se viam inscritos ou enquadrados em pedículos estamentais ou corporatistas,

isto é, em predicativos tradicionais que os referiam e implicavam – hierarquicamente –

uns com os outros, que os delimitavam como membros de um corpus societatis.

Ora, considerando tal perspectiva, poderíamos afirmar que Julieta e Romeu são

moralmente condenáveis, pois: por um lado, deixam-se abalar pelos apelos da cupidez,

o que os impede de estabelecer limites para si mesmos; por outro lado, estão longe de

realizar o ideal moral do cortesão discreto e senhor de si196 de um modo pragmático que

beneficie a honra parental e as leis de Escalo. Pelo contrário, eles se conduzem

arrogantemente para o suicídio, demonstrando com contundência que não respondem

mais à autoridade patriarcal e à obrigação de manutenção e perpetuação de suas

linhagens. Aliás, especificamente no caso de Romeu, deve-se também acrescentar o seu

duplo desrespeito às leis de Escalo: ao retornar do exílio sem permissão com a franca

intenção de suicidar-se no túmulo de Julieta, Romeu acaba por assassinar o conde Páris

para não se deixar matar pelos efeitos das leis do príncipe.

No entanto, não se deve perder de vista que os desajustes (hu)morais de Julieta e

Romeu criam justamente um efeito de ironia trágica: as suas mortes punem as casas

Capuleto e Montéquio porque, como grandes corpos de privilégios intermediários da

auctoritas de Escalo, não se trabalharam conscienciosamente para se conformaram às

suas obrigações de fazer com que Verona se tornasse uma Universitas. Assim, em

termos semelhantes à percepção teológica de Calvino de ordem social, toda a trama de

“Romeu e Julieta” demonstra que, sendo o homem um pharmacon (benignidade e

malignidade ao mesmo tempo) ou um paradoxo moral de vício e virtude, não haveria

nele um apetite natural para o bem e para a vida social. Por isso mesmo, deveria ser

lembrado de algum modo dos potenciais efeitos destrutivos desta “falha essencial” para

195CALVIN, John. “Chapter IX: The Church”. In Commentaries to Bible (www.ccel.org/c/calvin) 196HANSEN, João Adolfo. “O Discreto”. In Libertinos e Libertários. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.pp.77-102

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que: (1) percebesse a necessidade instrumental do nexo orgânico ou reciprocidade

hierárquica no interior das instituições sociais e políticas; (2) reconhecesse a sua

dependência em relação à graça divina; (3) tomasse consciência de que não estava

completamente livre de tentações demoníacas.

Portanto, a experiência periódica da vulnerabilidade física, moral e espiritual no

“mundo do teatro” e no “teatro do mundo” serviria justamente para despertar a

consciência de cada indivíduo a respeito da necessidade de estabelecer limites para si

mesmo, evitando apetites desenfreados e os vários ídolos de mente e coração, tais como

a soberba, a cupidez e a jactância. Nesse sentido, se o homem reformado tem um lugar

central no plano da criação divina, deve, entretanto, saber reconhecer os limites de sua

semelhança em relação a Deus: não pode esquecer que é simultaneamente

“nascimento”, “céu” e “terra”, ou seja, que não há vida possível (social e espiritual) sem

um nexo comedido e orgânico com seu semelhante, da mesma forma que há um

“espaço infinito” entre a sua razão e a perfeição divina, pois tudo isso serviria para

trazer periodicamente à sua consciência a dimensão do quanto é dependente da graça

divina, de que não deve ser arrogante com seus semelhantes, nem jactante de seus

próprios dons. Afinal, mesmo aqueles que buscam a perfeição divina nas coisas terrenas

devem estar conscientes de que ninguém está livre dos assaltos do mal, pois ser

semelhante a Deus não é ser Deus na Terra197.

Enfim, como temos notado, o sentido orgânico de ordem social não desaparece

mesmo quando o Estado é reputado como um mecanismo pragmático de contenção dos

furores do indivíduo. Daí, aquilo que efetivamente diferencia a visão nominalista

protestante de ordem social da tradição católica aristotélico-tomista é a forma de

entender a razão-motor de sua corporidade: se tal razão é natural, Deus está diretamente

presente na vontade humana como força constitutiva do apetite natural pela vida social,

o que colocaria a graça ou a providência em plano secundário como forças constitutivas

da ordem social; se tal razão é social, Deus está presente pelo efeito de sua providência,

criando circunstâncias terrenas que testam os limites da vontade humana, pois, ferindo a

sua arrogância ou expondo a sua vulnerabilidade, inspiram uma necessidade

instrumental e permanentemente aperfeiçoável de imitar a capacidade divina de criar

formas, limites e reciprocidade hierárquica na matéria do mundo político. No entanto,

197Ver: DIEHL, Huston. “Infinite Space: Representation and Reformation in Measure for Measure”. Shakespeare Quartely, volume 49, 1998(4): pp.393-410

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demográfico e com a substituição progressiva do pagamento de direitos senhoriais

em bens ou serviços por pagamentos em dinheiro, havendo uma reconfiguração

das relações sociais senhoriais. Muitos membros da nobreza tornaram-se cortesãos

e tendencialmente substituiriam a obrigação feudal de “pagamento com sangue e

armas”, em caso de guerras, por contribuições monetárias, o que significava

mudanças nas relações sociais e econômicas dentro de seus próprios domínios

(i.e., a monetarização das obrigações senhoriais).

Em longo prazo, isso não só abriu a chance para o enriquecimento de famílias

camponesas arrendatárias de terras da nobreza, mas também, devido ao afastamento

gradativo desta do comprometimento direto com a guerra, a possibilidade da ascensão

social, através da prática guerreira, para outros grupos fora da nobreza – e que se

nobilitariam em função disso. Por isso, deve-se considerar que a nobreza feudal “perdeu

poder social com a expansão do setor monetário da economia” de um ponto de vista

relativo, ou seja, “perdeu poder” porque outros grupos passaram a concorrer com ela

por prerrogativas de governo dentro dos novos principados – e a exigência de incorporar

tais prerrogativas era viver nobremente199. Nesse sentido, qualquer tipo de bipolarização

em torno da nobreza ou da burguesia impediria de entender a riqueza da análise de Elias

sobre a configuração do Estado no início da Idade Moderna.

O seu conceito de configuração social (Figuration ou figuração social)

enfatiza as ligações entre mudanças na organização estrutural da sociedade e mudanças

no padrão social de comportamento e na constituição psíquica dos indivíduos. Seguindo

tal coerência de argumento, a formação do Estado (i.e., a configuração estatal dos

vínculos sociais) representaria uma transformação nas formas de o indivíduo sentir e

pensar o que seria o seu viver pessoal e a sua convivência com os demais, já que a sua

unidade sociológica está implicada com a emergência de uma cadeia humana de

interdependência mais anônima e abstrata que comprimiria a relação entre proximidade

e distância – tal como a técnica da perspectiva na pintura –, criando uma situação

ambígua para o indivíduo de dependência sem familiaridade, o que é uma das marcas

configurativas da vida moderna. Além disso, o conceito de configuração permite-nos

199Ver, comparativamente, os seguintes estudos de caso mais recentes a respeito de modos jurídicos de se estabelecer princípios de distinção no interior da elite social: KAPLISCH-ZUBER, Christiane. “Ruptures de parenté et changements d’identité chez les magnats florentins du XIVe siècle”. Annales(ESC), volume 43, 1988(5): pp.1205-1240; RAINES, Dorit. “Pouvoir ou privilèges nobiliaires: Le dilemme du patriciat vénetien face aux agrégations du XVIIe siècle”. Annales(ESC), volume 46, 1991(4):pp.827-847; VISCEGLIA, Maria Antonietta. “Un groupe social ambigu: Organisation, Stratégie et Représentations de la Noblesse Napolitaine, XVIe-XVIIe siècles”. Annales(ESC), volume 48, 1993(4): pp.819-851; CERUTTI, Simona. “Nature des Choses et Qualité des Persones: La Consultat de commerce de Turin au XVIIIe siècle”. Annales(HSS), volume 57, 2002(6):pp.1491-1520

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escapar do monismo metodológico da análise social de viés liberal, que dicotomiza

indivíduo (encapsulado) e sociedade (ente externo), pois Elias pensa cada indivíduo ou

ator social como uma unidade aberta e mutável (no espaço e no tempo) de vínculos

sociais, diferentemente da visão clássica do “homo clausus” ontologicamente livre200.

Outra implicação analítica importante do conceito eliasiano de configuração

social é pensar que o advento do Estado pressupõe (mas não é contido por) um poder

central/centralizador. Ora, esta nuança conceitual distingue-se da tradição política

liberal que, inscrevendo-se imperceptivelmente nas ciências sociais em geral, interpreta

o Estado como uma espécie de ente externo constrangedor em face a uma sociedade

encapsulada (fechada em si mesma), espontânea e resistente ao seu abraço

constrangedor. Na verdade, o que tal tradição liberal de análise da formação do Estado

faz é simplesmente transferir a dicotomia “indivíduo encapsulado vs. sociedade ente

externo” para a interpretação da relação entre poderes centrais soberanos e estruturas

locais de poder. Alternativamente a este modelo, Elias pensa Estado como uma forma

específica de sociedade que, para existir, demanda certamente uma força soberana

centrípeta estável no tempo, que tanto se impõe quanto é estrategicamente desejada

devido ao modo como se definem as relações interindividuais e intergrupais de

dependência social na virada para a Idade Moderna.

Pensando o surgimento do Estado na Europa nos termos de um processo de

civilização, o foco analítico de Elias está em entender como o padrão social de

comportamento de indivíduos ou grupos sociais é alterado à medida que eles mesmos se

percebem implicados numa cadeia mais ampla e abstrata de pertencimento e

interdependência social. No entanto, deve-se também considerar que,

independentemente de ser estatal ou não, em toda configuração social haveria: (1) um

equilíbrio tensamente móvel dos vínculos sociais; (2) jogos de distinção

social/pertencimento grupal; (3) graus ou patamares específicos de controle de impulsos

instintivos. De certo modo, isso nos previne de cair na tendência funcionalista

parsoniana de pensar a estrutura social como um “sistema” em equilíbrio estático201.

Afinal, em termos eliasianos, qualquer configuração social (estatal ou não) seria

definida pelo modo como se dão as relações dinâmicas de interdependência social,

sabendo-se, por antecipação, que elas se alteram imprevisivelmente ao longo do tempo à

200ELIAS, Norbert. Processo Civilizador, vol.1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p.249 201ELIAS, Norbert. Processo Civilizador, vol.1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p.249

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medida que ocorrem mudanças nas características econômicas e nas formas culturais de

legitimação da divisão social do trabalho ou dos papéis sociais.

Segundo Elias, o processo de civilização em que se inscreve o nascimento do

Estado seria exigente de que cada indivíduo demonstrasse capacidade psicológica

de integração social em espaços políticos e sociais mais ampliados. Por isso

mesmo, a sua forma social demandaria a existência de indivíduos com um nível

mais alto de diferenciação no controle das emoções. Não por acaso, a

configuração estatal dos vínculos sociais na Idade Moderna é concomitante ao

padrão social e moral cortesão de figuração comportamental202. Porém, não se

deve esquecer que Elias não pensa o processo de civilização como uma

necessidade mecânica ou finalidade teleológica: o conceito de processo serve para

lembrar que forma social e padrões sociais e morais de comportamento se

implicam mutuamente, evoluindo por longos períodos, cegamente e sem planos

predefinidos.

Contudo, paradoxalmente, ao subordinar a “superação da feudalização” à

“sociogênese” do Estado Nacional, pensando o “absolutismo” na Idade Moderna

como uma forma de preparação para este último, Elias acaba por cair, sem ter-se

dado conta disso, numa arapuca analítica teleológica. Daí, não me interessa este

ponto de sua análise, mas sim alguns pressupostos teóricos e conceituais que me

permitam justamente propor uma legibilidade cultural e histórico-sociológica para

as peças associadas ao nome ‘Shakespeare’ que as inscrevam adequadamente na

lógica de funcionamento da corporidade estatal e do poder soberano no Antigo

Regime, quais sejam:

(1) O fato de Elias estabelecer uma relação implicativa entre processo de individuação e Estado, sem cair no paradigma liberal do homo clausus que, como já tivemos a oportunidade de modelarmente observar, norteia a análise de Viveiros de Castro e Ricardo Benzaquen da peça “Romeu e Julieta”203. (2) O fato de Elias pensar Estado como uma configuração específica de vínculo social, ou seja, o Estado é uma forma de sociedade, livrando-se do hábito liberal de pensar o Estado como um ente administrativo/coercitivo/legal externo à sociedade – i.e., a fórmula dicotômica liberal “Estado (como poder central soberano) versus Sociedade Civil (de entes psicológicos desvinculados de pedículos estamentais ou corporatistas)”. (3) O fato de seu conceito de configuração ou figuração social trazer para a análise social a percepção da realidade observada como algo em movimento, numa espécie de “equilíbrio móvel de tensões” de suas partes constitutivas, sem subordinar tal indagação à realização de um plano metafísico, ou seja, Elias não pretende desenvolver um modelo

202Ver: ELIAS, Norbert. Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 203CASTRO, E.B. Viveiros de; ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. “Romeu e Julieta e a Origem do Estado”. In Arte e

Sociedade: Ensaios de Sociologia da Arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. pp.130-169

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analítico que tão somente sirva para aplicar idéias preconcebidas que normatizem como a realidade (ou o processo social) deve ser; em vez disso, ele tenta investigar hipoteticamente como ela é ou se forma. (4) O fato de sua análise social pressupor que cada configuração representa uma forma própria de constituição de vínculos sociais e, nesse sentido, as relações sociais (incluindo as suas dimensões econômicas) seguem uma racionalidade e um padrão social de comportamento que lhes são historicamente específicos, não se devendo transferir analiticamente para elas uma racionalidade que não lhes pertence. Seguindo tais pressupostos, o surgimento do Estado seria indissociável da

melhoria da conectibilidade e interdependência das diferentes partes de um território, de

forma que, gradativamente, cada agrupamento local de habitantes passaria a sentir que

muitas coisas de seu cotidiano eram afetadas por forças supralocais (anônimas e

abstratas) e, por isso, não poderiam mais ser resolvidas em âmbito estritamente local,

tais como: a proteção nas estradas e sua manutenção para permitir o escoamento dos

bens locais no comércio de longa distância; a guerra em seus efeitos diretos

(desestabilização da produção) e indiretos (cobranças de rendas extraordinárias – o

fisco), que escapavam do tradicional localismo senhorial, embora dependessem de sua

mediação; a garantia legal e previsibilidade contratual nas práticas comerciais, o que,

em certa medida, também serviu como inspiração para as instituições da administração

pública; a cunhagem e controle sobre a circulação da moeda, dando para esta um caráter

progressivamente fiduciário204; a manutenção de forças militares permanentes para a

proteção do território; a comutação dos encargos fiscais.

Tal transformação figuracional por si só já pressupunha uma mudança de

mentalidade205 que alterava a percepção que se tinha dos poderes políticos locais, pois a

sua forma autárquica medieval de expressão ou organização do espaço social foi

relativizada por novas circunstâncias supralocais de vínculos sociais, políticos,

jurídicos, econômicos, fiscais e culturais. Nesse sentido, a escala206 do Estado nos

séculos XVI e XVII está historicamente implicada com a consciência da abertura e

204Sobre esta questão, ver também: MISKIMIN, Harry A.. A Economia do Renascimento Europeu. Lisboa: Estampa, 1984. pp.355-381 205Ver: ELIAS, Norbert. Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.pp.105-108. (O termo “mentalidade” é compreendido por Elias como uma forma própria de pensar e sentir inscrita num repertório sociocultural particular, com dispositivos conceituais periodicamente selecionados e refeitos pelos indivíduos para construir sentido e controle sobre sua corporalidade física, sua ambiência natural e suas práticas sociais, conformando, deste modo, um habitus. Portanto, em Elias, “mentalidade” inscreve-se coerentemente em sua percepção de processo social. Isso significa que não se confunde com as idéias estáticas de “quadro mental”, “estrutura mental” ou “utensilagem mental” de L. Fèbvre, que estiveram muito em voga na historiografia francesa da década de 1960 através dos estudos de Jacques Le Goff e George Duby. De igual modo, também não se confunde com a noção de “gramática cultural” dos estudos de Robert Darnton da década de 1970. A vantagem analítica da noção eliasiana de habitus era reconhecer uma margem criativa e dinâmica de liberdade para o indivíduo dentro dos limites estabelecidos por seu meio sociocultural, podendo imprevisivelmente refazer os limites, os usos e os significados de seu repertório cultural. 206Aqui, ‘escala’ deve ser entendida como a extensão quantitativa e qualitativa, tanto em diversidade social quanto espacial, da interconexão de pessoas sociais. Portanto, escala é aqui entendida como um aspecto da organização social. (Ver: BARTH, Fredrik. Scale and Social Organization. Oslo/Bergen/Tromso: Universitetsfoglaget, 1972. pp.253-272)

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expansão do espaço e do tempo como âmbitos humanos. Ora, frente a uma expansão tão

singular dos horizontes de aspirações, tornou-se mais contundente que as demandas de

adequação das corporalidades físico-psicológicas às convenções das corporidades

institucionais (dignitas) não poderiam mais ser respondidas pelos modelos morais dos

“espelhos de príncipe” ou “espelhos de magistrados” dos séculos XIII e XIV.

Em tais tratados, era recorrente a suposição aristotélico-tomista ou humanista

platônica de que havia uma propensão (natural ou infundida) do homem para o bem e

para a vida social. No entanto, tal como já foi mencionado no item anterior, a escala

estatal de experiência social entre os séculos XV e XVII alterou gradativamente os

modelos morais de ação política: emergiu a percepção de que as qualidades públicas

exigidas das autoridades soberanas (colegiadas ou não), assim como os dilemas e

desafios morais de sua função, eram distintos das qualidades morais ideais exigidas de

cada cidadão ou súdito em sua vida particular. Logo, a forma de admirar ou censurar um

soberano seria distinta de qualquer parâmetro moral praticado na vida privada207. A obra

“O Príncipe”(1513), de Nicolau Maquiavel (1469-1527), é um marco exemplar de

época nesse sentido:

“Resta examinar agora como deve um príncipe comportar-se com os seus súditos e seus amigos. Como sei que muita gente já escreveu a respeito desta matéria, duvido que não seja considerado presunçoso propondo-me a examiná-la também, tanto mais quanto, ao tratar deste assunto, não me afastarei grandemente dos princípios estabelecidos pelos outros. Todavia, como é meu intento escrever coisas úteis para os que se interessarem, pareceu-me mais conveniente procurar a verdade pelo efeito das coisas, do que pelo que delas se possa imaginar. E muita gente imaginou repúblicas e principados que nunca se viram nem jamais foram reconhecidos como verdadeiros. Vai tanta diferença entre como se vive e o modo por que se deveria viver que quem se preocupar com o que se deveria fazer em vez do que se faz aprende, antes, a própria ruína do que o modo de se preservar; e um homem que quiser fazer profissão de bondade é natural que se arruine entre tantos que são maus. Assim, é necessário a um príncipe, para se manter, que aprenda a poder ser mau e que se valha ou deixe de se valer disso segundo a necessidade... Eu sei que cada qual reconhecerá que seria muito de louvar que um príncipe possuísse, entre todas as qualidades referidas, as que são tidas como boas; mas a condição humana é tal que não consente a posse completa de todas elas, nem ao menos a sua prática consistente. É necessário que o príncipe seja tão prudente que saiba evitar os defeitos que lhe arrebatariam o governo e praticar as qualidades próprias para lhe assegurar a posse deste, se lhe é possível; mas, não podendo, com menor preocupação, pode-se deixar que as coisas sigam o seu curso natural. E ainda não lhe importe incorrer na fama de ter certos defeitos; defeitos estes sem os quais dificilmente poderia salvar o governo, pois que, se se considerar bem tudo, encontrar-se-ão coisas que parecem virtudes e que, se fossem praticadas, lhe acarretariam a ruína, e outras que poderão parecer vícios e que, sendo seguidas, trazem a segurança e o bem-estar do governante”.208(Grifo meu)

As virtudes cardeais no pensamento clássico, retomadas pelos humanistas

italianos dos séculos XIV e XV, eram: Prudência (cuja constituição incluía: razão,

207SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.pp.146-159 208MAQUIAVEL, Nicolau. “Capítulo XV: Das razões por que os homens e, especialmente, os príncipes são louvados ou vituperados”. In O Príncipe. São Paulo: Abril Cultural, 1973.pp.69-70

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emergiria entre os homens um senso moral pragmático de limite para as suas ações, o

que justamente criava as condições de possibilidade para a ordem pública. Portanto, a

originalidade de Maquiavel estava em francamente reconhecer o paradoxo moral

inerente à fundação dos Estados, pois a sua origem estava na falha da posse completa de

todas as virtudes (ou dons) por cada homens, ou seja, exatamente naquilo que definia a

condição humana na vida terrena. Dada esta “falha essencial”, para os súditos de um

príncipe não serem refratários à sua autoridade, deveriam ser mantidos numa difícil

balança de temor respeitoso, ameaça material, interesse de ganhos, esperança por justiça

e expectativa de proteção.

Como podemos notar hoje, a visão moral do principado em Maquiavel era

similar à visão calvinista de realeza, pois ambas demandavam que a potestas (ação

administrativa) principesca tivesse como efeito prático constituir uma corporidade

institucional mais extensamente inclusiva e abstrata que dividisse, por analogia com

Cristo, a mesma associação paradoxal de “nascimento” e “eternidade”, “proximidade” e

“distância”, “arte” e “substância”. Assim, diferentemente de um odioso e diabólico

tirano, o príncipe moderno dividiria, por analogia com Cristo, a mesma associação

paradoxal de “obediência” e “preeminência” em relação às leis, de “regra” e “exceção”,

de “tradição” e “novidade”, de “pai” e “filho”, de “autoridade” e “submissão”, de

“temor” e “amor”, de “circunspecção” e “ímpeto”, de “punição” e “graça”, de

“sofrimento” e “elevação”, de “virtude” e “tentação”, de “sacrifício” e “redenção”.

Disso se depreende que, além de se fazerem temidos sem serem odiados, os príncipes

modernos deveriam acionar todos os meios possíveis para se fazerem necessários, de

serem a própria garantia ou meio-termo dos diversos – e nem sempre facilmente

convergentes – apetites e interesses particulares de seus súditos:

“[É necessário que o príncipe] saiba comandar e ser homem de coragem, que não se abata nas adversidades, não se esqueça das outras precauções e tenha, com seu próprio valor e conduta, incutido confiança no povo; [deste modo,] jamais será enganado por este e verá que reforçou os seus alicerces.(...) Conclui-se daí que um príncipe prudente deve cogitar a maneira de fazer-se sempre necessário aos seus súditos e de precisarem estes do Estado(...)” 209 “(...)Os Estados bem organizados e os príncipes prudentes preocuparam-se sempre em não reduzir os grandes ao desespero e satisfazer e contentar o povo, porque essa é uma das questões mais importantes que um príncipe deve ter em mente. Em nossos tempos, entre os reinos bem organizados e governados, deve-se enumerar o de França. Encontram-se nele numerosas boas instituições, das quais dependem a liberdade e a segurança do rei. A primeira delas é o parlamento e a autoridade que possui, pois o homem que organizou aquele reino, conhecendo, por um lado, a ambição e a insolência dos poderosos e julgando necessário por-lhes um freio à boca para corrigi-los, e, por outro lado, conhecendo o ódio do povo contra os grandes, motivado pelo medo e querendo protegê-los, não permitiu que essa tarefa ficasse a cargo do rei, para desculpá-lo da acusação dos grandes quando favorecesse o povo, e do povo

209MAQUIAVEL, Nicolau. “Capítulo IX: Do Principado Civil”. In O Príncipe. São Paulo: Abril Cultural, 1973.pp.45-48

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quando favorecesse os grandes. Por isso, constituiu um terceiro juízo que fosse aquele que, sem responsabilidade do rei, deprimisse os grandes e favorecesse os menores. Essa organização não podia ser melhor nem mais prudente, nem se pode negar que seja a melhor causa de segurança do rei e do reino. Pode-se daí tirar notável instituição: os príncipes devem encarregar a outrem da imposição de penas; os atos de graça, pelo contrário, só a eles mesmos, em pessoa, devem estar afeitos. Concluo novamente que um príncipe deve estimar os grandes, mas não se tornar odiado pelo povo”.210 “...E os homens não são nunca tão maus que queiram oprimir a quem devem ser gratos. Ademais, as vitórias não são nunca tão completas que o vencedor não tenha que levar em conta outras considerações, principalmente de justiça.(...)Não pense nunca nenhum governo poder tomar decisões absolutamente certas; pense antes em ter que tomá-las sempre incertas, pois isto está na ordem das coisas(...). A prudência está justamente em saber conhecer a natureza dos inconvenientes e adotar o menos prejudicial como sendo bom”.211 Nesses termos, o príncipe deveria ser um manipulador (no sentido renascentista

de magus-artifex) e hierarquizador dos diversos interesses particulares, de modo a

transformar as existências, tendentes à dispersão, dos diferentes agrupamentos humanos

em instrumentos ou meios a partir dos quais conscienciosamente se serviria, segundo

cálculo circunstancial (ratio), para alcançar o seu objetivo principal: a edificação da

corporidade estatal e a sua perpetuidade no tempo. De qualquer forma, não se pode

perder de vista que, para Maquiavel, as escolhas humanas que configuram o Estado

como artifício continuam envoltas num mistério teológico-político e inscritas em

referenciais corporatistas estamentais de vínculo social. Daí, não se deve estranhar que,

de forma pouco específica, Maquiavel use frases como: “pode-se deixar que as coisas

sigam o seu curso natural”, “o homem que organizou aquele reino” ou “pois isto está

na ordem das coisas”. Afinal, nos séculos XVI e XVII, a concepção do Estado como

artifício não era incompatível com o pensamento jurídico-teológica que estabelecia

algum nexo (causal ou analógico, dependendo da abordagem) entre Arcana Naturae,

Arcana Dei e a Arcana Imperii. Neste ponto, o trecho que se segue de Charles Loyseau

é um caso exemplar:

“...As criaturas inanimadas são todas dispostas conforme o seu maior ou menor grau de perfeição; seus tempos e estações são certos, suas propriedades são regradas, seus efeitos são assegurados... No que se refere aos homens, que são ordenados por Deus para comandar as...hierarquias animadas do mundo inferior, não podem sobreviver sem ordem, embora esta seja mutável e sujeita às vicissitudes devido à franquia e liberdade particular que Deus lhes concedeu. Justamente porque não podemos viver em igualdade de condições, é necessário que uns comandem e outros obedeçam. Aqueles que comandam têm várias gradações: os soberanos Senhores comandam todos aqueles de seu Estado, dirigindo o seu comando aos grandes, os grandes aos medianos, os medianos aos pequenos e os pequenos ao povo. E o povo, que obedece a todos esses, está ainda separado em várias ordens e níveis a fim de que cada um deles tenha o seu superior, que dão razão de toda a sua Ordem aos magistrados, e os magistrados aos Senhores soberanos. Assim, por meio dessas divisões e subdivisões multiplicadas, se faz de várias ordens uma ordem geral, e de vários estados um Estado bem

210MAQUIAVEL, Nicolau. “Capítulo XIX: De como se deve evitar o ser desprezado e odiado”. In O Príncipe. São Paulo: Abril Cultural, 1973.pp.83-86 211MAQUIAVEL, Nicolau. “Capítulo XXI: O que a um príncipe convém realizar para ser estimado”. In O Príncipe. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p.101

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regrado, no qual há um boa harmonia, consonância, correspondência e relação do mais baixo ao mais alto, de forma que um número incontável desemboque em sua unidade...”212 Aqui, afirma-se a necessidade de enquadramento hierárquico dos indivíduos em

corpos estamentais de privilégios para que haja reciprocidade hierárquica na vida social.

No entanto, já podemos observar que perde força a expectativa teológica tomista de

fixar definitivamente a posição de uma corporalidade físico-psicológica numa

corporidade estamental. Assim, consoante ao seu arbítrio em face às vicissitudes da

vida, o homem poderia mudar a sua classificação social (i.e., mudar de estamento, ou de

corpora no interior de um estamento). Além disso, é possível notar que uma visão

instrumental da corporidade estamental do Estado mistura-se com uma percepção da

harmonia mundi como algo envolto no mistério divino da criação. Sobre esta correlação

entre artifício e mistério divino da criação, gostaria de fazer mais algumas

considerações.

Ao observar as relações analógicas entre os vocabulários jurídico e artesanal do

século XV, Ernst Kantorowicz percebeu que, ao final deste período, o conceito de

artifício deixou de ser entendido como mera imitação (mal feita ou ‘simulacro’) das

formas produzidas pela natureza, para ser entendido como resultado da imitação da

capacidade da natureza de criar formas213. Assim, as formas constituídas pelo arbítrio

humano deveriam seguir os mesmos pressupostos de ordem, necessidade, sucessão,

proporção, reciprocidade, hierarquia e equilíbrio atribuídos no Renascimento à noção

de Natureza (o espelho da harmonia divina no tempus), pois, como artifícios, tais

formas eram o resultado da convergência eficiente de elementos ou meios quaisquer

para vencer ou atenuar os efeitos imprevistos e destrutivos do tempo nas empresas

humanas. Eis o novo espelho da Natureza para os vários artifícios humanos, entre os

quais, o Estado.

Desde finais do século XIII, como notara Kantorowicz, houve no debate

jurídico-teológico aristotélico a necessidade de distinguir tempus (o tempo mutável da

esfera sublunar) de aeternitas (o tempo da perfeição divina antes da ordem das coisas

criadas) e de aevum (o tempo da perfeição angélica, pois cada anjo, embora faça parte

da ordem das coisas criadas, é em si mesmo espécie e, portanto, imutável)214. Nesse

sentido, tempus é o tempo das coisas criadas na esfera sublunar, que se corrompem

212Trecho do prefácio do “Livre des Ordres et Simples Dignitez”(Paris, 1610). Apud: CORNETTE, Joël. L’Affirmation de l’État Absolu, 1515-1652. Pa(6)-7.042254225(.)-3.52113( )10.58c

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como indivíduos mas se perpetuam como espécie, isto é, a partir da transformação

sucessiva enquanto corporação coletiva. Tais distinções conceituais serviram para

enfatizar que tempus é, por excelência, o tempo da consciência humana, advindo da

perda do Paraíso Terrestre, que se torna, então, um tempo de espera ou preparação para

o retorno ao Paraíso (agora somente Celeste). Neste tempo de espera ou preparação, o

engenho humano poderia manifestar a sua religação (religio) com Deus através da sua

capacidade de criar formas (obras), demonstrando que não perdera completamente a sua

relação de semelhança com o Criador, ou seja, que não está completamente – ao viver

na ordem mundana – sob a pecha do mal.

Nesse sentido, deve-se notar que tais considerações sobre o tempus demonstram

o surgimento de um locus conceitual importante de autonomia (mas não de

contraposição) da glória humana em relação à glória celeste, o que significa que o

tempo de espera começa também a ser pensado com outro valor, isto é, como aquele em

que o homem – como Imago Dei na esfera sublunar – pode e deve exercitar a sua

capacidade criativa de edificar formas de si e para si. Aliás, é da ordem da Natureza –

o outro espelho de Deus, para além do homem, na esfera sublunar – ser mais rápida em

edificar formas do que o tempo em destruí-las. Ora, a exemplo da Natureza, para os

homens edificarem formas políticas devem estabelecer ordem necessária e

reciprocidade hierárquica na matéria do mundo político (edificação institucional) e

entre si mesmos (autodelimitação ou edificação de si para a vida social). Dentro dessa

lógica de argumento, como sabemos, aquilo que é necessário é reflexo, mesmo que

indireto, do divino. Tendo chegado a este ponto, gostaria de desenhar agora um paralelo

analógico entre o que entendo por Estado no Antigo Regime e a noção renascentista de

artifício. Perceberemos que este exercício semântico permitir-nos-á convergir conceitos

analíticos de Norbert Elias, Ernst Kantorowicz, Marcel David e António Manuel

Hespanha215 nos itens que se seguem.

215Ver: ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, 2 vols.. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994; ELIAS, Norbert. Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001; KANTOROWICZ, Ernst H.. Os Dois Corpos do Rei. São Paulo: Companhia das Letras, 1998; DAVID, Marcel. La Souveraineté et les Limites Juridiques du Pouvoir Monarchique du IXe au XV e Siècle. Paris: Librairie Dalloz, 1954; HESPANHA, António Manuel. “Para uma teoria da história institucional do Antigo Regime”. In Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1982. pp.7-89. Convirjo tais obras para tirar conseqüências analíticas e conceituais que não necessariamente se compatibilizam com as teses principais de cada autor, mas que se coadunam com minha experiência de pesquisa e com a revisão do tema Absolutismo na historiografia européia. Sobre este ponto, ver: COSANDEY, Fanny; DESCIMON, Robert. L’Absolutisme en France: Histoire et Historiographie. Paris: Seuil, 2002; ASCH, Ronald; DUCHHARDT, Heinz(eds.). El Absolutismo: Un Mito? Barcelona: Idea Books, 2000.pp.43-83; VIANNA, Alexander Martins. O Ideal e a Prática de Governar: o Antigo Regime no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGHIS, 2000.(Diss.mimeo.).

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sociais. Como é uma abstração jurídico-teológica, não deve ser confundida

concretamente com cargos, ofícios ou posições estamentais, pois trata-se justamente da

prerrogativa jurídico-teológica, fundamento ou “causa motor” que permite que cargos,

ofícios e posições estamentais existam como formas institucionais estáveis e sucessivas

no tempus217. Como notara Kantorowicz, a emergência desse sentido jurídico-teológico

para o conceito de Dignitas está historicamente implicada com a demanda sociológica

de que as instituições sociais e políticas sejam prefiguradoras da ação do indivíduo e

que, deste modo, alimentem nele algum senso contratual de previsibilidade e

adequação comportamental às suas exigências funcionais.

Portanto, em relação a esta concepção de Dignitas, os recursos materiais e

imateriais de um indivíduo, ‘casa’ ou ‘família’ seriam instrumentum dignitatis. Ora,

isso está implicado com uma mudança comportamental que fora percebida e estudada

por Norbert Elias: o habitus psicológico e sociológico de subordinar a corporalidade

físico-psicológica do indivíduo, assim como os recursos materiais, a reputação e a

influência social de sua ‘casa’ ou ‘família’, às exigências funcionais da corporidade

abstrata dos cargos, ofícios e posições estamentais que viesse a encarnar

provisoriamente218. Ora, quando observamos as instituições sociais e políticas serem

operadas ou pensadas nesses termos, estamos diante da experiência histórica da

configuração estatal dos vínculos sociais a partir de estruturas patrimoniais de poder.

Por outro lado, podemos perceber que, no Antigo Regime, uma configuração

estatal dos vínculos sociais é estamental porque a dignidade social ou funcional do

indivíduo continua sendo pensada, encarnada e avaliada tendo como parâmetros

modelares os três estamentos medievais, que são definidos como grandes corpos

político-jurídicos com prerrogativas e jurisdições próprias. São eles: o 1º estado (clero

ou “aqueles que oram”), o 2º estado (nobreza ou “aqueles que guerreiam”) e o 3º estado

(“povo” ou “aqueles que labutam”). Portanto, na forma estamental de configuração

estatal dos vínculos sociais, um indivíduo torna-se pessoa social (persona), ou

instrumentum dignitatis, à medida que está vinculado aos predicativos político-

jurídicos e sociológicos de um estamento. Nesse sentido, os estamentos são um

pressuposto organizacional geral das prerrogativas sociais, políticas, jurídicas e

econômicas de cada indivíduo, ‘família’ ou ‘casa’ no Antigo Regime, o que significa

217KANTOROWICZ, Ernst H.. Os Dois Corpos do Rei. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.pp.233-272 218Ver: ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, 2 vols.. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994; ELIAS, Norbert. Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

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que hierarquia e desigualdade político-jurídica são entendidas por cada ator social como

necessárias para a conformação da ordem pública.

Assim, temos aqui definida a configuração estatal da sociedade patrimonial-

estamental ou, para simplificar, o Estado no Antigo Regime. No entanto, para se

evitar uma visão estritamente normativa de sua estrutura de poder e, ao mesmo tempo,

não perder de vista uma constante lógica que norteia as suas práticas sociais, deve-se

lembrar que o pressuposto organizacional geral dos três grandes estamentos não elimina

que haja, no interior de cada um, tal como pudemos observar em Charles Loyseau, uma

infinda divisão e sobreposição de corpos de privatae leges, cujos efeitos práticos variam

conforme cada localidade e circunstância ao longo do tempo.

Além disso, em cada corpo de privilégio de uma localidade há geralmente um

sanior pars (superior presumido entre seus iguais), definido conforme as atribuições ou

recursos (materiais e imateriais) valorizados nas redes sociais (locais ou extra-locais)

das quais faz parte. Simultaneamente ou não, tais atribuições ou recursos podem estar

associados à escala da patronagem de uma ‘casa’, aos costumes ou tradições

compartilhados e vinculados a uma localidade, à riqueza material ou à

sabedoria/experiência numa função. Para além de sua localidade, um sanior pars

representa ou faz a mediação dos interesses de seu corpus; enquanto que, localmente,

julga contendas, recompõe a unidade, aconselha ou distribui encargos e

responsabilidades (fiscais, sociais, jurídicas etc...).

No trecho da obra de Charles Loyseau anteriormente citado, pudemos observar

um esforço jurídico-teológico de atualizar conceitualmente as percepções das três

ordens estamentais (clero, nobreza e “povo”) como partes da harmonia mundi criada

por Deus, adequando-as à realidade de maior mobilidade social e espacial então vivida

na Europa Moderna, o que transparece quando o próprio jurista afirma que os homens

não podem viver sem “ordem”(isto é, sem enquadramento num corpo de privilégio

estamental) e, ao mesmo tempo, afirma que a relação de cada homem com as ordens é

mutável. Isso significa que a complexificação da vida social e política nos séculos XVI

e XVII não abalou o pressuposto de organização social calcado em hierarquias

estamentais e unidades corporatistas de privilégios, sem as quais não haveria agregação

política e paz social. Nesse sentido, há nos escritos de Loyseau uma expectativa de paz

social da qual os personagens Julieta e Romeu são o extremo avesso219.

219Voltarei a tal discussão mais detidamente no capítulo IV.

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Ora, é justamente neste contexto de maior mobilidade transestamental que o

problema de governar se distanciou das expectativas tomistas medievais,

redimensionando a forma estamental de organização dos vínculos sociais para uma

lógica sociocultural – característica da abertura mercantilista do mundo das experiências

– que tendencialmente fazia primeiro referência ao indivíduo, indiciando os seus

caracteres pessoais, virtudes e vícios, para depois fazer referência à necessidade do

sacrifício ou adequação de sua corporalidade físico-psicológica às obrigações sociais

vinculadas à corporidade de uma Dignitas (self, shape ou fashion, se nos reportarmos

ao vocabulário dramático shakespeareano). Nesses termos, aquele que falha em fazer

isso, principalmente quando ocupa a posição de cabeça do corpo político, tal como o

personagem Ricardo III, torna-se uma ameaça ou temeridade diabólica para a

Universitas220.

Em certo sentido, a tendência de fazer referência ao indivíduo para, em seguida,

aludir à necessidade do sacrifício ou adequação de sua corporalidade físico-psicológica

à corporidade de uma Dignitas – e, deste modo, configurar a ordem pública – é também

expressa literariamente nas tópicas do “teatro do mundo” e da “loucura do mundo”.

Nestas, o indivíduo é representado num vagar constante e inseguro para, deste modo,

tomar consciência de sua vulnerabilidade individual quando não atua de acordo com as

exigências comportamentais de sua Dignitas. Se Julieta e Romeu mostram-se

claramente avessos a tal obrigação, o mesmo não pode ser dito, por exemplo, da

trajetória dramática da relação entre o Príncipe Hal (o futuro Henrique V), o seu pai

Henrique IV e o seu servidor Falstaff.

A decadência de Falstaff junto à camarilha do Príncipe Hal e a sua subsequente

morte – o que ocorre entre a última parte de “Henrique IV”(1598-1600) e meados de

“Henrique V”(1600) – representam um rito de passagem em que “Hal” assume a

corporidade de “Rei”, provando a seu pai (e ao “leitor/audiência”) que suas

libertinagens junto à ralé eram uma grande farsa teatral que funcionava como uma

espécie de jornada que lhe servira para observar mais de perto o seu futuro reino – i.e.,

perspectivar e aprender os seus múltiplos “idiomas” sociais, tal como ele mesmo sugere

num de seus muitos solilóquios – e enganar os adversários de seu pai ao sugerir

falsamente que teria uma incapacidade (hu)moral de ser herdeiro da Coroa221.

220Voltarei a tal discussão mais detidamente no capítulo III. 221McEACHERN, Claire. “Henry V and the paradox of the Body Politic”. Shakespeare Quartely, volume 45, 1994(1): pp.33-56

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Ora, tudo isso demonstra, por exemplo, que “ser nobre” é uma condição que

pode ser conquistada e desfrutada, mas também perdida, em vez de ser um estado ou

predicativo imutável fundido misteriosamente e essencialmente a um indivíduo ou

grupo de indivíduos222. Podemos observar este tipo de consciência ser emprestada ao

personagem Brackenbury, lugar-tenente da Torre em “Ricardo III”(Q1, 1597).

Enquanto está velando o sono de Clarence, pouco antes da entrada dos assassinos do

duque, ele dirige ao “leitor/audiência” da peça as seguintes palavras:

Princes haue but their titles for their glories, An outward honour, for an inward toile, And for vnfelt imagination, They often feele a world of restlesse cares: So that betwixt their titles and lowe names,

Theres nothing differs but the outward fame.223

Príncipes têm somente seus títulos para suas glórias, uma honra externa por uma faina interior. E, por causa de insensata imaginação, sentem quase sempre um mundo de infelizes preocupações. Então, entre seus títulos e os nomes de baixa posição não há diferença alguma além da fama exterior.

Em seu solilóquio, Brackenbury expõe que a honra da nobreza é o resultado de

um jogo contingente e maleável de aparências, ou seja, ela não possui um valor

substancial ou intrínseco que garanta a manutenção da supremacia política. Pelo

contrário, se ela não estiver acompanhada de engenhosidade política, prudência,

comedimento e senso de ocasião, torna-se tão somente uma “insensata imaginação”, que

inclusive pode criar situações vexaminosas que desembocam em sua própria

desfiguração: no decorrer da cena que resulta no assassinato do Duque de Clarence, por

exemplo, este começa com um tom característico de arrogância ducal e termina como

um “mendigo que mendiga” pela vida perante os seus inferiores sociais224. Portanto, um

nobre excessivamente preocupado em fazer de si mesmo um “ídolo guerreiro de

adoração”, que não estiver consciente de que a sua honra é apenas uma sombra, um

sonho, uma representação, não saberá se prevenir contra a sua própria destruição.

De forma modelar, na peça “Ricardo III”, a nobreza ainda é pensada como uma

base sólida para a liderança política, mas a intriga política, a astúcia sorrateira e a

demagogia se sobrepõem à sua habilidade guerreira. Nesse sentido, é fundamental que a

fama e a virilidade guerreiras da nobreza sejam temperadas pela engenhosidade política

e pela prudência, pois, se ela permanecesse estritamente centrada num ethos guerreiro,

222Sobre isso, ver a análise interessante sobre as retóricas de honra, de valor e de auto-edificação guerreira na peça “Júlio César”, desenvolvida por: GIDDENS, Eugene. “Honourable Men: Militancy and Masculinity in Julius Caesar”. Renaissance Forum, volume 5, 2001(2).[Edição Eletrônica] 223SIMS, Valentine; WISE, Andrew. The Tragedy of King Richard the third. London: Sims-Wise, 1597.p.25. A relação entre a vontade individual, as tópicas do “teatro do mundo”/“loucura do mundo” e a mutabilidade do self – esta última sendo expressada através de personagens que possuem um consciente autodistanciamento subjetivo em relação às suas máscaras sociais – é levada ao paroxismo nas caracterizações dramáticas de “Ricardo III”. Teremos oportunidade de observar isso mais detidamente no capítulo III. 224SIMS, Valentine; WISE, Andrew. The Tragedy of King Richard the third. London: Sims-Wise, 1597.pp.27-30

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plenamente instrumentum dignitatis). Especificamente no trecho citado acima,

observamos uma clara autonomização da dignidade principesca em relação às

dinastias governantes, o que já demonstra um grau avançado de despersonificação na

percepção das instituições sociais e políticas, pois, para Maquiavel, é a

dinastia/indivíduo que é colocada como instrumento da dignidade principesca – o

contrário disso, como já vimos, é entendido por ele como “corrupção” ou “tirania”.

Nesse sentido, em sua perspectiva, pouco importa a origem social do príncipe, desde

que o indivíduo elevado a tal condição encarne perfeitamente o self ou predicativo

principesco, dando-lhe a aparência/semelhança ou efeito prático esperado por seus

súditos.

Do ponto de vista de seus efeitos práticos, a moral do parecer em Maquiavel

não se diferia das expectativas políticas do estoicismo cristão, que sempre falara da

necessidade de o homem subjugar os seus impulsos mais inconvenientes para, deste

modo, tornar possível a vida social. Nesses termos, podemos afirmar que, quanto mais

um rei (corporalidade físico-psicológica de voluntas e appetitus) conseguir ser a

aparência ou semelhança perfeita dos atributos associados à dignidade de Rei (dignitas

regia), maiores seriam as chances de representar os atributos divinos (ordem, harmonia,

edificação, necessidade, sucessão, proporção, hierarquia e equilíbrio) em seu governo

e Estado, encenando no tempus os nexos misteriosos (causais ou analógicos) entre Dei

e Imperii. O avesso disso é a assolação do corpo político por forças diabólicas ou

pestíferas (insegurança, destruição, autofagia, desproporção, deformação,

desregramento, caos, perda de deferência, desrespeito à autoridade e desequilíbrio),

tais como aparecem metaforizadas através da figuração dramática de Ricardo III229.

Também podemos notar nos argumentos de Maquiavel que a despersonificação

das instituições sociais e políticas não se contrapõe a uma lógica patrimonial-estamental

de construção de nexos sociais efetivos de poder político:

“...Não poderás usar contra eles remédios fortes, obrigado que estás para com eles, pois mesmo que sejas fortíssimo nos exércitos, necessitas dos favores dos habitantes para entrar numa província(...). Para que se assegure a posse desses Estados conquistados e anexados a um antigo..., basta fazer desaparecer a linha do príncipe que os dominava, pois, mantendo-se nas outras coisas a condição antiga, e não havendo disparidade de costumes, os homens vivem calmamente...[Portanto], para mantê-los, o conquistador deve ter duas regras: primeiro, fazer

229COLLEY, Scott. “Richard III and Herod”. Shakespeare Quartely, volume 37, 1986(4):pp.451-458; MOULTON, Ian Frederick. “A Monster Great Deformed: The Unruly Masculinity of Richard III”. Shakespeare Quartely, volume 47, 1996(3): pp.251-268; PEARLMAN, E.. “The Invention of Richard of Gloucester”. Shakespeare Quartely, volume 43, 1992(4): pp.410-429.

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extinguir o sangue do antigo príncipe; segundo, não alterar as leis, nem os impostos. De tal modo, num prazo muito breve, ter-se-á feito a união ao antigo Estado...”230. No trecho citado acima, é afirmado que a extinção de uma dinastia não significa

o fim da instituição política, desde que a nova encarnação da dignidade principesca

saiba recompor os nexos do corpo político a partir das leis, direitos e costumes

previamente existentes em suas diversas localidades. Além disso, coerentemente com a

lógica patrimonial-estamental de construção de vínculos sociais e políticos, o príncipe

deve saber intuir um sentido de ordem e hierarquia quando estiver enquadrando os seus

aliados, conforme as suas qualidades, nas dignidades institucionais de cargos, ofícios ou

outras formas de privilégios, de forma que isso torne possível a construção da paz

pública. Isso fica particularmente evidenciado quando Maquiavel se refere a César

Borgia nos seguintes termos:

“...César Bórgia, chamado pelo povo de Duque Valentino(...), deliberou não depender mais das armas e fortuna de outrem. E a primeira coisa que fez foi enfraquecer as facções dos Orsini e Colonna em Roma. De todo os aderentes destes que fossem gentis-homens[nobres], procurou apoio, tornando-os gentis-homens seus e lhes dando grandes pensões em dinheiro, e honrou-os, segundo suas qualidades, com postos de comando e de governo, de modo que, em poucos meses, a afeição que nutriam pelos partidos se extinguiu totalmente, passando toda para o duque. Depois, esperou a ocasião de extinguir os chefes dos Orsini, estando já dispersos os da casa de Colonna. Não tardou a se apresentar tal oportunidade e o duque soube bem aproveitar-se dela... Extintos, pois, esses chefes, e reduzidos os seus correligionários a amigos do duque, havia este conseguido muito bons alicerces para o seu poder...”231.

Ora, parte do fascínio de Maquiavel por César Bórgia estava justamente no fato

de este saber associar, segundo as circunstâncias, a virilidade guerreira com a

engenhosidade política, o “leão” e a “raposa”, a “força” e a “astúcia”, a “espada” e a

“lei”, o “ímpeto” e o “discernimento”; enfim, por demonstrar um senso viril de ocasião

que não se desviava da demanda de atuar em nome da res publica, mesmo que isso

pudesse significar recorrer algumas vezes ao crime e à traição contra particulares.

Considerando o exemplo de César Bórgia, podemos perceber que Maquiavel não expõe

máximas de prudência administrativa que necessariamente coincidem com as

máximas das virtudes cardeais e infundidas, pois, para ele, a relação do príncipe com

tais virtudes era casuística em vez de essencial.

Afinal, sendo um habitante da esfera sublunar, onde as coisas são mutáveis e

corruptíveis, onde não há a posse completa de todas as virtudes por cada homem, o

príncipe de virtù deve ser avaliado em sua prática política segundo os termos da

imperfeição e da incompletude terrenas, e não pelos termos da perfeição e completude

230MAQUIAVEL, Nicolau. “Capítulo III: Dos Principados Mistos”. In O Príncipe. São Paulo: Abril Cultural, 1973.pp.15-16

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celestes. Portanto, Maquiavel reconhecia que não seria sempre possível fazer coincidir a

prática das virtudes com todas as circunstâncias do governo civil e com todas as

demandas de manutenção da ordem pública232. Pelo contrário, a prática, por exemplo,

do código cavalheiresco medieval de sempre manter a palavra empenhada poderia ser

perniciosa para a fundação ou manutenção do Estado caso não se observasse

previamente as circunstâncias de seu uso233. Aliás, observamos neste exemplo o mesmo

tipo de crítica às concepções medievais de honra e glória guerreiras presente nas

tragédias históricas shakespeareanas; tais concepções são agora percebidas como partes

de códigos enferrujados ou anacrônicos de uma nobreza que freqüentemente se perdia

do bem comum234.

Ora, uma das novidades do pensamento político de Maquiavel estava justamente

no fato de ele tratar a virtù do príncipe como algo que deveria ser avaliado pelos seus

efeitos práticos na edificação eficiente de corporidades políticas. Nesse sentido, o

príncipe de virtù deveria ser prudente e engenhoso o bastante para acionar os meios

necessários que tornassem os benefícios de viver sob a proteção de seu Estado –

principalmente, a segurança e a possibilidade de crescimento dos negócios e

patrimônios particulares – algo hierarquicamente acessível e interessante para todos ou,

pelo menos, para a grande maioria de seus súditos. Em seu limite lógico, tal forma de

argumento conduzir-nos-ia a pensar, subversivamente, que não se deve deferência ao

soberano que não soubesse se fazer necessário a seus súditos. Portanto, todo príncipe

deveria estar permanentemente atento a esta possibilidade, pois “o tempo leva por

diante todas as coisas, e pode mudar o bem em mal e transformar o mal em bem”235.

De qualquer forma, no pensamento de Maquiavel, a edificação do Estado é algo,

em si mesmo, bom e necessário para melhorar os negócios particulares e manter os

homens em reciprocidade hierárquica. Porém, como temos notado, o seu pensamento

guarda claramente uma diferença em relação à perspectiva moral aristotélico-tomista:

para Maquiavel, aquilo que é politicamente bom e necessário não é inferido a partir de

essências transcendentes de “bem” e “mal”, mas somente depois de uma segura

experiência imanente, pois são as circunstâncias (de tempo, pessoa e lugar) – e os

231MAQUIAVEL, Nicolau. “Capítulo VII: Dos principados novos que se conquistam com armas e virtudes de outrem”. In O

Príncipe. São Paulo: Abril Cultural, 1973.pp.34-39 232Sobre isso, ver os capítulos XV, XVI, XVII, XVIII e XIX de “O Príncipe”. 233MAQUIAVEL, Nicolau. “Capítulo XVIII: De que forma os príncipes devem guardar a fé”. In O Príncipe. São Paulo: Abril Cultural, 1973.pp.79-81 234Ver: HATTAWAY, Michael. “Blood is their argument: men of war and soldiers in Shakespeare and others”. In Religion,

Culture and Society in Early Modern Britain. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. pp.84-101 235MAQUIAVEL, Nicolau. “Capítulo III: Dos Principados Mistos”. In O Príncipe. São Paulo: Abril Cultural, 1973.p.19

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efeitos práticos da atuação política do príncipe no sentido de se adequar a elas para

edificar ou manter o seu Estado – que poderão dizer se é portador de virtù ou não, se é

digno de ser louvado ou vituperado236. Afinal, há no modo casuístico de atuação da

autoridade principesca tanto um potencial de “benignidade” (acomodar-se ao tempo e às

especificidades de pessoas, costumes e lugares para gerar ou manter os vínculos sociais

e políticos) quanto de “malignidade” (cinismo político a serviço de um projeto pessoal

de poder que pode ter efeitos imprevistos desagregadores dos vínculos sociais e

políticos).

Como podemos perceber, o cerne da virtù em Maquiavel (mas não da vulgata

demonizante maquiavélica) é justamente um saber prudencial ativo no mundo, que deve

ser capaz de avaliar as circunstâncias para criar os efeitos práticos de agregação social e

política que sejam os mais adequados para a regulação dos humores deste paradoxo de

“benignidade” e “malignidade” que é o homem. Dizer isso é uma forma de distinguir as

idéias politicamente edificadoras da moral do parecer em Maquiavel de sua fortuna

literária demonizante ao longo dos séculos XVI e XVII, já que esta última é uma das

tradições literárias que configura o demoníaco dramático do personagem

shakespeareano Ricardo III237. Como veremos no capítulo III, os efeitos destrutivos de

uma casuística principesca mal empregada (ou empregada pelo mal) são explorados

tematicamente na peça “Ricardo III”(1597). Bem distinto de sua vulgata demonizante,

“O Príncipe”(1513) pretendeu expor ao jovem Lourenço de Médicis (1492-1519), com

aguda sinceridade, o paradoxo inerente à condição humana e, por isso mesmo,

apresentou “aconselhamentos políticos” condizentes a tal condição.

No entanto, para fazer isso, Maquiavel recorreu a muitos exemplos históricos

que justamente demonstravam não haver um vínculo necessário ou essencial entre

“nobreza de virtude/valor” e “ancestralidade”. Nesses termos, a legitimidade de alguém

que se torna príncipe não estaria em sua linhagem, mas em sua capacidade de

atuar/aparentar/assemelhar casuisticamente as qualidades tradicionalmente vinculadas

à dignidade principesca. Ora, isso significa que figurar a condição principesca poderia

ser mais uma questão de oportunidade, talento e aprendizado do que uma essência

herdada pelo nascimento. Aliás, como notara David S. Kastan, a performance nos

teatros elizabetano e jacobita tinha justamente o poder de evidenciar isso,

236MAQUIAVEL, Nicolau. “Capítulo XXV: De quanto pode a fortuna nas coisas humanas e de que modo se deve resistir-lhe”. In O Príncipe. São Paulo: Abril Cultural, 1973. pp.110-111

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‘predicativo patrimonial-estamental’. Portanto, eram os caracteres pessoais, virtudes e vícios de um indivíduo que elevariam ou deformariam o efeito prático dos atributos de harmonia, ordem e reciprocidade hierárquica misteriosamente inscritos nas dignidades institucionais e sociais. Nesse sentido, não eram as instituições políticas ou as hierarquias sociais que

deveriam ser questionadas – pois, em si mesmas, seriam boas porque garantiriam a

simbiose sócio-política –, mas sim aqueles indivíduos que não lhes dessem atuação ou

efeito prático adequado. Tal percepção das dignidades institucionais e sociais é

facilmente identificável em peças como “Ricardo III” e “A Tempestade”243. Em todas

elas, é central a seguinte tópica moralizante: pouco importa que um príncipe seja

hereditário ou não, pois perderá os seus domínios se não encarnar adequadamente os

atributos próprios de sua posição preeminente. Entre outras coisas, tal posição exige-lhe

um senso de ocasião muito atento às particularidades de pessoa, lugar e tempo, o que é

uma qualidade central no governante quando não se desvia das demandas de utilitas

totius regni ou de utilitas totius civitatis.

No entanto, quando o desvio ocorre na direção das fantasias particulares e

egoístas de poder, a qualidade que antes era central e que tinha um efeito virtuoso de

agregação social torna-se um vício tirânico, pestífero e desagregador do corpo político.

Assim, podemos perceber que a obra “O Príncipe” apresenta uma ânsia de que a

dignidade principesca se fundamente no bem comum para que possa se perpetuar no

tempo. Por si só, isso já serviria para demonstrar que Maquiavel não possui uma

concepção meramente feudal ou dominial de autoridade principesca, mas sim uma

concepção estatal de poder soberano. Como teremos oportunidade de observar no

próximo item, o poder soberano no Antigo Regime possui uma lógica funcional que se

acomoda mal à noção de Absolutismo.

2.3. ‘Absolutismo’: Usos e equívocos de um conceito liberal

Na história do pensamento político e do direito, o termo absolutismo foi

habitualmente utilizado em oposição ao termo constitucionalismo, conformando

campos classificativos para autores que legitimariam, respectivamente, uma autoridade

política incondicional (em nome de Deus, a dignidade régia é a origem, proprietária e

usufruturária dos direitos de soberania) e uma autoridade política condicional

(inspirado por Deus, o conjunto dos corpora do reino é a origem, proprietário e

243Sobre esta última peça, ver artigo: BREIGHT, Curt. “Treason doth never prosper: The Tempest and the Discourse of Treason”. Shakespeare Quartely, volume 41, 1990(1):pp.1-28

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usufruturário dos direitos de soberania, cabendo ao rei um papel de supervisor ou

administrador)244. Este tipo de esquematização analítica não dá conta de uma série de

nuanças teóricas que, mesmo assentando a origem do direito nos corpora societatum,

recorriam igualmente a noções como usucapione e alienação incondicional – em favor

da dignidade régia – dos direitos de soberania. Ora, particularmente durante as guerras

confessionais dos séculos XVI e XVII, este tipo de nuança visava impedir qualquer

legitimação doutrinal (católica ou protestante) ao “tiranicídio”, para além da tradicional

recorrência ao mistério da providência divina dos reis.

Na história social das instituições, aquilo que se vai chamar de absolutismo

servia para definir a menor disposição de uma autoridade soberana monárquica em

dividir suas decisões com corpos políticos do reino organizados em assembléias

consultivas estamentais (gerais ou provinciais), quando se tratava de uma situação de

utilitas totius regni. Durante o século XVII, devido à intensidade e longevidade das

guerras na Europa e seus efeitos fiscais, revoltas antifiscais afloraram com mais

recorrência e vigor. Em princípio, as cobranças de impostos que eram consideradas

novidades e que feriam direitos estabelecidos de isenção deveriam ser feitas somente

depois de consulta ao reino. Desde a década de 1960, muitos estudos sobre as ditas

“revoltas antifiscais” (camponesas ou citadinas) consideravam que o descumprimento

régio da obrigação de consulta prévia aos corpos do reino em matéria fiscal era o

principal motivo das “resistências locais” ao absolutismo. Portanto, é a partir deste

período que a historiografia começa a falar em absolutismo fiscal e de seus “limites

práticos” devido tanto às “resistências locais” quanto às “estruturas administrativas

ineficientes ou corruptas” (leia-se: as estruturas patrimoniais-estamentais de poder

político e social)245.

Todavia, nesse tipo de abordagem podemos perceber que o dispositivo

tradicional de consulta ao reino foi equivocadamente focado, a posteriori, por uma lente

analítica constitucionalista e, por isso mesmo, a maior ou menor disposição do poder

soberano central em usar tais dispositivos de consulta foi interpretada pela maioria dos

historiadores e cientistas políticos como uma espécie de patamar de medida para definir

se uma monarquia, monarca ou governo era mais ou menos autocrático (portanto,

“absolutista”). Deste modo, focadas por uma lente constitucionalista liberal e por uma

244Um exemplo eloqüente disso é a própria disposição que Quentin Skinner dá às matérias de seu livro. Ver: SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 245Ver: BONNEY, Richard. O Absolutismo. Lisboa: Europa-América, 1991.pp.79-108

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expectativa burocrática de racionalidade administrativa, as análises sobre a organização

administrativa das “finanças do Estado” ignoraram o fato de que os éditos régios de

cobrança de impostos, mesmo quando não tinham como causa motor uma consulta ao

reino, tinham, no entanto, os seus efeitos casuisticamente comutados por eventualidades

locais ou pelos privilégios tradicionais dos lugares ou dos grupos sociais dentro deles.

Não se tratava de uma “anomalia” ou “arcaísmo” que obliteraria a “plena centralização

política”, mas de uma forma específica de racionalidade administrativa e de

estabelecimento de vínculos sociais e políticos de reciprocidade hierárquica.

Aliás, considerando a dinâmica administrativa do Estado no Antigo Regime,

os éditos régios poderiam, no limite, simplesmente não ser cumpridos, embora se

buscasse ritualisticamente ratificar o respeito à autoridade da Coroa e justificar a

desobediência seja pela evocação respeitosa dos privilégios locais, seja por meio

do relato de alguma eventualidade local que impedisse o cumprimento das

demandas da Coroa. Tais justificativas poderiam ser verdadeiras, exageradas ou

simplesmente mentirosas. Em todo caso, isso explica o ritual administrativo de os

reis pedirem notícias de um mesmo assunto a diversas autoridades locais,

confrontando os relatos do presente entre si e com aqueles do passado recente.

Tratava-se de um jogo tenso de negociação de interesses que as partes envolvidas

sabiam muito bem as regras, mas estava sempre perpassado pelo princípio do

compromisso e acomodação das partes, de modo a não desfigurar o corpo místico

do Estado246. Certamente, havia nisso tudo um jogo de decifração recíproca, uma

espécie de “como se fazer ver” e “como se deixar ver” – mote comum da tópica

do “teatro do mundo” nos tratados políticos e de etiqueta dos séculos XVI e XVII.

Portanto, seria anacrônico enfocar analiticamente as leis e éditos régios como se

fossem protótipos de leis universais ao modo de uma Constituição, ou pensar a relação

entre poderes centrais e realidades locais nos termos simplificados de “opressão central

vs. resistência local”. Afinal, estudos mais recentes revelaram que as ditas revoltas

antifiscais dos séculos XVI e XVII não tinham necessariamente o caráter de “resistência

contra um poder soberano opressivo”: percebeu-se que não era a cobrança em si o foco

de descontentamento – por vezes, em algumas regiões, os efeitos do fisco da Coroa

eram menos rigorosos sobre os ganhos das pessoas do que as obrigações com as rendas

246Sobre isso, ver a discussão sobre “murmuração do corpo místico” em: HANSEN, João Adolfo. A Sátira e o Engenho: Gregório de Matos e a Bahia do Século XVII. São Paulo: Ateliê Editorial/UNICAMP, 2004. Ver também: VIANNA, Alexander Martins. O Ideal e a Prática de Governar: o Antigo Regime no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGHIS, 2000.(Diss.mimeo.).

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senhoriais –, mas sim os agentes envolvidos em sua cobrança, que poderiam ser

mandatários locais ou extra-locais, atuantes em nome da Coroa, cujas atitudes não

pareciam representar as expectativas tradicionais de proteção patriarcal e familiaridade

projetadas na figura do soberano247. De qualquer forma, a estrutura patrimonial do fisco

régio compunha uma rede de interesses financeiros entre elites centrais e locais, de

modo que não se pode falar em ação necessariamente unilateral dos poderes do centro

em relação aos poderes locais248.

Durante a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), por exemplo, as regiões de

Provence e Languedoc converteram-se em retaguarda e lugar de passagem das

tropas para as frentes das penínsulas ibérica e itálica. Logicamente, os efeitos

materiais e fiscais desta situação eram enormes para as populações locais, mas não

menos propensos a entrelaçar na malha fiscal os interesses locais com aqueles do

centro: durante as décadas centrais do século XVII, as receitas fiscais para a

Coroa francesa que saíram de Languedoc correspondiam a um terço do total

arrecadado na região, ou seja, por diferentes vias consolidadas de interesses, o

restante do fisco ia parar nas mãos da elite dirigente local, que correspondia a 10%

da população249. Além disso, metade do arrecadado era gasto dentro da própria

região, o que significa dizer que a estrutura vertical de demanda fiscal oriunda da

guerra impulsionava um mecanismo redistributivo de rendas em nível local que

muito interessava às suas elites tomar parte, comportando-se, pois, como uma

pequena engrenagem tradicional do grande relógio do Estado250.

Desde o século XV, podemos observar de uma forma mais sistemática a

progressiva incorporação à jurisdição régia dos direitos jurisdicionais das cidades

e dos feudos de diferentes categorias de nobres (condes, barões, marqueses, etc).

Isso criou uma gama de “oficiais” locais que, falando em nome de uma autoridade

soberana supralocal estável no tempo, reconfiguraram os seus papéis para darem

247Ver: CORNETTE, Joël. “Voyage au Coeur de L’État de Finances”. Revue l’Histoire, n.196. Paris, 1996. pp.26-35; BERCÉ, Yves-Marie. “Paysans en Révolte”. Revue l’Histoire, n.196. Paris, 1996. pp.36-39; BERCÉ, Yves-Marie. O Rei Oculto: Salvadores e Impostores – Mitos Políticos Populares na Europa Moderna. São Paulo: EDUSC/Imprensa Oficial de São Paulo, 2003. p.385; LUEBKE, David. “‘Naïve Monarchism’ and Marian Veneration in Early Modern Germany”. Past & Present, 1997(154): pp.71-106 248Ver exemplo da França em: CORNETTE, Joël. L’affirmation de l’État Absolu,1515-1652. Paris: Hachette,1994.pp.201-204; BONNEY, Richard. O Absolutismo. Lisboa: Europa-América, 1991.pp.102-105 249Ver: PUJOL, Xavier Gil. “Centralismo e Localismo: Sobre as Relações políticas e culturais entre capital e territórios nas Monarquias Européias dos séculos XVI e XVII”. Penélope, nº6. Lisboa: Cosmos, 1991. pp.119-144 250Tive oportunidade de observar tal lógica nos múltiplos pedidos chegados ao Conselho Ultramatino que solicitavam a flexibilização de usos e contratos de tributos vinculados à “Paz da Holanda e dote da Rainha de Inglaterra”, tendo sido feitos por gentis-homens do Nordeste do Brasil nas décadas posteriores à desocupação holandesa. Ver: VIANNA, Alexander Martins. “Fiscus, Gratia et Potestas Absoluta”. In O Ideal e a Prática de Governar: o Antigo Regime no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGHIS, 2000.(Diss.mimeo.).pp.168-208.

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conta desse novo campo de experiência social que é o Estado. De modo geral, tais

“oficiais” não dependeram materialmente da figura pessoal de seus soberanos,

mas da estrutura institucional que a Coroa representava – o que é outro medidor

importante do quanto a despersonificação das instituições políticas coaduna-se

com as estruturas patrimoniais de poder. Não é à toa que categorias teológicas

vinculadas à figura de Cristo (em si mesmo, um paradoxo de aeternitas e

tempus), associadas a categorias do Direito Romano (Universitas, Fiscus,

Dignitas, Imperio, Usucapione etc), foram operadas no debate jurídico do século

XV para diferenciarem a dignidade régia (e a Coroa) da pessoa privada do

soberano251.

Enfim, considerando a variedade de interesses locais, as redes clientelares das

elites locais e o modo como se acomodavam seletivamente e casuisticamente às

demandas da Coroa, não se pode definir uma natureza geral (anti-absolutista,

anti-senhorial ou antifiscal) para os conflitos entre poderes centrais e locais nos

séculos XVI-XVIII252. Afinal, como temos notado, a escala do Estado no Antigo

Regime pressupunha as estruturas jurídico-políticas dos corpos de privilégios e a

hierarquia social estamental advinda da Idade Média, embora tais estruturas

tenham sido reorganizadas à medida que se estreitaram os laços de dependência

entre várias localidades e surgiu a demanda de um poder soberano estável que

pudesse equilibrar os múltiplos interesses concorrentes entre si (dentro de uma

região ou para além da mesma) numa nova simbiose sócio-política. Justamente

por reconhecer esta singularidade estrutural, historiadores franceses, britânicos e

alemães das décadas de 1980 e 1990 revisaram o uso do termo absolutismo (e

suas derivações adjetivas) como categoria analítica, chegando-se à conclusão de

251KANTOROWICZ, Ernst H.. Os Dois Corpos do Rei. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.pp.193-272 252Ver: LEVI, Giovanni. Herança Imaterial: Trajetória de um exorcista no Piemonte do Século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000; PEYTAVIN, Mireille. “Naples, 1610: Comment peut-on être officier?”. Annales(HSS), volume 52, 1997(2):pp.265-291; WINDLER, Christian. “Clientéles royales et clientèles seigneuriales vers la fin de l’Ancien Régime”. Annales(HSS), volume 52, 1997(2):pp.293-319; WOLFGANG, Reinhart (dir.). Les élites du pouvoir et la construction de l’État en Europe. Paris: PUF, 1996; ZMORA, Hillay. “Princely State-Making and the ‘Crisis of the Aristocracy’ in Late Medieval Germany”. Past & Present, 1996(153): pp.37-63; HARRISS, Gerald. “Political Society and the Growth of Government in Late Medieval England”. Past & Present, 1993(138): pp. 28-57; COTS I CASTAÑÈ, Albert. “Instituições sociais e opinião pública na Catalunha entre 1751 e 1808: uma perspectiva a partir do estudo de alguns conflitos senhoriais”. In Justiça e Litigiosidade: História e Prospectiva. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993. pp.261-285; TORRE, Angelo. “Politics Cloaked in Worship: State, Church and Local Power in Piedmont, 1570-1770”. Past & Present, 1992(134): pp.42-92; ANTÓN, Luis González. Las Cortes en la España del Antiguo Régimen. Madrid: Siglo XXI, 1989; CLAVERO, Bartolomé. “Senhorio e Fazenda em Castela nos finais do Antigo Regime”. In Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1982. pp.155-177

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que tem gerado mais equívocos do que ajudado na análise da formação do Estado

na Europa anterior ao liberalismo253.

Logicamente, a proposição analítica de abrir mão do conceito absolutismo

não significa esquecer que a configuração estatal de qualquer sociedade está

historicamente ligada ao surgimento de um poder político soberano coercitivo e

centralizador, mas tal fenômeno deve ser observado por uma perspectiva que não

encare a estrutura patrimonial-estamental de poder como uma espécie de resíduo

arcaico que deveria ser superado para que o Estado realizasse a sua “plena

essência”: a racionalização burocrática. Nesse sentido, os dispositivos

patrimoniais-estamentais de poder da experiência de Estado anterior à

burocracia devem ser entendidos como portadores de uma racionalidade própria

no modo como configuraram os vínculos sociais e políticos de reciprocidade

hierárquica.

Antes de continuarmos neste ponto, seria importante lembrar que o uso do

termo absolutismo é anterior à qualquer apropriação historiográfica, pois era, na

verdade, um xingamento político que se difundiu na França durante a Revolução

Francesa (1789-1799) para se referir originalmente ao despotismo da monarquia

bourbônica. Contudo, absolutismo é posterior ao termo despotismo, que aparece

na “Encyclopédie” (1751-1780) dentro de vários verbetes políticos e como um

verbete independente, assinado pelo gentil-homem Louis de Jaucourt254. A

trajetória desta paridade semântica entre absolutismo e despotismo não é simples,

mas não foi inventada pelos philosophes da “Encyclopédie”. Afinal, não há

nenhuma ocorrência do termo absolutismo na “Encyclopédie”, cujos verbetes

políticos nunca confundem semanticamente Despotismo com Monarquia

Absoluta. É possível especular que este deslocamento semântico tenha surgido

fora da França255.

Desde meados da década de 1680, como forma de detrair a dinastia Bourbon

e, muito particularmente, a figura de Luís XIV, os discursos oficiais dos

partidários da política externa dos últimos Stuart criaram o hábito semântico na

Inglaterra de sobrepor os adjetivos “absoluto” e “despótico” ao se referir à

monarquia francesa, o que era algo que permaneceu estranho ao vocabulário

253COSANDEY, Fanny; DESCIMON, Robert. L’Absolutisme en France: Histoire et Historiographie. Paris: Seuil, 2002; ASCH, Ronald; DUCHHARDT, Heinz(eds.). El Absolutismo: Un Mito? Barcelona: Idea Books, 2000. 254DIDEROT & D’AMBERT. Verbetes Políticos da Enclopédia. São Paulo: UNESP, 2006.pp.67-76

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político francês mesmo na conjuntura de publicação da “Encyclopédie”. Na

“Encyclopédie”, a Monarquia Absoluta, exemplificada pela França, era

claramente diferenciada de Monarquia Limitada, exemplificada pela Inglaterra256,

mas a maneira de defini-las seguia sempre a preocupação de distinguir ambas do

despotismo, mesmo quando os philosophes demonstravam clara simpatia pela

dinâmica institucional da monarquia inglesa – uma dinâmica, vale lembrar, que

nascera depois de 1689 e que, portanto, não estava desde sempre inscrita numa

espécie de “modo constitucionalista inglês”.

Nos termos da “Encyclopédie”, a origem do poder do rei na Monarquia

Absoluta era o consentimento de seus súditos na forma de um contrato não-

escrito. Pelo efeito deste consentimento, o rei detinha os poderes executivo e

legislativo, representando e protegendo as leis fundamentais, costumes e

privilégios do reino, cujos termos não poderiam ser mudados pelos caprichos

particulares dos reis e dos súditos, mas tão somente pelas necessidades dos

tempos – de qualquer forma, se não fosse um casus necessitas, quaisquer

alterações nas leis, costumes e privilégios dos reis e de seus súditos deveriam

ocorrer com consentimento geral dos notáveis de cada estamento e localidade do

reino, que se expressavam através de assembléias estamentais (i.e., os Estados

Gerais do Reino e os parlamentos provinciais). Na Monarquia Temperada, o rei

mantinha a autonomia de seu poder executivo mas dividia a prerrogativa

principesca do poder legislativo com um parlamento estamental bicameral257. No

entanto, desde a Revolução Gloriosa (1688-1689), a convocação e duração do

parlamento em Londres dependia menos da vontade pessoal régia do que das

regras de um calendário trienal e em casus necessitas.

É importante não perder de vista que, quando a “Encyclopédie” emprega

termos como “poder executivo”, “poder legislativo”, “leis”, “costumes” e

“privilégios”, estão sendo entendidos levando-se em conta um contexto

institucional patrimonial-estamental tanto na Inglaterra quanto na França.

Portanto, trata-se de algo bem distinto da lógica institucional advinda da

igualdade civil e do constitucionalismo liberais. De qualquer forma, os verbetes

políticos da “Encyclopédie” são bem claros quando distinguem ambas as formas

255Ver: HENSHALL, Nicholas. “El Absolutismo de la Edad Moderna, 1550-1700: Realidad Política o Propaganda”. In El Absolutismo: Un Mito?. Barcelona: Idea Books, 2000.pp.43-83 256DIDEROT & D’AMBERT. Verbetes Políticos da Enclopédia. São Paulo: UNESP, 2006.pp.209-215 257DIDEROT & D’AMBERT. Verbetes Políticos da Enclopédia. São Paulo: UNESP, 2006.pp.295-317; 295-317

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de monarquia (Absoluta e Limitada) dos governos despóticos ou tiranias orientais

(“turcas/otomanas”), cuja origem seria a força em vez da lei e do

consentimento258. Aliás, não se trata de uma novidade: desde pelo menos o século

XVI, os adjetivos “despótico”, “turco” e “otomano” serviam para representar, nos

tratados políticos europeus, o “outro civilizacional” da Europa. Nesse sentido,

xingar um rei europeu de “déspota” era o mesmo que chamar de “sultão”,

“bárbaro” ou “tirano oriental”. Contudo, ao provocar um nivelamento semântico

entre “poder despótico” e “poder absoluto”, a propaganda política inglesa

antibourbônica da década de 1680 estava criando uma novidade conceitual que foi

encampada acriticamente pela historiografia liberal desde o primeiro terço do

século XIX259.

No entanto, ao final do século XVII, mesmo considerando a propaganda

inglesa antibourbônica da década de 1680, ainda não se falava de despotismo e,

menos ainda, de absolutismo, ou seja, nessa conjuntura, o adjetivo despótico

ainda não havia derivado para um substantivo que se referisse a um sistema ou

forma de governo. Aliás, mesmo quando despotismo aparece no “Espírito das

Leis”(1748), de Montesquieu(1689-1755), ainda não se refere a um sistema ou

forma de governo europeu. Em certa medida, podemos afirmar que, na

“Encyclopédie”, Diderot escreve o verbete Autoridade Política para desconstruir

a associação semântica inglesa entre “poder despótico” e “poder absoluto”.

Diderot traça a diferença conceitual entre o “soberano absoluto” da França e o

“senhor absoluto” da Turquia nos seguintes termos: o sultão seguia os seus

próprios caprichos, transformando o seu poder absoluto em poder despótico,

assim como os seus súditos em escravos; enquanto a autoridade política do rei da

França nascia do consentimento de seus súditos e se legitimava pela atribuição de

proteger e representar as leis fundamentais do reino260.

Como podemos notar, diferentemente de despotismo, o termo absolutismo é

tardio e difunde-se no vocabulário político europeu durante o primeiro terço do século

XIX, ou seja, justamente quando a grande onda de reformas institucionais liberais,

particularmente os efeitos práticos da instauração do princípio jurídico da igualdade

civil, estava varrendo do mapa europeu a dinâmica patrimonial-estamental de

258DIDEROT & D’AMBERT. Verbetes Políticos da Enclopédia. São Paulo: UNESP, 2006.pp.295-317; 295-317 259HENSHALL, Nicholas. “El Absolutismo de la Edad Moderna, 1550-1700: Realidad Política o Propaganda”. In El

Absolutismo: Un Mito?. Barcelona: Idea Books, 2000.pp.43-83 260DIDEROT & D’AMBERT. Verbetes Políticos da Enclopédia. São Paulo: UNESP, 2006.pp.37-46

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configuração de vínculos sociais e políticos. É frente a tal inovação institucional que

surge um novo debate e uma nova sensibilidade política – agora numa perspectiva

constitucionalista liberal – a respeito de como deveriam ser organizadas as funções

administrativas do Estado. Por este viés, para se contrapor aos “riscos de absolutismo”

nas monarquias, dever-se-ia conferir autonomia funcional e poder fiscalizador a uma

autoridade colegial judiciária, formar um sistema cameral permanente e independente

da pessoa régia (autoridade colegial legislativa), enquanto o rei e seu conselho de

ministros encarnariam exclusivamente a autoridade colegial executiva.

Depois de 1848, em termos práticos, a Inglaterra foi a monarquia européia que

mais se aproximou desse modelo de equilíbrio constitucional dos poderes. Ora, foi

justamente nessa conjuntura que se consolidou o mito político whiggista de que a

“Inglaterra constitucional” teria feito a sua “revolução liberal” um século antes da

“França absolutista” e de modo não sangrento. De qualquer forma, ao longo dos debates

políticos do século XIX, à medida que se criava uma ordem institucional liberal em

vários países europeus e americanos, os termos absolutismo e absolutista foram

utilizados pejorativamente em vários momentos, sendo quase sempre associados à

tirania, ditadura, autocracia, autoritarismo, cesarismo, bonapartismo ou despotismo. Por

isso mesmo, devemos sempre ter a clareza de diferenciar um conceito como termo a

ser operado historiograficamente do conceito como parte do vocabulário político de

uma época. Em larga medida, esta dimensão de minha análise apenas desdobra em

novas implicações uma série de contribuições historiográficas de António Manuel

Hespanha.

Hespanha enfatiza que a forma patrimonial-estamental de organização política

e social faz parte de uma lógica institucional cujos elementos principais são: dom,

contra-dom, graça e punição261. Tais fatores perpassam todo o corpo político como

dispositivos constituidores de compromissos hierarquicamente definidos. Ora, se tal

lógica não fosse comum a todo o corpo político, não haveria efeitos sociais agregadores

e a possibilidade de centralização política. Nesse sentido, a centralização política é o

resultado da acomodação relativa de uma tensa concorrência de tipo senhorial-clientelar

entre diferentes graus de forças sociais centrípetas e centrífugas. Ocorre uma

acomodação entre as partes quando uma delas emerge com mais poder (militar e

financeiro) e configura para si um território por onde estende a sua teia clientelar de

261HESPANHA, António Manuel. “De la Iustitia a la Disciplina”. In Sexo barroco y otras transgresiones premodernas. Madrid: Alianza Universidad, 1990. pp.91-108

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alianças. Uma vez definido um centro político estável de comando, os seus meios de

manter a preeminência de autoridade sobre um território não pressupunha a destruição

dos corpos de privilégios, o fim das formas estamentais de reciprocidade hierárquica e

a despatrimonialização dos dispositivos administrativos. Portanto, não se pode

confundir a noção de centralização política na Europa Moderna com a noção de

soberania da forma burocrático-liberal de Estado.

Em 1982, Hespanha fez uma série de considerações conceituais visando mostrar

a especificidade político-institucional da Europa moderna, criticando a tendência de se

usar referências constitucionalistas liberais (para a lógica administrativa) e positivistas

(para a lógica do direito) na interpretação do fenômeno da centralização política262. As

suas considerações teóricas e inferências de análise são ricas de conseqüências para se

entender a lógica de funcionamento das instituições políticas na Europa Moderna (e

suas extensões coloniais). No entanto, observando as suas conclusões em trabalho

posterior, podemos observar algumas limitações do próprio autor em explorar tais

conseqüências, visto que, seguindo rigorosamente a tipologia weberiana, Hespanha

pensa a experiência político-institucional da Europa Moderna como uma espécie de

“proto-Estado” ou “pré-Estado”. Para ele, se não há burocracia – i.e.,

despatrimonialização (separação bem delineada dos dispositivos administrativos em

relação aos patrimônios dos agentes da administração ) –, não há Estado plenamente

formado263.

Entretanto, sem operar nos mesmos limites formais de Hespanha e de outros

autores que abordam, como ele, a história dos padrões de arbitragem de conflitos no

Antigo Regime264, podemos nos apropriar de parte do seu quadro analítico para afirmar

que o Estado no Antigo Regime possui um poder soberano central cuja autoridade é

ratificada e acionada no território através de indivíduos e/ou agrupamentos sociais

enquadrados em corpos de privilégios e hierarquias estamentais, cuja natureza é

constantemente refeita ou transformada no espaço e no tempo265. Como cada parte do

262HESPANHA, António Manuel. “Para uma teoria da história institucional do Antigo Regime”. In Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1982. pp.7-89. 263HESPANHA, António Manuel. Às vésperas do Leviathan: instituições e poder político, Portugal - séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994. 264Ver: POWELL, E.. “A arbitragem e o direito na Inglaterra dos finais da Idade Média”. In Justiça e Litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993.pp.167-231; HESPANHA, A.M.. “Justiça e Administração entre o Antigo Regime e a Revolução”. In Justiça e Litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993.pp.381-468; CASTAN, Nicole. “Arbitragem de conflitos sob o ‘Ancien Régime’’”. In Justiça e Litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993.pp.469-519 265Ver trabalhos interessantes de: CERUTTI, Simona. “Processo e Experiência: Indivíduos, Grupos e Identidades em Turim no século XVIII”. In Jogos de Escala. Rio de Janeiro: FGV, 1998. pp.173-201; CERUTTI, Simona. “Nature des Choses et Qualité des Persones: La Consultat de commerce de Turin au XVIIIe siècle”. Annales(HSS), volume 57, 2002(6):pp.1491-1520; VISCEGLIA, Maria Antonietta. “Un groupe social ambigu: Organisation, Stratégie et Représentations de la Noblesse

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corpo político deste Estado é um corpus de “leis próprias” – que a autoridade soberana

central confirma como se tivessem emergido de si, protegendo-as e jurando-as a cada

sucessão dinástica –, o modelo de agir político ou de ação da autoridade política em

todos os seus níveis é necessariamente jurisdicionalista, ou seja, a ação política de

qualquer autoridade constituída (central ou local) está definida pela metáfora jurídico-

teológica do Juiz-Deus acomodador e constituidor de acordo, consentimento,

compromisso, harmonia e necessidade entre as partes de privilégios.

Logicamente, o hábito de fazer analogias jurídico-teológicas cumpria um papel

fundamental para flexibilizar os efeitos dos dispositivos legais de acordo com as

circunstâncias de demanda por justiça num mundo cuja dinâmica de hierarquização

social era estamental e cuja constituição de nexos políticos era senhorial-clientelar. No

entanto, como esta racionalização jurídica analógica abria um espaço muito grande

para o arbitrário das circunstâncias, havia nela um componente de insegurança, pois o

poder arbitral do juiz soberano não estaria livre de se deformar em poder tirânico. Por

isso mesmo, desde o século XV, podemos observar a profusão editorial de tratados

políticos e morais que periodicamente reforçavam os deveres morais do juiz soberano

em relação à eqüidade, ou seja, deliberar tendo por referências os momentos, lugares e

pessoas sociais, de modo a haver uma boa acomodação das demandas por justiça.

Como podemos observar, diferentemente do princípio liberal da igualdade civil,

a eqüidade no Antigo Regime era a raiz de um sistema jurídico que pretendia organizar

uma sociedade estratificada, porém móvel, em que conviviam simultaneamente muitos

sistemas normativos. Nesse sentido, tratava-se do princípio ou virtude fundamental para

se construir uma sociedade de justiça entre desiguais. Aliás, mesmo considerando

que uma autoridade soberana central pudesse organizar as “leis fundamentais do reino”

em ordenações gerais, tais leis seriam apenas um dos repertórios normativos de

deliberações existentes no corpo político, sendo os seus efeitos ativados ou

abandonados conforme cada caso ou circunstância. Há várias possibilidades de

exemplificar isso na prática administrativa266. No entanto, podemos observar esta

mesma expectativa de prática jurídico-política ser expressada em trabalhos literários que

justamente afirmavam a tese de que era necessário haver eqüidade para se evitar uma

Napolitaine, XVIe-XVIIe siècles”. Annales(ESC), volume 48, 1993(4): pp.819-851; RAINES, Dorit. “Pouvoir ou privilèges nobiliaires: Le dilemme du patriciat vénetien face aux agrégations du XVIIe siècle”. Annales(ESC), volume 46, 1991(4):pp.827-847; KAPLISCH-ZUBER, Christiane. “Ruptures de parenté et changements d’identité chez les magnats florentins du XIVe siècle”. Annales(ESC), volume 43, 1988(5): pp.1205-1240. 266Ver: VIANNA, Alexander Martins. O Ideal e a Prática de Governar: o Antigo Regime no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGHIS, 2000.(Diss.mimeo.).

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aplicação por demais rígida e inadequada das leis às pessoas sociais numa dada

circunstância. Das peças do cânone shakespeareano, dois exemplos eloqüentes são: “O

Mercador de Veneza”(1600)267 e “Medida por Medida”(1623)268.

O plano dramático de “O Mercador de Veneza” torna moralmente condenável

o modo como o personagem Shylock enrijece o uso das leis de Veneza ao cobrar uma

dívida em carne humana – exorbitância de inveja, usura e avareza – contra um cidadão

honrado: Antônio. Do ponto de vista estritamente legal, Shylock aciona as leis do

contrato comercial, compartilhadas pelos demais habitantes e/ou comerciantes do

fictício Estado de Veneza, para fazer valer os seus efeitos contra a vida de Antônio.

Deste modo, por mais simpatia que o Duque de Veneza nutrisse por Antônio, havia algo

maior a ser preservado: a credibilidade das instituições de Veneza. O dilema do duque

era o seguinte: se, por razões de gostos e preferências pessoais, ele criasse uma exceção

arbitrária para que os efeitos do contrato não fossem cumpridos, todas as instituições

jurídicas e comerciais da fictícia Veneza poderiam perder credibilidade, pondo em risco

a sua própria sobrevivência enquanto corporação política; por outro lado, o seu

cumprimento representaria a morte de um homem honrado, em que uma circunstância

atenuante (uma tempestade) fizera-o perder os seus bens empenhados numa empresa

comercial, com que pretendia saldar a sua sangrenta dívida com Shylock. Assim, como

o duque não poderia salvar Antônio sem ser acusado de tirania, restava para Antônio o

improvável: contar com a misericórdia do credor.

A proposição dramática de tal dilema representa a exorbitância cômica do

espírito usurário e da avareza anticavalheiresca personificados em Shylock, cujo

contraponto cênico perfeito é o próprio Antônio – um homem honrado, socialmente

reconhecido por seus pares na praça comercial de Veneza e que contraíra empréstimo

com Shylock para ajudar o seu amigo Bassanio a casar com uma rica herdeira: Portia.

Considerando a credibilidade social e respeito que Antônio tinha na praça de Veneza, a

atitude mais honrada de Shylock seria perdoar a dívida, abrindo mão de fazer cumprir

os efeitos impiedosos de seu contrato. No entanto, a inveja e o ressentimento de Shylock

em relação a Antônio – que humilhara Shylock publicamente algumas vezes –

267Ver estudos de: BERRY, Hebert. “Shylock, Robert Miles, and events at the Theatre”. Shakespeare Quartely, volume 44, 1993(2): pp.183-201; NEWMAN, Karen. “Portia’s Ring: Unruly Women and Structures of Exchange in The Merchant of Venice”. Shakespeare Quartely, volume 38, 1987(1): pp.19-33 268Ver estudos de: BERCÉ, Yves-Marie. O Rei Oculto: Salvadores e Impostores – Mitos Políticos e Populares na Europa Moderna. São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo/EDUSC, 2003. pp.249-285; DIEHL, Huston. “Infinite Space: Representation and Reformation in Measure for Measure”. Shakespeare Quartely, volume 49, 1998(4): pp.393-410; HAYNE, Victoria. “Performing Social Practice: The exemple of Measure for Measure”. Shakespeare Quartely, volume 44, 1993(1): pp.1-29

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transformaram a sua desgraça comercial numa ótima oportunidade para vingança

pessoal através de dispositivos institucionais de manutenção da ordem pública.

Ora, considerando a teleologia moral da peça, o dilema que Shylock criou para o

Estado de Veneza tornava comicamente justificável que fosse derrotado legalmente e

dramaticamente pelo engenho jurídico de Portia (disfarçada de advogado) que, nesse

sentido, salvou simultaneamente as instituições de Veneza e o amigo de seu futuro

marido. Antes de chegar à sua vitória jurídica sobre Shylock, há toda uma guerra de

engenho entre Portia e o judeu, tornando mais aflorada a caracterização de Shylock

como vilão dramático e ratificando a tese moral de Portia de que a “qualidade da

misericórdia não pode ser forçada”. Por tal perspectiva moral, é mais do que merecido

que Shylock seja derrotado por uma mulher rica e nobre travestida de advogado: Portia

consegue criar um silogismo legal em que demonstra que o cumprimento do direito

contratual de Shylock significaria derramar sangue desnecessariamente – um ato

criminoso que não poderia estar contido em nenhum contrato comercial sem que

colocasse em risco a própria estabilidade das instituições sociais.

No caso de “Medida por Medida”, Yves-Marie Bercé269 nos fornece uma chave

de leitura interessante: segundo tal autor, havia como ideal para o exercício do poder

nos séculos XVI e XVII o dom da clarividência, que incidiria sobre a capacidade de o

rei saber julgar os indivíduos, escolher os melhores conselheiros, escutá-los e tirar

proveito de suas informações e opiniões. A freqüência deste argumento sugere uma

verdadeira obsessão com o erro e o engano, que funda o mito positivo do “rei

cauteloso”, dotado de um feliz discernimento e de um exato conhecimento das coisas.

No fundo, tanta cautela apenas demonstrava que, no final das contas, um rei somente

poderia estar bem informado por si mesmo e que não deveria confiar a ninguém as

grandes decisões de seu governo. Tais princípios suscitam o uso imaginário – expresso

nas peças teatrais e nas novelas exemplares – de passeios discretos, ou sob disfarce,

através do reino, dando ao rei a ocasião de observar diretamente como o seu povo vive,

de encontrar a amável ingenuidade ou a opinião sincera sobre seu governo ou sua

pessoa, sem prevenções ou afetações cortesãs270.

Na literatura, a figura do “rei cauteloso” ou “oculto” mistura (em sua eqüidade

zombeteira) os papéis de comediante astucioso e justiceiro soberano. O “rei cauteloso”

ideal é aquele que é apaixonado pela verdade e pela justiça. No entanto, para ele mesmo

269BERCÉ, Yves-Marie. O Rei Oculto: Salvadores e Impostores – Mitos Políticos e Populares na Europa Moderna. São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo/EDUSC, 2003.

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ter a verdade e fazer a justiça com eqüidade, terá de figurar uma farsa de si mesmo – eis

o paradoxo que funda as relações de poder na “sociedade de corte” e os seus

mecanismos de disputa por distinção social. Em certa medida, como notara Michel de

Montaigne (1533-1592), o rei sofre os efeitos inconvenientes da própria grandeza de sua

dignidade régia e da dinâmica configurativa de seu poder curializado, que o afasta das

práticas de franqueza e da opinião sincera271, de modo que sempre corre o risco de

práticas desmedidas à medida que não tem com quem se medir.

Nos séculos XVI e XVII, em termos de escolhas e ação administrativa

(potestas), o príncipe ideal é aquele capaz de fazer justiça com eqüidade, o que exige

prudência, clarividência e discernimento para saber medir bem as circunstâncias para

fazer com que os efeitos das leis ou costumes se conformem a elas e à dignidade social

ou política das partes envolvidas numa contenda qualquer. Em “Medida por Medida”,

a tópica do “rei cauteloso” – que, no limite, deve “ocultar-se” para cotejar opiniões de

seus súditos sobre a prática de sua autoridade – aparece através da farsa montada pelo

duque Vicentio da fictícia Viena.

No entanto, o seu ato de ocultar-se, fingindo ter abandonado a dignidade ducal,

entregando-a a um “anjo substituto e vingador” (Angelo), segue uma estratégia de

recuperação de autoridade – depois de tanto tempo de leniência – sem transfigurar-se

em tirano. Ora, este tipo de estratégia era muito análoga àquela descrita por Maquiavel

sobre o modo como o duque César Bórgia se valeu de Ramiro de Orco em Romanha.

Embora Angelo tenha sido poupado da mesma sorte cruel de Ramiro, é possível

identificar o mesmo princípio de ação de ambos os duques em relação aos seus

prepostos:

“Como esta parte da ação do duque é digna de registro e de imitação, não quero silenciar a respeito. Logo que se apoderou da Romanha, tendo-a encontrado, em geral, sujeita a fracos senhores, que mais espoliavam do que governavam os seus súditos, dando-lhes apenas motivo de desunião (tanto que aquela província estava cheia de latrocínios, de tumultos e de toda sorte de violência), julgou o duque que era necessário, para torná-la pacífica e obediente ao braço régio, dar-lhe bom governo. Então, colocou ali Ramiro de Orco, homem cruel e expedito, ao qual outorgou plenos poderes. Este, em pouco tempo, conseguiu fazer com que a Romanha se tornasse pacífica e unida, tendo alcançado ele mesmo grande reputação. O duque julgou depois que já não era necessária tanta autoridade, pois temia que se tornasse odiosa. E constituiu um juízo civil no centro da província, com um presidente ilustre e benquisto, e onde cada cidade estava representada. Sabendo que os rigores passados haviam criado ódios contra ele próprio, para apagá-los do ânimo daqueles povos e conquistá-los a todos definitivamente em tudo, quis demonstrar que, se haviam sido cometidas crueldades, não procediam dele e sim da dureza de caráter do ministro. E, em vista disso, tendo ocasião, mandou exibi-lo certa manhã, em Cesena, em praça pública, cortado em dois pedaços, tendo ao lado um pedaço de pau e uma faca

270BERCÉ, Ibdem Op. Cit.. pp. 249-285 271MONTAIGNE, Michel. “Dos Inconvenientes das Grandezas”, cap.VII, liv.III. In Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1972. pp.419-421

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ensangüentada. A ferocidade desse espetáculo fez com que o povo ficasse satisfeito e espantado ao mesmo tempo”.272

O exemplo do uso estratégico da personalidade cruel de Ramiro de Orco por

César Bórgia também serviria para referendar, mais adiante, o argumento que

Maquiavel desenvolve no capítulo XVII:

“...Não deve, portanto, importar ao príncipe a qualificação de cruel para manter os seus súditos unidos e com fé [i.e., empenhados na fidelidade ao soberano], porque...é ele mais piedoso do que aqueles que, por muita clemência, deixam acontecer desordens das quais podem nascer assassínios ou rapinagem...” 273 Tal advertência serviria também para o príncipe Escalo em “Romeu e Julieta”,

já que a sua longa leniência foi o que abriu a possibilidade de haver violências

insolentes e desordens civis patrocinadas por parentes, amigos e servidores das casas

Capuleto e Montéquio. Além disso, a continuação do argumento de Maquiavel no

capítulo XVII de “O Príncipe” poderia também servir para moralizar, em “Medida por

Medida”, o jogo dramático entre um Vicentio que, antes de “ocultar-se”, era

excessivamente clemente nos efeitos práticos da lei, e um Angelo que, ao assumir a

dignidade ducal, torna-se excessivamente preciso274 nos efeitos práticos da lei:

“[O príncipe] deve...proceder equilibradamente com prudência e humanidade, de modo que a confiança demasiada não o torne incauto e a desconfiança excessiva não o torne intolerável(...). Nasce daí esta questão debatida: se será melhor ser amado que temido ou vice-versa...Os... homens hesitam menos em ofender aos que se fazem amar do que aos que se fazem temer..., ao passo que o temor que se infunde é alimentado pelo receio de castigo, que é um sentimento que não se abandona nunca. Deve, portanto, o príncipe fazer-se temer de maneira que, se não se fizer amado, pelo menos evite o ódio, pois é fácil ser ao mesmo tempo temido e não odiado, o que sucederá uma vez que se abstenha de se apoderar dos bens e das mulheres dos seus cidadãos e dos seus súditos e, mesmo sendo obrigado a derramar sangue de alguém, poderá fazê-lo quando houver justificativa conveniente e causa manifesta. Deve-se, sobretudo, abster-se de se aproveitar dos bens dos outros, porque os homens esquecem mais depressa a morte do pai do que a perda de seu patrimônio... Concluo, pois,...que um príncipe sábio...deve somente procurar evitar ser odiado...”275

Em “Ricardo III”, a própria forma como o personagem-título constrói a sua

trajetória de poder, valendo-se de mentiras, difamações e assassinatos estritamente

acionados sem causa pública manifesta, torna-o um governante excessivamente

desconfiado, imprevisível e insondável para seus súditos e, por conseguinte, odiado. Em

“Medida por Medida”, o duque Vicentio claramente expõe que algumas desordens

272MAQUIAVEL, Nicolau. “Capítulo VII: Dos principados novos que se conquistam com armas e virtudes de outrem”. In O Príncipe. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p.36 273MAQUIAVEL, Nicolau. “Capítulo XVII: Da Crueldade e da Piedade – se é melhor ser amado ou temido”. In O Príncipe. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p.75 274Vicentio chama Angelo de “precise” que, no vocabulário elizabetano, era uma forma pejorativa e estereotipadora de se referir ao rigorismo moral e político dos puritanos radicais, que criticavam ferrenhamente os procedimentos dos tribunais eclesiásticos anglicanos, assim como os rituais da Igreja Anglicana. Ver: DIEHL, Huston. “Infinite Space: Representation and Reformation in Measure for Measure”. Shakespeare Quartely, volume 49, 1998(4): pp.393-410

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morais e patrimoniais em Viena seriam o resultado do fato de ter negligenciado o uso

eqüitativo de sua autoridade. No entanto, como ele próprio avalia, a sua falta foi o

excesso de abrandamento nos efeitos da lei. Daí, se algumas desordens e abusos de

seus súditos derivavam disso, seria incoerente que fosse ele o agente de punição, pois

isso torná-lo-ia odioso e tirânico. Assim, ele se “oculta” para delegar temporariamente o

papel punitivo a um “anjo vingador”, cuja marca dramática era o seu extremo oposto: o

excesso de rigidez e crueldade nos efeitos da lei.

Em “Medida por Medida”, somente depois de os habitantes da fictícia Viena

experimentarem “a dureza de caráter” de Angelo é que Vicentio pôde sentir-se

respaldado para restaurar a sua preeminência ducal, mas agora em novas bases: fazendo

valer com sabedoria e clarividência (depois de observar “ocultamente” os seus súditos)

o princípio da eqüidade. No entanto, a sua forma de desautorizar Angelo foi tornar

público que o “anjo” ou “preciso” não poderia transformar toda forma de pecado em

crime capital, pois seria odioso cobrar legalmente de alguém uma conduta moral

excessivamente precisa à qual ele próprio teria dificuldade de se submeter enquanto

homem. Portanto, as instituições políticas e jurídicas deveriam ter a medida certa para

regularem a conduta de seres essencialmente paradoxais276. Nesse sentido,

particularmente se considerarmos a ordem anglicana no contexto de James I277, seria

importante não perder de vista a importância que era dada, na Inglaterra, às discussões

de Calvino a respeito das leis.

Huston Diehl notara que muitos especialistas interessados no tratamento que era

dado à lei na peça “Medida por Medida” examinaram recorrentemente as leis inglesas

eclesiásticas e civis concernentes ao casamento, adultério e fornicação278, mas

ignoraram a teoria legal da Reforma e, em particular, a ênfase de Calvino na função

epistemológica da lei: ao enfatizar o incomensurável fosso entre qualquer indivíduo e a

perfeição divina, Calvino ensinava que ninguém era capaz, por si mesmo, de obedecer a

lei. Ora, através do malogro moral ou da revelação da hipocrisia do personagem Angelo,

a peça “Medida por Medida” justamente evidenciava a insistência calvinista de que o

275MAQUIAVEL, Nicolau. “Capítulo XVII: Da Crueldade e da Piedade – se é melhor ser amado ou temido”. In O Príncipe. São Paulo: Abril Cultural, 1973. pp.76-77 276Ver: CROCKETT, Bryan. The Play of Paradox: Stage and Sermon in Renaissance England. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1995. 277WARD, David. “The King and Hamlet”. Shakespeare Quartely, volume 43, 1992(3):pp.280-302; MATHESON, Mark. “Hamlet and A matter tender and dangerous”. Shakespeare Quartely, volume 46, 1995(4): pp.383-397; DIEHL, Huston. “Infinite Space: Representation and Reformation in Measure for Measure”. Shakespeare Quartely, volume 49, 1998(4): pp.393-410 278Ver o exemplo de: HAYNE, Victoria. “Performing Social Practice: The exemple of Measure for Measure”. Shakespeare Quartely, volume 44, 1993(1): pp.1-29

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autoconhecimento somente poderia ser alcançado pelo reconhecimento da total

inabilidade humana de cumprir a lei, um reconhecimento que necessariamente excluiria

o julgamento fugaz dos outros279. Por outro lado, o paradoxo da lei poderia reforçar e

sobrelevar o papel da justiça do rei em relação a ela, o que era uma brecha jurídico-

teológica que muito interessava a James I, embora encontrasse sobre isso a resistência

dos Comuns no parlamento280.

Na teologia de Calvino, mais do que um meio de correção, a lei era a lembrança

de nossas faltas; demonstrava o quanto desfiguramos a imagem divina na qual fomos

feitos. Afinal, o homem não precisaria de leis antes da Queda e, portanto, contemplar as

leis seria lembrar de nossa condição imperfeita de pecador e de nossa dependência da

graça divina. Na visão de Calvino, era a consciência da falta que habilitava a pessoa a

ver a si mesma e suas ações a partir da perspectiva de Deus. Em princípio, isso deveria

servir para conter a arrogância de cada homem ou as suas fantasias excessivas de

independência em relação a Deus e de perfeição moral em relação a seus

semelhantes281, ou seja, precisamente aqueles erros em que Angelo cai e, por isso

mesmo, decai da posição eminente que ocupava como preposto de Vicentio.

Aliás, coerentemente com a epistemologia legal de Calvino, a peça “Medida

por Medida” revela, mas não corrige, as imperfeições humanas, pois, ao mesmo tempo

que afirma o poder da representação teatral de fazer emergir a culpa e produzir as

condições para o arrependimento, também questiona a capacidade de o teatro sozinho

reformar a consciência de seus espectadores. Ora, se levarmos em conta uma

perspectiva crítica puritana not precise do período jacobita – ou seja, justamente aquela

que James I instaurou na Igreja Anglicana desde janeiro de 1604 –, poderíamos afirmar

que as formas legais rigoristas do personagem Angelo exigem dos habitantes da fictícia

Viena um grau de perfeição moral que chega ao extremo de negar o próprio paradoxo

humano e, por extensão, o papel da graça divina inscrita nas instituições sociais.

Portanto, o espírito do homem não poderia ser medido sem serem consideradas as suas

diferentes formas de corporificações no espaço e no tempo, pois todas elas revelariam

279DIEHL, Huston. “Infinite Space: Representation and Reformation in Measure for Measure”. Shakespeare Quartely, volume 49, 1998(4): p.403 280KERNAN, Alvin. Shakespeare, the King’s Playwright: Theatre in the Stuart Court, 1603-1613. New Haven/London: Yate University Press, 1995.pp.66-67 281DIEHL, Huston. “Infinite Space: Representation and Reformation in Measure for Measure”. Shakespeare Quartely, volume 49, 1998(4): pp.406-410

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uma “falha essencial” que justamente faz emergir um senso de comunidade baseado na

culpa e nos dons compartilhados – i.e., a comunidade calvinista de pecadores282.

No final das contas, a epistemologia legal calvinista pressupõe que a “falha

essencial” humana tem como efeito prático (mas não natural no sentido aristotélico-

tomista) uma solução orgânica de unidade para a vida social. Ora, tudo isso nos serve

para demonstrar que, no Antigo Regime, o conjunto de leis de um Estado (protestante

ou católico) não era entendido como uma abstração legal que precede e configura as

circunstâncias, mas como um dispositivo que se flexiona, em seus efeitos, às

circunstâncias e às dignidades sociais e institucionais das partes envolvidas. Por isso,

quando uma autoridade soberana inova em algum aspecto, a tendência é que a novidade

se justaponha à realidade preexistente, em vez de substituí-la. Nesse sentido, qualquer

instância de poder soberano do Estado no Antigo Regime deve ser necessariamente

jurisdicionalista; por conseguinte, a sua prática administrativa torna-se casuística, pois,

de outro modo, não haveria meios de acomodar as potenciais tensões dos corpos de

privilégios em seu interior.

Considerando isso, devemos reconhecer que, desde 1982, as muitas inferências

conceituais de Hespanha nos possibilitam evitar os modelos analíticos centrados,

mesmo que inconscientemente, no constitucionalismo liberal, particularmente quando

abordam o tema do poder absoluto (potestas absoluta). Como já pudemos perceber, a

dimensão prática do poder absoluto é bem diferente daquilo que a crítica liberal do final

do século XVIII chamaria de absolutismo. Antes do liberalismo, a noção de poder

absoluto está ligada justamente à percepção de que um rei era legibus solutus, isto é,

livre para decretar leis, o que não deve ser confundido com a idéia de tirania, pois não é

como vontade privada ou particular que o rei é legibus solutus, mas como pessoa

pública, como encarnação e instrumento da dignidade régia.

Ora, tendo isso em mente, pensemos mais uma vez no exemplo do dilema que

Shylock cria para o Duque de Veneza: este não pode alterar os efeitos do contrato da

dívida de Antônio com Shylock sem transformar isso num ato privado, num capricho

pessoal, cuja repercussão poderia criar uma sensação de insegurança em relação a todos

os demais patrimônios e contratos existentes no Ducado de Veneza. Assim, o ato de

perdão da dívida de Antônio deveria partir de Shylock; ou o contrato deveria ser

anulado por artifícios legais suficientemente convincentes que não gerassem a sensação

282DIEHL, Huston. “Infinite Space: Representation and Reformation in Measure for Measure”. Shakespeare Quartely, volume 49, 1998(4): pp.395-409

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de ameaça contra a credibilidade das instituições do ducado. Logo, tais instituições

deveriam apresentar uma estabilidade de forma sucessiva no tempus que justamente

gerasse uma sensação de segurança e previsibilidade.

Em “Medida por Medida”, Angelo falha em realizar isso porque transforma a

sua autoridade ducal (uma potestade pública) num instrumento privado para forçar

Isabel a ceder-lhe sua castidade em troca da vida de seu irmão Cláudio, cujo pecado

cometido – a gravidez de sua noiva Julieta, com quem nunca quebrara as promessas de

casamento – era muito pequeno para justificar uma punição capital. Além disso, Angelo

valeu-se de sua posição preeminente para constranger Isabel a não denunciá-lo

publicamente por querer cometer secretamente com ela o mesmo tipo de ato ilícito a

partir do qual pretendia publicamente condenar o seu irmão à morte.

Ora, se considerarmos as expectativas morais dos muitos tratadistas políticos dos

séculos XVI e XVII, que afirmavam que a dignidade régia deveria ser serva da justiça e

da eqüidade, as escolhas e ações de Angelo transformaram a sua potestade pública em

tirania. Tal idéia fica mais evidenciada se considerarmos que, num universo de vínculos

sociais e políticos configurados a partir de corpos de privilégios, o poder preeminente

ideal é aquele que jamais se confunde com a dimensão particular de um corpo de

privilégio, com caprichos pessoais ou com conveniências estritamente privadas. Daí,

não paradoxalmente, para ser servo da justiça e da eqüidade, um Rei (dignitas regia)

deveria ser legibus solutus. Nesse sentido, Maquiavel não faz uma ode à tirania quando

afirma que qualquer ação, mesmo que cruel, por parte de uma potestade pública, é

legítima se houver circunstância que a justifique em nome de manifesto interesse

público.

Portanto, como legibus solutus, um Rei é “livre” (solutus) porque é, em si

mesmo, a “lei viva” (lex animata) que – agindo conforme as circunstâncias e

considerando as dignidades das partes envolvidas numa contenda qualquer – equilibra

as várias unidades corporatistas de “leis particulares” (privatae leges) no fiel da balança

da “utilidade comum do reino”(utilitas totius regni) e, deste modo, preserva-o como

Universitas. Além disso, desde o século XV, um rei é denominado Ab solutus porque,

como juiz supremo ou “imperador em seu reino”, não reconhecia nenhuma autoridade

política acima de si (Papa ou Sacro Imperador) e, por isso, figurava-se como o primeiro

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em autoridade (Princeps ou Superanus) dentro de seu reino, relativizando (mas não

eliminando) a autonomia dos corpos de privilégios que o compunha283.

A relativização da autonomia dos corpos de privilégios deve ser entendida como

o resultado de um diálogo tenso de acomodação de interesses locais com centros

emergentes de poder político-militar e financeiro, que criaram em torno de si novos

efeitos agregativos ao final da Idade Média. Aliás, as compilações de costumes locais e

as codificações de direitos são aspectos sintomáticos da relação de interdependência dos

centros emergentes de poder com as localidades de poder, visto que não responderam

apenas a iniciativas do poder central, mas também a necessidades das próprias

localidades, que agora viviam sob a pressão de novos nexos sociais e espaciais que

escapavam de seu controle imediato. Como já foi dito anteriormente, qualquer

configuração estatal de sociedade é historicamente indissociável de uma certa

consciência de que o mundo tornou-se algo mais amplo, alterando a própria natureza

dos nexos que conformam os interesses locais. Por isso, é digno de nota perceber que os

poderes do centro instrumentalizaram as localidades em seu favor, vencendo os casos

mais notórios de resistência, mas não se tratou de uma ação unilateral284.

Enfim, entre os séculos XV e XVII, a lógica e a prática do poder absoluto, ou

potestas absoluta, não guardavam nenhuma correspondência com aquilo que é

habitualmente chamado de absolutismo. Certamente, ao longo do século XVII, a

potestas absoluta também expressou a tendência à unilateralidade do poder político

soberano (central ou local), mas isso ocorria marcadamente quando circunstâncias

extraordinárias (casus necessitas) – como era comum num contexto de guerras

religiosas e interdinásticas contínuas – empurravam alguns monarcas a agir de forma

mais unilateral na recomposição de privilégios e na cobrança de novos impostos, pois,

em tais casos, a necessidade não reconhecia a lei (necessitas legem nom habet), ou

seja, de acordo com as circunstâncias, um particular (inclusive, o próprio rei como

pessoa privada) poderia vir a ser sacrificado em nome daquilo que fosse considerado de

utilitas totius regni.

Em todo caso, onde ou quando houve tal tendência à unilateralidade, a ação

administrativa do poder soberano esteve inscrita numa prática de governo que seguia

uma lógica de funcionamento jurisdicionalista. Por isso mesmo, deve-se considerar que

283Ver: DAVID, Marcel. La Souveraineté et les Limites Juridiques du Pouvoir Monarchique du IXe au XVe Siècle. Paris: Librairie Dalloz, 1954.pp.13-86 284PUJOL, Xavier Gil. “Centralismo e Localismo: Sobre as Relações políticas e culturais entre capital e territórios nas Monarquias Européias dos séculos XVI e XVII”. Penélope, nº6. Lisboa: Cosmos, 1991. pp.119-144

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Nos dois primeiros itens deste capítulo, baseando-nos em Kantorowicz, tivemos

a oportunidade de observar a transformação de sentido do termo latino imperio a partir

do século XIII, cujo significado como domínio eterno e soberano de direitos próprios

passou a ser aplicado não apenas aos agregados políticos extensos (cidades-estado e

reinos) da Baixa Idade Média, mas também às suas unidades constitutivas internas.

Deste modo, os antigos domínios e reinos feudais adquiriram uma nova corporidade

jurídico-política, que claramente distinguia a transitoriedade física daqueles que

comandavam da continuidade transtemporal dos vários corpos de direitos e

prerrogativas de poder existentes em seu interior. Logicamente, a maior difusão de

imperio com tal sentido nos debates políticos, teológicos e jurídicos já era um indício

histórico importante do processo de despersonificação das instituições sociais e

políticas. Além disso, baseando-nos em Elias, tivemos a oportunidade de perceber que a

emergência da personalidade jurídica dos Estados europeus estava historicamente

implicada com uma mudança na percepção que as pessoas tinham do espaço e de suas

próprias relações entre si.

Como foi demonstrado por Elias, o comportamento de cada indivíduo é

estruturalmente alterado à medida que se percebe implicado numa cadeia mais ampla e

abstrata de pertencimento e interdependência social, o que também cria demandas

diferentes tanto de busca de proteção quanto na forma de conceber e sentir a integração

social. Um patamar estatal de integração social significa que, gradativamente, cada

indivíduo ou agrupamento social de diferentes localidades passaria a perceber que

parcelas cada vez maiores de suas vidas cotidianas seriam afetadas por contingências

anônimas, impessoais ou abstratas e, por isso mesmo, não poderiam mais ser

exclusivamente resolvidas em âmbito local (familiar, comunal, tribal ou parental) pelo

repertório costumeiro. Frente a tal nova configuração do espaço das experiências

sociais, seria necessário buscar meios de explicar, atuar e fazer sentir o que seria

considerado o viver pessoal de um indivíduo e os seus nexos efetivos de integração a

instâncias abstratas e anônimas.

Na Europa, durante a Idade Média, o pertencimento à Cristandade criava nexos

efetivos muito frouxos e tinha poucos ou raros efeitos práticos na vida cotidiana das

pessoas, predominando em sua estrutura de comportamento os referentes pessoais-

parentais de integração social. Por outro lado, no patamar estatal de integração

social anterior ao liberalismo, os referentes pessoais-parentais foram colocados numa

situação ambígua de diálogo tenso e de conveniência com circunstâncias supralocais de

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era nem completamente parental, nem completamente conformador de coletividades

abstratas.

Invariavelmente, a sacralização de lideranças em sociedades ainda marcadas

pelo sistema parental criava as condições de possibilidade para novos hábitos de

integração social. Foi justamente isso que Maria Isaura percebera no caso da

sacralização dos líderes de movimentos messiânicos, pois tal fenômeno político-

teológico os inscrevia numa aura de legitimidade que transcendia qualquer laço parental

de pertencimento ou fidelidade, ou seja, a sua dignidade divino-abstrata conferia-lhes

uma posição soberana que os desvinculava de quaisquer corporalidades físico-parentais

particulares. Portanto, justamente por não se confundir com nenhuma parentela em

particular que o líder messiânico tornava-se uma espécie de juiz soberano para os mais

diversos assuntos interparentais de suas comunidades mais extensas e renovadas na fé.

Deste modo, a dignidade divino-abstrata do líder messiânico cumpria uma dupla função:

conservava a lógica ou expectativa parental de constituição de vínculos sociais, mas

transformava os seus efeitos práticos para poder dar conta de um campo mais amplo de

experiências sociais287.

Ora, desde o século XIII, as formas de sacralização teológica da dignidade régia

na Europa deixavam as dinastias governantes em situação política bastante análoga

àquela dos líderes messiânicos estudados por Maria Isaura: sem romper completamente

com os referenciais senhoriais-parentais de integração social (i.e., pessoalidade,

familiaridade e hierarquia), a sacralização das dignidades régias criou uma aura distinta

para as dinastias governantes, que passaram a representar para os seus “súditos” ou

“seguidores” a idéia de pertencimento a agregados sociais mais amplos (Universitatis).

Aliás, podemos observar uma certa nostalgia por proximidade social, mesmo que

hierarquizada, nas revoltas antifiscais do século XVII estudadas por Yves-Marie Bercé,

durante as quais muitos panfletos encenavam o mito de um rei capaz de conservar

familiaridade, simplicidade e antigas liberdades288. Em todo caso, o fundamental a

apreender dessas considerações é que as formas de sacralização das dignidades

institucionais são medidores socioculturais importantes para se perceber um fenômeno

287QUEIROZ, Maria Isaura de Pereira. O Messianismo no Brasil e no Mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 2003.pp.362-363 288BERCÉ, Yves-Marie. O Rei Oculto: Salvadores e Impostores – Mitos Políticos Populares na Europa Moderna. São Paulo: EDUSC/Imprensa Oficial de São Paulo, 2003. p.385. Ver também o uso da figura do matrimônio como metáfora política nos lamenti sobre Lisboa como “quase viúva” de Filipe II em: BOUZA, Fernando. Imagen y Propaganda: Capítulos de Historia Cultural del Reinado de Felipe II. Madrid: Akal, 1998.pp.95-120

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político central para a configuração de um patamar estatal de integração social: a

despersonificação das instituições sociais e políticas.

Tal fenômeno tem sido estudado por diferentes enfoques: teologia política,

imaginação política e os estudos histórico-antropológicos dos rituais de legitimação do

poder das realezas européias289. Aqui, o meu enfoque centrou-se nas leituras de teologia

política de Ernst Kantorowicz, mas não me furtei de estabelecer algumas conexões

interpretativas com os demais enfoques. Como o meu enfoque principal parte de

Kantorowicz, devo antecipar que não entendo o termo despersonificação como

antônimo daquilo que ele chama de personificação. Para Kantorowicz, personificação

seria o tratamento da Coroa como Persona Ficta, o que teria implicações políticas

distintas da concepção organológica ou corporatista de Coroa, pois a personificação da

Coroa significaria que ela figuraria como uma persona acima e divorciada dos membros

da corporação política. Nesse sentido, o seu entendimento de personificação traz

implícita a idéia de Estado como uma “cabeça que engolfa o corpo”. Ora, tal visão está

associada à percepção de absolutismo que foi criticada no item anterior deste capítulo.

Assim, não se deve estranhar que Kantorowicz oponha o suposto absolutismo

continental ao caso inglês de monarquia – padrão analítico criticado por Nicholas

Henshall desde meados da década de 1990290.

Em minha análise, despersonificação é antônimo de pessoalidade. Naquilo que

tange à história das instituições políticas e práticas sociais, pessoalidade refere-se à

dependência estreita do continuum funcional e existencial das instituições sociais e

políticas em relação à continuidade física e psicológica de quem as encarna, havendo

nisso um componente de imprevisibilidade. Nesse sentido, por antonomásia, a

despersonificação está relacionada à maior autonomia das dignidades institucionais

em relação aos humores individuais de suas encarnações humanas transitórias.

Portanto, há despersonificação das instituições sociais e políticas quando estas são

concebidas e demandadas (prática e conceitualmente) como perpetuidades sucessivas

de direitos e obrigações, ou seja, quando se tornam pessoas sociais cuja estabilidade

de forma prefigura expectativas (hu)morais de ação a respeito daqueles que as

encarnam.

289Para tanto, ver: KANTOROWICZ, Ernst H.. Os Dois Corpos do Rei. São Paulo: Companhia das Letras, 1998; BERCÉ, Yves-Marie. O Rei Oculto: Salvadores e Impostores – Mitos Políticos Populares na Europa Moderna. São Paulo: EDUSC/Imprensa Oficial de São Paulo, 2003; HERMANN, Jacqueline. O Reino do Desejado. São Paulo: Companhia das Letras, 1998; BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 290HENSHALL, Nicholas. “El Absolutismo de la Edad Moderna, 1550-1700: Realidad Política o Propaganda”. In El Absolutismo: Un Mito?. Barcelona: Idea Books, 2000.pp.43-83

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Por outro lado, nos termos da história social dos modelos culturais, identifica-se

a emergência de uma concepção estatal de instituições sociais e políticas quando

podemos observar, particularmente nos tratados políticos e de costumes, a exigência de

uma constância de adequação entre a aparência externa de comportamento do

indivíduo e as demandas funcionais da dignidade institucional da qual se investe. Ora,

isso está historicamente implicado com uma maior exigência de autocontrole dos

desejos e dos impulsos agressivos, tal como fora estudada por Norbert Elias291. Nesses

termos, poderíamos afirmar que, à medida que aumenta a cadeia de interdependência

das pessoas – projetada em espaços cada vez mais amplos, funcionalmente

diferenciados e, por isso mesmo, mais integrados –, maior se torna a distância entre o

que se pensa/sente e como se externa a ação ao se realizar os papéis sociais, políticos e

institucionais no interior de uma corporação política. Este patamar de

autodistanciamento subjetivo em relação às máscaras sociais ou institucionais

claramente diferencia a complexão emocional do ethos feudal-cavalheiresco medieval

daquela do ethos cortesão da Idade Moderna, ao mesmo tempo que evidencia um

processo de individuação específico dos séculos XVI e XVII292. Tendo chegado a isso,

tentemos, agora, explicitar melhor a correspondência existencial dos fenômenos da

despersonificação e da sacralização das instituições sociais e políticas com o processo

de individuação.

Nas décadas de 1980 e 1990, uma série de estudos conduzidos por historiadores

sobre a monarquia sagrada francesa possibilitaram a retomada e atualização de obras

clássicas de teologia política (a primeira tradução francesa de “Os Dois Corpos do Rei”

data de 1989, pela editora Gallimard) e de antropologia histórica (a reedição de 1983,

pela editora Gallimard, de “Os Reis Taumaturgos”). Uma novidade conjuntural foi

justamente a convergência da antropologia histórica com a teologia política, pois, como

afirmaria Jacques Marx, a teologia política não se expressava apenas por meio

conceitual e teórico, mas também através de imagens e rituais293. Deste modo,

ampliava-se o foco sobre algo que Kantorowicz reconhecia necessário de ser estudado,

mas que ele próprio não teve oportunidade de desenvolver em seus trabalhos de teologia

política e que apenas vemos esboçado na forma como observou as transformações, entre

291Ver: ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, 2 vols.. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 292Ver: ELIAS, Norbert. Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001; MARAVALL, José Antônio. Cultura do Barroco. São Paulo: EdUSP, 1997.

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os séculos XIV e XVI, nas representações imagético-tumulares de bispos e nos rituais

com as efígies de príncipes, quando então se percebeu uma cisão imageticamente

eloqüente entre a representação do corpo físico e a representação da Dignitas – esta já

definiria uma pessoa social temporalmente sucessiva e autonomamente distinta de suas

encarnações físicas efêmeras294.

A sacralização das realezas medievais – estudada seja por via do debate

doutrinal, seja por via do miraculoso que compunha a sua aura (que tinha um substrato

pré-cristão e, portanto, antecedia aos debates político-teológicos da Baixa Idade Média)

– serviu, como notaram Kantorowicz e Bloch, para legitimar e distinguir as dinastias

principescas da Baixa Idade Média em relação ao conjunto dos corpos político-sociais

feudais de poder (senhorios, cidades, comunidades, Papado e Império). Por conseguinte,

estudar as suas formas de manifestação no pensamento e nas práticas sociais seria um

dos vários caminhos possíveis de entendimento do processo de construção das

soberanias estatais européias a partir de uma estrutural social feudal-senhorial.

Como categoria analítica, falar em sacralidade ou sacralização das instituições

sociais e políticas significa considerar a problemática da metáfora, da analogia ou da

interferência do transcendente em questões relativas à soberania ou ao poder político

num sentido mais geral, isto é, trazer para a esfera da política concepções, práticas ou

equivalentes funcionais-analógicos que fazem parte de categorizações religiosas ou

teológicas, tais como: pecado, culpa, remorso e expiação; milagre, graça, caridade, fé e

esperança; encarnação, perfeição, unção, perpetuidade sucessiva, eternidade e

imortalidade; missão (messiânica ou guerreira) como Vindicatio ou como

aperfeiçoamento dos homens e coisas; espera milenar; martírio, sacrifício, imolação e

provação; exclusão da comunidade de fé (excomunhão), etc... Tudo isso está aureolado

por uma espécie de confirmação ou substrato transcendente, que pode ser tanto

divindade(s) efetivamente crida(s)/criada(s) pelos atores sociais quanto aquelas coisas

que, na prática administrativa, assumam tal posição funcional-analógica – Fisco, Pátria,

Nação, Cristandade, Estado, Realeza ou Dignidade Régia, Dinastia, Coroa, Honra

Estamental, etc –, que se tornam, portanto, seres morais ou pessoas morais coletivas.

Nos termos do debate teórico sobre a despersonificação das instituições sociais

e políticas, interessam-nos as seguintes noções sacralizantes: perfeição, perpetuidade

293Ver: MARX, Jacques. “Le séminaire de Bruxelles: La Sacralisation du Pouvoir vue sous l’angle de l’Antropologie Culturelle”. In Sacralisation du Pouvoir: Images e mises en scène, Col. Problemes d’Histoire des Religions, Tomo XIII. Bruxelles: Ed. Université de Bruxelles, 2003. pp.9-18 294KANTOROWICZ, Ernst H.. Os Dois Corpos do Rei. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. pp.193-272

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sucessiva e eternidade. A perfeição é própria das coisas que são incorruptíveis ou

imutáveis na forma, representando ordem, hierarquia, integração e proporção na sua

configuração; perpetuidade sucessiva é própria das coisas criadas como espécie, ou

seja, forma estável que se perpetua como coletividade em sucessão no tempo, o que

significa que refletem apenas secundariamente (como potência germinativa perpétua,

a exemplo da imagem clássica da Fênix) os atributos de perfeição da divindade;

eternidade é própria das coisas que não sofrem os efeitos corruptíveis do tempo

(eternidade angélica ou aevum), ou estão fora do tempo das coisas criadas (eternidade

de Deus ou aeternitas). Logicamente, na prática cotidiana do vocabulário político, tais

nuanças se misturavam, sendo o foco de convergência de sentido a idéia de que

determinadas coisas possuem uma perpetuidade de forma – i.e., encarnam uma

“perpetua necessitas”.

Considerando a apresentação sumária de tais conceitos para o debate teórico

aqui desenvolvido, o ponto geral a ser notado é que o sentimento de pertencimento a

espaços abstratos, próprio da complexão psicológica de indivíduos que participam de

um patamar estatal de integração social, transparece nas práticas sociais quando as

coisas que são percebidas como parte da vida em comum – ou seja, de utilidade e uso

comum (representando, por isso, a idéia de bem comum) – estão implicadas em espaços

mais amplos e são aureoladas por um substrato de perfeição ou perpetuidade específico

da esfera do transcendente. Dentre os vários exemplos disso, destaco o paralelismo

teológico-jurídico entre Fiscus e Christus295, que conferiu ao imposto régio uma aura

específica que o colocava, em princípio, num patamar de valor e função (o bem comum)

acima dos direitos senhoriais; desatrelava-o das propriedades particulares da dinastia

governante e inscrevia-o numa previsibilidade de calendário. Deste modo, o fisco régio

deixava aos poucos de estar referido a eventos e tornava-se uma perpetua necessitas do

corpo político no alvorecer da Idade Moderna.

Assim, enquanto potestade pública – i.e., o oposto de um poder estritamente

dominial –, o rei moderno não sustentava a sua prática administrativa apenas através das

rendas advindas de seus domínios particulares. Por isso mesmo, emprestar à

arrecadação fiscal a aura sacrificial de Christus (eternidade encarnada no tempus) era

um modo de estabelecer um fundamento teológico-jurídico para a distinção entre a

riqueza do rei (corporalidade dinástica) e a riqueza comum do reino (corporidade

295KANTOROWICZ, Ibdem Op. cit.. pp.111-124

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política estatal, corpus republicae mysticum ou, em inglês, Commonwealth). Deste

modo, poder-se-ia legitimar uma fazenda pública que servisse justamente como base

material para a realização das atribuições administrativas de um poder político-jurídico

que se tornara efetivamente uma potência transdominial.

A partir do século XIII, devido à redescoberta latina dos textos políticos de

Aristóteles e à sua difusão por toda a Europa, tornou-se recorrente no debate doutrinal

dos juristas e teólogos o princípio de que todo agregado social extenso – i.e., que

transcendia as unidades domésticas ou dominiais de convivência social – seria um

corpus morale et politicum296. Ora, quando as instituições sociais e políticas adquirem

um corpus morale próprio, tornam-se entes coletivos e abstratos exigentes de que os

seus membros estejam dispostos, no limite, a se imolar para resguardá-las. Além disso,

elas adquirem juridicamente uma perpetuidade de forma análoga ao corpus mysticum

da Igreja. Historicamente, estas transformações conceituais estão implicadas com a

emergência de um tipo de indivíduo capaz de se dispor a uma fidelitas que ultrapasse o

mero sacrifício pro domino ou pro pater.

No entanto, deve-se também considerar que a viragem aristotélica havia dividido

os teólogos em dois campos filosóficos principais: aqueles que afirmavam que o mundo

era tênue e indeterminado (construtivismo filosófico-teológico) e aqueles que o

entendiam como algo denso e determinado (realismo filosófico-teológico). Nesta

diferença filosófica, o que estava em jogo era a liberdade divina: se a realidade é

arbitrária e pouco definida, então, não oferece nenhuma resistência à vontade divina; se

o mundo é rico em significados inerentes, então, a liberdade de Deus para fazer o que

quiser com ele (a sua onipotência) parece bastante restringida. Em outras palavras, ou se

sustenta que Deus age de acordo com as propriedades intrínsecas das coisas, ou que o

mundo não tem outras propriedades senão aquelas que Deus livremente lhe confere. Tal

dilema filosófico-teológico interfere diretamente na forma de se conceber o sentido

moral das instituições: Deus deseja algo porque é bom, ou tal coisa é boa porque

Deus a deseja?297

Nos termos do realismo filosófico, a tradição tomista de pensamento teológico-

político entendia que a queda adâmica não destruiu os “dons naturais” da razão e,

portanto, independentemente da graça, é “por natureza” que o homem criava e fazia

parte de instituições sociais, definindo os fins morais e o código de ética do viver em

296FIORAVANTI, Gianfranco. “La réception de la Politique d’Aristote au Moyen Age tardif”. In Aspects de la Pensée

Médiévale dans la philosophie politique moderne. Paris: PUF, 1999. pp.9-24

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comum. Nesta perspectiva, Deus deseja o Estado porque é, em si mesmo, algo bom.

Entretanto, nos séculos XVI e XVII, o construtivismo filosófico ganhou força com os

embates teológico-políticos protestantes, que reafirmaram sem ambigüidade o papel da

graça no “espaço infinito” entre a razão humana e a perfeição divina298, de modo que o

corpus morale et politicum passou a ser entendido como um mecanismo, inspirado pela

graça ou pela providência, para infundir ordem, harmonia e necessidade nas criações

humanas299. Nesta perspectiva, o Estado é algo bom porque é desejado por Deus.

Ora, se na perspectiva teológico-política, ser bom é intuir (tradição tomista) ou

infundir (tradição agostiniana) algum sentido de ordem e hierarquia na matéria do

mundo, há pouca diferença prática entre católicos e protestantes tanto na forma de

legitimar uma autoridade soberana quanto no modo de se propor vias de resistência às

suas “deformações diabólicas”. Porém, do ponto de vista do debate filosófico-teológico,

há uma clara diferença na forma de conceber a relação indivíduo/instituições: o juízo do

indivíduo moderno e protestante torna-se uma espécie de “deidade substituta”,

infundindo significado arbitrário num mundo desprovido de significados “densos”; isso

porque, tal como Deus, a sua subjetividade racionalista é a única fonte de significado e

valor. Em outros termos, a prosa do mundo tornou-se a prosa do sujeito, pois a natureza

(matéria do mundo) é refeita pelo homem, não possuindo significado intrínseco300.

Deste modo, toda determinação ou limite deste sujeito racionalista protestante é, na

verdade, autodeterminação ou autolimitação: os únicos limites à sua liberdade são

impostos pelos objetos ou mecanismos que ele próprio cria para infundir ordem na

matéria do mundo301.

É nesse sentido filosófico-teológico que um monarca protestante dos séculos

XVI e XVII – tal como James I é figurado em seu “Basilicon Doron”(1599) – é Ab-

solutus, pois a condição de ser solutus para criar ou justificar mecanismos de ordem e

reciprocidade hierárquica na Commonwealth é justamente se deixar limitar pelas

mesmas regras daquilo que criou ou justificou, caso contrário o poder soberano torna-se

dis-soluto e tirânico, tal como Angelo (“Medida por Medida”) e o Brother Gloster

(“Ricardo III”). No entanto, há um paradoxo a ser considerado: como o soberano

também é lex animata, há uma expectativa de prática institucional que cobra dele o

297EAGLETON, Terry. A Idéia de Cultura. São Paulo: Unesp, 2005.p.122 298DIEHL, Huston. “Infinite Space: Representation and Reformation in Measure for Measure”. Shakespeare Quartely, volume 49, 1998(4): pp.393-410 299Ver: DUMONT, Louis. O Individualismo. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.pp.44-65 300Ver: THOMAS, Keith. Religião e o Declínio da Magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.pp.102-104; 295-298 301EAGLETON, Terry. A Idéia de Cultura. São Paulo: Unesp, 2005.p.122

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discernimento necessário para refazer a natureza e os termos de algumas instituições

quando a necessidade dos tempos e lugares assim exigirem, o que demonstra que há

sempre um componente de perigo – e exposição solitária a mazelas – inerente à

condição de “alteza sócio-política”. Por isso mesmo, considerando a posição régia na

hierarquia social de poder, há sempre o perigo de ter de responder sozinho, perante

Deus e seu reino, pelos efeitos de seus erros políticos, principalmente quando não há

como inculpar ministros por maus conselhos.

Ora, este “inconveniente da grandeza” confere à dignidade régia (católica ou

protestante) uma aura sacrificial específica, com componentes cristológicos que se

misturaram, como temos observado, com referências conceituais advindas da retomada

ou redescoberta dos textos políticos aristotélicos a partir do século XIII. Desde então,

houve uma tendência a associar as noções cristológicas de sacrifício caridoso e de

eternidade encarnada no tempo (Christus como paradoxo de aeternitas e tempus)

com a noção aristotélica de que todos os agregados sociais extensos possuem um corpo

moral e político digno de ser defendido, preservado ou aperfeiçoado por seus soberanos

e súditos. Com isso, pôde-se fazer com que, ao final da Idade Média, a “coroa

cristológica do martírio” fosse assentada sobre as vítimas das guerras dos poderes

centralizadores emergentes, que se tornaram entidades político-morais exigentes de

sacrifícios a serem postos acima de qualquer fidelitas particular.

Como notara Kantorowicz, é a partir do século XIII que a virtude cristã da

caritas tornou-se inequivocadamente política e passou a ser utilizada com mais

constância para sacralizar e justificar – ética e moralmente – a morte em nome do

corpus morale et politicum, posto acima das obrigações feudais do vassalo para com o

senhor (sacrifício pro domino), do habitante para com a comunidade (sacrifício pro

communitas), do citadino para com a cidade (sacrifício pro civitas), do filho para com

o pai (sacrifício pro pater)302. Assim, através do martírio heróico em nome do corpus

morale et politicum, encenava-se uma expectativa de proteção e pertencimento a

espaços sociais e políticos mais amplos, isto é, o contrário da percepção de nexo social

estritamente dominial ou parental. Além disso, um outro sinalizador importante de que

uma concepção abstrata de pertencimento estava emergindo era a idéia de que um rei

também deveria sacrificar a sua vida pro patria303. Ora, quando a partir do século XIII a

302KANTOROWICZ, Ibdem Op. cit..pp.146-153 303Logicamente, na expressão “pro patria mori”, o termo “patria” não era mais entendido exclusivamente no sentido concreto da localidade de nascimento ou de laço pessoal-parental espacialmente estreito, mas sim no sentido de domínio

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filosofia política chega a afirmar que o rei luta e morre pro patria e não pro rege (por si

mesmo), isso demonstrava que a Dignidade Régia estava alcançando um patamar mais

alto de autonomização em relação à corporalidade físico-psicológica do rei ou em

relação à dinastia de onde ele advinha. No entanto, a idéia de um rei sacrificial pro

patria304 encerra ainda uma certa ambigüidade para o tema da despersonificação das

instituições sociais e políticas.

Em 1446, Enéias Sílvio Piccolomini(1405-1464), futuro papa Pio II(1458-1464),

afirmaria que o sacrifício do príncipe (a cabeça) em favor do corpus morale et

politicum era o modo mais direto de comparação com a caritas de Cristo305. Todavia,

Marc Bloch demonstrou que o martírio caridoso poderia confirmar ou conferir um

poder miraculoso de cura306 a personagens nascidos de sangue augusto consagrado à

Coroa, configurando para eles um carisma pessoal que se sobrelevava ao dinástico ou à

própria Dignidade Régia. Sobre este ponto, Marc Bloch refere-se ao exemplo de D.

Carlos de Viana para Catalunha (depois de 23 de setembro de 1461)307, mas também

poderíamos nos referir ao caso de D. Sebastião para Portugal (depois de 4 de agosto de

1578)308. Em ambos os casos, os atributos miraculosos pessoais que lhes foram

conferidos pela aura sagrada do sacrifício pro patria não foram, com o tempo,

incorporados como atributos da Dignidade Régia. Apesar disso, a imagem sacrificial-

pessoal de ambos (no caso de D. Sebastião, soma-se o missionarismo guerreiro) foi

apropriada como instrumento de propaganda e defesa do corpus morale et politicum

durante as guerras de independência de Catalunha e Portugal. Portanto, nesses casos de

guerra de independência, a sacralização do poder político através da imagem sacrificial

de dois príncipes efêmeros serviu, anos depois de seus respectivos desaparecimentos,

como meio de defesa e justificação de algo politicamente impessoal e abstrato.

Considerando que ancoro minha discussão sobre a tópica do rei sacrificial pro

patria nos trabalhos de Bercé e Kantorowicz309, devo assinalar, entretanto, algumas

distinções quanto ao meu modo de conceber e operar alguns conceitos. A maneira, por

exemplo, como tenho desenvolvido o tema da despersonificação das instituições sociais

territorial mais amplo e abstrato, por onde se estendia a autoridade da Dignidade Régia ou da Coroa.(KANTOROWICZ, Ibdem Op. cit..pp.146-169) 304Ver a análise de tal tópica em: BERCÉ, Yves-Marie. O Rei Oculto: Salvadores e Impostores – Mitos Políticos Populares na Europa Moderna. São Paulo: EDUSC/Imprensa Oficial de São Paulo, 2003. pp.175-212 305KANTOROWICZ, Ibdem Op. cit..p.162 306No sentido de redenção, mesmo que provisória, das imperfeições físicas, humorais ou morais, embora todas estas, segundo os valores da época, não fossem tão facilmente distinguíveis 307BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.p.129 308HERMANN, Jacqueline. O Reino do Desejado. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. pp.125-176 309 KANTOROWICZ, Ibdem Op. cit..pp.231-272; BERCÉ, Ibdem Op. cit.pp.212-374.

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e políticas, partindo das diferentes formas (práticas e conceituais) de sacralização do

poder político, não se contrapõe àquilo que Bercé chama de poder personalizado.

Bercé usa tal conceito para referir-se à concepção de que a Providência concebeu os reis

como entes capazes de resumir todo um povo, tais como o Cristo e o Papa seriam

sinédoques da cristandade. Nesses termos, qualquer realeza na Europa é em si mesma

sagrada, independentemente de qualquer ritual de consagração – unção ou aclamação.

Porém, falar em poder personalizado não significa tirar disso as mesmas divagações –

consideradas atualmente anacrônicas – relativas a absolutismo, tal como aparecem em

Kantorowicz, que, como já vimos, faz distinção conceitual entre corporificação e

personificação da Coroa para distinguir, politicamente, a Inglaterra da França (esta

última seria, em sua avaliação, o protótipo do absolutismo).

Entre os séculos XIII e XVII, a linguagem jurídico-teológica européia ainda está

marcada por imagens cristológico-organológicas. Em seus termos, o mistério político

maior das realezas era justamente a infusão de um dom divino capaz de transformar as

diferentes células de súditos em órgãos de direitos próprios, e estes num grande corpo

harmônico que não morria jamais. Nesse sentido, a perfeição da Coroa – enquanto

corporidade secular e soberana dos direitos inalienáveis dos súditos e guardiã da

riqueza comum do reino310 (esta última, atuada transdominialmente na forma de um

fisco que também não morria jamais) – seria em si mesma consagradora da dinastia

governante, ou seja, seria o fundamento central de todo o carisma e da autonomia da

dignitas regia em relação à corporalidade físico-psicológica que circunstancialmente a

figurasse. No entanto, tal evolução de sentido é menos clara e inequívoca do que deixa

ver nossa análise, já que a longevidade de uma dinastia no desempenho da dignitas

regia fazia com que um nome de família acabasse por se (con)fundir com o próprio

substrato da dignidade régia e, por conseguinte, com o domínio/gestão da Coroa. A obra

de Marc Bloch pode nos ajudar neste ponto da análise por um ângulo analítico distinto

daquele de Kantorowicz.

Quando estudou a origem e as transformações nos rituais régios de cura de

escrófulas, Marc Bloch pretendia identificar a concepção de realeza que se expressava

através deles, não restringindo a análise simplesmente aos tratadistas do direito. Ele

sabia também que a concepção de realeza sagrada e taumatúrgica possuía na Europa

310Desde finais da Idade Média, a forma latina de riqueza comum era status. Em inglês, há como equivalente commonwealth, que é traduzido também como República ou Estado nas línguas neolatinas. É no século XVI que se difunde o hábito de falar em Estado, no singular, em vez de corpo político ou Universitas, para referir-se ao conjunto dos stati ou corpos sociais de direitos próprios que formam um reino.

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antecedentes pré-cristãos, embora a cura das escrófulas e o ritual do toque tornassem-se

uma exclusividade dinástica dos Plantagenet e dos Capetíngios ao final do século XII.

Assim, na primeira parte de seu trabalho, ele tem a preocupação de observar em que

momento, nos casos francês e inglês, o milagre da cura deixou de ser um dom pessoal e

voltou a ser oficialmente ritualizado – tal como na era pré-cristã entre os “germanos” –

como um dom hereditário de estirpes predestinadas311. No entanto, a partir do século

XIII, há uma ambigüidade na definição deste substrato de sacralidade régia: O dom da

cura de escrófulas, como algo dinasticamente hereditário, seria um confirmador

transcendental por si de que uma família nobre estaria acima das outras e, portanto,

predestinada à dignitas regia ou, por outro lado, era a própria dignitas regia que,

sacralizante por si, conferia a uma família governante na França e na Inglaterra o dom

taumatúrgico?

Ora, se ambas as formas de localizar este tipo de sacralização evidenciam graus

distintos de despersonificação da dignidade régia, recaem, entretanto, no centro do

dilema gregoriano: a precedência ou não da unção para a definição da dignitas regia –

e, por extensão, da capacidade de realizar o milagre da cura. No entanto, deve-se

lembrar que, no último terço do século XI, Gregório VII (c.1020-1085; pontificado:

1073-1085) negava doutrinalmente aos poderes temporais o caráter hereditário de

qualquer espécie de milagre, ao mesmo tempo que afirmava ser a unção indispensável

para a definição das dignidades régia e imperial, ou seja, era através da unção que os

reis e o imperador adquiriam uma marca divina para governar, o que significava, em

termos políticos, a subordinação das dinastias governantes ao poder dos padres da

Igreja.

De qualquer forma, o debate evoluiu na medida da força dos poderes seculares

emergentes e, assim, ao final da Idade Média, os juristas das monarquias já não

aceitavam que a unção tivesse qualquer efeito criativo – em matéria de milagre ou de

política – na constituição da dignitas regia inglesa ou francesa. Assim, por si, a dignitas

regia passou a possuir um caráter sobre-humano, que a Igreja deveria se limitar a

sancionar ou, quando muito, aperfeiçoar, sem perder de vista que tal dignidade era

independente da solenidade eclesiástica – i.e., o rei era Rei sem ela e antes dela. Tais

sutilezas doutrinais nos fazem entender porque, ao final do século XVI, Henrique

IV(1553-1610) da França, depois de anos de guerra civil religiosa (1562-1598), ao

311BLOCH, Ibdem Op.cit.. pp.49-87

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Henrique VI, cujo reinado iniciara muito cedo devido à morte de seu pai, o que

significou uma longa menoridade – situação propícia para disputas interdinásticas.

Como foi dito, as casas de York e Lancaster eram braços do tronco Plantagenet,

mas os York eram de formação mais recente e pretenderam aumentar a sua influência

no reino durante a menoridade de Henrique VI. Mesmo adulto, Henrique VI mantivera

uma vida muito reclusa, incompatível com as matérias de governo, o que facilitou a

sua deposição, em 1461, por Eduardo IV de York (1442-1483), que permaneceu como

rei até outubro de 1470, quando então Henrique VI reassume precariamente o trono. No

entanto, volta a ser deposto em abril de 1471, sendo mantido preso na Torre de Londres.

Em face a isso, o filho de Henrique VI, Eduardo(1453-1471), príncipe de Gales, fez

guerra contra Eduardo IV. Por fim, o mês de maio sela o destino dinástico dos

Lancaster: o príncipe de Gales morre na batalha de Tewkesbury em 4 de maio; pouco

depois, em 21-22 de maio, o seu pai é assassinado na Torre de Londres. Deste modo,

Eduardo IV de York governa até falecer em 9 de abril de 1483, deixando como herdeiro

do trono Eduardo V(1470-1483).

No entanto, Eduardo V desaparece em junho, havendo suspeitas de que tenha

sido assassinado por seu tio Ricardo, Duque de Gloucester, que então assume o trono

como Ricardo III. Com a sua morte na batalha contra o futuro Henrique VII, é sepultado

o último braço masculino da Casa de York. Em função disso, Henrique VII pôde

afirmar o seu justo direito ao trono, tanto por herança quanto pelo julgamento dado por

Deus, que lhe propiciara, como sinal de justiça divina, a sua vitória em batalha e o

desaparecimento de Ricardo III. Para recompor as amarras políticas do reino, Henrique

VII casou-se com Elizabeth, filha de Eduardo IV e herdeira da Casa de York. Por isso,

como símbolo desta fusão de casas, o rosa dos Tudor une o vermelho da rosa dos

Lancaster sobreposto ao branco da rosa dos York.

Ora, considerando todo este quadro de disputas interdinásticas pela dignitas

regia, a experiência da Guerra das Duas Rosas pode ser entendida como uma parte

importante do processo de despersonificação das instituições sociais e políticas na

Inglaterra e, portanto, de clara autonomização e perpetuação sucessiva da dignitas regia

em relação às dinastias em disputa no reino. Quanto a isso, “De Facto Act”(1495) é um

exemplo jurídico eloqüente, pois deixava entrever que a adesão sincera e leal ao corpo

político ou ao “rei como Rei” não poderia levar à perda dos direitos civis, mesmo que

um “rei e senhor soberano desta terra no momento” – a quem um súdito tivesse servido

ou aderido – fosse mais tarde derrotado, ou seja, destituído da dignitas regia. Deste

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modo, Henrique VII reconhecia, retrospectivamente, a coexistência anterior de dois

anti-reis (“dois corpos naturais”), mas a existência de apenas uma Coroa (um “corpo

político”) e uma dignitas regia. Nesses termos, a adesão ao corpo político – tal como a

adesão ao mistério da vida – não poderia de forma nenhuma ser passível de punição,

mesmo que o súdito tivesse escolhido a “encarnação errada” da dignitas regia. Portanto,

“De Facto Act”(1495) representaria, se praticado, a cura definitiva das feridas do corpo

político.

Como podemos perceber, ao alcançar um patamar mais alto de

despersonificação, a dignidade régia inglesa fundiu-se plenamente com a abstração da

Coroa e reconfigurou, num sentido também mais abstrato, o viver em comum – e, por

conseguinte, os sentimentos de pertencimento e proteção. Nesse sentido, “De Facto

Act”(1495) expressava uma expectativa de pacificação social e de previsibilidade na

ação administrativa (postestas) régia que era bem distinta do ethos guerreiro que

enformava a prática tradicional de assassinar (ou tomar os patrimônios dos) adeptos da

facção política derrotada316. Portanto, prospectivamente, este dispositivo legal afirmava

o non-sense das guerras civis (e, por conseguinte, da autodestruição do corpo político)

nos mesmos termos que podemos observar, um século depois, como tese moral das

peças “Ricardo III”(1597) e “Romeu e Julieta”(1599). Nestas é claramente sugerido

que a melhor solução para os ódios antigos entre duas casas nobres iguais em

dignidade era o casamento das altezas sociais rivais num compromisso publicamente

selado de manter uma paz social duradoura.

No caso da França da segunda metade do século XVI, as disputas interdinásticas

misturaram-se com questões confessionais. Daí, ao final do século, os efeitos

politicamente destrutivos da crise de consenso da moral religiosa abriram novas

demandas de pacificação social, com a tendência geral de as autoridades políticas e os

juristas fazerem eco às idéias de que as instituições sociais e políticas estariam sempre

em perigo enquanto fosse exigido dos súditos mais do que a fidelidade civil – i.e., mais

do que a conformidade exterior às regras da res publica. Ora, este tipo de demanda por

uma moral do parecer como condição de possibilidade para a pacificação social

evidencia justamente a relação implicativa entre processo de individuação e

despersonificação das instituições sociais e políticas.

316KANTOROWICZ, Ibdem Op.cit.pp.225-226

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Ao final do século XVI, emergiu um ceticismo filosófico que afirmava que as

matérias e as verdades da fé não eram demonstráveis e, portanto, não deveriam ser

objetos de disputas políticas. Coerentemente com tal perspectiva, o Édito de Nantes

(1598), assinado por Henrique IV, afirmaria que a obediência dos súditos ao rei não era

condicionada por exame religioso de consciência. Daí, não surpreende que, durante o

reinado de Henrique IV, a doutrina monárquica francesa afirmasse abertamente a

necessidade da sujeição moral do rei, mas encerrava o assunto na intimidade de sua

consciência. Em todo caso, num contexto de destrutivas guerras confessionais e de

surgimento de teorias político-teológicas de resistência aos “tiranos diabólicos”, o

ceticismo filosófico teve menos efeito prático em justificar uma ordem pública secular

do que as necessidades materiais de preservação dos patrimônios e das hierarquias

sociais de poder317. Aliás, a idéia de tolerância confessional existente no Édito de

Nantes tem semelhanças doutrinais com a forma como Martin Lutero (1483-1546)

concebia, em 1525, a esfera de atuação da autoridade secular.

Segundo Lutero, como não caberia aos príncipes sondar as consciências, posto

que eram apenas acessíveis e julgáveis por Deus, eles deveriam tão somente cuidar para

que os verdadeiros cristãos (minoria instável no tempus) e os não-cristãos (maioria)

pudessem viver civilmente (i.e., exteriormente em paz). Para tanto, era necessário que a

autoridade secular criasse os meios certos para manter a unidade do corpo político, tais

como: preservar todos os súditos de ações exorbitantes – principalmente no que tangia à

preservação do patrimônio e às cobranças de impostos – por parte de potentados locais;

não interferir na fé de ninguém; promover adequadamente a justiça, a paz, a eqüidade e

a difusão das Escrituras, de modo que a exterioridade da comunidade – com suas

hierarquias sociais inspiradas por Deus como garantias da unidade do corpo político –

pudesse ser mantida em estabilidade de forma, isto é, que não fosse desfigurada por

guerras civis318. Deve-se também levar em conta que, com exceção de alguns momentos

de desconfortável concessão ao pragmatismo político das guerras religiosas do século

XVI, Lutero era contrário à idéia de resistência ativa aos “poderes tirânicos” e fora

particularmente ambíguo na hora de fundamentar uma justificativa teológica para a

resistência passiva: Afinal, o tirano seria uma impostura demoníaca ou um instrumento

da ira divina para a punição/purgação dos pecados da comunidade política?319

317SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.pp.347-616 318LUTERO, Martin. Sobre a Autoridade Secular. São Paulo: Martins Fontes, 1995. pp.39-65 319SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. pp.285-388

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Como veremos no próximo capítulo, esta mesma ambigüidade funcional cerca a

caracterização dramática do personagem Ricardo III. Há uma coerência teológica nessa

ambigüidade funcional: como os desígnios divinos são insondáveis, as adversidades e

tentações corruptoras do mundo poderiam servir para revelar à consciência dos

indivíduos quem conseguia se manter eticamente como cristão, pois o verdadeiro cristão

saberia sofrer o mal sem se deixar perturbar pelas paixões corruptoras da ordem social e

do espírito. No entanto, como lembra Calvino(1509-1564), seguindo de perto as

“Epístolas Paulinas”, a condição do homem reformado permanece paradoxal: mesmo

sob o efeito da graça, ele não estaria completamente livre do mal, pois sempre correria o

risco de tornar-se soberbo quando, por exemplo, gabasse-se de sua eleição ou perfeição

moral perante os seus semelhantes. Afinal, o fiel viveria da esperança e não da certeza

jactante da sua eleição, pois esta última postura seria, por excelência, um “erro

judaico”320. Por isso mesmo, vários agentes e situações seriam interpostos pela

providência divina na vida do homem reformado para que nunca esquecesse do “espaço

infinito” que o separa de Deus; de que nenhum mérito humano ou obra seria capaz de

mover a vontade de Deus na sua direção e que, justamente por ser apenas uma sombra

frágil da perfeição divina, o homem deveria periodicamente exercitar o auto-exame da

consciência321.

320CALVIN, John. Commentaries to Bible.(www.ccel.org/c/calvin) 321Ver: DIEHL, Huston. “Infinite Space: Representation and Reformation in Measure for Measure”. Shakespeare Quartely, volume 49, 1998(4): pp.393-410

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Capítulo III O mundo às avessas e o paradoxo moral do Estado em “Ricardo III”

Ao analisar a recorrência da tópica do “mundo às avessas” na literatura

espanhola do século XVII, José António Maravall a associou a um sentimento geral de

desconforto e insegurança em relação à instabilidade e mutabilidade das coisas no

mundo. No entanto, como ele mesmo notou, a força temática de tal tópica está no fato

de que supõe que haja um mundo direito. Portanto, há na tópica do “mundo às avessas”

uma moral de acomodação cara a uma sociedade ainda marcada por estruturas

patrimoniais-estamentais de poder: indaga-se sobre as qualidades negativas do ser

humano – o seu egoísmo, a sua malignidade ou a sua depravação – para que, expondo-

as extremosamente e problematicamente, possa-se ratificar a necessidade de dominá-las,

contê-las e dirigi-las322. Por isso, não é apenas em tratados morais e religiosos dos

séculos XVI e XVII que se encontram frases contra a agressiva, perversa e paradoxal

condição do homem, mas também naquelas obras que descrevem os modos de instalar-

se e comportar-se no mundo, quais sejam: novelas exemplares, poesias, tratados de

etiqueta, tratados políticos, miscelâneas de aforismos e textos teatrais.

Na peça “Ricardo III”(Q1, 1597), é possível destacar o modo como a temática

moralizante de que a “traição nunca prospera” é associada a elementos bíblicos do mito

de Herodes e Jesus, ao demoníaco dramático maquiavélico, à retórica iconoclasta

protestante, à visão reformada de ordem pública, a caracteres políticos e sociais de

Antigo Regime, à temática do “non sense” das guerras civis – metaforizadas como

inconseqüentes meios de autofagia do corpo político devido ao egoísmo e à violência

insolente de suas partes componentes –, e como tudo isso cria justamente as condições

narrativas para a figuração metafórica do Conde de Richmond (futuro Henrique VII e

avô da rainha Elizabeth) como um messias político a selar todas as feridas do corpo

político e a inaugurar uma nova era de paz, de estabilidade institucional e de

prosperidade para a Inglaterra.

No entanto, antes de chegar a este fim político-moral, é digno de nota o modo

engenhoso como Ricardo III é figurado na teleologia da peça. Dentre os seus caracteres

centrais, estão: a sua astúcia sorrateira e a sua capacidade de manipular (com efeitos

destrutivos e injustos para as ordens pública e doméstica) a cobiça, a vaidade, a

322MARAVALL, José Antonio. Cultura do Barroco. São Paulo: EDUSP, 1997. pp.251-279

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concupiscência, a coerência funcional das instituições, as facções no interior da nobreza

e os ritos cortesãos, inventando periodicamente ameaças e difamações que justifiquem a

sua preeminência política na Casa Ducal de York e a concentração do poder régio em

suas mãos. Portanto, a condição para a sua ascensão política é uma eficaz manipualação

das aparências ou dos ídolos de mente e coração323, constituindo um clima geral de

insegurança, incerteza ou ameaça que oblitera a própria possibilidade de um corpo

político estável.

Nesse sentido, devido às suas ações destrutivas em relação à manutenção da

ordem pública e à estabilidade institucional, o personagem Ricardo III é a figuração

hiperbólica do antípoda do ideal humanista do vir-virtutis, é a deformação demoníaca

da moral do parecer contida na noção de ‘virtù’ de Maquiavel e, principalmente, é a

explicitação contundente do paradoxo moral do Estado, qual seja: para Ricardo ser

combatido em seus efeitos destrutivos sobre a estabilidade funcional das instituições,

será inevitável a sua traição através do uso da astúcia sorrateira e de um senso apurado

de ocasião por parte do Conde de Derby (Lorde Stanley).

Contudo, há algo mais a ser considerado que decorre de tal constatação: na

confrontação tipológica entre Ricardo (Purgação Demoníaca) e Richmond (Graça

Divina), evidencia-se a idéia de que não haveria um apetite natural no homem para o

bem e para a vida social, ou seja, os desejos de autocontenção e autodelimitação (que

são centrais para a configuração da ordem pública e de uma vida centrada no Espírito)

nascem das experiências extremas e purgativas de destruição, desordem civil e

insegurança, que ocorrem quando os indivíduos demonstram desmedido egoísmo ou

arrogância no modo como são jactantes e promovem os seus interesses particulares, as

suas opiniões e os seus desejos – em outras palavras, os seus ídolos de mente e coração.

Ao ser propositalmente figurada numa relação implicativa direta com a graça

divina e com a purgação demoníaca, em vez de ser figurada como o resultado de um

appetitus natural pela vida social, a ordem pública reformada – representada na peça

pelo advento político do avô da rainha Elizabeth – é dramaticamente situada num nível

de demandas morais, sociais e políticas qualitativamente distinto de qualquer ordem

doméstica de poder. No entanto, a manutenção da autoridade patriarcal dentro de cada

unidade doméstica de poder continua sendo um fator central para a configuração da

harmonia na Universitas inglesa. Por antonomásia, o “sono”, a “ausência” ou a

323Ver análise sobre iconoclastia protestante no teatro inglês em: DIEHL, Huston. Staging Reform, Reforming the Stage: Protestantism and Popular Theater in Early Modern England. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997.pp.64-66; 164-181

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“suspensão” de tal autoridade produz punitivamente e exemplarmente um monstro

demoníaco e desagregador dos vínculos sociais e políticos: Ricardo III324.

Tudo isso evidencia um paradoxo moral intrínseco à concepção reformada de

ordem pública: a necessidade da ameaça extrema de destruição material e decadência

espiritual (o mal) para que se perceba o valor divino da ordem pública decorrente da

reciprocidade hierárquica entre indivíduos e grupos (o bem). Nesse sentido, as

instituições sociais e políticas na esfera sublunar seriam uma mescla inevitável de bem e

mal. Portanto, as potestades sociais e políticas deveriam reconhecer a necessidade

instrumental de criarem limites de atuação para si mesmas, pois a providência divina

não concentrou em poucos homens todos os dons justamente para ensiná-los, através de

seus limites intrínsecos, a viverem em sociedade, a não se arvorarem em deuses ou feras

selvagens325. Nesse sentido, para a mente protestante, as instituições sociais e políticas

são o testemunho da necessidade de se conter a soberba e a perversidade humanas; elas

têm um valor instrumental que decorre da consciência da necessária interdependência

humana e da dependência humana em relação à graça divina. Mas tal consciência não

emerge espontaneamente: é através do sofrimento e de lamentáveis perdas que a razão

humana aprende a sua própria vulnerabilidade e, com isso, a importância de

compartilhar os seus dons com seus semelhantes, de estabelecer limites para a sua

atuação no mundo e de perceber a distância do homem em relação à perfeição de

Deus326.

Tal visão reformada das instituições demonstra, portanto, uma percepção

consciente da ambigüidade da condição humana: a semelhança do homem a seu Criador

o distingue no plano da criação e, por isso mesmo, há sempre o risco de ele tornar-se

soberbo; mas a lembrança da Queda Adâmica, das Leis e da necessidade de redenção

através da graça divina também expõe ao homem o limite da sua comparação com

Deus327. Nesse sentido, se um rei é uma representação terrena de juiz divino soberano –

i.e., o substituto de Deus em sua autoridade, poder e capacidade de julgar e punir –, ele

324PEARLMAN, E.. “The Invention of Richard of Gloucester”. Shakespeare Quartely, volume 43, 1992(4): pp.410-429; MOULTON, Ian Frederick. “A Monster Great Deformed: The Unruly Masculinity of Richard III”. Shakespeare Quartely, volume 47, 1996(3): pp.251-268 325Ver: CALVIN, John. “Chapter IX: The Church”. In Commentaries to Bible (www.ccel.org/c/calvin); THOMAS, Keith. Religião e o Declínio da Magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.pp.381-387; DIEHL, Huston. “Infinite Space: Representation and Reformation in Measure for Measure”. Shakespeare Quartely, volume 49, 1998(4): pp.398-405; EAGLETON, Terry. A Idéia de Cultura. São Paulo: Unesp, 2005.p.122; HATTAWAY, Michael. “Blood is their argument: men of war and soldiers in Shakespeare and others”. In Religion, Culture and Society in Early Modern Britain. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. pp.84-101; WATT, Ian. A Ascensão do Romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.78 326DUMONT, Louis. O Individualismo. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.pp.47-51; DIEHL, Huston. “Infinite Space: Representation and Reformation in Measure for Measure”. Shakespeare Quartely, volume 49, 1998(4): p.403 327CALVIN, John. “Chapter IX: The Church”. In Commentaries to Bible (www.ccel.org/c/calvin)

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também deve estar ciente, pelo efeito desta mesma comparação com Deus, da sua

infinita distância em relação à perfeição divina. Por estar acima de todos os homens, um

rei deve ser o primeiro exemplo de civilidade, discrição, comedimento e de capacidade

de examinar periodicamente a sua consciência, pois não recebeu de Deus todos os dons

e não está livre de ser tentado pelo mal. Portanto, se um rei é a imagem de Deus na

Terra, isso não apenas demonstra que a sua autoridade deriva de Deus, mas o quanto é

insuficiente em relação a Ele328.

Em termos semelhantes, a moral protestante contida na peça “Ricardo III”

também aponta para o problema dos governantes que não conseguem estabelecer limites

para si mesmos, tornando-se tirânicos, excessivamente severos, enganadores,

desconfiados, vingativos, concupiscentes, irascíveis e violentos. Aliás, apontar este

problema é também tocar em outro: Como ou Se eles devem ser tolerados por seus

súditos. Como poderemos perceber, a deposição do fictício Ricardo III têm um

potencial subversivo que é convenientemente contido na trama da peça, o que evidencia

não apenas a sua moral acomodatícia em relação às formas tradicionais de autoridade

política e poder social, mas também o inerente paradoxo moral de manter a estabilidade

funcional das instituições estatais.

3.1. Uma proposta de legibilidade para o in-quarto de 1597 de “Ricardo III”

Entre 1597 e 1634, os frontispícios dos in-quartos de “Ricardo III”

configuravam uma expectativa moral condenatória das ações do Brother

Gloster. Segundo tais frontispícios, a tragédia conteria como grandes

destaques na trama: (1) o conluio e traição ao seu irmão Clarence; (2) o

doloroso assassinato de seus sobrinhos inocentes (filhos de Eduardo IV);

(3) a usurpação tirânica do trono – com o completo transcurso de sua vida

detestável –; (4) por fim, a sua mais que merecida morte. Vejamos a foto

do frontispício do primeiro in-quarto(1597):

328DIEHL, Huston. “Infinite Space: Representation and Reformation in Measure for Measure”. Shakespeare Quartely, volume 49, 1998(4): p.398

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Assim, entre 1597 e 1634, são propostos ao leitor quatro grandes

momentos de inflexão da trama, tanto mais importantes de evidenciar à

medida que a peça, nos primeiros in-quartos, não foi dividida em atos e

cenas – e mesmo onde houve, como no fólio de 1623, tal materialidade

textual não dividiu a peça em grandes atos a partir das expectativas

dramáticas e moralizantes apresentadas nos frontispícios dos primeiros in-

quartos. Como proposta, centrarei a minha análise da peça tendo como

base documental a sua materialidade de 1597, cotejando

comparativamente, quando for pertinente para evidenciar algumas

hipóteses analíticas, partes do fólio de 1623.

Como a materialidade de 1597 não divide a peça em atos e cenas, não vou

seguir a forma clássica – utilizada pela edição oxfordiana – de sobrepor

marcas de atos e cenas ao primeiro in-quarto; pelo contrário, quando eu

estiver falando de cena, deve-se entender por isso que me refiro à

seqüência cênica (ou seqüência discursiva dramática), que significa o

tempo em que, discursivamente em página, é sugerida uma continuidade

de “presença em palco” até que esteja completamente vazio e uma nova

ambientação temporal, espacial ou temática seja proposta através das

didascálias e falas dos personagens. Cada seqüência cênica é composta por

uma ou mais situações cênicas, mas em “Ricardo III” são poucas as

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seqüências cênicas que coincidem com uma única situação cênica. Em

relação a tais casos, identifiquei três “pendants dramáticos”, o que na

prática cria como efeito discursivo a sensação de que a peça divide-se em

quatro atos. Considerando todas essas categorias, identifiquei na

materialidade textual do Q1 de “Ricardo III” vinte e cinco seqüências

cênicas, as quais descrevo abaixo:

1ª seqüência cênica. Solilóquio de abertura de Ricardo, Duque de Gloucester, em que expõe seu caráter e plano de ação, enquanto vilão dramático, contra o seu irmão George, Duque de Clarence. Entra Clarence, sendo conduzido por Brackenbury para a Torre, sob a acusação de suspeita de traição por causa de um presságio – inventado por Ricardo – de que G(eorge) impediria a descendência de Eduardo IV de assumir o trono. Ricardo e George dialogam, mostrando ressentimento contra Lady Shore, a rainha Elizabeth e seus parentes, ao mesmo tempo que Eduardo IV é desqualificado por se deixar governar por duas mulheres (uma “prostituta” e uma “viúva”)329. Clarence sai. Entra o Lorde Camarista, William Hastings330, recém-liberto da Torre, para a qual foi enviado por entrar em conflito, segundo relato de Ricardo, com Anthony Woodville (Conde de Rivers e irmão da rainha Elizabeth). Hastings fala da doença do rei Eduardo IV com sincero pesar e Ricardo afeta o mesmo. Hastings sai. Ricardo está sozinho em cena e resume os seus planos de vilania para o “leitor/audiência”. Entra o cortejo fúnebre de Henrique VI, guiado por Ana, figurada em cena como nora do velho rei Lancaster331. Ela e Ricardo iniciam um guerra de engenhos verbais e, por fim, Ricardo a convence a casar-se com ele, manipulando a sua vaidade feminina ao dizer que foi a beleza dela que o fez conduzir sua espada contra seu marido e seu sogro332. Ana sai de cena, aceitando a hospitalidade de Ricardo que, mais uma vez sozinho, gaba-se de sua conquista. Portanto, Ricardo inicia e conclui esta seqüência discursiva dramática. 2ª seqüência cênica. Entram rainha Elizabeth, Conde Rivers e um de seus filhos do primeiro casamento, Lorde Grey. Elizabeth mostra preocupação com a saúde de Eduardo e diz que, estando os príncipes ainda infantes, a morte do rei significaria a vinda de todos os males, principalmente contra seus parentes. Ela teme principalmente pelo príncipe Eduardo, que foi posto aos cuidados de Ricardo – neste momento, o seu Lorde Protetor. Entram Duque de Buckingham333 e o Conde de Derby (também tratado como Lorde Stanley)334, que

329Sob um olhar reformado, a cena cria uma visão desfavorável a respeito de Eduardo IV, pois ele deixa-se conduzir por “ídolos de mente e coração” ao se impressionar com presságios e ser suscetível a uma cupidez que o leva a manter duas notórias mésaliances. 330Historicamente, trata-se do Barão Hastings de Ashby-de-la-Zouch (c.1430-1483). Aliado de Eduardo IV, elevado a Lorde Camarista do rei, atuara em seu nome na sua ausência e, embora inimigo da rainha e seus parentes, era um fiel defensor da sucessão do trono por Eduardo V. Em algumas crônicas do começo do século XVI, ele é figurado como um cavalheiro nobre e bom, mas dado a uma vida dissoluta. 331Historicamente, Anne Neville (1456-1485) foi prometida ao filho de Henrique VI, mas não chegou a casar-se com ele porque foi morto na batalha de Tewkesbury. O pai de Ana, Richard Neville (1428-1471), Conde de Warwick-Salisbury, partidário dos Lancaster, foi morto logo em seguida. Algumas crônicas do início do século XVI vira o seu casamento com o Duque de Gloucester, em 1472, como uma forma de sobrevivência política de sua família depois da morte do patriarca. Antes dela, a sua irmã Isabella (não mencionada na peça) já havia se casado com o Duque de Clarence, quando este ainda apoiava Richard Neville como aliado de Henrique VI. 332Esta situação cênica tem um forte apelativo ginofóbico, pois, mexida em sua vaidade e explorada em sua inconstância e fraqueza feminis, Ana aceita o argumento de Ricardo de que foi a sua beleza feminina – “ídolo de cupidez”, segundo a retórica iconoclasta protestante – e o desejo de possuí-la que o conduziram ao assassinato de Henrique VI e seu filho. Ao longo da peça, a beleza feminina é figurada como um problema ou uma ameaça, para a qual as soluções são, invariavelmente, a morte, a difamação, o sofrimento, o ostracismo ou a prisão. 333Historicamente, trata-se de Henry Stafford (c.1454-1483), 2º Duque de Buckingham. Ajudou Ricardo III em seu golpe de Estado contra a coroação de Eduardo V, mas, depois, armou um exército contra o novo rei. Henry Stafford foi preso e executado em Salisbury. 334A peça oscila no tratamento, mas trata-se de um anacronismo: Lorde Thomas Stanley (c.1435-1504) foi elevado a Conde de Derby somente depois da coroação de Henrique VII. Em cerca de 1482, ele se casara com a Condessa de Richmond,

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vieram de junto do rei para comunicarem a sua vontade de que a rainha e seus parentes se conciliem com Ricardo e Hastings. Entra Ricardo, praguejando que é sempre mal interpretado porque não tem os modos cortesãos à francesa e despeja, verbalmente, o seu ódio contra a rainha e seus parentes, aludindo com sarcasmo a sua recente elevação social e lembrando que foram a causa da prisão de Hastings. Rivers nega a acusação e a rainha lamenta os ultrajes verbais de Ricardo: hiperbolicamente, diz preferir ser uma serva camponesa a ser uma rainha tão ultrajada. A discussão é subitamente interrompida pela entrada de Margaret335, viúva de Henrique VI, que amaldiçoa os presentes, com exceção de Lorde Stanley. Na seqüência das falas, aparecem vozes para Hastings e o Marquês de Dorset – o outro filho do primeiro casamento de Elizabeth336. Durante a sua fala, Margaret anuncia o advento de Richmond. O efeito de sua entrada cênica foi causar uma aliança momentânea entre aqueles que há pouco trocavam ofensas e acusações. Quando Margaret sai de cena, Elizabeth, Rivers, Hastings e Ricardo falam de suas impressões, mas somente Ricardo assume a sua parte na dor da antiga rainha e aproveita para alfinetar a nova e seus familiares, indiciando o seu envolvimento na prisão de Clarence. Embora não seja indicada em didascália, aparece uma fala que demonstra a entrada cênica de Sir Catesby – servidor de Hastings –, que diz que o rei quer ver Elizabeth. Todos saem, com exceção de Ricardo. Sozinho em cena, resume para o “leitor/audiência” os seus planos de manipular a credulidade de Hastings, Derby e Buckingham contra a rainha, seus parentes e aliados, ao jogar sobre eles a culpa do destino de Clarence. Depois de Ricardo dizer que parece um santo quando, na verdade, encena um demônio337, entram os dois assassinos contratados para matar Clarence na Torre. Eles recebem uma carta a ser entregue ao lugar-tenente da Torre e instruções verbais sobre como proceder com Clarence na Torre. Todos saem. 3ª seqüência cênica (assassinato do Duque de Clarence na Torre). Entram Clarence e Brackenbury, lugar-tenente da Torre. Clarence comenta o seu sonho, como um presságio de morte violenta. Brackenbury tenta aliviá-lo das preocupações e vela o seu sono. Isso cria um efeito de solilóquio, em que Brackenbury desnaturaliza a nobreza, as suas titulações e afirma a vanidade da glória. Entram os assassinos com uma carta que diz que Clarence deve ser entregue para eles. Trata-se de uma ordem régia que deixa claro para o lugar-tenente o destino que esperava Clarence. Brackenbury sai. Um dos assassinos (2) demonstra crise de consciência, mas é lembrado pelo outro do ganho que o espera com o feito criminoso. Depois de um breve diálogo cômico entre eles sobre os “inconvenientes da consciência”, Clarence desperta e pede vinho, não notando a presença de seus assassinos. Quando um deles diz que ele já bebeu vinho demais, o tom de voz pouco deferente surpreende Clarence, que desperta completamente. Inicia uma guerra de engenhos verbais entre Clarence e os assassinos. Clarence consegue demover de seu ato criminoso um dos assassinos (2). No entanto, Clarence é esfaqueado pelo assassino 1 e seu corpo é escondido num barril. O assassino 2 mostra arrependimento e foge, sem querer saber de receber o seu “prêmio”. A última fala da cena é do assassino 1, que diz que, considerando o que advirá de seu feito, deverá fugir para bem longe tão logo receba o seu pagamento. Sai. 4ª seqüência cênica (Juramento de Paz perante Eduardo IV). Estão em cena o rei, a rainha (e seus familiares), Hastings e Buckingham. Inicialmente, os personagens que possuem falas são o rei, a rainha, Rivers e Buckingham. Depois do juramento de paz, o rei sente falta de Ricardo. Ricardo entra em cena e finge se conciliar com a rainha e seus

Margaret Beaufort (1443-1509), tornando-se, deste modo, padrasto do futuro Henrique VII. A peça dá a entender que Henrique VII já teria um meio-irmão adulto advindo da relação de sua mãe com Lorde Stanley, o que é outro anacronismo. 335Historicamente, trata-se de Margaret de Anjou (1430-1482), que havia se casado com o rei Henrique VI (1421-1471), da casa de Lancaster, em 1445. Logo, quando Ricardo dá o seu golpe de Estado (1483), a velha rainha dos Lancaster já estava morta. Na peça, ela aparece antes e depois do golpe de Estado de Ricardo, mas isso deve ser entendido menos como um “erro histórico” do que como um artifício dramático: cenicamente, geralmente é dado aos papéis femininos o pathos trágico das maldições, o que geralmente serve para evidenciar a teleologia moral do enredo. Na peça, ela é figurada como um espírito do passado, uma sombra, que quase faz voz de coro. 336Não há didascália indicando claramente quando entraram em cena, tanto na edição de 1597 quanto naquela do fólio de 1623. Considerando a dinâmica das relações entre os personagens, a edição oxfordiana da peça (sob domínio de Gary Taylor) propõe uma polarização cênica: familiares da rainha de um lado (todos os filhos do primeiro casamento de Elizabeth + Rivers), indicados na didascália da abertura da cena; inimigos dos Woodville do outro (Ricardo e Hastings), que teriam entrado juntos na cena. 337Efetivamente, durante o desenrolar da peça, Ricardo é o caracter cênico que mais é explorado para a exposição, em “palco/página”, de um discurso metateatral que conscientemente demonstra a crise epistemológica dos “signos visíveis” na teologia protestante.

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parentes. A rainha pede a Eduardo que liberte Clarence, para que se junte ao abraço fraternal de superação dos ressentimentos antigos. Esta é a deixa para Ricardo dar a notícia bombástica de que Clarence já estava morto por ordem régia. Eduardo fica surpreso, pois já tinha enviado uma contra-ordem bem antes de a rainha pedir a libertação de Clarence. Ricardo diz, então, que o Mercúrio que levou a sua contra-ordem deveria estar aleijado – o que era uma forma ardilosa de respeitosamente responsabilizar Eduardo pela morte de Clarence. O abalo emocional da morte de Clarence aceleraria a doença de Eduardo. Entra Derby, que pede uma graça para um de seus servidores. Isso dá uma deixa para Eduardo fazer uma longa censura a si e aos demais, por não terem intercedido por Clarence em nenhum momento. Todos saem, com exceção de Ricardo e Buckingham. A última fala é de Ricardo, que diz para Buckingham deduzir culpa da palidez que assolou a rainha e seus parentes depois de sua bombástica revelação. Esta configuração final indica que Buckingham é um aliado de Ricardo numa eventual morte de Eduardo. Saem. 5ª seqüência cênica. Entram Duquesa de York, com filho e filha de Clarence. Ela adverte aos netos para não confiarem no tio Ricardo. O diálogo é subitamente interrompido pela entrada de Elizabeth que, encenando o pathos trágico, noticia a morte do rei Eduardo. Entra Ricardo com Buckingham. Ricardo estranha que sua mãe não o abençoe com uma “longa vida”. Nos diálogos, desenha-se a questão de decidir como seria a comitiva que deveria trazer para Londres o Príncipe de Gales. Ricardo finge querer que a rainha e a duquesa opinem sobre a questão. Todos saem, com exceção de Ricardo e Buckingham. Neste momento, Buckingham adverte-lhe que a comitiva não poderia ficar completamente nas mãos dos partidários da rainha. Então, saem. Um conluio está sendo armado contra os parentes e partidários da rainha. 6ª seqüência cênica (1ºPendant Dramático). Três citadinos anônimos lamentam a morte do rei e os perigos, para o reino, de uma longa menoridade, principalmente quando um jovem rei é cercado de tios cobiçosos. Lembram do exemplo da longa menoridade de Henrique VI e temem muito particularmente o Duque de Gloucester. Saem. 7ª seqüência cênica. Entram o Cardeal, a Duquesa de York, a rainha Elizabeth e seu filho mais jovem com Eduardo IV (i.e., Ricardo, Duque de York). Inicialmente, há um diálogo em que o jovem Ricardo exibe um grande engenho verbal e caçoa do tio Ricardo. Tal diálogo é interrompido pelo Marquês de Dorset, que entra em cena e avisa que Rivers, Grey e Sir Thomas Vaugham foram aprisionados em “Pomfret” (i.e., Pontefract) pelo partido de Buckingham e Ricardo. Elizabeth lamenta a possível queda de “our house”. O Cardeal promete a proteção do solo sagrado para a Duquesa de York, a rainha Elizabeth e o jovem Ricardo. Saem. 8ª seqüência cênica (Chegada do Príncipe Eduardo em Londres). Entram em cena príncipe Eduardo, Gloucester, Buckingham, Catesby e o Cardeal. Eduardo está sendo recebido para fazer a sua entrada triunfal em Londres. Eduardo sente falta dos demais parentes. Gloucester justifica a prisão de Grey e Rivers como necessária porque seriam nobres sediciosos que esconderiam em rostos fingidos o coração malévolo. Entra o prefeito de Londres para saudar o príncipe. Eduardo reclama a presença da mãe e do irmão (Ricardo de York). Hastings entra trazendo notícias de que a rainha impedira que o jovem York viesse até o irmão. Buckingham, então, convence o Cardeal a ir com Hastings até o santuário para buscarem o jovem Duque de York. Cardeal e Hastings saem. Eduardo interpela Gloucester sobre a história da Torre. Gloucester recomenda que, até a coroação, o príncipe ficasse alojado na Torre. Eduardo divaga sobre recuperar os domínios na França, caso viesse a tornar-se adulto. Entram o jovem York, o Cardeal e Hastings. Inicia um novo diálogo, em que ocorre uma breve e cômica guerra de engenhos verbais entre os Ricardos (tio e sobrinho). No final das contas, ambos são caçoados por Eduardo. O jovem York, ao saber que seria alojado na Torre, demonstra medo, enquanto Eduardo diz não temer tios mortos ou vivos que por lá passaram. Todos saem, menos Gloucester, Buckingham e Catesby338. Buckingham comenta as ousadias do jovem Ricardo com Gloucester, que diz ser o sobrinho tão perigoso quanto Elizabeth. Buckingham fala em trazer Hastings para seu

338Do ponto de vista da teleologia dramática da peça, o fato de Sir Castesby ficar em cena já o marca com a pecha demoníaca do traidor, já que apoiaria o partido de Ricardo, a despeito das opiniões de seu senhor. No entanto, de um ponto de vista histórico-sociológico, sendo o Lorde Camarista o senhor de Sir Catesby, seria pouco provável que um servidor não acompanhasse o seu senhor se uma situação análoga àquela apontada na cena ocorresse fora do “palco/página”.

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partido – i.e., apoiar um golpe que fizesse de Gloucester rei, em detrimento dos filhos de Eduardo IV. Catesby – servidor de Hastings – lembra da fidelidade de Hastings a Eduardo IV, e estende a mesma avaliação para Lorde Stanley. Buckingham pergunta a Gloucester o que faria se Hastings não o apoiasse. Gloucester responde que mandaria cortar a sua cabeça e pede para Buckingham lembrá-lo, quando se tornasse rei, de pedir-lhe o Condado de Hereford. Saem. 9ª seqüência cênica. Um mensageiro de Lorde Stanley entra em cena e bate à porta de Hastings, que entra em cena. São 4 horas da manhã e o objetivo de tão inesperada visita é transmitir para Hastings uma notícia do sonho de Lorde Stanley, em que vira um javali arrancar o elmo de Hastings. O mensageiro sai e entra Catesby, que sutilmente sonda Hastings, lembrando que foi Ricardo que prendeu os parentes e aliados da rainha em Pomfret. Embora agradecido com o que Ricardo fizera contra seus inimigos, Hastings considera que a coroa estaria em mal lugar se ficasse com Ricardo. Catesby diz que Ricardo e Buckingham têm Hastings em alta conta – e, num “à parte”, diz que darão conta de sua cabeça na ponte de Londres. Sem modéstia, Hastings diz merecer a alta conta com que é guardado por Ricardo e Buckingham. Entra Lorde Stanley. Hastings zomba de seu sonho e se sente confiante e seguro. Stanley lembra, sutilmente, que os prisioneiros de Pomfret também se sentiam assim, mas foram pegos por um golpe súbito de rancor da parte de Ricardo – e teriam mais direito de permanecerem vivos do que as partes que os acusaram de traidores. Stanley e Catesby saem. Hastings fica momentaneamente sozinho, até que entra um transeunte, o que cria um pathos tragicômico para Hastings, que conta suas vantagens e, feliz, presenteia-o com um bolsa de dinheiro. O transeunte sai. Entra o padre Sir John, que diz alguma coisa no ouvido de Hastings. Buckingham entra e saúda Hastings. Diz pretender ir à Torre, mas que não demoraria muito. Hastings diz que também pretendia se encaminhar para lá, mas que ficaria até o jantar. Num “à parte”, Buckingham afirma que Hastings ficará muito mais tempo que isso, embora não soubesse. Saem. 10ª seqüência cênica. Entram o Conde Rivers, Lorde Grey e Vaugham339, conduzidos para a decapitação por Sir Richard Ratcliffe340. Eles fazem seus discursos finais. Esta seqüência

cênica cria uma expectativa sobre como Hastings vai ser enredado para ter o mesmo destino. 11ª seqüência cênica (Conselho delibera sobre como e quando seria a coroação de Eduardo V, seguido da acusação de traição contra o Lorde Camarista). Entram William Hastings (que encabeça o conselho), o Duque de Buckingham, o Bispo de Ely e o Conde de Derby341. O diálogo transcorre até chegar o momento em que os presentes perguntam sobre a opinião do Lorde Protetor sobre o assunto. Entra Ricardo, criando um clima de descontração no conselho: Ricardo diz amar Hastings e que não haveria ninguém mais adequado para representar a sua voz no conselho; depois, dirige-se a Ely, a quem pede morangos de suas terras em Holborne. Ely sai. Buckingham e Ricardo conversam “à parte”: segundo informações de Catesby, Ricardo diz a Buckingham que Hastings não apoiaria qualquer golpe contra a sucessão de Eduardo. Eles saem para preparar um conluio contra Hastings. Ely entra com os morangos e pergunta sobre Ricardo. O conselho transcorre. Derby sutilmente alerta Hastings que há uma grande distância entre o coração e a face de Ricardo. Entra Ricardo, que acusa Lady Shore e a rainha Elizabeth de usarem bruxaria para tentar assassiná-lo, mostrando como prova o seu braço seco e dormente. Hastings demonstra dúvida sobre a acusação de Ricardo, o que dá a este a oportunidade de acusá-lo de

339Trata-se de Sir Thomas Vaugham, servidor pessoal de câmara de Eduardo IV, executado em 1483 por Ricardo III. Dada a sua posição, é de supor que Vaugham disputasse com Hastings os favores do rei Eduardo IV. Embora não seja dito na peça, um leitor mais erudito que conhecesse as crônicas de Holinshed poderia deduzir isso à medida que o Vaugham cênico está entre aqueles que o Hastings cênico considera ser seus inimigos. 340Especificamente na didascália desta seqüência cênica da edição de 1597 da peça, o seu nome é grafado como “Ratliffe”. No final das contas, este “erro tipográfico” acaba por evidenciar um trocadilho intencionado com “vida de rato” ou simplesmente “rato”. Em alguns momentos da peça, quando Ricardo chama Ratcliffe, usa tão somente um abreviado Rat – o que cria um efeito de comicidade. Os dois principais servidores de Ricardo de estrato social baixo compõem, na verdade, a sua caracterização demoníaca: Ricardo é servido por um ‘gato’(Catesby, que trai o seu antigo senhor: William Hastings) e por um ‘rato’(Ratcliffe) – animais nem propriamente domésticos, nem completamente selvagens, tal como Ricardo em relação à vida cortesã, e que aludem a fronteira com o bestial-demoníaco do Magus-magister da política. 341Na edição de 1597 de “Ricardo III”, há um erro tipográfico no início da seqüência cênica do conselho, pois aparece uma fala para Rivers – improvável, pois já havia sido decapitado na seqüência cênica anterior. No entanto, é possível deduzir que a fala, atribuída equivocadamente a Rivers, seja do Bispo de Ely, tal como sugere a edição do fólio de 1623, já que é justamente aquela que se apresenta como favorável à coroação de Eduardo no dia seguinte.

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coroada a sua rainha. Todos são tomados de surpresa. Ana recebe com pesar tal notícia e desconfia que Ricardo pretende, em momento oportuno, assassiná-la. Elizabeth sente o ar lhe faltar e pede para Dorset fugir para junto de Richmond, antes que a morte o alcançasse também, tal como já havia acontecido com Rivers e Grey. Lorde Stanley se prontifica a ajudá-lo na fuga. A Duquesa de York aconselha que Elizabeth venha consigo para o santuário344. Todos saem. 16ª seqüência cênica. Trombetas soam. Entram Ricardo coroado, Buckingham, Catesby e outros nobres. Ricardo III quer falar à parte com Buckingham, quando então sugere que ele deveria matar os príncipes confinados na Torre. Buckingham mostra circunspecção e pede tempo para tomar um “fôlego”, o que irrita Ricardo. Buckingham sai. Catesby fala com o “leitor/audiência”, dizendo que o rei está irritado, pois morde os lábios. Ricardo chama um pagem e pede que consiga um assassino de aluguel fiável. O pagem sai. Lorde Stanley entra e informa que Dorset fugiu para encontrar Richmond e que já estaria em além-mar. Sabendo disso, Ricardo chama Catesby e manda que espalhe rumores de que a rainha Ana está doente e à beira da morte. Além disso, diz para Catesby buscar algum cavalheiro de nascimento menor para casar-se com a filha de Clarence – e não considera o seu filho uma ameaça, por ser um idiota. Nesta altura, Ricardo já planeja casar-se com sua sobrinha, Elizabeth de York, filha do falecido Eduardo IV e da agora decaída rainha Elizabeth, para evitar que Richmond pudesse fazer o mesmo. Entra Tyrrel. É combinado o assassinato dos inocentes confinados na Torre. Quando Tyrrel está saindo de cena, cruza com Buckingham, que desconhece o propósito de Tyrrel. Quando Buckingham dirige-se a Ricardo, dizendo ter considerado a sua demanda, Ricardo mostra fingida indiferença sobre o assunto, focando a sua atenção no fato de que Dorset fugiu para o lado de Richmond. Deste ponto em diante, ocorre um diálogo tenso em que Ricardo sucessivamente interrompe a fala de Buckingham com divagações, não querendo dar atenção à sua demanda sobre as terras do condado de Hereford. Numa dessas divagações, Ricardo lembra das profecias em torno do advento de Richmond, mas as despreza com sarcasmo. Finalmente, Ricardo dirige-se contundentemente a Buckingham, diz não estar com a veia da generosidade e sai de cena. Buckingham lembra do ocorrido com Hastings, lamenta a ingratidão daquele a quem ajudara tornar-se rei e sai de cena, dizendo que fugirá enquanto a sua cabeça ainda se conserva no pescoço. Deste modo, sai de cena. 17ª seqüência cênica. Entra Tyrrel que, momentaneamente sozinho, resume para o “leitor/audiência” o que ocorrera na Torre, dizendo que os assassinos que ele contratara tudo fizeram, mas com consciência e remorso e, agora, ele próprio viera trazer as notícias do ocorrido para o “rei sanguinário”. Esta é a deixa para a entrada de Ricardo, que fica sabendo do ocorrido. Tyrrel sai. Sozinho em cena, Ricardo resume para o “leitor/audiência” o curso, até o momento, de suas vilanias. Entra Catesby, trazendo notícias ruins: o Bispo de Ely fugiu para o lado de Richmond, enquanto Buckingham monta um exército entre os galeses. No entanto, Ricardo se perturba muito mais com a fuga de Ely do que com o exército de Buckingham. Portanto, Ricardo faz a última fala desta seqüência cênica e sai com Catesby. 18ª seqüência cênica. Entra Margaret e faz breve solilóquio. Entram Elizabeth e a Duquesa de York. A três grandes matriarcas sobreviventes das casas envolvidas na guerra civil (Lancaster, Woodville e York, respectivamente) lamentam as suas perdas e desgraças, enfatizando o non sense da guerra. Margaret sai de cena, afirmando que as dores inglesas fá-la-ão sorrir na França. Entra Ricardo em marcha, cercado de tambores e trombetas. Ricardo os faz soar para abafarem os lamentos da Duquesa de York e de Elizabeth. Ricardo é amaldiçoado por sua mãe, que deseja que morra “by God iust ordinance”(“pela justa vontade de Deus”). A Duquesa de York sai. Ricardo tem agora Elizabeth perante si. Inicia entre eles uma guerra de engenhos verbais, sendo o motivo central a proposição de Ricardo de casar com sua sobrinha, filha de Elizabeth. A rainha sai aparentemente (con)vencida de que o melhor para compensar todas as suas perdas é deixar que sua filha se case com o tio. Elizabeth sai. Ricardo acredita que ela se deixou “tentar pelo demônio” e se gaba – tal como

344Não é suficientemente claro se a filha de Clarence – que não tem fala na cena – vai junto. Trata-se da segunda e última vez em que ela adquire existência cênica, já que a primeira ocorre na 5ª seqüência dramática, em que aparece com fala ao lado do irmão e da avó (a Duquesa de York). Ela será mencionada mais uma vez na 16ª seqüência cênica, quando Ricardo diz ter reservado para ela um casamento inferior. De qualquer forma, parece haver uma incoerência na configuração desta cena, se considerarmos que, desde o final da 12ª seqüência dramática, Catesby recebera ordens para deixar os “children” de Clarence longe da vista de todos.

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fizera depois de conquistar Ana perante o corpo de Henrique VI (1ª seqüência dramática) – de mais esta conquista sobre o gravoso (mas inconstante, fraco, superficial e burro) coração feminino de Elizabeth. Entra Ratcliffe, informando que Richmond desembarcou nas costas ocidentais e que Buckingham foi lhe dar boas vindas. Entra Catesby, tão logo Ricardo pergunta por ele. Catesby recebe ordem para montar a sua teia de aliados. Catesby sai. Entra Lorde Stanley, que diz que Dorset, Buckingham e o Bispo de Ely apóiam que Richmond reclame para si a Coroa. Ricardo desconfia da fidelidade de Lorde Stanley, dada a frieza dos aliados que conseguira para ele no norte. Para se assegurar de que Stanley não o trairia, Ricardo ordena que seu filho (George Stanley) seja mantido como refém junto ao rei. Entram sucessivamente três mensageiros, trazendo notícias sobre os últimos acontecimentos. Os dois primeiros trazem notícias ruins: muitos representantes de poderosas casas do reino estão pegando em armas contra Ricardo e em favor de Richmond. Somente o terceiro traz notícias boas: o exército de Buckingham foi dispersado e o duque evadiu-se345. Ricardo ordena que este mensageiro saia e espalhe notícias sobre uma recompensa pela captura de Buckingham. Um quarto mensageiro entra e traz notícias de que Richmond não teve apoio em Dorsetshire. Catesby retorna e diz que Buckingham está preso. Ricardo ordena que ele seja levado para Salisbury, para onde também se encaminha. Todos saem. 19ª seqüência cênica. Entram Lorde Stanley e Sir Christopher (servidor do Conde de Richmond). Stanley pede para Christopher levar notícias para Richmond de que não pode apoiá-lo diretamente porque seu filho é refém de Ricardo III. No diálogo, a pedido de Stanley, Christopher lista os nomes dos “homens de fama e riqueza” que apóiam Richmond. São eles: Walter Hebert, Gilbert Talbot346, William Stanley347, Oxford, Pembroke348, James Blunt349, Rice ap Thomas350 e seus dependentes. Lorde Stanley diz que Richmond deve casar-se com a jovem Elizabeth de York, pois a decaída rainha Elizabeth concedia nesse casamento com todo o seu coração351. Portanto, na prática, Stanley (padrasto de Richmond) está mediando um contrato verbal de casamento entre a casa Tudor-Lancaster e a casa de York. Stanley deixa uma carta para Christopher entregar a Richmond. Saem. 20ª seqüência cênica (3ºPendant Dramático). Entra Buckingham para ser executado, sendo conduzido por Ratcliffe. Seguindo o pathos trágico, Buckingham lamenta a sua sorte e se arrepende de tudo que fizera aos outros, incluindo o seu falso juramento de paz perante Eduardo IV (4ª seqüência dramática). Lembra da maldição de Margaret – jogada sobre si

345Esta seqüência de entrada de mensageiros está configurada de um modo que explora o pathos tragicômico herodesiano: Ricardo bate no terceiro mensageiro por pensar que seria uma terceira ave de mau agouro, ou seja, bate naquele que estava trazendo, na verdade, notícias boas. A sua reação já demonstra que teme perder o seu “cavalo” (o reino) e reage desesperadamente, como se um açoite pudesse mudar o teor das notícias ruins que, por ventura, viesse a receber. Certamente, isso compõe a sua caracterização como tirano herodesiano e expõe o paradoxo de sua tirania: Se bate em quem pensa estar trazendo notícias ruins e recompensa quem traz boas, como pode ter certeza da fiabilidade do que lhe é anunciado? Para desculpar-se por ter batido no terceiro mensageiro, Ricardo lhe dá uma recompensa por ter lhe trazido boas notícias. Comparando a exorbitância tragicômica desta situação cênica com, por exemplo, aquilo que Michel de Montaigne (1533-1592) chamava, em um de seus ensaios, de “os inconvenientes da grandeza”, temos bem claramente delineado o paradoxo da configuração cortesã do poder político: Como um rei pode ter a justa medida das coisas (e de si mesmo) se é cercado por bajuladores interesseiros ou conselheiros temerosos? Como já observamos, este é um dos dilemas que compõe a tópica do “rei oculto” na literatura dos séculos XVI e XVII. (Ver: BERCÉ, Yves-Marie. O Rei Oculto: Salvadores e Impostores – Mitos Políticos e Populares na Europa Moderna. São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo/EDUSC, 2003). 346As crônicas de Holinshed o arrolam como nobre que apoiou Richmond com 2000 homens. Recebeu como prêmio terras em Grafton (Worcestershire) e foi feito governador de Calais. 347Historicamente, há registro de seu óbito em cerca de 1495. O irmão de Lorde Thomas Stanley, segundo as crônicas de Holinshed, ajudou Richmond com cerca de 3000 homens e foi fundamental para a conquista de Bosworth, mas isso não é indicado na peça. 348Possivelmente, refere-se a Jasper Tudor (c.1431-1495), Conde de Pembroke, Duque de Bedford e Segundo Conde de Owen Tudor. Trata-se de mais um meio-irmão de Henrique VI, advindo do segundo casamento de sua mãe com Edmundo Tudor. Segundo as crônicas de Holinshed, depois da vitória em Bosworth, Jasper Tudor foi agraciado com altos cargos no reinado de Henrique VII. 349Segundo as crônicas de Holinshed, capitão do Castelo Hammes que apoiou a entrada de Richmond na Inglaterra. 350Nas crônicas de Holinshed, Rice (ou Rhys) ap Thomas (c.1449-1525) é referido genericamente como um partidário galês de Richmond que trouxe de bom grado para seu lado seu “band of Welshmen”. 351Portanto, fica agora evidente que Elizabeth enganara o “demônio”. Ela fingiu que se deixou tentar pelas ofertas de Ricardo. Prospectivamente, isso ratifica o tom cômico da guerra de engenhos verbais entre ambos na 18ª seqüência dramática. Deste modo, sem saber, Ricardo experimenta com a rainha Elizabeth os “inconvenientes da [sua] grandeza”, pois mediu erradamente a si mesmo como vitorioso sobre a “fraqueza feminina” da rainha, quando na verdade estava sendo enganado por aquela que depreciou como “Relenting foole, and shallow changing woman” (“mulher inconstante, superficial e burra”).

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quando tomou a defesa de Ricardo (2ª seqüência dramática) – e conclui dizendo que erro apenas produz erro e culpa apenas lágrimas de culpa. Saem. 21ª seqüência cênica. Ao som de tambores e trombetas, entram alguns nobres e Richmond, que diz aos presentes o teor da carta de Stanley. Durante a sua fala, Richmond chama Ricardo de tirano homicida e usurpador comparável a uma peste que torna imprevisível colheitas vindouras. Três falas de nobres se sucedem, sem especificidade de nomes. Demarcam cenicamente um ritual de fidelitas. A fala final é de Richmond, que diz que a verdadeira esperança transforma os reis em deuses, e os homens em reis352. Saem. 22ª seqüência cênica. Entram Ricardo, o Duque de Norfolk353, Ratcliffe, Catesby e outros, que montam seu acampamento. Nesta cena, somente Ricardo, Norfolk e Catesby possuem falas. Saem. 23ª seqüência cênica. Entram Richmond e seus lordes, que montam seu acampamento. Nesta situação cênica, somente Richmond e Blunt possuem falas. Entram Ricardo, o Duque de Norfolk, Ratcliffe, Catesby e outros354. De frente de sua tenda, Ricardo manda um transeunte enviar ordens para Lorde Stanley, lembrando que tem seu filho como refém. Depois disso, Ricardo distribui ordens para Norfolk, Catesby e Ratcliffe, que saem de cena. Ricardo se recolhe à sua tenda. Lorde Thomas Stanley entra em cena, estando já na tenda de Richmond, que o trata com a familiaridade e honra de “father in law” (padrasto) e pergunta pela sua mãe, a Condessa de Richmond. Dada a condição de refém de George Stanley, Thomas diz a Richmond que terá que esperar o momento mais oportuno para entrar para seu lado no campo de Bosworth. Mais uma vez, as falas de Richmond estão cheias de condenação ao non sense da guerra. Por fim, Richmond manda que seus lordes acompanhem Thomas Stanley até o seu regimento. Saem. Richmond inicia a sua oração antes de dormir e, por fim, adormece. Por alguns instantes, em pólos distintos e dentro de suas respectivas tendas, Ricardo e Richmond estão sozinhos. Entram os fantasmas das vítimas do rei sanguinário, distribuindo graças para Richmond e desgraças para Ricardo. Na edição de 1597, os fantasmas entram na seguinte ordem: (1) Príncipe Eduardo (filho de Henrique VI de Lancaster); (2) Duque de Clarence; (3) Rivers, Grey e Vaugham (juntos); (4) os príncipes inocentes assassinados na Torre (juntos); (5) Hastings; (6) Lady Ana; por fim, (7) Duque de Buckingham355. Como vozes da consciência, tais fantasmas assolaram Ricardo, que acorda assustado, mas não se emenda, pois sufoca em seu peito qualquer “voz da consciência”. Ele tem um “rato” (Ratcliffe) como servidor, que em cena entra para falar dos preparativos da guerra. Ricardo diz ter tido sonhos terríveis. A hora da batalha final chegou, mas não o dia, que permanece sem “sol”. Saem. Lordes vão até a tenda de Richmond, que diz ter dormido docemente. Preparam-se para a batalha. Richmond faz sua oração aos soldados. Saem. 24ª seqüência cênica. Entram Ricardo, Ratcliffe e outros. Ricardo e Ratcliffe têm um breve diálogo. O dia está sem “sol”, mas Ricardo dá a tal sinal o sentido oposto de seu interno temor. Entra Norfolk, que fala da urgência de pôr tudo em marcha e apresenta a Ricardo um papel que achara em sua tenda, com os seguintes dizeres: “Iocky of Norfolke be not so bould,/ For Dickon thy master is bought and sould.” Ricardo diz ser tal acusação uma invenção do inimigo e que ninguém deveria se acovardar frente aos alaridos da consciência e, por fim, inicia a sua oração aos soldados. Entra um mensageiro, que diz ao rei que Lorde Stanley não enviará as suas tropas. Irritado, Ricardo manda que cortem a cabeça de George Stanley, mas Norfolk avisa que não há tempo, pois os inimigos já estão em marcha. Saem.

352Observe que não há uma equalização: o parâmetro máximo de elevação de um rei é ser deus; o parâmetro máximo de elevação de um homem é ser rei. 353Trata-se de John Howard (c.1430-1485), que fora elevado por Ricardo III, em 1483, ao estado de primeiro Duque de Norfolk. Segundo as crônicas de Holinshed, Howard notabilizou-se como o conde-marechal de Ricardo III que teria comandado a vanguarda em Bosworth, sendo morto durante o confronto. 354Não se sugere a saída de Richmond e seus aliados do “palco”, que são silenciados em cena quando entra Ricardo e seus aliados. Considerando as falas e as didascálias das seqüências 22ª e 23ª, são discursivamente sugeridas as seguintes visualidade e dinâmica cênicas: ambos os acampamentos dividem pólos distintos do “palco”, demarcados por suas respectivas tendas, em que estão Ricardo e Richmond, aonde os seus servidores entram e saem conforme o desenrolar da seqüência. Quando um pólo “fala”, o outro silencia. Em seguida, a entrada dos fantasmas sugere que ficam no centro do “palco”, voltando-se para Ricardo, com suas falas de pesadelo condenatório, e para Richmond, com suas falas de bons sonhos. 355Na edição do fólio de 1623, Hastings antecede os filhos de Eduardo IV, de modo que a ordem de entrada dos fantasmas segue rigorosamente a ordem temporal dramática de suas mortes na trama.

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25ª seqüência cênica. Alaridos. Norfolk está em cena. Catesby entra pedindo socorro para Ricardo, que perdera seu cavalo, morto na batalha. Ricardo entra e clama por um cavalo (“A horse, a horse, my kingdome for a horse.”). Todos saem. Alaridos. Entram Ricardo e Richmond lutando. Saem. Ricardo é morto e a retirada é soada356. Entram Richmond, Lorde Stanley (que segura a Coroa) e outros lordes. Stanley entrega a Coroa a Richmond. Richmond pergunta quais homens de “nome” foram mortos. Lorde Stanley diz que estão mortos “Iohn Duke of Norffolke, Water Lord Ferris, sir Robert Brookenbury, & sir William Brandon.”357 Richmond diz para todos serem enterrados conforme a sua posição de nascimento e conclui a última fala da peça com sua oração pela integração do corpo político.

Portanto, as seqüências cênicas apresentadas acima são uma proposta

pessoal de divisão do discurso da peça a partir de sua materialidade de

1597, tendo como horizonte as demandas analíticas específicas de minha

pesquisa. No entanto, o meu argumento analítico não seguirá a ordem

seqüencial do enredo que apresentei acima. Em certa medida, é a ode

condenatória ao rei Ricardo III, presente desde o frontispício dos primeiros

in-quartos, que inspira o percurso analítico que quero fazer. Neste

percurso, pretendo demonstrar como os temas da traição e da autofagia do

corpo político por guerras interdinásticas e conluios intradinásticos acabam

por desmistificar os mecanismos da autoridade política, à medida que o

próprio Ricardo III, como demoníaco vilão dramático, expõe cruamente o

quanto é fácil explorar a retórica da traição em projetos pessoais de poder

que levam muitos “traidores” (inventados ou não) a terem suas cabeças

expostas na ponte de Londres. No entanto, uma vez demonstrado o

paroxismo do mal, a teleologia dramática devolve ao “leitor/audiência” a

segurança e a deferência à autoridade, desde que bem encarnada (ou

encarnada pelo bem).

Além disso, pretendo demonstrar, como propõe Scott Colley358, que Ricardo III

é figurado como vilão dramático a partir de lugares retóricos do demoníaco bíblico:

Lúcifer e as três imagens de Herodes (fundidas no texto). A primeira imagem de

Herodes já é aludida desde o frontispício da peça, quando se fala em “assassinato dos

356Justamente porque a retirada é soada que se sabe que Ricardo está morto. Portanto, a morte de Ricardo não é encenada no “palco”, mas sugerida pelos efeitos sonoros da retirada de seu exército. Aquilo que efetivamente é “apresentado em palco” é a luta entre Ricardo e Richmond e, depois, a entrada triunfante de Richmond e Stanley. 357Ou seja: o Duque de Norfolk (John Howard), o Barão de Ferrers (Lorde Walter Devereaux), Sir Robert Brackenbury (lugar-tenente da Torre) e Sir William Brandon – pai de Charles Brandon (m.1545), que seria elevado por Henrique VIII à condição de primeiro Duque de Suffolk. 358COLLEY, Scott. “Richard III and Herod”. Shakespeare Quartely, volume 37, 1986(4):pp.451-458

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sobrinhos inocentes”. Como os lugares retóricos do demoníaco bíblico representam as

idéias de cinismo, concupiscência, vaidade, inveja, ciúme, egoísmo, arrogância, traição,

tentação, tirania, malevolência, paixão desenfreada, deformidade moral e desregramento

(hu)moral, servem muito bem para emprestar a Ricardo III os elementos temáticos e

dramáticos (trágicos e cômicos) corriqueiros nas peças religiosas inglesas da Epifania

desde o século XI, sendo também associados a tal caracterização o “maquiavelismo

demoníaco” e nuanças críticas anticatólicas recorrentes na literatura elizabetana.

Por isso mesmo, tal como sugere o frontispício da peça, não se deve perder de

vista o lado direito daquilo que Ricardo é o avesso: ao ser Ricardo figurado como vilão

demoníaco e traiçoeiro, a sua derrota/morte torna-se “mais do que merecida” e, por

antonomásia, faz do advento do Conde de Richmond a promessa messiânica de uma

nova era – o triunfo de “Cristo” sobre a morte (i.e., sobre a destruição e o mal do/no

corpo político). Nesse sentido, a figuração diabólica de Ricardo III pode ser entendida

como uma sinédoque hiperbólica das forças demoníacas e destrutivas da guerra civil,

que atingem todos os membros do corpo político. Porém, ao final, são todos purificados

de seus males passados (embora não estejam livres de males futuros) através da nova

aliança representada pelo advento de Richmond-Christus. Daí, entendo a figuração

teológico-política de Henrique VII na peça “Ricardo III” como a manifestação de uma

expectativa social de superação do ethos guerreiro medieval359 e como a ratificação da

tese moral de que a traição à autoridade soberana legítima nunca prospera360.

3.2. “Ricardo III” e a retórica da ameaça ao corpo político na Inglaterra

A tópica do “mundo às avessas” inscreve-se de forma singular naquilo que

Maravall entende por “cultura do barroco”, porque nesta o sentido da exposição ritual e

punitiva (no “mundo do teatro” e “no teatro do mundo”) das mais diversas tendências

agônicas de liberdade exterior é afirmar, ao final, o triunfo de um princípio de

autoridade estabilizadora361. Esta mesma forma de expor as forças agônicas para

ritualmente contê-las e puni-las foi percebida por Curt Breight quando se debruçou nos

textos oficiais ingleses que divulgavam, durante os governos elizabetano e jacobita, os

casos debelados de conspiração contra a figura régia. Ele desenvolveu tal estudo com o

objetivo de constituir um contexto interpretativo específico para o tema da traição e da

359Ver: HATTAWAY, Michael. “Blood is their argument: men of war and soldiers in Shakespeare and others”. In Religion,

Culture and Society in Early Modern Britain. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. pp.84-101 360Ver: BREIGHT, Curt. “Treason doth never prosper: The Tempest and the Discourse of Treason”. Shakespeare Quartely, volume 41, 1990(1):pp.1-28

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sacralização da autoridade política de Próspero na peça “A Tempestade”362. No

entanto, o seu estudo associa uma série de elementos igualmente úteis para a

interpretação da peça “Ricardo III”.

Curt Breight percebeu que, entre 1581 e 1610, houve na Inglaterra uma

centralidade do tema da traição nos discursos oficiais do governo. Neste período, o

governo inglês afirmava que o catolicismo romano estaria envolvido numa atividade

silenciosa e ameaçadora de dissensão devido ao influxo de jesuítas e seminários para

padres. Embora as execuções por traição tivessem sido maiores na década de 1530 do

que durante o reinado de Elizabeth, as produções discursivas de traição (prisões,

julgamentos, execuções, panfletos e sermões) impregnaram o ambiente sociocultural da

segunda metade do reinado de Elizabeth e dos primeiros anos do reinado de James I.

Nesse sentido, a quantidade de execuções por traição é menos importante do que a

regularidade e concomitância dos discursos sobre casos de traição entre 1580 e 1610:

quase anualmente, houve paradas de condução de “conspiradores diabólicos” para o

cadafalso, freqüentemente seguidas ou precedidas pela encenação de disputas retóricas

entre os “apologistas do regime” e seus “oponentes”363.

Em “Ricardo III”, observamos tal disputa retórica na cena em que o Duque de

Clarence é “julgado” na Torre por dois assassinos anônimos, havendo a derrota,

obviamente, do acusado; e também a observamos na cena de reunião sobre os

preparativos da malograda coroação de Eduardo V, em que William Hastings é arrolado

exatamente como um “conspirador diabólico”. Ora, principalmente nesta última

circunstância, o “leitor/audiência” tem a chance de observar Ricardo, Duque de

Gloucester, representar-se como uma figura divinamente protegia (afinal, “sobreviveu à

bruxaria”). Entretanto, ao figurar-se assim, está na verdade dando curso à sua diabólica

via rumo ao trono: como um grande Magus-magister da política, Ricardo sabe

manipular caracteres, aparências e situações que tornam oficialmente plausíveis as suas

acusações de traição contra todos aqueles que podem obliterar o seu projeto pessoal de

poder. Assim, a caracterização cênica de Ricardo III dá ao “leitor/audiência” a

oportunidade de observar o limite entre ficção e realidade nos discursos oficiais de

361MARAVALL, José Antonio. Cultura do Barroco. São Paulo: EDUSP, 1997. p.279 362BREIGHT, Curt. “Treason doth never prosper: The Tempest and the Discourse of Treason”. Shakespeare Quartely, volume 41, 1990(1):pp.1-28 363BREIGHT, Curt. “Treason doth never prosper: The Tempest and the Discourse of Treason”. Shakespeare Quartely, volume 41, 1990(1):pp.1-4

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traição e, deste modo, desmistifica as várias estratégias oficiais de poder que podem

estar contidas nas acusações de traição.

Em 1584, a “Bond Association” foi o clímax de várias medidas duras contra

clérigos católicos ocorridas entre 1581 e 1585 na Inglaterra. Este dispositivo legal criou

um ambiente político no qual qualquer atividade católica era convertida em conspiração

– e seus conspiradores (reais ou supostos) foram discursivamente transformados em

figuras demoníacas. Para demonstrar isso, Curt Breight lembra que a pseudo-biografia

de William Hacket (uma figura messiânica executada por traição em 1591), escrita por

Richard Cosin – um apologista do governo –, é marcadamente similar a uma igualmente

duvidosa biografia do Dr. William Parry, executado em 1584/85. Este teria sido

empregado pelo governo como espião, mas, por alguma razão misteriosa, pensou-se ser

politicamente proveitoso transformá-lo em traidor, acusando-o de participar de um

conluio fracassado de assassinato contra a rainha. Quando é narrado o fracasso dos

intentos de William Parry, a figura régia é deliberadamente envolta num círculo divino

de proteção, tal como aparece no discurso-interrogatório do seu julgamento:

“...thou diddest confesse, that thou haddest prepared two Scottish Daggers, fit for such a purpose: and those being disposed away by thee, thou diddest say that an other would serve thy turne. And with all, Parry, diddest thou not also confesse before us howe wonderfully thou wert appauled and perplexed upon a suddaine at the presence of her Maiestie at Hampton Court this last sommer, sayng that thou diddest thinke thou then sawest in her, the very likenes & image of King Henry the seventh? And that therewith, and upon some speech used by her Maiestie, thou diddest turne about and weepe bitterly to thy self? And yet diddest call to mynde that thy vowes were in heaven, thy letters and promises on earth, and that therefore thou diddest say with thy selfe, that there was no remedy but to do it? [“A true and plaine declaration of the terrible treasons, practised by William Parry the traitor against the Queenes Maiestie...containing a short collection of his birth, education and course of life...”(n.d., probably 1585, pp.2-3)]364

“...tu confessas que armaste com adagas dois assassinos escoceses adequados para tal propósito e, sendo estes enviados por ti, tu disseste a um outro que deveria tomar o teu lugar. E contudo, Parry, tu não confessas, perante nós, o quanto surpreendentemente ficaste maravilhado e perplexo de súbito na presença de sua Majestade na Corte de Hampton neste último verão, dizendo que pensaste ter visto nela a própria imagem e semelhança do Rei Henrique VII? E além disso, por causa de algum pronunciamento feito por sua Majestade, tu foste comovido e choraste amarguradamente? E mesmo consciente que teus votos estão no céu, tuas cartas e promessas na terra, tu então disseste para ti mesmo que não havia outro remédio a não ser cumprir tal propósito? [“Uma verdadeira e completa confissão da terrível traição praticada por William Parry, o traidor, contra a Regina Majestade...contendo uma curta coleção de seu nascimento, educação e percurso de vida...”(s.d., provavelmente 1585, pp.2-3)]

Eis o mito da invulnerabilidade régia, que demandava do leitor a crença de que

um assassino implacável, em certas ocasiões, não conseguiria cravar uma adaga na

persona régia. Ora, sete anos depois, repetindo o mesmo enredo, Richard Cosin

caracteriza nas mesmas bases a figura de William Hacket. Ora, isso não apenas sugere o

cinismo do regime, mas também traz dúvidas sobre todos os outros “casos de traição”

“bem” ou “mal” documentados. Breight chama também atenção para o fato de que uma

364Apud: BREIGHT, Curt. “Treason doth never prosper: The Tempest and the Discourse of Treason”. Shakespeare Quartely, volume 41, 1990(1): p.12

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recorrência retórico-temática dos casos judicialmente documentados de “traição” é que

os traidores são apresentados em número de três365. Em “Ricardo III”, aqueles que são

arrolados de “traição diabólica” contra Ricardo são, ao final, três (rainha Elizabeth,

Lady Shore e William Hastings), embora os efeitos da punição tenham recaído

cenicamente sobre o Lorde Camarista.

Um outro relato com a mesma perspectiva retórico-temática do “caso Parry” foi

aquele sobre “Mestre Alexander Ruthven”, acusado de tramar o assassinato do rei

James (I), em 1600, com seu irmão John Ruthven, 3º Conde de Gowry, quando ainda

figurava como rei da Escócia. Segundo o relato, o rei foi protegido do assassinato pelo

poder de sua Majestade Régia e pela força de sua eloqüência: o traidor segurava uma

adaga contra o seu coração...

“...having such crueltie in his looke, and standing so irrevenrently covered with his Hat on, which forme rygorous behaviour, could prognosticat nothing to his maiestie, but present extremitie. But at his maiesties perswasive language, he appeared to be somewhat amazed, and uncovering his head againe, swore and protested that his maiestie life should be safe, if he would behave himselfe quietly, without making noyes or crying” [RUTHVEN, J.. The Early of Gowrie conspiracie against the Kings Maiestie of Scotland... London: Valentine Simmes, 1600]366

“...tendo tanta crueldade em seu rosto e mantendo-se tão irreverentemente em pé e coberto com seu Chapéu – o que figura um comportamento descortês – que não se poderia prognosticar nada à sua majestade a não ser uma presente calamidade. Mas devido à persuasiva linguagem de sua majestade, ele parecia de algum modo pasmado e, descobrindo sua cabeça novamente, jurou e insistiu que a vida de sua majestade estaria salva se ficasse em silêncio, sem fazer barulho ou gritar” [RUTHVEN, J.. O Antecedente da conspiração Gowry contra a Régia Majestade da Escócia... Londres: Valentine Simmes, 1600]

Nesses termos, tal como no caso descrito sobre Elizabeth, a aura divina do self

régio e o talento retórico de James são apresentados como fatores que explicam o fato

de ter saído incólume da “Conspiração Gowry”. Oito anos mais tarde, os seus oficiais

escoceses foram miraculosamente hábeis para descobrirem um terceiro conspirador, que

foi executado não porque tenha participado da tentativa de assassinato, mas por não ter

denunciado o que sabia sobre o conluio. Neste aspecto, o relato é muito semelhante ao

caso de William Parry, que se arrepende do conluio contra a vida de Elizabeth, não

participa diretamente do ato (pois põe um terceiro assassino para tomar o seu lugar) e,

por fim, é arrolado no processo justamente por não ter denunciado o que sabia.

Em “Ricardo III”, quando o Brother Gloster encomenda o assassinato de

Clarence, os dois assassinos são advertidos para não se deixarem enredar pela retórica

de Clarence que, efetivamente, toca a consciência de um dos assassinos, que hesita

perante o duque. No caso do assassinato dos sobrinhos, o Uncle Gloster tem a ajuda de

365BREIGHT, Curt. “Treason doth never prosper: The Tempest and the Discourse of Treason”. Shakespeare Quartely, volume 41, 1990(1):pp.5-8

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And not these bastard Brittains whom our fathers Haue in their own land beaten bobd and thumpt, And in record left them the heires of shame. Shall these enioy our lands, lie with our wiues? Rauish our daughters, harke I heare their drum, Fight gentlemen of England, fight bold yeomen,

[Folha seguinte] Draw archers draw your arrowes to the head, Spur your proud horses hard, and ride in bloud, Amaze the welkin with your broken staues,[...]370

pobres ratos, deixaram-se apanhar! Se formos conquistados, que sejam homens a conquistar-nos e não estes bretães bastardos, a quem nossos pais bateram, esmurraram e surraram em sua própria terra e deixaram para eles, em lembrança, os herdeiros da vergonha. Devem estes desfrutarem de nossas terras, deitarem com nossas esposas, violarem nossas filhas?... Escutai!... Eu ouvi o seu tambor... Lutai, cavalheiros da Inglaterra! Lutai, bravos da guarda! Atirai, arqueiros, atirai suas flechas na cabeça! Esporeai firme vossos orgulhosos cavalos e galopai no sangue! Pasmai o céu com o estalar de vossas lanças![...]

Explorado retoricamente para caracterizar o personagem Ricardo, o “demoníaco

maquiavélico”371 presente nas falas de Richmond e do próprio Ricardo completa o

significado ambíguo da expressão “elevado pelo sangue e pelo sangue mantido”: é pelo

“sangue” (assassinato de parentes e aliados) que Ricardo conseguiu travestir-se da

dignidade régia, mas isso apenas é possível porque é pelo “sangue” (seqüência da

herança dinástica) que ele pode assumir a Coroa. No entanto, no ponto relativo à

herança dinástica, a situação de Ricardo é semelhante àquela de Richmond. Lembrar

isso atenua o potencial subversivo da fala de Richmond, principalmente se

considerarmos que, ao final do século XVI, já estava bastante difundido o debate

teológico-político (católico e protestante) a respeito do dever de se resistir a um “tirano

diabólico”372. Ora, na peça “Ricardo III”, como Richmond é mais um potencial

herdeiro do trono inglês, não é o “povo” ou o “reino” em si mesmo que se levanta

contra um “tirano diabólico”, mas alguém dinasticamente legítimo que, caridosamente,

lembra que aqueles que estão do lado do “cascalho” moral (que fora elevado à “pedra

preciosa” pela dignidade régia) gostariam de ver a causa dinástica de Richmond vencer.

O tom de potencial conciliação e perdão para aqueles que estiveram do “lado” de

Ricardo demonstra, na verdade, que Richmond não enxerga os “aliados” de Ricardo

como traidores da dignidade régia, pois o único traidor (“inimigo de Deus”) dos

atributos régios seria o próprio Ricardo, por ter dado à Coroa efeitos práticos que

ameaçavam a deferência em relação à autoridade patriarcal e que em nada contribuíram

para a construção de segurança e prosperidade para todos os súditos 373. Nesse sentido, é

bastante eloqüente que a fala de Ricardo seja cuidadosamente configurada na peça para

enfatizar que não se deve esperar de sua ação nada que conduza ao fim do faccionismo

político. Aliás, bem de acordo com esta expectativa lúgubre para o reino, é o fato de

371Ver: SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.p.578; PEARLMAN, E.. “The Invention of Richard of Gloucester”. Shakespeare Quartely, volume 43, 1992(4): pp.410-429. 372SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.pp.347-616 373Ver: MOULTON, Ian Frederick. “A Monster Great Deformed: The Unruly Masculinity of Richard III”. Shakespeare Quartely, volume 47, 1996(3): pp.251-268

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façanhas de “our fathers”. Assim, na perspectiva de Ricardo, um “passado de guerras

externas” foi sucedido por um “presente de guerras internas” (a Guerra das Duas Rosas,

1455-1485).

Considerando isso, tendo a pensar que há um proposital deslocamento

semântico-fonética do adjetivo pátrio “Brittains” para se referir indistintamente a

Britain (Inglaterra) e Bretagne (França). Ora, as edições contemporâneas da peça, por

tentarem “corrigir” o adjetivo pátrio “Brittains” para “Bretons”(Oxford) ou “Bretagnes”

(Gramercy), e por manterem a forma francesa Bretagne (Oxford e Gramercy) para se

referirem ao território, diminuem justamente a ambigüidade de referente geográfico e,

assim, eliminam o deslocamento semântico-fonética de “bretães/França” para

“britânicos/Inglaterra” presente na edição de 1597 da peça. Nesse sentido, se comparado

ao leitor hodierno, penso que seria muito mais evidente para um leitor inglês de finais

do século XVI associar a imagem dos “maltrapilhos da França” aos próprios ingleses

que, afinal, estavam mergulhados nos efeitos destrutivos (materiais e morais) de guerras

externas (contra Espanha e a Sé Romana) e internas (cujo epicentro eram os problemas

da colonização inglesa na Irlanda)375.

3.3. O Desconforto da Grandeza Régia e o Paradoxo Moral do Estado

Na configuração social e política dos personagens na teleologia dramática da

peça “Ricardo III”, a sua história apresenta os anos finais do reinado de Eduardo

IV de York, que ascendera ao trono depois da derrota e assassinato de Henrique

VI de Lancaster e de seu filho Eduardo, príncipe de Gales. Se analisado numa

cronologia histórica – ou seja, numa temporalidade não cênica –, notaremos que o

desenvolvimento do enredo provoca um achatamento temporal, pois mistura

eventos e personagens marcantes de 1470-78 com aqueles de 1482-85. Contudo,

como já pudemos perceber na sinopse apresentada no primeiro item, o drama

histórico inglês nos séculos XVI e XVII está muito mais preocupado em oferecer

enredos com uma coerente teleologia moral do que com uma coerente progressão

histórico-temporal376. No decorrer da trama, ficamos sabendo que Clarence, irmão

de Eduardo IV, era aliado de Henrique VI, mas o traiu para ver o seu irmão ser

rei. Deste modo, à medida que o leitor vai construindo mentalmente a trama

através dos diálogos dos personagens, torna-se mais compreensível porque

375NEILL, Michael. “Broken English and Broken Irish: Nation, Language, and the Optic of Power in Shakespeare’s Histories”. Shakespeare Quartely, volume 45, 1994(1): pp.1-32

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Eduardo IV aceita tão facilmente os “presságios e sonhos” que Gloucester lhe

incute a respeito de que “G” (George, Duque de Clarence) seria uma ameaça ao

seu trono e herdeiros.

Particularmente no que tange a sonhos e presságios, o seu status é ambíguo

no corpo da peça: ora aparecem como recursos dramáticos que efetivamente

apontam para o transcurso vindouro de eventos, criando um efeito de suspense

sobre o que ainda vai acontecer na trama, tal como se fossem substitutos para o

coro; ora são claramente figurados como engodos ou maquinações perversas que

exploram os “ídolos de mente e coração”. Deste modo, podemos afirmar que o seu

status ambíguo ou problemático ao longo da peça expõe o modo como o teatro

elizabetano explorava cenicamente – e, por vezes, cinicamente – a crise

epistemológica do signo visível na teologia protestante377. Em certa medida,

considerando a forma como Ricardo manipula os signos visíveis e as lembranças

do presente e do passado, este Magus-magister da política provoca um ceticismo

no “leitor/audiência” de finais do século XVI a respeito de sonhos, presságios e

magia, tal como observamos anteriormente no que tange à retórica oficial de

traição ao rei ou de ameaça de decadência material e material contra a

Univeristas.

No passado, o Duque de Gloucester (futuro Ricardo III), diferentemente de

Clarence, notabilizou-se no campo de batalha de Tewkesbury como o irmão mais

devotado à causa de Eduardo IV, embora o ethos da guerra tenha alimentado nele um

humor sanguinário e, muitas vezes, impiedoso ou pouco cortês – o oposto do ethos dos

familiares “afrancesados” da rainha Elizabeth. No entanto, o fato de Ricardo não

apreciar o código cortesão de comportamento não significa que não saiba manipular a

seu favor, com grande engenho e vilania, os signos visíveis e a teatralidade das

máscaras sociais da vida cortesã. Como perfeito vilão demoníaco do teatro inglês,

Gloucester oscila entre o pathos cômico e o trágico, é um grande mestre de cerimônia e

fisiognomista; possui uma engenhosa malevolência que sabe explorar signos visíveis

ambíguos em favor dos sentidos que convém aos seus projetos pessoais de poder. No

entanto, se consegue fazer tudo isso, é porque as suas vítimas – com exceção dos

sobrinhos, os únicos efetivamente inocentes na teleologia moral da peça – têm um

376Ver: CARLSON, Marvin. Teorias do Teatro. São Paulo: UNESP, 1997. pp.73-85 377DIEHL, Huston. Staging Reform, Reforming the Stage: Protestantism and Popular Theater in Early Modern England. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997.pp.125-155

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passado que permite uma manipulação pertinente, no presente, de elementos que

possam formar matérias de acusação.

Daí, a grande força discursiva de Gloucester não está em inventar mentiras,

mas em criar sentidos plausíveis, em face das circunstâncias presentes e das ações

passadas de suas vítimas, que possam condená-las. Por isso, invariavelmente,

antes de Ricardo tornar-se rei, todas as suas principais vítimas acusadas de traição

(Clarence, Hastings, Lord Grey e Rivers), assim como aqueles que ele desonrou o

nome e a glória para ter o trono – Eduardo IV (acusado postumamente de não ser

filho sangüíneo do Duque de York e de ser corno de Elizabeth) e a sua própria

mãe, a Duquesa de York –, possuem alguma coisa de desabonador que lhe dá a

deixa necessária para uma ação acusatória. O personagem Gloucester também

manipula com maestria a retórica oficial da acusação de traição, cujos efeitos

práticos poderiam ser visualmente reconhecidos por um leitor ou ouvinte da peça

que tivesse que passar pela ponte de Londres nos séculos XVI e XVII.

Na configuração da casa de York apresentada na peça, Eduardo IV é o fiel da

balança, mas está moribundo e, por conseguinte, suscetível a temores quanto à

continuidade ou não de sua descendência. Ele está casado com Elizabeth, que era

uma viúva (censurada comicamente por Gloucester como “bígama”) de estatuto

nobre mediano que, através de tal casamento, conseguiu elevar socialmente a si e

a seus parentes – os filhos do primeiro casamento (Lord Grey e Marquês de

Dorset) e seu irmão (Anthony Woodville, Conde de Rivers). Elizabeth deu a

Eduardo dois filhos (ainda infantes à sua morte) e uma filha como herdeiros

yorkistas diretos do trono inglês: Eduardo, Príncipe de Gales (neste título,

substituiu Eduardo de Lancaster, filho de Henrique VI, ambos assassinados,

segundo o enredo da peça, por Gloucester); Ricardo, Duque de York; e a princesa

Elizabeth. Na ordem de sucessão dinástica, na ausência de uma descendência de

Eduardo IV, o trono deveria recair sobre o Duque de Clarence e seus herdeiros

diretos legítimos e, na ausência destes, sobre o Duque de Gloucester e sua

descendência. Deste modo, a garantia da posição de Elizabeth de Woodville, de

seu irmão e de seus filhos do primeiro casamento dependia de manterem

influência sobre Eduardo IV e, na ausência deste, sobre o infante Príncipe de

Gales. No entanto, Ricardo, Duque de Gloucester, com as mortes de Clarence e

Eduardo IV, consolida-se na corte como Lorde Protetor do Príncipe de Gales –

posição de confiança concedida pelo próprio rei moribundo.

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Deste modo, configura-se uma situação de inveja e disputa pelo “ouvido

régio”. Nesta disputa de influência na corte, polarizam-se Gloucester (último na

ordem de sucessão) e Elizabeth (com seus parentes parvenus). Por isso, quando

Eduardo IV manda prender Clarence por indução de Gloucester, este tenta culpar

a rainha Elizabeth e seus parentes por tal ação. No entanto, só tem sentido culpá-

los junto aos ouvidos interessados na derrocada dos parentes da rainha,

principalmente se guardam algum ressentimento ou desconfiança devido à posição

que desfrutam na corte. As figuras centrais na corte propensas a ouvir Gloucester

são: (1) William Hastings, Lorde Camarista inquebrantavelmente fiel à casa de

York, a Eduardo e a seus herdeiros, mas comicamente lento em perspicácia

política e ressentido em relação à rainha e seus parentes, pois acreditava378 que

eles o fizeram cair momentaneamente em desgraça junto ao rei, sendo levado

preso para a Torre, mas já aparece sendo libertado na primeira seqüência cênica

da peça, depois de um humilhante pedido de perdão; (2) Duque de Buckingham,

cuja casa principesca o colocava numa posição ambígua na guerra entre York e

Lancaster, ambicionando e explorando favores de qualquer um dos lados; (3)

Lorde Stanley (Conde de Derby), fiel servidor da Coroa e casado com uma

nobre proeminente, com quem tivera um filho.

A esposa de Lorde Stanley era a viúva de Edmundo Tudor (não mencionado

diretamente na peça), que fora elevado a Conde de Richmond por seu meio-irmão,

o rei Henrique VI. Nesse sentido, a Condessa de Richmond (mãe do futuro

Henrique VII, de quem Lorde Stanley era, portanto, padrasto) era vista com

desconfiança pela rainha Elizabeth. No entanto, deve-se considerar que, em

“Ricardo III”, a Condessa de Richmond não tem existência cênica, sendo apenas

mencionada duas vezes: (1ª) numa fala de Elizabeth na 2ª seqüência cênica, que

censura a sua arrogância através de Stanley, chamando a atenção para o fato de a

condessa não vir visitar a rainha (i.e., por não aceitar a sua hospitalidade e,

portanto, não mostrar deferência); (2ª) numa fala, na 16ª seqüência cênica, do

agora coroado rei Ricardo III, que desconfia que ela e Stanley pudessem ser

informantes do jovem Conde de Richmond. Ao meu ver, a menção à Condessa de

378Enfatizo a idéia de que Hastings acreditava no ocorrido porque não é claro, no movimento dramático, se ele e a rainha foram manipulados por Ricardo para desenvolverem animosidades recíprocas, ou se a animosidade entre eles precedia a qualquer manipulação de Ricardo, que, nesse sentido, não teria criado nenhum ódio, mas tão somente manipulado a seu favor o que já existia. O fato principal é que, até o momento de ser acusado de traição por Ricardo, Hastings acreditava ter a estima de Ricardo, tanto quanto de Clarence e Eduardo.

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Richmond serve para caracterizar o Conde de Derby como eminente servidor,

antes de tudo, da dignidade régia, que seria deformada em tirania sob o jugo de

Ricardo. Não sem sentido, ao final da peça, é Derby que retira do corpo de

Ricardo III a Coroa e entrega a Richmond, entronizando-o cenicamente como

Henrique VII.

Portanto, como caracteres cênicos na teleologia dramática, Hastings,

Buckingham e Derby têm lugares morais bem distintos. Hastings crê até o último

momento no amor de Ricardo e não acredita que pretenda fazer algum mal contra si ou

aos herdeiros de Eduardo, pois todo mal que experimentara até o momento viera,

aparentemente, da rainha e seus parentes. De qualquer forma, mesmo que uma ação

fosse perpetrada contra os herdeiros de Eduardo IV, o seu juramento de fidelidade e

proteção ao rei e seus descendentes viria antes de qualquer conluio ou conveniência

particular. No entanto, Hastings não deixa de se figurar como fanfarrão cênico ao

saborear a morte de Lorde Grey, Conde Rivers e Sir Thomas Vaugham, que haviam

sido subitamente presos por Ricardo e Buckingham quando formaram a comitiva que

deveria buscar o príncipe de Gales em Ludlow para a sua suposta coroação em Londres.

A situação de Hastings é progressivamente revestida de um suspense tragicômico à

medida que o leitor/audiência vai percebendo os sinais de que será a próxima vítima de

Ricardo. Mas Hastings, ao contrário do que sugere o seu nome, é comicamente lento: só

leva a sério os sinais de aviso que lhe são dados por Lorde Stanley (Conde de Derby)

quando já é tarde demais.

Na teleologia dramática de “Ricardo III”, em sua primeira aparição (2ª

seqüência cênica), Derby e Buckingham entram juntos em cena, sendo sugerido

que vieram de perto do rei para comunicarem as suas intenções de que fossem

cessadas todas as desavenças entre parentes e aliados da casa de York. Entretanto,

no decorrer da trama, eles divergem de caracteres: Buckingham torna-se um

espelho e aliado nada ingênuo da cobiça de Gloucester; por sua vez, Derby se

mantém como um espectador eqüidistante das facções intradinásticas até o

momento em que percebe que o próprio corpo político está em perigo e a dinastia

York condenada pelas ações desmedidas de Gloucester.

A seqüência discursiva dramática em que Derby e Buckingham ganham a sua

primeira existência cênica é a mesma em que a rainha Margaret – esposa do assassinado

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Henrique VI – aparece como uma “bruxa de maldições”379 contra todos da casa de York

e seus aliados, pressagiando o advento de Richmond. Nesta seqüência, estão em “palco”

todos os principais caracteres para o desenrolar da teleologia dramática; porém, depois

que Margaret entra na cena, não vemos mais qualquer fala de Derby, que não interpela

Margaret, sendo simplesmente “esquecido”. Isso não acontece com Buckingham que,

quebrando com sua neutralidade, entra em defesa dos York e, em especial, de Ricardo,

dizendo ceticamente que nenhuma maldição recairia sobre ninguém, que seriam

palavras sem valor, ventos. Nesse momento, Buckingham, até então elogiado por

Margaret por não ter o sangue dos Lancaster nas mãos, recebe a sua primeira marca

dramática identificadora de caracter, sendo amaldiçoado, tal como os demais presentes

(à exceção de Derby), nos seguintes termos:

Qu. M . What doest thou scorne me for my gentle coun-

And sooth the diuell that I warne thee from: ( sell, O but remember this another day, When he shall split thy very heart with sorrow, And say poore Margaret was a prophetesse: Liue each of you the subiects of his hate, And he to your, and all of you to Gods.380

Rainha Margaret. O quê! Tu me desprezas por conta de meu nobre conselho e suavizas o mal do qual te previno! Oh, apenas lembra disso, quando o dia chegar: Ele despedaçará teu nobre coração com aflição. E tu dirás: a pobre Margaret foi uma profetiza. Vivei cada um de vós como súditos de seu ódio, e ele do vosso, e todos do ódio divino! (Grifo meu)

Até o final desta seqüência discursiva dramática, é possível imaginar que

Buckingham acredita nas acusações de Ricardo de que a rainha Elizabeth e seus

parentes tramaram contra Clarence – posição dramática semelhante àquela de

Hastings e Derby – e que, por isso, enquanto o reino estivesse nas mãos deles,

ninguém estaria seguro em suas posições. No entanto, à medida que a trama se

desenrola, Buckingham revela-se, na verdade, um oportunista: é fiel apenas aos

seus próprios interesses, não mantém constância de lealdade aos Yorks (a

exemplo de Hastings) – já que, ao sentir o perigo, volta-se para o lado Tudor-

Lancaster, apoiando a entrada de Richmond na Inglaterra –, ou mesmo à

dignidade régia (a exemplo de Derby), já que ajudou um tirano sanguinário a

subir ao trono por meios moralmente condenáveis. Considerando tudo isso, penso

que há dois grandes momentos na teleologia dramática que moralizam a

caracterização cênica de Buckingham: (1) quando demonstra dúvida sobre o plano

379Em seu estudo sobre as manifestações religiosas e as crenças na Inglaterra dos séculos XVI e XVII, Keith Thomas afirmava que somente quando a parte injuriada era fraca demais para vingar-se é que se recorria ao substituto de apelar por uma vingança sobrenatural. Nesse sentido, as maldições eram empregadas pelos fracos contra os fortes, nunca o inverso. Considerando isso, podemos afirmar que o fato de Margaret ser figurada cenicamente como uma “bruxa maldizente” demonstrava o momento maior de decadência da Casa de Henrique VI. No entanto, isso também não deixava de ser ambíguo: nos escritos dos demonologistas, bem como nos processos legais dos séculos XVI e XVII, o êxito da maldição ou da praga verbal era tratado como uma forte suposição de bruxaria. Ver: THOMAS, Keith. Religião e o Declínio da Magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. pp.411-414 380SIMS, Valentine; WISE, Andrew. The Tragedy of King Richard the third. London: Sims-Wise, 1597. p.21

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de Ricardo – já coroado rei – de assassinar os sobrinhos confinados na Torre (16ª

seqüência cênica); (2) quando faz seu último discurso, antes de ser decapitado

(20ª seqüência cênica).

Se avaliarmos Buckingham prospectivamente, a sua aproximação a Ricardo

torna-se, na verdade, um encontro de semelhanças imorais, mas com uma sutil

diferença de caracterização: o Duque de Buckingham é um homem de posição

eminente que, como tantos outros, recai no mal devido à cobiça; o Duque de

Gloucester é o próprio mal que não reconhece limites, que desfigura, se for

necessário para seu projeto de poder, qualquer honra estamental, lei de

precedência e deferência. A diferença entre Gloucester e Buckingham advém

justamente na 16ª seqüência cênica, em que o agora rei Ricardo III quer que

Buckingham encomende o assassinato dos filhos de Eduardo confinados na Torre.

Ao ouvir tal demanda do novo rei, o perspicaz Buckingham finge inicialmente não

entender, o que irrita Ricardo. Por fim, Buckingham pede para tomar um “fôlego”,

saindo de cena. Nesse átimo, Ricardo contrata os serviços de Sir James Tyrrel,

que se apresenta como “the most obedient subiect” (“o mais obediente súdito”) –

i.e., o oposto de um Buckingham que, exitante, precisa de “fôlego”.

A dúvida – e, portanto, a existência de alguma consciência a pôr limites nas

vilanias – é central na re-humanização dramática de Buckingham, pois, deste

momento em diante, o espelho imoral entre ele e Ricardo está quebrado. Contudo,

a ambigüidade cênica de Buckingham permanece, pois, quando volta ao “palco”,

ele cruza com Sir James Tyrrel, sem saber que este está saindo para encomendar o

assassinato dos “inocentes”, e aproxima-se de Ricardo, dizendo:

Buck. My lord, I haue considered in my mind, The late demand that you did sound me in.381

Buck. Meu lorde, eu considerei, em minha consciência, a última demanda que vossa senhoria colocou para mim. (Grifo meu)

Como a sua fala é cortada por Ricardo, que responde com um indiferente

“deixa passar”, isso cria um efeito de suspense: Buckingham seria ou não capaz

de ultrapassar todos os limites? Mas Buckingham desconfia da indiferença de

Ricardo sobre tal assunto e, por isso, testando o grau de desagrado do novo

monarca, insiste no assunto relativo às terras que lhe prometera quando se

tornasse rei. Como Ricardo responde que não estava, naquele momento, com a

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“veia da generosidade”, Buckingham percebe que poderia ter o mesmo fim que

ajudara o tirano dar a Hastings, Grey ou Rivers. Assim, foge da corte e migra para

o lado de Richmond. Portanto, não é um senso de que Richmond seria a

encarnação adequada da dignidade régia que motiva Buckingham a ser o seu

aliado, mas sim o fato de a tirania de Ricardo ter se tornado uma ameaça a seus

próprios interesses. Deste modo, Buckingham descobre que ninguém pode

controlar Ricardo, que um tirano-demônio pode fazer de um duque o seu valete

descartável. Enfim, considerando tudo isso, a teleologia moral da peça não

reservaria um final feliz para Buckingham – a sua trajetória dramática deveria

servir como uma lição moralizante, que antecipa aquela de Ricardo: através de

ações e escolhas moralmente condenáveis, os seus planos pessoais de poder

malogram e, assim, realizam dramaticamente a tese moral de que a traição nunca

prospera.

A morte de Buckingham é o outro grande momento cênico de exposição de

um pathos trágico fortemente moralizante. Durante a guerra entre Ricardo e

Richmond, Buckingham é preso pelos homens de Ricardo e conduzido para a

decapitação. No momento derradeiro, resume a sua vilania de um modo que

explicita a teleologia moral que o caracteriza dramaticamente. Trata-se de uma

espécie de última confissão para o “leitor/audiência”. Ao fazer isso, se

lembrarmos que a sua primeira aparição foi ao lado de Derby – quando trazia a

mensagem do rei sobre a necessidade de haver paz dentro da casa dos York –,

notamos então que é por pura conveniência que aceita os argumentos de Ricardo

sobre as responsabilidades da rainha (e seu parentes) no assassinato de Clarence,

diferentemente do crédulo Hastings. Afinal, com a morte de Eduardo e Clarence,

que chances Buckingham teria de benefícios numa corte em que o rei fosse um

jovem infante cercado pelos parvenus apaniguados de sua mãe?

Nesse sentido, observando a teleologia dramática de Buckingham,

percebemos que jamais pretendera proteger os descendentes de Eduardo ou tinha

intenção de ajudar numa conciliação que, na prática, beneficiaria principalmente

Elizabeth e sua parentela. Por tudo isso, antes de morrer, Buckingham confessa ao

“leitor/audiência” que, hipocritamente, havia jurado paz e fidelidade perante

Eduardo e Elizabeth. E, agora, perseguido por quem ajudou a pôr no trono, estava

tendo um fim mais do que merecido: Deus jogara sobre ele o efeito verdadeiro

381SIMS, Valentine; WISE, Andrew. The Tragedy of King Richard the third. London: Sims-Wise, 1597. p.66

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daquilo que havia jurado hipocritamente, qual seja, morrer vítima da traição de

um amigo se traísse a confiança do rei, da rainha e dos seus parentes.

Nos séculos XVI e XVII, multiplicaram-se na Inglaterra as queixas de

perjúrio, assim como houve sucessivas regulamentações sobre este tema, o que

atesta a ausência de qualquer penalidade secular adequada contra tal delito. Como

notara Keith Thomas, um dos efeitos da Reforma na Inglaterra foi minimizar o

papel dos castigos sobrenaturais na vida cotidiana. Com isso, também diminuiu o

medo da vingança sobrenatural quando se quebrasse um juramento ou se jurasse

falsamente. A tendência geral foi transferir o medo da punição divina para o senso

interno de responsabilidade do homem pio382.

Considerando isso, a fala final de Buckingham é ambígua: se, por um lado,

mostra-se piamente responsável e consciente de que foram as suas escolhas

viciosas que o conduziram a um triste fim; por outro lado, passa do arrogante

ceticismo demonstrado contra Margaret (2ª seqüência cênica) para um resoluto

reconhecimento da força de suas maldições e da punição divina por seus falsos

juramentos de fidelidade (20ª seqüência cênica). Além disso, é plausível afirmar

que o texto da peça também sobrepõe, na fala final de Buckingham, questões

teológicas da consciência reformada à exigência moral da tradição poética

aristotélico-horaciana de que o vício seja punido e a virtude exaltada numa trama

trágica383. Vejamos, agora, o último discurso de Buckingham, em que

experimenta o aprendizado moral de que a traição nunca prospera, de que erro

apenas produz erro:

Buck. Whie then Alsoules day, is my bodies domesday: This is the day, that in king Edwards time, I wisht might fall on me, when I was found, False to his children, or his wiues allies: This is the day, wherein I wisht to fall, By the false faith, of him I trusted most: This, this Alsoules day, to my fearefull soule, Is the determind respit of my wrongs : That high al-seer, that I dallied with, Hath turned my fained prayer on my head, And giuen in earnest what I begd in iest. Thus doeth he force the swordes of wicked men, To turne their owne pointes, on their Maisters bosome: Now Margarets curse, is fallen vpon my head, When he quoth she, shall split thy hart with sorrow. Remember, Margaret was a Prophetesse, Come sirs, conuey me to the blocke of shame, Wrong hath but wrong, and blame the dew of blame.384

Buck. Pois, então, o Dia de Finados é o Dia do Juízo Final385 de meu corpo. Este é o dia em que, no tempo de Eduardo, eu desejei que caíssem poderosos sobre mim, quando eu fosse encontrado, os efeitos da falsidade contra seus filhos ou contra os aliados de sua esposa. Este é o dia em que desejei morrer pelo efeito de falso juramento daquele que eu mais confiasse. Este, este Dia de Finados é, para meu temeroso espírito, o resoluto alívio de minhas ofensas. Aquele que tudo vê, com quem brinquei, voltou minha prece fingida contra minha cabeça, devolvendo sério o que pedi de brincadeira. Assim, ele força as espadas dos homens

382THOMAS, Keith. Religião e o Declínio da Magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. pp.67-68 383CARLSON, Marvin. Teorias do Teatro. São Paulo: UNESP, 1997.pp.21-28 384SIMS, Valentine; WISE, Andrew. The Tragedy of King Richard the third. London: Sims-Wise, 1597. p.82 385“Doomsday” em inglês contemporâneo, expressão utilizada na Inglaterra desde o século XII.

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perversos voltarem as suas próprias pontas contra o peito de seus Mestres. Agora, a maldição de Magaret cai sobre minha cabeça, quando ela dizia: “Despedaçarás teu coração com aflição. Lembra que Margaret foi uma profetiza”. Vamos, senhores, levem-me para o talho infamante. Erro apenas produz erro, e culpa lágrimas de culpa.

Em contraste com Buckingham, durante todo o movimento dramático da

peça, o Conde de Derby é um nobre servidor da dignidade régia, conseguindo

atravessar quase incólume pelas intempéries políticas. Como sabemos, a sua

primeira aparição cênica é ao lado de Buckingham, trazendo notícias do

moribundo Eduardo IV, que pretendia instaurar a paz em sua ‘Casa’. É neste

momento que Derby ouve de Elizabeth uma censura à sua esposa, por se portar

arrogantemente com a rainha. Nesta seqüência dramática, entra Ricardo,

ofendendo Elizabeth e seus parentes, que são acusados de “tramarem” a prisão de

Clarence tal como “tramaram” a de Hastings, o que é, obviamente, negado pelas

partes acusadas. Nesta configuração cênica, estão todos o personagens (aliados e

rivais) que ouvirão, surpresos, a maldição de Margaret, que subitamente

interrompe as suas discussões com a sua aparição sombria, provocando entre eles

uma efêmera unidade contra este “espírito do passado”. Tal como o

“leitor/audiência”, Derby é cenicamente colocado como espectador da autofagia

da casa de York e, diferentemente de Buckingham, não toma partido e não é

incluído nas maldições de Margaret.

Deste modo, desde a sua primeira aparição, Derby adquire uma marca

dramático-moral que o diferencia de Buckingham. Por isso, ao final 2ª seqüência

cênica, depois que todos saem e Ricardo fica momentaneamente sozinho, a sua

afirmação de que manipulará a credulidade de Hastings, Derby e Buckingham

deve ser medida conforme os caracteres morais de cada um deles no enredo:

Buckingham acredita no que lhe convém; Hastings é um crédulo idiota e

ressentido contra Elizabeth e seus parentes; e Derby, como poderemos notar, é um

silencioso observador que terá importância estratégica na história à medida que

desconfiar das mudanças súbitas de humor de Ricardo em relação aos seus

próprios parentes e aliados. Isso pode ser medido por outra situação, central para o

desenrolar da trama, em que Derby está inicialmente ausente: trata-se da 4ª

seqüência cênica, em que ocorreria o juramento pelo fim dos ressentimentos

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entre os membros da casa de York e seus servidores, que sucede aquela em que

ocorrera o assassinado de Clarence na Torre. Portanto, quando a 4ª seqüência

cênica se inicia, somente Ricardo sabe que Clarence está morto. Vou reapresentá-

la agora à luz do meu interesse de demonstrar as questões analíticas que levanto a

respeito da caracterização dramática de Derby na teleologia moral da peça.

Vejamos:

(1) Perante o rei Eduardo, estão: Hastings, Buckingham, a rainha Elizabeth e seus parentes. No caso dos parentes da rainha, aparecem com falas o Conde de Rivers e o Marquês de Dorset – portanto, não há fala para Lorde Grey, mas é possível supor a sua existência dramática, já que a didascália inicia a cena deste modo: “Enter King, Queene, Hastings, Ryuers, Dorcet, &c.”. Os caracteres centrais para a trama possuem fala nesta seqüência dramática: o rei reconcilia Hastings e Rivers (responsável direto pela prisão de Hastings, segundo a fala de Ricardo na 1ª seqüência cênica da peça), Hastings e Elizaberth e, por fim, pede para Buckingham se unir ao abraço de conciliação. É neste momento que Buckingham jura falsamente que deveria ser traído por um amigo caso traísse o rei, a rainha e os seus parentes. (2) Feitas as conciliações preliminares, Eduardo sente falta de Ricardo, que entra em cena como um fator de desestabilização do juramento de paz. Inicialmente, finge querer uma paz verdadeira com a rainha e seus parentes, que aparentemente aceitam as suas intenções como sinceras. Feito isso, a rainha fala da necessidade de libertar o “brother Clarence” para que a nova aliança fosse completa. Isso é a deixa para Ricardo lançar à face de todos a sua fala bombástica: Glo. Why Madame, haue I offred loue for this,

To be thus scorned in this royall presence? Who knowes not that the noble Duke is dead, You doe him iniury to scorne his corse.386

Glo. Por que, Senhora, eu oferto amor por isso para ser assim ofendido nesta régia presença? Quem não sabe que o nobre Duque está morto? Vós o injuriais ao ofender o seu corpo.

(3) Todos são tomados pela palidez da surpresa, mas é o rei que sente a dor mais profundamente, pois diz ter enviado uma contra-ordem que deveria ter anulado os efeitos da ordem anterior. Deste modo, prospectivamente, ficamos sabendo que o plano de Ricardo de assassinar Clarence dá certo justamente porque ele age no interstício das ordens régias387. Além disso, valendo-se de um diabólico engenho discursivo, para mortificar o rei com a culpa, mas sem perder a deferência na sua presença, Ricardo joga para o acaso o fato de a segunda contra-ordem de Eduardo não ter chegado em tempo hábil, mas lembra que foi o próprio rei que enviou a primeira ordem:

Glo. But he poore soule by your first order died,

And that a wingled Mercury did beare, Some tardy cripple bore the countermaund, That came too lag to see him buried: God grant that some lesse noble, and lesse loyall, Neerer in bloudy thoughts, but not in bloud: Deserue not worse then wretched Clarence did,

And yet go currant from suspition.388

Glo. Mas ele, pobre alma, morreu pelo efeito de vossa primeira ordem dada. E aquele Mercúrio alado que a portava tornou-se, para a contra-ordem, um tão lento aleijado que chegou muito tarde, vendo-o enterrado. Deus permita que alguém menos nobre e menos leal, mais próximo de pensamentos sanguinários do que de sangue, não mereça desventura pior do que aquela do infeliz Clarence, e que ainda não seja por suspeitas arrolado.

(4) Depois da revelação de Ricardo, o Conde de Derby entra em cena. Alheio ao clima das revelações feitas nesta seqüência cênica, a sua entrada quebra, momentaneamente, a tensão dramática – e seu motivo é totalmente prosaico: pelos muitos serviços prestados ao rei

386SIMS, Valentine; WISE, Andrew. The Tragedy of King Richard the third. London: Sims-Wise, 1597. p.32 387Isso também explica porque os assassinos contratados por Ricardo portam uma carta que diz que Brackenbury, lugar-tenente da Torre, deveria deixar Clarence aos seus cuidados, assim como permite explicar o motivo de os assassinos fingirem, perante Clarence, seguir ordens do rei Eduardo e, somente depois, assumem seguir ordens expressas de Ricardo. 388SIMS, Valentine; WISE, Andrew. The Tragedy of King Richard the third. London: Sims-Wise, 1597. p.32

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(nesta altura, cheio de dor e culpa pela morte de Clarence), Derby insiste em ter a sua atenção para que fosse concedida uma graça a um de seus servidores, que tinha matado, numa briga, um cavalheiro turbulento que entrara recentemente ao serviço do Duque de Norfolk389.

Portanto, Derby não participa das facções em conflito, caso contrário deveria

estar participando da cena do juramento desde o início. A sua entrada na cena do

juramento é motivada por fatores alheios ao pathos trágico que se desenhou depois da

revelação de Ricardo. No entanto, o teor do pedido de Derby é a deixa necessária para

que Eduardo – ainda impactado com as revelações de Ricardo – saia momentaneamente

do torpor e dirija uma censura a todos e a si mesmo, por ter apagado da memória os

méritos de Clarence ao se deixar levar por uma fúria insensata390:

Kin. Haue I a tongue to doome my brothers death, And shall the same giue pardon to a slaue? My brother slew no man, his fault was thought, And yet his punishment was cruell death. Who sued to me for him? who in my rage, Kneeld at my feete and bad me be aduisde? Who spake of Brotherhood? who of loue? Who told me how the poore soule did forsake The mighty Warwicke, and did fight for me: Who tolde me in the field by Teuxbery, When Oxford had me downe, he rescued me, And said deare brother, liue and be a King? Who told me when we both lay in the field, Frozen almost to death, how he did lappe me Euen in his owne garments, and gaue himselfe All thin and naked to the numbcold night?

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Podemos observar no último discurso de Eduardo IV, a exemplo do estudo de

Norbert Elias sobre o comportamento curial, elementos característicos da

economia cortesã das mercês e de sua forma específica de constituição de

clientelas políticas394; assim como, o quanto o jogo estamental de disputas pelo

acesso aos “ouvidos do rei” cria um paradoxo incessante para a prática eficaz da

clarividência régia395. Nesse sentido, de modo exemplar, Eduardo IV experimenta

na própria carne o lado perverso do comportamento curial e as inconveniências

políticas de sua própria “grandeza social”396. Além disso, relacionado a este tema,

podemos observar que Eduardo IV é discursivamente figurado como um

‘Hercules furens’ senequiano, pois a sua própria grandeza de força impede que

qualquer instância humana possa efetivamente conter os efeitos destrutivos de seu

comportamento quando é levado pela ira ou pela desconfiança desmedida397.

Portanto, Eduardo IV não pode censurar os seus servidores e parentes sem

primeiro censurar a si mesmo.

É justamente como um ‘Hercules furens’ que Eduardo IV volta-se,

selvagemente, contra a sua própria carne, ou seja, aquela “parte de si” que, desde

a batalha de Tewkesbury, devotara-lhe fidelidade e a mais nobre afeição. Deve-se

também considerar que Ricardo, desde a sua primeira fala de abertura na peça, diz

ter provocado a desgraça de Clarence junto a Eduardo IV por meios de “profecias

desvairadas, libelos e sonhos”. Ora, sob um olhar reformado e oficial elizabetano,

dar ouvido a sonhos e profecias para agir politicamente não torna menos

censurável a fraqueza moral ou a furiosa perda de discernimento no fictício

Eduardo IV.

Afinal, como notara Keith Thomas, a maioria dos escritores mais requintados

dos séculos XVI e XVII desprezava as profecias. Aliás, durante a primeira sessão do

Parlamento sob o reinado [1485-1509] de Henrique VII (1457-1509), todos os tipos de

profecias tinham sido classificados como crime, mas foram Henrique VIII (1491-1547)

e seus sucessores que tomaram medidas mais firmes contra qualquer tipo de profecia

393Dada a possibilidade de erro tipográfico e devido à aproximação fonética, tendo a pensar que “defaste” é “defac'd” (tal como no fólio de 1623). Tenho como hipótese o seguinte sentido de deslocamento fonético-tipográfico: “defaste” � “defaset” � “defacet” � “defaced”. 394ELIAS, Norbert. Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 395Ver: BERCÉ, Yves-Marie. O Rei Oculto: Salvadores e Impostores – Mitos Políticos e Populares na Europa Moderna. São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo/EDUSC, 2003.pp.249-285 396MONTAIGNE, Michel. “Dos Inconvenientes das Grandezas”, cap.VII, liv.III. In Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1972. pp.419-421 397Ver como Robert Miola trata esta recorrência temática em “Otelo”: MIOLA, Robert S.. “Othello Furens”. Shakespeare Quartely, volume 41, 1990(1):pp.49-64

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política: uma lei de 1541-2 declarava como criminosas todas as pessoas que buscassem

prever o futuro daqueles que tinham certos animais em seus símbolos heráldicos, assim

como fazer profecias a partir das letras em seus nomes; esta lei foi revogada em 1547,

porém, em 1549, no início do curto reinado [1547-1553]

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conclui a 4ª seqüência cênica – o que demonstra que o “juramento de paz” não

teve valor nenhum – e dirige-se a Buckingham, perguntando se não havia notado a

palidez dos parentes da rainha diante da notícia da morte de Clarence. Ricardo

pretende que Buckingham não tire de tal palidez um sinal de espanto, mas sim um

sinal de culpa. Deste ponto em diante da trama, Buckingham e Ricardo trabalham

juntos contra os parentes da rainha e contra a sucessão dos herdeiros de Eduardo

ao trono. No entanto, deve-se notar um detalhe central de materialidade textual:

embora não haja dúvida de que Ricardo se dirige a Buckingham ao final da 4ª

seqüência cênica, não aparece na edição de 1597 nenhuma fala do duque como

resposta às indagações de Ricardo, o que cria um efeito mais prolongado de

suspense sobre o caminho que Buckingham tomaria na trama.

De qualquer forma, com ordens diferentes de entrada para os personagens e

com configuração de papéis cênicos bem distintos, a 4ª seqüência cênica é a

segunda vez em que Derby e Buckingham adquirem existência cênica. A partir de

então, os seus papéis dramáticos começam a distingui-los em caracterização

moral: Buckingham revelaria aos poucos a sua vilania, enquanto Derby

permanece um espectador eqüidistante dos conflitos intradinásticos e

interdinásticos, até que a coroação de Ricardo o faz pensar numa alternativa

dinástica não yorkista para a encarnação da dignidade régia. Contudo, penso que

aquilo que define a ação de Derby contra Ricardo não é o fato de este ter

conseguido o trono através do crime. Afinal, durante a Guerra das Duas Rosas,

conseguir o trono através de atos criminosos não foi algo exclusivo de Ricardo ou

da casa de York. No entanto, o que diferencia Ricardo é justamente o fato de

representar uma força demoníaca completamente avessa a um senso contratual de

adequação comportamental e de previsibilidade de ação do indivíduo no seio das

instituições, sem o qual não podem emergir as condições comportamentais que

configuram uma forma estatal de sociedade402.

Para testar a minha hipótese sobre o caracter de Derby na sua relação com

Ricardo, gostaria de citar um referente textual conhecido na época de Shakespeare

e que considero servir como paralelo analítico para a trama de “Ricardo III”. No

capítulo VIII de “O Príncipe”(1513), Maquiavel (1469-1527) trata dos

principados conquistados através do crime e, mais detidamente, apresenta o

402Ver: ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, 2 vols.. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

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exemplo de Agátocles de Siracusa, tentando explicar como conquistou e

conservou os seus domínios. Assim, começa descrevendo que

“Agátocles Siciliano tornou-se rei de Siracusa, sendo não só de impura mas também de condição abjeta. Filho de um oleiro, teve sempre vida criminosa na sua mocidade. Acompanhava as suas maldades de tanto vigor de ânimo e de corpo que, ingressando na milícia, chegou a ser pretor de Siracusa... Neste ponto, deliberou tornar-se príncipe e manter, pela violência e sem favor de outros, aquele poder que lhe fora concedido por acordo entre todos. Acerca deste seu desígnio, entendeu-se com Amílcar, cartaginês que estava com seus exércitos na Sicília e, certa manhã, reuniu o povo e o Senado de Siracusa, como se ele tivesse de consultá-los sobre negócios públicos. E a um sinal combinado, fez que seus soldados matassem os senadores e todos os homens mais ricos da cidade. Mortos estes, apoderou-se do governo daquela cidade e o conservou sem nenhuma hostilidade por parte dos cidadãos (...). Ainda que se possa considerar ação meritória [do ponto de vista do êxito na conquista de um principado] a matança de seus concidadãos, trair os amigos, não ter fé [i.e., não manter a palavra empenhada], não ter piedade nem religião, com isso pode-se conquistar o mando, mas não a glória (...). A sua bárbara crueldade e desumanidade e os seus inúmeros crimes não permitem que seja celebrado entre os mais ilustres homens da História. Não se pode, pois, atribuir à fortuna ou ao valor aquilo que ele conseguiu sem uma e sem outro(...)”403.

Malgrado as suas ações pouco gloriosas, Agátocles conseguiu viver

tranqüilamente em seu principado, sem revoltas internas e sem assaltos de forças

externas. Para explicar este aparente paradoxo, Maquiavel argumenta:

“Poderia alguém surpreender-se pelo fato de que Agátocles e semelhantes, depois de tantas traições e crueldades, pudessem viver tranqüilamente e a salvo em sua pátria, e defender-se dos inimigos externos e de que os cidadãos não conspirassem contra eles – considerando-se tanto mais que muitos outros não puderam, por sua crueldade, conservar o mando, nem nos tempos de paz, nem nos tempos duvidosos de guerra. Creio que isto seja conseqüência de serem as crueldades mal ou bem praticadas. Bem usadas se podem chamar aquelas (se é que se pode dizer bem do mal) que são feitas, de uma só vez, pela necessidade de prover alguém à própria segurança, e depois são postas à margem, transformando-se o mais possível em vantagem para os súditos. Mal usadas são aquelas que, ainda que a princípio sejam poucas, em vez de extinguirem-se, crescem com o tempo. Aqueles que observam a primeira destas linhas de conduta podem, com a ajuda de Deus e dos Homens, encontrar remédio às suas conseqüências, como aconteceu com Agátocles. Aos outros é impossível manter-se...”404

Ora, com exceção dos infantes assassinados na Torre e de Richmond (o bem

que vem de fora do corrompido corpo político), dificilmente pode-se dizer que

haja inocentes na Inglaterra depois de vários ciclos de guerras entre Lancaster e

York. No entanto, Ricardo extrapola todos os limites do pragmatismo político:

como dois Agátocles cênicos figurados desde a peça “Henrique VI”(1594-1595),

os fictícios Eduardo IV e Ricardo III da peça “Ricardo III”(1597) alcançaram os

seus reinados através de muitos atos de crueldade, traição e astúcia sorrateira;

porém, diferentemente de Agátocles ou mesmo de Eduardo IV, Ricardo III não

transformou o seu êxito pessoal em benefício para seus súditos, o que tornava – se

aplicarmos a ele os mesmos argumentos de Maquiavel para Agátocles –

403MAQUIAVEL, Nicolau. “Capítulo VIII: Dos que alcançaram o principado pelo crime”. In O Príncipe. São Paulo: Abril Cultural, 1973. pp.41-42 404MAQUIAVEL, Nicolau. “Capítulo VIII: Dos que alcançaram o principado pelo crime”. In O Príncipe. São Paulo: Abril Cultural, 1973. pp.43-44

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injustificáveis todas as suas traições e crimes do passado. Assim, como Ricardo

desfigura a dignidade régia, Derby é cuidadosamente figurado na peça como um

personagem que sorrateiramente deve trair Ricardo para preservar a estabilidade

funcional da instituição monárquica. Aos olhos do “leitor/audiência”, tudo é

figurado como se fosse um golpe palaciano justificável contra um tirano. Portanto,

o golpe de Derby contra Ricardo é uma ação de um “grande do reino” que trai um

“cascalho moral e sanguinário” que não soube encarnar adequadamente a

dignidade régia e preservar o bem comum. Em outras palavras, Derby trai o

indivíduo Ricardo, mas não a dignidade régia. De qualquer forma, a ação de

Derby é moralmente paradoxal, mas se trata de um paradoxo que, desde

Maquiavel, é cada vez mais reconhecido como inevitável nas matérias do Estado.

Desde o século XIV, uma tipologia platônica das virtudes cardeais endossava

a tese ortodoxa humanista de que as virtudes cardeais não teriam bom efeito

prático se não estivessem completadas e sustentadas pela infusão das virtudes

cristãs. Nesses termos, em matéria de governo, as virtudes da Razão, Justiça e

Eqüidade apenas teriam efeitos civis benéficos se fossem indissociadas de

Religião, Piedade, Graça e Verdade. Em termos gerais, todas elas estariam

implicadas na disposição de o príncipe virtuoso dedicar tempo e energia em agir

para o bem comum da corporação política. Ora, Maquiavel não questiona que o

príncipe deva ter como fim maior o bem comum da corporação política, mas

destoa da tradição humanista platônica ao pensar que as virtudes não teriam

potência intrínseca para criar efeitos políticos necessariamente benéficos para a

edificação de um Estado. Por isso mesmo, o exemplo de Agátocles serve para

Maquiavel contundentemente demonstrar que resultados politicamente benéficos

para os súditos poderiam também advir de práticas políticas que seriam

comumente consideradas viciosas: astúcia sorrateira, traição, assassinato,

impiedade e trapaça. Assim, do ponto de vista das práticas políticas de edificação

do Estado, o vínculo do poder soberano com as virtudes cardeais e infundidas não

poderia ser essencial, mas circunstancial, posto que tudo que está relacionado à

paradoxal condição humana é mesclado de bem e mal, o que serve indiretamente

para lembrar a infinita distância e a dependência da razão humana em relação à

graça divina.

Deste modo, a concepção de virtù em Maquiavel acabava por romper com a

tradição aristotélico-tomista que pensava haver uma tendência espontânea da

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razão humana para a vida social e o bem. Ora, numa perspectiva reformada, esta

“falha essencial” ou “espaço infinito” entre a perfeição moral divina

(transcendência) e a razão humana na esfera intramundana (imanência)

somente poderia ser preenchida pela graça divina405, que se manifestaria tanto

através da revelação direta à consciência (iluminação) quanto através da

providência. Neste último caso, Deus infundiria nos homens, através de

circunstâncias-teste ou provações, a necessidade instrumental de imitar a

capacidade divina de criar formas, limites e reciprocidades hierárquicas para si

mesmos e para a matéria do mundo. Aliás, é revestido de particular significado o

fato de a mente reformada dos séculos XVI e XVII dar uma importância muito

especial para as “Epístolas Paulinas”, pois nelas observamos a recorrência da

figuração do Diabo como um “cão infernal” cujas rédeas estariam no controle de

Deus e, deste modo, poderia ser entendido não tanto como uma força autônoma e

concorrente com Deus, mas como um dispositivo ambíguo de punição divina e de

teste de fé, da retidão moral e da constância humoral406.

Portanto, é a partir desta mesma “falha essencial” que se justificaria

teologicamente o papel instrumental das instituições sociais e políticas de conter a

perversidade humana, mas também explicaria o seu intrínseco paradoxo: para

preservarem a constância, a busca ou o apetite instrumental pelo bem não

poderiam excluir o teste da virtude, o despertar da consciência ou a punição

através do mal. Assim, pensadas como dispositivos de contenção da soberba ou

da fantasia de auto-suficiência excessiva desta mescla de malignidade e

benignidade que é o homem, as dignidades institucionais nunca estariam

completamente livres das purgações demoníacas, pois justamente lembram ao

homem a sua vulnerabilidade ao mal e a sua dependência em relação aos seus

semelhantes (para o êxito social na esfera intramundana) e em relação à graça

divina (para o êxito moral de inclusão na esfera extramundana). Assim, todos

devem estar atentos a esta possibilidade de assalto do mal para, através da vigília

permanente da consciência, tentarem sempre evitar o descontrole do mal sobre si,

sobre seus semelhantes e sobre as instituições.

405Ver análise interessante deste tema em: DIEHL, Huston. “Infinite Space: Representation and Reformation in Measure for Measure”. Shakespeare Quartely, volume 49, 1998(4): pp.393-410 406Ver: CALVIN, John; KNOX, John; FOXE, John et alii. The Bible and Holy Scriptvres conteyned in the Olde and Newe Testament. Geneva: Rovland & Ali, 1560.pp.1092-1129

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3.4. A Deformação Diabólica do Paradoxo Moral do Estado

Em sentido diabólico, as metáforas conceituais do “proteu” e do “camaleão”,

recorrentes na figuração dramática de Ricardo III, representam o oposto da idéia de

estabilidade de forma das instituições, o que é necessário para a configuração estatal

dos vínculos sociais e políticos. No entanto, do ponto de vista da moral acomodatícia da

Razão de Estado, estas mesmas metáforas também poderiam representar algo benigno

para a formação do Estado (Universitas) no Antigo Regime: a idéia – cara a Maquiavel

– de que um soberano deve estar atento às circunstâncias para moldar as suas ações

conforme as especificidades de pessoas sociais ou morais, de costumes e de privilégios

dos lugares. Nesses termos, ser um “proteu” ou um “camaleão” seria um procedimento

fundamental para que um soberano pudesse, no mundo sócio-político do Antigo

Regime, gerar ou manter periodicamente a reciprocidade hierárquica no interior da

Universitas. Logo, em certa medida, a figuração dramática de Ricardo III expõe a

extrapolação demoníaca da casuística político-jurídica específica das instituições do

Antigo Regime. Então, o ponto central a ser moralmente avaliado é se a “maleabilidade

protéica” (senso de ocasião ou sprezzatura) dos governantes está ou não a serviço do

bem comum e da preservação da estabilidade funcional das instituições.

Se na forma e finalidade de uso de uma dignidade institucional pode haver um

efeito potencial tanto de benignidade quanto de malignidade, Ricardo pende a balança

do pharmacon institucional para a última opção, moldando os efeitos de seu uso em

conformidade com a sua deformação (hu)moral. Em outras palavras, ele adequa a

instituição ao seu humor, em vez de domar o seu humor para se adequar à dignitas da

instituição. Ora, a expectativa moral de que o indivíduo deveria adequar o seu substrato

físico-moral às dignidades institucionais é um medidor cultural importante para se

perceber o grau de despersonificação das instituições de uma época e lugar – e, no final

das contas, possibilita justificar a sua perpetuidade sucessiva mesmo quando mal

encarnadas ou encarnadas pelo mal.

Portanto, o advento cênico de Ricardo explora dramaticamente a “deformação

diabólica” da virtù maquiavélica, uma vez que a consciência configuradora do texto da

peça confere a Ricardo a representação hiperbólica de uma individuação masculina

jovem, sorrateira, astuta, socialmente eminente, mas politicamente desregrada e

completamente desviada de qualquer princípio de utilitas totius regini 407. No entanto,

407Ver: MOULTON, Ian Frederick. “A Monster Great Deformed: The Unruly Masculinity of Richard III”. Shakespeare Quartely, volume 47, 1996(3): pp.251-268

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não se deve perder de vista que o caracter de Ricardo é tão somente um subproduto

direto de anos de exposição ao mecanismo de “apetite e fuga” da guerra civil entre as

casas Lancaster e York. Contudo, diferentemente dos outros personagens da peça, a

Ricardo é dada uma intrínseca e indelével deformidade físico-moral que o “impede” ou

“impele” a jamais se conformar efetivamente à paz civil. Afinal, devido à sua alegada

deformidade, não poderia desfrutar das afeminantes paixões sexuais de uma vida de paz

na mesma medida que seus demais parentes. Na cena de abertura da peça, a sua ameaça

à ordem pública é exposta conscientemente como uma forma de sublimação de sua

agressividade sexual, que apenas pode se efetivar através da guerra e da intriga política.

Isso é confessado através da sua descrição irônica e invejosa da vida e do

comportamento curial, assim como pela exposição de suas intenções de alimentar novos

faccionismos políticos:

Enter Richard Duke of Glocester solus. Entra sozinho Ricardo, Duque de Gloucester.

N

Ow is the winter of our discontent, Made glorious summer by this sonne of Yorke: And all the cloudes that lowrd vpon our house,

In the deepe bosome of the Ocean buried. A

gora é o inverno de nosso descontentamento, tornado verão glorioso por este filho de York.408 E todas as nuvens que ameaçavam nossa casa estão no seio profundo do Oceano sepultadas.

Now are our browes bound with victorious wreathes, Our bruised armes hung vp for monuments, Our sterne alarmes changd to merry meetings, Our dreadfull marches to delightfull measures. Grim-visagde warre, hath smoothde his wrinkled front, And now in steed of mounting barbed steedes, To fright the soules of fearefull aduersaries, He capers nimbly in a Ladies chamber, To the lasciuious pleasing of a loue. But I that am not shapte for sportiue trickes, Nor made to court an amorous looking glasse, I that am rudely stampt and want loues maiesty, To strut before a wanton ambling Nymph: I that am curtaild of this faire proportion, Cheated of feature by dissembling nature, Deformd, vnfinisht, sent before my time Into this breathing world scarce halfe made vp, And that so lamely and vnfashionable, That dogs barke at me as I halt by them: Why I in this weake piping time of peace

Agora estão nossas frontes marcadas pela coroa da vitória, nossos armas amolgadas estão penduradas pelos muros, nossas austeras alvoradas transformadas em felizes encontros, nossas temerosas marchas em deleitosos compassos. O rosto carrancudo da guerra suavizou as suas rugas e agora, em vez de montar corcéis armados para aterrorizar os ânimos de temerosos adversários, ele pula agilmente num quarto de dama para os lascivos prazeres de um amor410. Mas eu, que não sou talhado para jogos de sedução ardentes411, nem feito para cortejar uma imagem amorosa... Eu, que sou grosseiramente delineado e da majestade do amor carente para exibir-me perante uma Ninfa lasciva e lânguida... Eu, que sou desprovido de bela proporção, trapaceado em beleza pela dissimulada natureza, deformado, inacabado, nascido antes do prazo, quase feito pela metade – tão malfeito e inadequado412

408Do ponto de vista do projeto tipográfico da edição de 1597 da peça, há uma constância na forma de grafar e diferenciar filho (sonne) de sol (sunne). No entanto, não há foneticamente diferença. Então, o trecho poderia ser entendido tanto como está sendo apresentado acima quanto nesses termos: “tornado verão glorioso por este sol de York”. Como há uma constância gráfica de diferenciar em página “sonne” de “sunne”, a consciência organizadora da edição de 1597 quer dizer efetivamente “filho”, com um deslocamento fonético-semântico para “sol”. Esta proposital ambigüidade semântica abre o ciclo dramático da peça, que é encerrado nas páginas finais com o retorno do “inverno” para a casa de York. Isso é particularmente evidenciado quando, antes da batalha final, Ricardo pergunta a Ratcliffe: “Giue me a calender, who saw the Sunne to day?” (“Dê-me um calendário. Quem viu o Sol hoje?”). Como a resposta é negativa, Ricardo continua: “The Sunne will not be seene to day,/ The skie doeth frowne, and lowre vpon our armie,/ I would these dewie teares were from the ground,/ Not shine to day: whie, what is that to me?/ More then to Richmond, for the selfe-same heauen,/ That frownes on me, lookes sadlie vpon him” (“O Sol não será visto hoje./ O céu está sombrio e ameaça nosso exército./ Eu gostaria que estas lágrimas de orvalho fossem do chão./ Nenhuma luz hoje. Por quê?... O que isso é para mim/ mais ainda será para Richmond, pois o mesmo céu/ que é sombrio comigo mostrar-se-á de forma triste para ele!...”). Ricardo recebe os sinais da derrota dados pelo céu, que não deixa brilhar o sol/filho de York perante o seu exército. As suas vilanias e exorbitâncias mancharam o céu e a terra – e nada mais brilha em ou por seu nome. No entanto, inscrito no pathos tragicômico herodesiano, Ricardo dá aos sinais de presságio os sentidos que melhor lhe convêm, até defrontar-se, finalmente, com a perda derradeira da condução de seu reino: “A horse, a horse, my kingdome for a horse.”(“Um cavalo, um cavalo!...Meu reino por um cavalo”).

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Haue no delight to passe away the time, Vnlesse to spie my shadow in the sunne, And descant on mine owne deformity: And therefore since I cannot prooue a louer To entertaine these faire well spoken daies.

[Página seguinte] I am determined to prooue a villaine, And hate the idle pleasures of these daies: Plots haue I laid inductious dangerous, By drunken Prophesies, libels and dreames, To set my brother Clarence and the King In deadly hate the one against the other. And if King Edward be as true and iust, As I am subtile, false, and trecherous: This day should Clarence closely be mewed vp, About a Prophecy which saies that G.

Of Edwards heires the murtherers shall be.[...]409

que os cães ladram para mim quando perante eles paro... Como neste tempo sereno de paz eu não tenho prazeres para o tempo matar, a não ser espiar minha sombra ao sol e a minha própria deformidade comentar. E, portanto, como não posso ser um amante, para me distrair nestes belos e ditosos dias, estou determinado a ser um tratante e odiar os prazeres frívolos destes dias... Por meio de Profecias desvairadas, libelos e sonhos, perigosos conluios tenho induzido para pôr meu irmão Clarence e o Rei em ódio mortal recíproco. E se o Rei Eduardo for tão justo e verdadeiro quanto eu sou sutil, falso e traiçoeiro, Clarence será hoje cuidadosamente engaiolado413 devido a uma profecia que diz que G será o assassino dos herdeiros de Eduardo.[...] [Grifo meu]

Neste eloqüente auto-retrato, impedido fisicamente de ser um “amante”,

Ricardo diz não encontrar na paz civil as condições para a sublimação de seus

impulsos guerreiros agressivos, diferentemente de Eduardo e George. Daí, a

“tediosa vida cortesã” é figurada por Ricardo como o oposto de seu ethos

guerreiro e sanguinário tão cultivado contra os Lancaster, que agora viveriam o

“inverno” de seu contentamento sob o sol/filho de York (Eduardo IV). Assim, ao

ser delineado como uma poderosa, perigosa e anômica individuação masculina e

guerreira, mas sem compensações substitutas durante a paz civil, Ricardo torna-se

a marca dramática (e histórico-sociológica) da inconformidade demoníaca (ou

inadequação) em relação ao princípio estatal (curial) de sociedade.

409SIMS, Valentine; WISE, Andrew. The Tragedy of King Richard the third. London: Sims-Wise, 1597.pp.3-4 410O enunciado faz alusão ao ato sexual. Assim, “de um amor” poderia ser traduzido também como “de um coito”. Esta última opção de tradução ampliaria a marca cômica na fala de Ricardo, que contrapõe a suavidade afeminante das “camas das damas” à austeridade viril dos “campos de guerra”. 411Dado o contexto de enunciação, pareceu-me mais adequado enfatizar os sentido de “wanton”/“ardent” para “sportive”, o que justamente reporta para as idéias de “lascivo” ou “libertino”. Quanto a “trickes”, poderia ser pensado como “truques”, “brincadeiras” e, mais genericamente, “jogos”. Assim, na caracterização de Ricardo no decorrer da peça, é uma ironia ele dizer que é pouco talhado para corteses “jogos de sedução”, já que pouco depois, quando defrontasse Ana, mesmo com suas deformações físicas, exibiria a sua forte e demoníaca capacidade verbal de sedução. 412Considerando o sentido moralizante-fisiognômico da expressão “so lamely and vnfashionable”, ela serve para demonstrar que Ricardo é pouco confiável. A idéia é reforçada pelo fato de que os “cães” – que no bestiário renascentista alegorizam fidelidade – latem para Ricardo, que terá como servidores um “Rato”(Ratcliffe) e um “Gato”(Catesby). Além disso, penso que a tradução “inadequado” conserva bem mais claramente o sentido dado para “unfashionable”, que se reporta à inadequação, à inconformidade, à incapacidade de acomodar-se conforme costumes, posições e dignidades sociais. Afinal, Ricardo é desfigurado porque isso demarca, na teleologia moral da peça, o seu papel de tratante desfigurador da dignidade régia e das honras e posições dos membros do corpo político, tornando o mundo muito mais inseguro. 413Prefiro esta tradução a outras (“aprisionado”, “encarcerado” ou “enjaulado”) porque “mewed vp” era bastante utilizado nos séculos XVI e XVII para se referir às gaiolas de falcões utilizadas durante as fases de muda plumária, quando então eram conservados longe das vistas das pessoas. A arte da falconaria é, por excelência, uma prática esportiva nobre. Logo, um falcão “mewed vp” (i.e., desfigurado, sem pluma, porque na muda) é como um nobre momentaneamente desprovido de sua dignidade. Mais adiante, quando eu apresentar a primeira fala de Hastings na peça, tal sentido ficará mais evidenciado, pois ele compara Clarence a uma águia (“eagle”) engaiolada, criando um contraponto com aves de rapina “menos nobres” – milhafres (“kites”) e abutres (“buzzards”), como alusão aos Woodville (parentes da rainha Elizabeth). Como sabemos, a nobreza de Clarence será completamente desfigurada na Torre. Ele é um falcão desprovido de “pluma” devido à acusação de traição.

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No entanto, se ele possuía tal caracter, isso também era indissociável de seu

desprendimento, desde a morte de seu pai (figurada em “Henrique VI”, 1594-

1595), de qualquer princípio patriarcal de autoridade. Deste ponto de vista, como

notara E. Pearlman, é a ausência de um centro estável de poder patriarcal na “Casa

dos York” que torna Ricardo – o filho mais novo do falecido Duque de York – um

pólo potencial de instabilidade para todo o corpo político414. Nesse sentido,

figurando um ethos distinto do Agátocles de Maquiavel, as crueldades de Ricardo

começam pequenas e aumentam sem cessar, criando um clima crescente de

insegurança para os súditos de todos os níveis.

Na teleologia dramática da peça “Ricardo III”, a deformidade físico-moral

de Ricardo e a sua gabada capacidade protéica de mudar de figuração/humor

tornam sempre imprevisíveis as suas ações e insondáveis as suas intenções. Nesse

sentido, mesmo depois de tomar para si a dignidade régia, ele não dá à sua astúcia

sorrateira um efeito político prático que efetivamente configure a ordem pública –

ou seja, ele não consegue ser o César Bórgia de Maquiavel415. Pelo contrário, por

não se auto-impor nenhum limite de consciência atento ao bem comum do corpo

político, Ricardo confere à sua flexibilidade (hu)moral um uso absolutamente

maligno, o que provoca um paradoxo para a prática política eficiente da

autoridade régia: À medida que Ricardo aumenta a sua grandeza política,

tornando-se rei, quem conseguiria ser um conselheiro franco, deferente e honrado

de um rei-proteu (ou camaleão) capaz de mandar para a morte os seus sobrinhos

inocentes e todos aqueles que dizia amar, sem qualquer alegação convincente de

utilitas totius regni?

O Conde de Derby tornou-se consciente desta inadequação de Ricardo para a

dignidade régia quando pôde constatar a sua mudança súbita de humor em

relação aos parentes e aliados da rainha que deveriam compor a escolta que traria

o Príncipe de Gales para Londres. Assim, Derby e o “leitor/audiência” têm a

chance de perceber que, aliado com Buckingham e sob a alegação de que os

parentes da rainha representavam uma ameaça ao infante por serem sediciosos,

Ricardo tramou a prisão de todos eles, com exceção do Marquês de Dorset, que

não foi voluntariado para compor a escolta principesca. Ricardo fez isso depois de

ter solicitado que a sua própria mãe (a Duquesa de York) e a rainha Elizabeth

414PEARLMAN, E.. “The Invention of Richard of Gloucester”. Shakespeare Quartely, volume 43, 1992(4): pp.410-429.

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dessem sua opinião sobre como organizar a vinda do jovem Eduardo para Londres

(5ª seqüência cênica). Aliás, é digno de nota que são três os acusados de traição

(Conde Rivers, Lorde Grey e Vaugham) e levados ritualmente ao cadafalso (10ª

seqüência cênica). Neste aspecto, como já foi dito, podemos notar a exploração

dramática do mesmo padrão retórico de acusação de conspiração identificado por

Curt Breight nos discursos oficiais ingleses entre 1581 e 1610416.

Diferentemente de Derby, Hastings é lento em perceber o que está

acontecendo à sua volta, pois é tomado de alegria ao saber que os parentes da

rainha seriam decapitados como traidores sediciosos – entendendo isso como um

favor que, de certo modo, Ricardo lhe concedeu. Sutilmente, Derby tenta duas

vezes alertar Hastings de que ninguém estava verdadeiramente seguro frente às

mudanças súbitas de humor de Ricardo. Na primeira vez, envia um mensageiro,

ainda de madrugada, à casa de Hastings para contar-lhe um ‘sonho’ que teve sobre

um javali (alusão a Ricardo, pois tal animal era signo de seu brasão) que arrancava

o seu elmo. De manhã, ao encontrar Derby, Hastings debocha de seu sonho (9ª

seqüência cênica). Daí advém a sua segunda advertência, que pouco efeito teria

na excessiva – e, nessa altura, tragicômica – autoconfiança de Hastings:

(don, Stan. The Lords at Pomfret when they rode from Lon-

Were iocund, and supposde their states was sure, And they indeed had no cause to mistrust: But yet you see how soone the day ouercast, This sodaine scab of rancour I misdoubt, Pray God, I say, I proue a needelesse coward: But come my Lo: shall we to the tower?

Hast. I go: but stay, heare you not the newes, This day those men you talkt of, are beheaded.

Sta. They for their truth might better weare their heads, Then some that haue accusde them weare their hats: 417

Stan. Quando saíram de Londres, estavam exultantes os Lordes de Pomfret, e supunham seguras as suas posições. De fato, para desconfiança não havia razões. Mas, mesmo assim, vós vedes o quão cedo escurece o dia418. Desconfio desta lasca de rancor repentina. Tomara Deus, digo eu, que aquilo que sinto seja uma desnecessária covardia. Mas venha, meu Lorde, vamos para a Torre?

Hast. Eu vou, mas esperai. Não ouvistes as novidades? Hoje serão decapitados os homens dos quais falastes.

Stan. Na verdade, muito mais mereceriam eles manter as suas cabeças do que aqueles, que os acusaram, de conservarem os seus chapéus.

Frente à tirania que aos poucos se revela, ninguém está seguro em sua

posição. A partir deste momento da trama, fica claro que Derby não acredita em

nenhuma das acusações de traição feitas por Ricardo contra os parentes e aliados

de Elizabeth, mas, mesmo assim, mantém o protocolo de suas atividades como se

nada tivesse acontecendo. A quarta aparição cênica de Derby é no conselho (11ª

seqüência cênica), capitaneado por Hastings, em que se decidiria os termos e

415Ver: MAQUIAVEL, Nicolau. “Capítulo VII: Dos principados novos que se conquistam com armas e virtudes de outrem”. In O Príncipe. São Paulo: Abril Cultural, 1973.pp.34-39 416BREIGHT, Curt. “Treason doth never prosper: The Tempest and the Discourse of Treason”. Shakespeare Quartely, volume 41, 1990(1):pp.1-28 417SIMS, Valentine; WISE, Andrew. The Tragedy of King Richard the third. London: Sims-Wise, 1597. p.48

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prazos para a coroação do jovem príncipe Eduardo. É neste evento que Hastings

seria acusado por Ricardo de cumplicidade com Elizabeth (que ele chama de

feiticeira) e com Lady Shore (que ele chama de prostituta – havendo trocadilho

fonético com Whore) em tramar contra a sua vida por meios demoníacos. No

entanto, para se entender como que esta acusação pode parecer factível na trama

da peça, deve-se considerar uma série de tropos temáticos e caracteres culturais

que são acionados em sua linguagem.

Se lembrarmos do diálogo de Ricardo e Clarence no começo da peça,

poderemos observar que Ricardo era bastante ressentido com o fato de Jane Shore

ter adquirido grande influência na corte por ser amante de Eduardo IV. Na opinião

de Ricardo, Shore (amante bela e jovem) e Elizabeth (viúva recalcitrante e

ciumenta) seriam mulheres de “baixa posição” que foram elevadas a grandes

damas na corte devido à luxúria de Eduardo. Isso era uma forma cômica de

desfigurar Eduardo como uma fera lascível governada por mulheres, tal como o

Romeu da peça “Romeu e Julieta”(1599), ou um Hércules afeminado por Ônfale

e suas lidianas. Aliás, a “grandeza” que se rebaixa pela força da volúpia é uma

tópica bastante conhecida no Renascimento e na Reforma, tal como podemos

observar iconograficamente representada neste quadro do repertório da oficina de

Lucas Cranach (1472-1553):

Hércules e Ônfale, 1537 Óleo sobre Madeira 82x118,9cm Herzog Anton Ulrich-Museum, Brunswick

Em “As Heroídes” de Ovídio (IX, 53-84), pode-se encontrar a significação

desta cena e de seus detalhes: vendido como escravo para Ônfale, rainha da Lídia

(canto superior direito), Hércules se apaixona por ela e, para lhe agradar, começa

a assumir tarefas bem pouco guerreiras, entre as quais, uma que é o atributo

tradicional do feminino: fiar a lã. Para completar a ridicularização cênica daquele

418Há neste verso um tom de ironia trágica, pois é sob o “sol/filho” de York que tão cedo o dia fenece.

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que se deixa rebaixar pela volúpia, o quadro representa o momento em que as

lidianas, para nivelá-lo à sua condição, pretendem colocar sobre a sua cabeça um

lenço feminino419. Deve-se também considerar que, no bestiário medieval, um

casal de perdizes significava luxúria e perfídia420. Nesses termos, considerando a

composição do quadro, o casal de perdizes mortos pendurados no canto superior

esquerdo simboliza justamente os efeitos negativos de Cupido sobre Hércules,

pois se deixou cativar pelo amor erótico a ponto de perder completamente o

controle de si e afeminar-se em posturas e tarefas vis para um guerreiro. Portanto,

o casal de perdizes representa os perigos do amor carnal. Afinal, como demonstra

o quadro, Cupido, embora aparentemente frágil, tem força suficiente para causar a

morte temporária dos atributos de vir-virtutis em Hércules.

Além disso, a caracterização suntuosa dos personagens (indumentárias e

maquiagem) e o texto latino na parte superior do quadro demonstrariam que o

interlocutor do quadro seria, por excelência, a nobreza letrada da corte da Saxônia,

ao mesmo tempo que chama a atenção para o tema protestante do perigo de os

olhos carnais se deixarem seduzir e rebaixar pelos ornamentos de imagens

prostitutas421. Aliás, retirado do Velho e do Novo Testamentos, este tropo é

análogo ao modo como Ricardo desqualifica como “bruxas” e “prostitutas” tanto

Elizabeth quanto Lady Shore. É interessante notar que o movimento das mãos e

dos olhos dos personagens no quadro de Cranach enfatiza justamente aquilo que

aparece sobrescrito em latim. Com esta associação entre signo visível e palavra, o

quadro faz com que a imagem erótica de uma idolatria amorosa seja provida de

palavras que ratificam a sua condição prostituta:

HERCVLES MANIBVS DANT LYNDAE PENSA PVELLAE

IMPERIVM DOMINAE FERT DEVS ILLE SVAE SIC CAPIT INGENTES ANIMOS DAMNOSA VOLVPTAS FORTIAQVE EVERVAT PECTORA MOLLIS AMOR

422

Lendo este texto citado estrategicamente para desestabilizar o poder sedutor da

beleza feminina (ou da beleza da arte imagética em si mesma), evidencia-se para nós o

quanto é possível se apropriar de um tema clássico para dar-lhe uma roupagem

419DEROO, Marc. Cranach. Paris: Herscher, 1996. pp.74-75 420DEROO, Marc. Cranach. Paris: Herscher, 1996. pp.66-67 421Ver a discussão sobre a associação metafórica entre idolatria e prostituição na retórica iconoclasta protestante de finais do século XVI e início do século XVII em: DIEHL, Huston. Staging Reform, Reforming the Stage: Protestantism and Popular Theater in Early Modern England. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997.pp.11-39; 156-181; DIEHL, Huston. “Infinite Space: Representation and Reformation in Measure for Measure”. Shakespeare Quartely, volume 49, 1998(4): pp.393-410. 422“As jovens lidianas confiam seus trabalhos cotidianos às mãos de Hércules/ deus que se subjuga à autoridade de sua amante/ Assim, a funesta volúpia pode dominar as almas mais nobres/ e o doce amor pode enfraquecer os corações mais valorosos”. Apud: DEROO, Marc. Cranach. Paris: Herscher, 1996. p.74

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moralizante que tem tudo a ver com a tópica do vir-virtutis no Renascimento e com a

crítica protestante ao “olhar idólatra”: nenhum homem pode se render ao amor por um

ser mortal (nos casos do quadro de Cranach e da peça “Ricardo III”, a mulher) a ponto

de perder a sua virilidade e deixar-se dominar por seus caprichos, rebaixando o seu

espírito a uma saciedade puramente carnal; pelo contrário, como princípio ideal, é o

homem que deve ter o controle da situação e dominar a mulher com os mesmos

atributos com os quais tentaria conter os efeitos destrutivos da Fortuna – i.e.,

discernimento, controle de si, engenhosidade e vigor423. Ora, quando se deixam

dominar pela volúpia, Hércules e Eduardo se perdem de tais atributos e tornam-se

inversões cômicas lamentáveis: grandezas humanas que são governadas pela baixeza.

Na 1ª seqüência cênica, Ricardo tem a anuência de Clarence quando afirma que

ninguém estaria verdadeiramente seguro na corte enquanto Eduardo fosse governado

por mulheres. Nesses termos, para “agradarem o rei”, deveriam agradar primeiramente a

sua “viúva” e a sua “prostituta”. Propositalmente, Ricardo revestia esta situação com um

contundente grau de “anormalidade”: Afinal, como a “baixeza” conseguia controlar a

“grandeza”? Inicialmente, perante Clarence, Ricardo explora esta “anormalidade”

colocando toda a responsabilidade no fato de Eduardo ser uma “fera luxuriosa” que se

deixa seduzir por imagens prostitutas. Portanto, tal “anormalidade” nos jogos de

posições na corte seria decorrente de uma falha moral-religiosa de Eduardo. Aliás, na 1ª

seqüência cênica, tal falha é sutilmente sugerida como a causa de seus males físicos e

fragilidade de saúde: em termos análogos à censura que Paulo faz aos pagãos na

Epístola aos Romanos (2:18-31)424, são as idolatrias de mente e coração em Eduardo

que o conduziram às impurezas que desonraram o seu corpo e abalaram definitivamente

a sua saúde. No entanto, era também possível explorar esta situação “anormal” de outro

modo: na 11ª seqüência cênica, Ricardo cinicamente confere-lhe uma conotação

sobrenatural. Aliás, não faltariam exemplos deste tipo de procedimento na própria época

Tudor. Mais uma vez, o estudo de Keith Thomas nos parece bastante revelador.

Segundo Keith Thomas, durante os períodos elizabetano e jacobita, a reforma

anglicana não enfraquecera o hábito de se atribuir desastres e infortúnios a forças

sobrenaturais. Uma “vítima” poderia, deliberada ou inconscientemente, descartar uma

explicação natural para o seu infortúnio em proveito de uma explicação sobrenatural.

423Sobre este ponto, ver: MAQUIAVEL, Nicolau. “Capítulo XXV: De quanto pode a fortuna nas coisas humanas e de que modo se deve resistir-lhe”. In O Príncipe. São Paulo: Abril Cultural, 1973. pp.109-111 424CALVIN, John; KNOX, John; FOXE, John et alii. The Bible and Holy Scriptvres conteyned in the Olde and Newe Testament. Geneva: Rovland & Ali, 1560.p.1092

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Muitos processos judiciais deste período justamente revelam a prática comum de

atribuir os desastres que houvessem ocorrido em virtude de negligência ou

incompetência à malevolência ou aos dotes mágicos de um inimigo. Henrique VIII

valeu-se deste mesmo dispositivo: quando ele se cansou de Ana Bolena, espalhou que

só se sentira atraído por ela inicialmente porque ela havia praticado bruxaria para

seduzi-lo. Uma interpretação semelhante era também atraente para outras situações, tais

como: depois que o 5º Conde de Sussex trocou a esposa por uma amante, durante o

reinado de James I, as amigas da condessa esforçaram-se para provar que a magia negra

fora responsável pela sua incapacidade de conservar o afeto do marido; quando uma

fidalga descobriu, em 1619, que sua filha havia fugido para casar-se com um caipira de

má fama, cujo pai fora executado por delito grave, atribuiu a mésalliance à ‘feitiçaria

diabólica’. Deste modo, bruxaria e fórmulas encantatórias poderiam ser alegadas com o

objetivo de ‘guardar as aparências’, mas o efeito disso era necessariamente difamar

alguém. Além disso, era bastante comum, no caso de crimes políticos, que as acusações

de auxílio diabólico fossem atribuídas a políticos frustrados pelo sucesso de seus

rivais425.

Ora, considerando que o fictício Eduardo IV tinha a dupla grandeza de ser o

primogênito da Casa Ducal de York e rei da Inglaterra, o seu casamento com Elizabeth

– filha mais velha de Richard Woodville (Conde Rivers) e viúva com dois filhos de

John Grey (Barão de Ferrers de Groby) – e a elevação de Jane Shore (esposa de um

ourives) à “favorita” eram notórias mésalliances régias, que poderiam ser explicadas por

Ricardo, conforme as suas conveniências políticas, como fortes indícios de ‘feitiçaria

diabólica’. No entanto, enquanto estiveram sob a proteção de Eduardo, Lady Grey e

Lady Shore permaneceram intocáveis. Todavia, com a sua morte, elas passaram a viver

uma situação de “fracasso político” provocado pela ascensão na corte de Ricardo, agora

na condição de Lorde Protetor.

Como primeira prova de força nessa nova condição, Ricardo tivera o êxito de

enviar para o cadafalso os parentes e aliados de Elizabeth. Assim, considerando todo

este percurso de suas “vidas”, tornava-se factível ao olhar idólatra pensar que elas

poderiam valer-se, em momento de fragilidade e decadência, de “fórmulas

encantatórias” contra Ricardo e, no limite, tramar a sua morte através de um dispositivo

tipicamente demarcador da suscetibilidade feminina aos apelos carnais e idólatras do

425THOMAS, Keith. Religião e o Declínio da Magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.pp.435-436.

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Diabo: a bruxaria. Para tanto, era necessário que houvesse um indício material da

intenção de malefício: Ricardo utilizará a sua própria deformidade física (um braço

dormente e atrofiado) como prova ocular de “embruxamento”.

Para um “leitor/audiência” elizabetano que fosse atento aos tropos críticos do

protestantismo, seria evidente que o fictício Ricardo estava explorando cinicamente uma

“superstição” e um “hábito idólatra”, ainda recorrentes na Inglaterra, para alcançar os

seus fins políticos. Em outras palavras: através da farsa de Ricardo, a peça desmistifica

os “erros idólatras” do olhar, da mente e do coração, demonstrando que a magia é

somente o resultado de uma performance ou de um engenho discursivo e imagético bem

arquitetado, o que justamente serve para alimentar no “leitor/audiência” o ceticismo a

respeito do papel, para a fé, dos signos visíveis. Além disso, por provocar auto-reflexão

no “leitor/audiência” a respeito do status da prova ocular, a farsa de Ricardo acaba por

cumprir a demanda protestante de prevenir a mente, os olhos e o coração contra as

seduções idólatras habituais da “antiga religião”. Aliás, no teatro elizabetano, era

comum o uso tópico de personagens femininos e/ou estrangeiros para se representar o

repúdio à crença em bruxaria (ou em fórmulas encantatórias) e, deste modo, demarcá-la

como “estranho erro idólatra” ou “estranha superstição”426.

Enfim, como propõe a linguagem da peça, são os hábitos idólatras e as situações

passada e presente dos jogos de poder e posições na corte que possibilitam a Ricardo

inventar um enredo factível de conspiração diabólica contra a sua vida. No final das

contas, tal como na 10ª seqüência cênica, a ordem do discurso na 11ª seqüência cênica

desemboca em três “conspiradores” convenientemente inventados por Ricardo: Lady

Grey, Lady Shore e William Hastings. No entanto, deve-se considerar que, em tal

seqüência discursiva dramática, Hastings é o único acusado de conspiração que

efetivamente está em cena e, posteriormente, será o único encaminhado para a

decapitação. Historicamente, além da perda dos parentes, o dano político maior que

Lady Grey (1437-1492) sofrera de Ricardo foi a anulação de seu casamento com

Eduardo em sessão parlamentar de 1484. Havia nisso uma grande ironia: se Lady Grey

não era mais a esposa do rei, mas teve com ele filhos, então, ela fora a sua prostituta, tal

como Lady Shore. Por sua vez, historicamente, depois de acusada de bruxaria por

426No caso específico de personagens femininas acusadas de bruxaria, isso demonstra tanto a misoginia do discurso protestante quanto a sua desconfiança em relação à capacidade imaginativa da mente humana. Assim, para prevenir os seus riscos e desqualificar os seus efeitos na vida humana, o discurso protestante (dentro e fora do teatro) várias vezes feminilizou metaforicamente a capacidade imaginativa humana, identificando a mulher como o protótipo do artificial, do espetacular, do teatral e do fantasmático. Ver: DIEHL, Huston. Staging Reform, Reforming the Stage: Protestantism and Popular Theater in Early Modern England. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997. pp.130-180

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Ricardo em 1483, Lady Shore foi presa e obrigada a fazer penitência pública, mas não

teve o lamentável fim de Hastings, falecendo somente em 1527.

No início da 11ª seqüência cênica, estão presentes Hastings, Derby,

Buckingham e o Bispo de Ely, cujo diálogo acaba por cair no seguinte assunto:

Quem dos presentes (Hastings ou Buckingham) saberia o que se passa no coração

de Ricardo sobre os termos a serem levados a respeito da coroação do jovem

Eduardo? Neste diálogo, aparece com mais vigor uma tópica temática recorrente

desde a primeira fala introdutória de Ricardo na peça: o mistério da

descontinuidade entre “coração” (ser/interior) e “face” (parecer/exterior).

Somente neste momento do diálogo entra Ricardo em cena, desculpando-se do

atraso por ter dormido demais, mas dizendo que isso não deveria ser entendido

como desmerecimento pelo motivo da reunião. Então, Ricardo fala de seu amor a

Hastings, pede morangos a Ely num tom de familiaridade que quebra

momentaneamente a solenidade da reunião, permitindo-lhe fazer um “à parte”

com Buckingham.

Nesse momento, Ricardo informa Buckingham que Catesby disse que

Hastings não seria favorável a um golpe contra o herdeiro de Eduardo IV. Logo,

herodesianamente, Ricardo havia elogiado e dito amar quem, na verdade, já

pretendia secretamente matar. Buckingham e Ricardo saem de cena para armarem

a pantomima da acusação de traição e bruxaria contra Elizabeth, Lady Shore e,

por extensão, Hastings. A reunião continua e o tema da prescrutação do coração

de Ricardo é retomado. Neste momento, chama a nossa atenção a cortês

prevenção de Derby em relação a Ricardo:

Ha. His Grace lookes cheerfully and smooth to day, Theres some conceit or other likes him well, When he doth bid good morrow with such a spirit. I thinke there is neuer a man in christendome, That can lesser hide his loue or hate then he: For by his face straight shall you know his heart.

Dar. What of his heart perceiue you in his face, By any likelihood he shewed to day?

Hast. Mary, that with no man here he is offended. For if he were, he would haue shewen it in his lookes.

Dar. I pray God he be not, I say.427

Hast. Hoje, Sua Graça parece alegre e plácida. Quando ele lança um “bom dia” com tal ânimo, há algo favorável ou coisa semelhante que o agrada. Penso que nunca houve na cristandade um homem que menos oculte seu amor ou rancor do que ele, pois por sua face podemos imediatamente saber o que se passa em seu coração.

Der. O que de seu coração percebestes em sua face? Por qual imagem ele se apresentou hoje?

Hast. Feliz de não estar ofendido com ninguém aqui, pois, se estivesse, teria demonstrado em seu rosto.

Der. Tomara Deus, digo eu, que ele não esteja.

O diálogo destes personagens representa a própria crise epistemológica do

signo visível na teologia protestante, que é ironicamente expressada em seu

choque discursivo como caracteres cênicos: Hastings acredita que não há

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cênico de Ricardo e Hastings nas materialidades textuais de 1597 e 1623,

respectivamente:

Enter Lord Hastings. Hast. Good time of day vnto my gratious Lord: Glo. As much vnto my good Lord Chamberlaine:

Well are you welcome to the open aire, How hath your Lordship brookt imprisonment?

Hast. With patience (noble Lord) as prisoners must: But I shall liue my Lord to giue them thankes That were the cause of my imprisonment.

Glo. No doubt, no doubt, and so shal Clarence too, For they that were your enemies are his, And haue preuaild as much on him as you.

Hast. More pitty that the Eagle should be mewed, While keihts and bussards prey at liberty.

Glo. What newes abroad? Hast. No newes so bad abroad as this at home:

The King is sickly, weake and melancholy, And his Phisitions feare him mightily.

Glo. Now by Saint Paul this newes is bad indeede, Oh he hath kept an euill diet long, And ouermuch consumed his royall person,

[folha seguinte] Tis very grieuous to be thought vpon: What is he in his bed?

Hast. He is. Glo. Go you before and I will follow you. Exit Hast.

He cannot liue I hope, and must not die, Till George be packt with post horse vp to heauen.[...]433

Enter Lord Hastings. Hast. Good time of day vnto my gracious Lord. Rich. As much vnto my good Lord Chamberlaine:

Well are you welcome to this open Ayre, How hath your Lordship brook'd imprisonment?

Hast. With patience (Noble Lord) as prisoners must: But I shall liue (my Lord) to giue them thankes That were the cause of my imprisonment.

Rich. No doubt, no doubt, and so shall Clarence too, For they that were your Enemies, are his, And haue preuail'd as much on him, as you,

Hast. More pitty, that the Eagles should be mew'd, Whiles Kites and Buzards play at liberty.

Rich. What newes abroad? Hast

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Hast. Sim. Glo. Ide antes. Seguir-vos-ei depois.

Hastings sai Eduardo não pode viver, é o que espero, mas não deve morrer até que George seja despachado para o céu.[...]

Considerando que pouco antes, no movimento dramático, Ricardo desqualifica

(em coro com Clarence) a figura régia de Eduardo ao afirmar que se tornou um homem

governado por mulheres (uma “viúva” e uma “prostituta”) e, mais adiante, desqualificá-

lo-ia no Guildhall, através de Buckingham, como uma fera lasciva e concupiscente,

afirmar que a “pessoa régia” foi consumida por uma “dieta ruim” pode ser uma alusão

jocosa à idéia de que o rei estava sendo “consumido por doenças venéreas”, já que o

termo “dieta” também se associa, nos séculos XVI e XVII, à noção médico-moral do

equilíbrio dos humores, difícil de ser mantido em quem é afetado por paixões.

Penso que não seja por acaso que o personagem Ricardo fala com Hastings da

má dieta de Eduardo, pois, nas crônicas do século XVI, o Lorde Camarista é muitas

vezes figurado como um “nobre cavalheiro de vida dissoluta”. Com este parâmetro em

mente, poder-se-ia especular se o Ricardo da peça não estaria, então, falando de algo

bastante familiar para Hastings que, nesse sentido, saberia muito bem compartilhar os

sofrimentos do rei – além de ter compartilhado Lady Shore com ele. Por fim,

demonstrando o potencial cômico de toda a sua sentença discursiva, Ricardo pergunta

se Eduardo está na cama. Deve-se também notar que o termo “grievous” é comum no

vocabulário médico e legal para se referir a lesões corporais. Nesses termos, o uso de

“grievous” por Ricardo poderia ser mais uma alusão ao “baixo corporal”, que ele tantas

vezes aciona para desfigurar a pessoa régia de Eduardo, em vez de ser uma referência,

mesmo que fingida, a sentimentos elevados.

Enfim, considerando o que a teleologia dramática reservou para Hastings, uma

comparação prospectiva entre a sua primeira e a sua última aparições cênicas ao lado

de Ricardo revela que o Lorde Camarista já tinha recebido uma marca dramática que

demonstrava, de modo indiciário, o seu destino na trama: por São Paulo ou por São

João, Hastings estava fadado a morrer pelas vilanias de um tirano. Além disso, como

pudemos observar, Ricardo é o portador do último discurso que desestabiliza a reunião

do conselho que decidiria os termos da coroação de Eduardo V (11ª seqüência cênica),

tal como acontecera na seqüência dramática do malogrado juramento de paz perante

Eduardo IV (4ª seqüência cênica). Comparando a configuração destas duas seqüências

cênicas com aquela da 2ª seqüência cênica, já podemos observar as marcas dramáticas

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que vão caracterizando o lugar de Hastings na trama – e sua distinção em relação aos

destinos reservados ao Duque de Buckingham e ao Conde de Derby.

Na 11ª seqüência cênica, o Conde de Derby está em cena desde o início e, desta

vez, fora testemunha das mudanças súbitas de humor de Ricardo e de sua capacidade de

criar efeitos políticos destrutivos e implacáveis contra alguém que, pouco antes, dizia

amar: dadas a “prova”, as circunstâncias (passada e presente) e a coerência discursiva da

acusação feita contra Elizabeth e Shore, “ter dúvida” significaria ser cúmplice de

bruxaria – eis o erro de Hastings. Além disso, Ricardo soube explorar a própria

deformidade de seu corpo para construir um efeito de “prova ocular” de que fora vítima

de bruxaria. Deste modo, para o “leitor/audiência” e para Derby, resta a sensação de que

ninguém está efetivamente seguro sob o jugo de Ricardo; do quanto a retórica oficial

das acusações de traição pode ser manipulada para gerar o oposto da sensação de

segurança, respeito, deferência e proteção.

Observando a situação que se configura ao final da 11ª seqüência cênica,

podemos afirmar que as instituições sociais e políticas são figuradas na peça como

pharmacon: curam ou destróem os membros do corpo político dependendo da forma

(fashion) ou da medida (measure) com que são utilizadas. Assim, a peça demonstra que

as instituições sociais e políticas são mecanismos necessários para o ordenamento

social e o refreamento das paixões – sem os quais não haveria como fundamentar

moralmente um corpo político com forma estável –, mas não estão livres de serem

acionados desmedidamente e de terem, por isso, efeitos destrutivos para a Universitas.

Nesses termos, as dignidades institucionais não teriam “móveis internos”

essencialmente “bons” ou “maus”. Ora, se as coisas são postas nesses termos, é o

homem enquanto potência arbitral intramundana que é objeto de louvor ou de censura,

e não as dignidades institucionais que venha a encarnar. Isso cria justamente uma brecha

moral paradoxal de purgação e acomodação institucional representada na trama pelas

ações de Derby: ele louva a dignidade régia e lhe é fiel, mas, para preservá-la do mal,

terá que trair o indivíduo Ricardo e, deste modo, criar os meios sorrateiros necessários

para dar à dignidade régia um novo substrato físico-moral, o Conde de Richmond.

Depois da segunda entrada do Lorde Protetor na 11ª seqüência cênica, Derby e

Ely são silenciados por sua coerência discursiva: “vitimado” por bruxaria, Ricardo

conclui dizendo que “o restante que me estima, venha e siga-me”. Neste momento, não

resta a Derby e Ely fazerem outra coisa senão seguirem o enredo oficial da acusação de

traição criado pelo Lorde Protetor, já que uma “acusação factível” de traição (Elizabeth

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Depois de expostas essas ordens e recomendações, todos saem de cena e se

inicia uma nova e breve seqüência cênica, em que um escrivão anônimo ganha

existência dramática e, afetando ler o papel que lhe fora encomendado, resume para o

“leitor/audiência” que a escritura da condenação de Hastings lhe havia sido

encomendada horas antes de ele ter sido declarado “traidor”. Trata-se de um pendant

dramático: serve como reforço de memória para a teleologia moral da peça e cria um

efeito de “tempo transcorrido” para, deste modo, Ricardo retornar em nova cena

(Castelo de Baynard) e, assim, saber através de Buckingham os efeitos das “revelações

sobre Eduardo” no Guildhall. Então, quando a 14ª seqüência cênica é iniciada, vemos

Ricardo ser informado por Buckingham que as pessoas no Guildhall responderam às

suas “revelações” com mutismo, espanto e incredulidade, não entrando

espontaneamente no coro de sua invocação: “God saue Richard, Englands royall King”.

O silêncio apenas foi rompido porque os servidores de Buckingham, ao fundo do

Guildhall, fizeram eco à pantomima política de seu senhor.

De qualquer forma, o efeito mais imediato destas “revelações” no Guildhall foi que o

prefeito estava no Castelo de Baynard, pretendendo falar com Ricardo. Por isso, Buckingham

recomenda que, antes de o prefeito entrar, Ricardo deveria se cercar de dois bispos e, em

momento oportuno, aparecer perante todos segurando uma bíblia. Portanto, Ricardo deveria se

figurar como homem piedoso, dado a uma vida religiosa de meditações e, por isso mesmo,

pouco propenso a aceitar o fardo da Coroa – e se o fizesse, seria um imenso sacrifício pessoal.

Nesta grande farsa política, Buckingham faria o papel do grande primo principesco que

admoestaria Ricardo a assumir as obrigações vinculadas ao seu nome e posição, representando

com tanta maestria, perante o prefeito, o seu papel de eminente e admoestativo suplicante que

isso deveria induzir o representante da City a entrar também no coro de suplicantes e, por fim,

dar graças a Deus por Ricardo ter aceitado o sacrifício piedoso de tornar-se rei.

Esta seqüência cênica é configurada para o “leitor/audiência” de um modo

que parece justamente realizar a tópica crítica anticatólica – então recorrente no

sermonário protestante inglês e no “Livro dos Mártires”(1563) de John Foxe

(1516-1587) – que afirmava que os ritos católicos e seus ornamentos eram

“engodos papistas diabólicos”437. Além disso, a forma como esta seqüência cênica

é apresentada também tem um efeito bastante desmistificante do poder político e

das formas medievais de autoridade, já que os elementos de sacralização do self

régio são vinculados, contingentemente, à figura demoníaca de Ricardo por meio

437Ver: DIEHL, Huston. Staging Reform, Reforming the Stage: Protestantism and Popular Theater in Early Modern England. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997.pp.11-39

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de um ardiloso plano de traição cujo corolário é uma grande farsa teatral. Nesses

termos, a peça sugere que não há uma relação necessária entre uma essência

virtuosa pessoal (carisma) e a assunção dos atributos de uma dignidade

institucional; que, no limite, um ato criminoso, a astúcia sorrateira, a traição, a

farsa e a mentira podem ser a origem do poder institucional desfrutado por um

indivíduo. Nesse aspecto moral, não há diferença entre Ricardo e seus irmãos.

Aliás, vale lembrar que o artigo XXVI dos “39 Artigos da Igreja

Anglicana”(1571) faz esta mesma distinção entre carisma pessoal e dignidade

institucional, deixando bem claro que o substrato físico-moral de um ministro não

deve abalar a crença no valor sacramental da palavra e da instituição eclesiástica.

Assim, além de afirmar que qualquer sacramento tornava-se válido mesmo

quando feito por ministros diabólicos, pois a origem de sua efetividade estava na

instituição e na promessa de Cristo, o artigo XXVI também apresenta uma moral

acomodatícia hierarquizante quanto ao modo de purgar o mal no seio da

instituição eclesiástica. Vejamos:

XXVI. Of the Unworthiness of the Ministers, which hinders not the effect of the Sacraments. Although in the visible Church the evil be ever mingled with the good, and sometimes the evil have chief authority in the Ministration of the Word and Sacraments, yet forasmuch as they do not the same in their own name, but in Christ's, and do minister by his commission and authority, we may use their Ministry, both in hearing the Word of God, and in receiving the Sacraments. Neither is the effect of Christ's ordinance taken away by their wickedness, nor the grace of God's gifts diminished from such as by faith, and rightly, do receive the Sacraments ministered unto them; which be effectual, because of Christ's institution and promise, although they be ministered by evil men. Nevertheless, it appertaineth to the discipline of the Church, that inquiry be made of evil Ministers, and that they be accused by those that have knowledge of their offences; and finally, being found guilty, by just judgment be deposed.438

XXVI. Da Indignidade dos Ministros, que não impede o efeito dos Sacramentos. Embora na Igreja visível o mal esteja sempre mesclado com o bem e, algumas vezes, o mal tenha a principal autoridade no Ministério da Palavra e dos Sacramentos, ainda assim, tendo em vista que os Ministros não agem em seu próprio nome, mas em nome de Cristo, e realizam o ministério por sua comenda e autoridade, nós podemos fazer uso de seu Ministério, ouvindo a Palavra de Deus e recebendo os Sacramentos. Nem o efeito da vontade de Cristo é subtraído por sua perversidade, nem a graça dos dons de Deus é diminuída quando, pela fé e honestamente, recebemos os Sacramentos ministrados por eles, que sempre serão válidos devido à instituição e promessa de Cristo, mesmo que sejam ministrados por homens maus. No entanto, é próprio à disciplina da Igreja inquirir sobre os maus Ministros, e que sejam acusados por aqueles que têm o conhecimento de suas ofensas e, finalmente, encontrando culpados, sejam depostos por meio de julgamento justo.

Aqui, tal como observamos na peça “Ricardo III”, a despersonificação das

instituições sociais e políticas cria justamente aquela brecha moral paradoxal para

que indivíduos devidamente autorizados no interior de sua própria dinâmica

hierárquica e funcional possam, em nome do bem comum, criar os meios

necessários para purgá-las dos assaltos periódicos do mal. Na trama de “Ricardo

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III”, como temos notado, o papel de purgação socialmente acomodatícia do mal

cabe a dois personagens emblemáticos: Lorde Stanley e Conde de Richmond,

metaforizados, respectivamente, como José e Cristo que resistem às artimanhas

diabólicas de Ricardo.

3.5. A demonização herodesiana de Ricardo III e a sacralização cristológica

de Henrique VII

Ao explorar as tópicas do “teatro do mundo”, da “loucura do mundo” e da

“contingência das posições”, marcantes no repertório temático da literatura cortesã, a

teleologia da peça “Ricardo III” pretendeu exorbitar a deformação de caracter em

Ricardo para criar um efeito moralizante contundente para o seu malogro em construir

para si posteridade política; por antonomásia, isso significa propor que a essência

virtuosa pessoal latente no Conde de Richmond encontra o seu verdadeiro destino ou

bom uso na perfeição sagrada da dignidade régia. Deste modo, com o seu advento,

devolver-se-ia aos súditos de todos os níveis e posições a crença na ressurreição da

estabilidade de forma do corpo político e, através disso, a esperança na posteridade e

prosperidade do reino de Richmond-Christus. Vejamos, agora, outros elementos da

trama que corroboram esta tese moral.

Depois do logro da farsa política de Ricardo e Buckingham, inicia-se a 15ª

seqüência cênica, temporalmente situada no dia seguinte aos eventos no Castelo de

Baynard. Inicialmente, fazem parte da cena a rainha Elizabeth, a Duquesa de York, o

Marquês de Dorset, Lady Ana439 e a filha de Clarence (sem fala na cena). A

configuração cênica sugerida pela didascália e pela seqüência de falas dos personagens

na edição de 1597 indica que a rainha Elizabeth, a Duquesa de York e o Marquês de

Dorset entram por uma porta, enquanto Ana e a sobrinha entram por outra. Todos estão

perante a Torre, motivados pela mesma intenção: visitar os príncipes. Então, entra o

438THE ARTICLES OF RELIGION, In Modern History Sourcebook (www.fordham.edu). 439Como já foi demonstrado no primeiro item, desde a 1ª seqüência cênica Lady Ana é figurada como a jovem viúva do filho de Henrique VI, Eduardo, ambos assassinados por Ricardo, quando então Eduardo IV torna-se rei. Lady Ana, perante o féretro do sogro Lancaster, é enredada a casar-se com Ricardo, que alegou, como artifício de sedução, que tudo que fizera de criminoso contra Henrique e Eduardo de Lancaster fora motivado pela beleza de Ana. Explorando a sua vaidade feminina, Ricardo a seduz a casar-se consigo – e, deste modo, tal como diria cinicamente para si mesmo, compensaria a jovem viúva sendo para ela pai e marido. Deste modo, desde o final da 1ª seqüência cênica da peça, Ana já está dramaticamente marcada como “esposa do Diabo” e como uma jovem inconstante que, perante o féretro do sogro, cheia de dor e rancor contra Ricardo, deixou-se seduzir por ele, demonstrando a fraqueza feminina perante os assaltos do demônio. Contudo, em algumas crônicas do começo do século XVI, Ana surge como prometida a Eduardo de Lancaster, mas não chegou a casar-se com ele devido ao seu assassinato em 1471, juntamente com o pai de Ana, Richard Neville, Conde de Warwick-Sulisbury, cognominado postumamente de “The King-maker”. Por isso, alguns cronistas interpretavam o casamento de Ana com Ricardo, em 1472, como uma forma de sobrevivência política para a sua ‘casa’ numa conjuntura em que os York eram vencedores. Algumas crônicas afirmavam que Ana também teria sido amante do Duque de Clarence.

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lugar-tenente da Torre, Brackenbury, que diz ter ordens expressas do Lorde Protetor (a

quem descuidadamente chama de Rei) que proíbem a qualquer um, independentemente

de status, a ter acesso aos príncipes. O “engano” verbal e as ordens do lugar-tenente

criam um efeito momentâneo de apreensão. A entrada do Conde de Derby revela

justamente a razão do “engano” do lugar-tenente: Derby solenemente saúda as “duas

rainhas”, informando que Ana estava sendo esperada para ser coroada. Até o momento,

com exceção de Derby e do lugar-tenente, os personagens presentes na cena não sabiam

o que estava transcorrendo politicamente desde a 11ª seqüência cênica.

Ora, se por um lado isso é fundamental para a constituição de um pathos

trágico na cena para Elizabeth e Ana, tem por outro lado uma marcante

inconsistência histórica, sociológica e de continuismo dramática. Ao final da 12ª

seqüência cênica, Ricardo havia dado uma ordem a Catesby para deixar longe das

vistas de qualquer pessoa os filhos (children) de Clarence. Como “children” é um

substantivo plural sem gênero, é inconsistente propor a entrada cênica de Ana com

sua sobrinha. Além disso, poderíamos perguntar como os desdobramentos da cena

do conselho e, pouco depois, a póstuma desfiguração pública da honra de Eduardo

IV no Guildhall ficaram desconhecidas para os personagens da 15ª seqüência

cênica. Por fim, mesmo considerando que o espaço do conselho fosse mais

reservado, as suas potenciais deliberações deveriam ser o principal foco das

atenções na corte e, não podemos esquecer, foi nesse espaço reservado, mas

juridicamente solene, que a rainha Elizabeth foi acusada de bruxaria perante um

bispo.

Assim, penso que somente a intenção de criar um pathos trágico para

Elizabeth e Ana na 15ª seqüência cênica justificaria criar uma cena em que elas, a

Duquesa de York e o Marquês de Dorset nada sabiam do que ocorrera desde a

reunião que deveria ter decidido os termos da coroação de Eduardo V. Além

disso, é possível notar na ordem e disposição espacial das entradas dos

personagens nessa seqüência cênica uma tentativa de criar conjuntos dramáticos

com efeitos moralizantes. Vejamos:

(1) Para o “leitor/audiência”, desde a 12ª seqüência cênica, Elizabeth e a Duquesa de York são dois selves femininos eminentes desfigurados pela pecha do adultério, sendo que Elizabeth percebe que seu nome/posição tornou-se um perigo para seus filhos e, assim, apela para Dorset (o seu filho adulto vivo que ainda carrega o título nobiliárquico do avô materno) fugir e aliar-se ao Conde de Richmond. Como sabemos, é na 15ª seqüência cênica que já podemos observar Lorde Stanley agindo secretamente contra os desígnios de Ricardo, pois ajuda Dorset em sua fuga. Por sua vez, a Duquesa de York recomenda que Elizabeth

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busque abrigo no santuário de Westminster. Elizabeth, por fim, percebe que experimenta todos os efeitos da maldição de Margaret exposta na 2ª seqüência dramática, qual seja: deixaria de ser mãe, esposa e rainha reconhecida na Inglaterra. (2) Ana surge em cena com sua sobrinha, que era a filha de sua irmã Isabella (não mencionada na peça) com o Duque de Clarence. É explicitado na peça que Ana era a filha do Conde de Warwick-Salisbury, Richard Neville, a quem Ricardo odiava por ter, no passado, traído Eduardo e apoiado Henrique VI. O que não é explicitado na peça é que Clarence havia se casado com Isabella quando lutava, ao lado de Neville, a favor de Henrique VI. Dada esta teia de parentesco, Ana é referida na cena como “Aunt” da “neece Plantagenet” e “aunt...in law” dos filhos de Eduardo IV. No entanto, deve-se notar que isso pode ser deduzido mais claramente quando confrontamos a seqüência dramática existente na edição de 1597 com aquela do fólio de 1623. De qualquer forma, um leitor ou audiência da época da edição de 1597 somente teria uma percepção clara da estrutura parental figurada na 15ª seqüência cênica se tivesse em mente as crônicas disponíveis na época (por exemplo, de Holinshed) que tratavam da Guerra das Duas Rosas, assim como as edições de 1594-95 da peça “Henrique VI”. Tomado isoladamente, o plano dramático da peça “Ricardo III” expõe a fraqueza moral de Ana, que se torna a “rainha de um demônio” e, por fim, é assassinada por ele; enquanto a sua sobrinha teria uma “morte social”, pois seria forçada pelo rei Ricardo a casar-se com um cavalheiro de nível inferior ao seu.

Ao observarmos estes conjuntos dramáticos moralizantes, podemos notar que

Lorde Stanley cumpre o seu papel de servidor eminente da dignidade régia, não

deixando de seguir as ordens que recebe de Ricardo, mas se coloca à disposição

de Elizabeth para ajudar Dorset fugir e encontrar o seu enteado na França e, deste

modo, consolidar a entrada na Inglaterra de alguém que representaria um braço

dinástico do tronco Plantagenet tão legítimo para concorrer pela dignidade régia

quanto Ricardo. Assim, enquanto serve a dignidade régia momentaneamente

encarnada em Ricardo III, Lorde Stanley busca meios de bloquear as ações de um

vilão que odiosamente desfigura e torna inseguros os estatutos e honras que dão

forma e harmonia ao corpo político.

Depois da coroação de Ricardo e Ana, o tirano planejaria o assassinato dos

sobrinhos na Torre e descartaria Ana, mas suas mortes seriam envoltas num silêncio

oficial, de modo a não provocarem escândalos sediciosos: desonrosamente, tal como

acontecera com Clarence, os jovens príncipes desaparecem na Torre sem honras

fúnebres, para que, sob o efeito do anonimato (o oposto, portanto, de suas

preeminências principescas), fossem esquecidos; Ana é posta em reclusão doméstica

forçada para ser também esquecida. No entanto, Ricardo usa contra Ana, agora sua

rainha, métodos mais sutis para provocar o seu desaparecimento social e político:

manda Sir Catesby espalhar boatos sobre uma grave enfermidade que teria acometido a

jovem rainha.

Por outro lado, no que tange especificamente à filha de Clarence, Ricardo

desfiguraria socialmente a sua honra parental ao casá-la com um cavalheiro de nível

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inferior de nobreza, o que significava extinguir a concorrência de mais um potencial

braço dinástico dentro da casa de York. Por fim, como considerava o filho de Clarence

um idiota inofensivo, Ricardo o mantém recluso e tenta concentrar em si toda a

ramificação dinástica da casa de York ao pretender casar-se com a filha de Eduardo IV:

Elizabeth de York. Ora, como se tratava de sua sobrinha, a sua pretensão incestuosa

adquire uma conotação dramática fortemente herodesiana. No entanto, se considerarmos

a configuração social e política dos personagens caracterizados na peça até este

momento da teleologia dramática, haveria algumas aparentes anomalias no enredo a

serem consideradas, principalmente se o focarmos por uma perspectiva histórico-

sociológica. Vejamos:

(1) Por mais que, segundo Ricardo, o filho de Clarence fosse um garoto idiota – i.e., o oposto da velocidade de engenho, percebida por Ricardo e Buckingham, nos diálogos com os filhos de Eduardo IV (8ª seqüência cênica) –, todos os sobrinhos teriam precedência na sucessão dinástica em relação ao seu tio Ricardo. Nesse sentido, se os filhos de Eduardo e o próprio Eduardo foram difamados com a pecha adulterina para serem descartados da sucessão dinástica, por que, então, assassinar os filhos de Eduardo, depois da coroação, mas não o filho de Clarence, sobre o qual não recaiu nenhuma pecha adulterina? (2) Mesmo que Elizabeth de York não fosse marcada com uma suposta pecha adulterina e, nesse sentido, aos olhos de Ricardo, ela seria filha legítima de seu irmão, qual interesse haveria em casar-se com ela depois que o próprio Eduardo foi postumamente desonrado com a pecha adulterina jogada sobre o ventre de sua própria mãe, a Duquesa de York? (3) Se Ricardo usa a difamação do adultério contra a sua própria mãe e contra a rainha Elizabeth, se isso foi suficiente para extinguir a legitimidade da descendência de Eduardo para o trono (12ª seqüência cênica), por que o movimento dramático simplesmente esquece do filho de Clarence? Haveria um desconhecimento por parte da consciência editorial organizadora do texto da peça em relação ao fato de que o Duque de Gloucester era mais novo do que Duque de Clarence? (4) Ora, mas se considerarmos que, ao final, Ricardo quer casar com uma sobrinha (filha de Eduardo e Elizabeth Woodville) enquanto desqualifica socialmente a outra (filha de Clarence e Isabella), isso seria um forte indício de que a consciência editorial organizadora do texto da peça entende que Ricardo é o caçula do velho Duque de York. No entanto, afirmar isso nos leva para outro problema: Se a própria memória de Eduardo e a sua descendência tiveram a sua honra publicamente desfigurada no Guildhall, por que, então, Ricardo não buscou assassinar o filho “idiota” de Clarence e propor casamento à sua filha? (5) Elizabeth Woodville e Jane Shore são acusadas de bruxaria por Ricardo na 11ª seqüência cênica, mas o desenvolvimento da trama sugere que apenas William Hastings é punido com a morte por ser “cúmplice”. Considerando que a posição eminente da rainha pudesse protegê-la dos efeitos da acusação de Ricardo, por que nada é dito sobre Lady Shore (que apenas é um nome sem existência dramática na peça)? Seria isso uma forma de evidenciar dramaticamente o quanto Ricardo manipulou injustamente a retórica oficial de traição contra Hastings? Se Elizabeth é adúltera e bruxa, voltamos ao ponto inicial: Por que Ricardo deveria considerar a sua filha digna de um casamento régio? Enfim, por que considerar Elizabeth de York digna de um casamento régio quando toda a descendência de Eduardo já havia sido desqualificada quando Ricardo fez recair sobre o ventre de sua própria mãe a acusação de adultério?

O próprio movimento dramático da peça aponta para uma solução destas aparentes

“anomalias” na dinâmica de seu enredo, havendo evidentes efeitos moralizantes. Antes de tudo,

devemos lembrar que as denúncias, no Guildhall, contra a legitimidade dinástica de Eduardo e

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de sua descendência, foram recebidas com frieza pela audiência (12ª seqüência cênica).

Ademais, a própria deformidade física de Ricardo (posta em contraste com a “perfeição da

natureza” nos filhos de Eduardo) poderia ser um sinal dramático a identificar que era Ricardo o

fruto efetivo de uma relação sexual desregrada.

Além disso, é com um frágil “artifício teatral” que duas vezes (nas 12ª e 14ª seqüências

cênicas) Ricardo tenta trazer o prefeito de Londres para o seu lado – e tudo parece estar

funcionando de acordo com os seus planos até a 17ª seqüência cênica. No entanto, depois da

coroação de Ricardo, o desaparecimento misterioso de seus sobrinhos lançaria dúvidas mais

contundentes sobre a suposta ilegitimidade dinástica de Eduardo e de seus descendentes. De

qualquer forma, o “massacre dos inocentes” na Torre de Londres é o marco dramático da

derrocada política de Ricardo – trata-se de seu erro político fatal. Isso pode ser indiciado em

dois momentos: na 16ª seqüência cênica, tão logo Ricardo explicita o seu plano de assassinar

os sobrinhos, Lorde Stanley entra em cena para informar que o Marquês de Dorset (meio-irmão

sobrevivente de Elizabeth de York) fugiu para apoiar o Conde de Richmond – a partir deste

momento, Ricardo planeja livrar-se de Ana –; na 17ª seqüência cênica, tão logo é informado

por Tyrrel do assassinato dos sobrinhos na Torre, Ricardo recebe a notícia de que o Bispo de

Ely fugiu para encontrar Richmond.

Portanto, a fuga do Bispo de Ely para o lado de Richmond é a primeira notícia ruim de

grande peso político que Ricardo recebeu depois do assassinato dos sobrinhos na Torre. Desde

então, para se garantir politicamente, Ricardo deveria tentar casar-se com Elizabeth de York

antes que isso fosse feito, com a anuência de Ely e de Dorset, pelo Conde de Richmond. Deste

modo, diferentemente do caso do Agátocles de Maquiavel, os crimes crescentes de Ricardo para

construir e manter a sua posição régia de comando o deslegitimam perante as principais casas

do reino, criando para si mesmo um incessante ambiente de apreensão e paranóia política que o

impede de desfrutar as suas conquistas criminosas. Aliás, bem de acordo com a tópica literária

cortesã da “loucura do mundo”, Ricardo fizera (odiosamente) crescer o seu caminho e, agora,

começava a se perder politicamente em crescentes cuidados440.

Considerando o movimento dramático a partir da 11ª seqüência cênica, a grande ironia

trágica da peça é o fato de que, depois que se tornara rei, Ricardo foi enganado politicamente

por aqueles que considerava estar sob o seu completo controle: a difamada rainha Elizabeth, o

Lorde Stanley e o Bispo de Ely. Nesse sentido, devemos considerar que as supostas “anomalias”

no enredo a respeito das escolhas e das ações desmedidas de Ricardo compõem, na verdade, a

sua caracterização herodesiana como demoníaco vilão tragicômico e tirano caprichoso que aos

poucos perde domínio da situação que ele próprio enredou. Portanto, para os dramas históricos

440MARAVALL, José Antônio. Cultura do Barroco. São Paulo: EdUSP, 1997.pp.254-322

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ingleses dos séculos XVI e XVII, interessa menos oferecer uma lição de “verdade histórica” do

que uma lição exemplar de “moral da história”441.

Segundo Scott Colley, o Ricardo III figurado no in-quarto de 1597 deve a sua gênese à

história antiga (pagã e cristã), à sua tradição literária ao longo da Idade Média e aos relatos

contemporâneos e posteriores ao homem que realmente existiu e reinou na Inglaterra durante

efêmeros dois anos (1483-1485). No entanto, mesmo o Ricardo III que emerge de muitas

crônicas históricas do século XVI é caracterizado a partir de um repertório de modelos

literários: por exemplo, a “História de Ricardo III”(1513-1518), de Thomas More (1477-

1535), que é a base das crônicas de Raphael Holinshed (m.1580), foi influenciado pelo

patrimônio retórico-temático dos escritos de Tácito, Sêneca, Suetônio e Plutarco. Além disso,

deve-se considerar a tradição teatral de figuração de tiranos nas peças associadas aos nomes de

John Lyly (c.1554-1606), Thomas Kyd (c.1558-1594), Edmund Spenser (c.1552-1599) e

Christopher Marlowe (c.1564-1593). Além dessas influências, Scott Colley chamou a atenção

para outra inspiração central na composição do Ricardo III do in-quarto de 1597: Herodes,

entendido por Colley como um modelo óbvio de tirano, pois disponível na iconografia e no

imaginário das festas inglesas da Epifania desde, pelo menos, o século XI442.

Herodes é lembrado na literatura inglesa como falastrão e gabola de suas

conquistas. Ora, estes são justamente os caracteres cênicos que marcam os vários

solilóquios de Ricardo ao longo da peça. No entanto, não se deve perder de vista

que o Herodes literário advém de referências breves do segundo capítulo de

“Mateus”, em que aparece temendo o presságio de uma criança nascida para ser

Rei dos Judeus. Justamente por causa disso, Herodes ordena o massacre de todas

as crianças do sexo masculino com idade de até dois anos, mas perde a sua presa

porque um anjo adverte Maria e José para fugirem. Há nesse tema um potencial

tragicômico que é explorado no enredo do in-quarto de 1597, pois, embora

Ricardo deboche daqueles que, como o seu irmão Eduardo IV, deixam-se enredar

por presságios e sonhos, ele mesmo, tal como Herodes, concentra muita energia

destrutiva nos lugares errados, já que a verdadeira ameaça ao seu poder está longe

de seu alcance, numa “terra distante”: França. Além disso, na perspectiva jurídica

inglesa, José é “father in law” (padrasto) de Jesus, o que é a mesma posição do

Conde de Derby em relação ao Conde de Richmond.

O rei Herodes entra na tradição literária européia através da patrística e das

peças de mistérios encenadas na Festa da Epifania. Segundo tal tradição, devido

441Ver: BURKE, Peter. “A Invenção da Biografia e o Individualismo Renascentista”. Estudos Históricos, n.19. Rio de Janeiro: FGV-CPDOC, 1997. (Edição Digital, páginas não especificadas) 442COLLEY, Scott. “Richard III and Herod”. Shakespeare Quartely, volume 37, 1986(4): pp.451-458

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ao massacre dos inocentes, Herodes foi punido por Deus com deformidades

físicas advindas de febres, coceiras e recorrentes chagas. Esta imagem médica

afetou os retratos posteriores do Herodes literário, pois a sua deformidade física

tornou-se um emblema moral identificador de suas vilanias e comportamento

violento. Na peça “Ricardo III”, a deformidade físico-moral de um Ricardo

violento e sorrateiro é posta em exata contraposição àquilo que seus sobrinhos

assassinados na Torre representam de beleza e proporção. As duas “perfeições da

natureza” conseguem, inclusive, mexer com a consciência dos assassinos durante

e depois do ato criminoso (descrito na 17ª seqüência cênica), enquanto Ricardo

recomendaria o completo abandono dela em sua “oração aos soldados” (24ª

seqüência cênica).

No entanto, devemos notar que, diferentemente do que ocorrera com Clarence

(3ª seqüência cênica), não é apresentada ao “leitor/audiência” uma seqüência

cênica do assassinato dos inocentes na Torre, mas tão somente a sua narração feita

por Tyrrel. Inicialmente, quando Tyrrel entra para fazer o seu relato, o “palco”

está vazio, o que significa que ele se dirige diretamente ao “leitor/audiência”;

somente depois, quando Ricardo retorna para a cena, Tyrrel dirige-lhe as suas

palavras. Cito na íntegra a 17ª seqüência cênica:

Enter Sir Francis Tirrell. Tyr. The tyrranous and bloudie deed is done,

The most arch-act of pitteous massacre, That euer yet this land was guiltie of, Dighton and Forrest whom I did suborne, To do this ruthles peece of butcherie, Although they were flesht villains, bloudie dogs, Melting with tendernes and kind compassion, Wept like two children in their deaths sad stories: Lo thus quoth Dighton laie those tender babes, Thus thus quoth Forrest girdling on another, Within their innocent alablaster armes, Their lips were foure red Roses on a stalke, Which in their summer beautie kist each other, A booke of praiers on their pillow laie, Which once quoth Forrest almost changd my mind, But ô the Diuell their the villaine stopt, Whilst Dighton thus told on we smothered

[Página seguinte da mesma folha]

Entra sir Francis Tyrrel Tyr. O ato tirânico e sangrento está feito

O massacre mais digno de piedade do qual sempre será culpada esta terra. Dighton e Forrest, os quais eu subornei para realizar esta peça cruel de carnificina, embora fossem cães sanguinários, grandes facínoras, derretendo em ternuras e compaixão benigna, choraram, como duas crianças, em razão de sua triste história assassina:444 “Olha”, disse Dighton, “assim repousavam aquelas ternas crianças”; “Assim, assim...”, disse Forrest, “reciprocamente se enlaçando em seus braços inocentes de alabastros. Os seus lábios eram quatro rosas vermelhas num ramo que beijavam um ao outro em estival beleza... Um livro de orações deixado em sua cabeceira, por um instante”, disse Forrest, “quase demoveu minha consciência. Mas, oh, o Diabo!...”445

443SIMS, Valentine; WISE, Andrew. The Tragedy of King Richard the third. London: Sims-Wise, 1597.pp.67-69 444Neste verso, optei por manter a ambigüidade referencial de “their” e conservar a rima, pois “their deaths sad stories” poderia ser “a história triste das mortes dos príncipes na Torre” – portanto, o relato do ocorrido com os príncipes, o relato sobre eles –, mas também poderia ser “a história triste das mortes das quais os assassinos tomaram parte” – logo, o relato seria deles, sobre o que fizeram e contado por eles. Como os assassinos choraram, como “duas crianças”, por causa do “ato sanguinário e tirânico”, mostrando completo abalo de consciência, “their...stories” funde as quatro “crianças”: aquelas que foram confinadas na Torre e aquelas descobertas dentro dos assassinos consumidos pelo remorso. 445Seguindo a interpretação de Huston Diehl a respeito da retórica iconoclasta reformada em “Otelo”, podemos observar nesta situação cênica o mesmo tipo de reação que encontramos no personagem Otelo quando, pouco antes de assassinar Desdêmona, deixa-se fascinar por sua beleza ao contemplá-la viva pela última vez. Tal como Otelo, os assassinos dos “inocentes” metaforizam os seus corpos como objetos de arte que os fascinam, mas devem ser destruídos. No entanto, em “Otelo” vemos a destruição da beleza como uma espécie de rito iconoclasta de purgação do amor erótico, que está

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bíblicos: Herodes, o Grande, aquele que foi responsável pelo massacre dos

inocentes; o seu filho, Herodes Antipas, que executou João Batista e caçoou de

Cristo (Mateus 14:1-11; Lucas 13:31-32; 23:8-12); e o seu neto, Herodes

Agripa, responsável pela prisão de Pedro e que quis criar para si uma veneração

cabível somente a Deus, sendo então punido com uma terrível doença infligida

por um anjo. Segundo Scott Colley, um público iletrado de finais do século XVI

teria a possibilidade de conhecer e sobrepor figurações retóricas, temáticas e

idiomáticas de Herodes e Lúcifer – que, além de Pilatos, são os grandes vilões

bíblicos do Novo Testamento – a partir de sermões, peças de Corpus Christi e da

fortuna literária e iconográfica advinda da Idade Média448. Valendo-se da Glossa

Ordinaria, Colley afirma que é medieval a tradição de figurar um Herodes

demoníaco que é ao mesmo tempo engenhoso, ardiloso e ambíguo, nos mesmos

termos em que temos visto Ricardo ser caracterizado no in-quarto de 1597:

promete devoção, mas afia a sua espada, cobrindo a malícia de seu coração com a

face da humildade e da afeição; os seus modos e palavras são fingidos, pois louva,

honra ou elogia explicitamente aqueles que, secretamente, pretende assassinar.

Nesse sentido, a sua figuração é aquela dos hipócritas, que fingem buscar Deus

mas nunca desejam encontrá-lo449.

Nada melhor do que o próprio Ricardo, demônio gabola e falastrão, para

traçar o seu próprio retrato de tratante vilão dramático, de senhor diabólico do

“teatro do mundo”, demonstrando ao “leitor/audiência”, bem aos moldes do

“maquiavelismo demoníaco”, o quanto é fácil dar a aparência de sacralidade para

os fins particulares mais vis, inventando “bodes expiatórios” ou “traidores” – de

qualquer forma, “Outros convenientes” ou “inimigos objetivos”450 – para seus

planos secretos de poder:

448COLLEY, Scott. “Richard III and Herod”. Shakespeare Quartely, volume 37, 1986(4): pp.451-458 449COLLEY, Scott. “Richard III and Herod”. Shakespeare Quartely, volume 37, 1986(4): p.452 450Ver como, respectivamente, Peter Gay e Franz Neumann desenvolvem estes conceitos em: GAY, Peter. O Cultivo do Ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 1995; NEUMANN, Franz. Estado Democrático e Estado Autoritário. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1969.

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Glo. I doe the wrong, and first began to braule

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Como pudemos anteriormente observar, o auto-retrato de Ricardo é aquele da

jovem masculinidade desregrada que se revela como o fruto diabólico do ambiente

social e político da Guerra das Duas Rosas, num momento de fragilização do centro de

autoridade patriarcal da Casa Ducal de York, ocasionada tanto pela morte de seu pai

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pelo troca-troca de crimes, alianças, traições e jogos de influência452. Tudo isso

demonstrava um infernal desregramento autofágico das grandes casas nobres do

reino e, por conseguinte, a inviabilização de qualquer Universitas estável. Sobre

este ponto, é exemplar o discurso da rainha Elizabeth na 15ª seqüência cênica,

quando fica sabendo, inesperadamente, da assunção do trono por Ricardo. Frente

a assombro de tal situação, restava-lhe tão somente advertir o seu filho Dorset a

fugir do inferno sangrento que se tornara a Inglaterra e buscar segurança, na

França, junto ao Conde de Richmond:

Qu. O Dorset speake not to me, get thee hence,

Death and destruction dogge thee at the heeles, Thy Mothers name is ominous to children, If thou wilt outstrip death, go crosse the seas, And liue with Richmond, from the reach of hell, Go hie thee, hie thee from this slaughter house,[...]453

Rainha. Oh, Dorset! Não fala comigo! Deixa este lugar! O cão da morte e destruição alcança teus calcanhares. O nome de tua mãe não é auspicioso para os filhos. Se queres escapar da morte, atravessa os mares e vive com Richmond, fora do alcance do inferno! Apressa-te, foge logo deste matadouro![...]

Ora, “fora do alcance do inferno” é justamente a posição moral de Richmond:

se a Inglaterra tornou-se um inferno é porque a guerra, ao abrir a brecha para

paixões irrefreáveis, criou as condições da crise moral-institucional propiciadora

de chances para que um demônio assumisse a cabeça do corpo político. Somente

defrontando-se com a absoluta face do mal – e purgando-se no sofrimento por ele

causado – haveria um aprendizado político-moral e, deste modo, todos aqueles

que perderam a inocência durante a guerra civil poderiam voltar a reconhecer o

valor da verdadeira face do bem: Richmond. Então, seguindo analogias temáticas

da tradição literária herodesiana, podemos dizer que Richmond, tal como Cristo, é

mantido a salvo de Ricardo(Herodes) numa terra distante (distância a ser medida

mais em termos morais do que espaciais) e, quando alcança a idade certa, é

ajudado por sua mãe (Condessa de Richmond-Maria) e seu padrasto (Stanley-

José) a voltar para libertar a Inglaterra (Jerusalém) de todo o mal e, deste modo,

restaurar as virtudes cívicas (Religio, Pietas, Gratia, Vindicatio, Observantia e

Veritas) e recompor a reciprocidade hierárquica entre os membros do corpus

morale et politicum do reino.

Com o advento de Richmond, todos que sobreviveram ao assédio do mal têm

agora uma nova chance de vida pacífica – menos aqueles que se mantiverem

traidores do novo testemunho que ele traz – e podem se sentir seguros em seus

452Se, sob um olhar reformado, seria moralmente condenável que Eduardo baseasse a sua perseguição a Clarence em sonhos e presságios – algo muito fácil de ser manipulado pelo Diabo/Ricardo –, deve-se também levar em consideração que o passado de Clarence e a sua própria posição na cadeia de sucessão dinástica não o tornavam um parente totalmente confiável. 453SIMS, Valentine; WISE, Andrew. The Tragedy of King Richard the third. London: Sims-Wise, 1597.p.62

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patrimônios, dignidades institucionais e posições sociais. Por isso mesmo,

Richmond(Christus) exige de seus súditos(fiéis) tão somente que se submetam ao

seu novo testemunho de autoridade, para que todas as coisas retomem o seu fluxo

harmônico e encontrem o seu uso apropriado, superando o mecanismo da infernal

carnificina, suplantando a perda de deferência pelas autoridades patriarcais,

inibindo o desregramento da juventude, para, enfim, firmar-se uma paz duradoura.

Vejamos a eloqüência disso em sua oração-epílogo:

Rich. Inter their bodies as become their births, Proclaime a pardon to the soldiers fled, That in submission will returne to vs, And then as we haue tane the sacrament, We will vnite the white rose and the red, Smile heauen vpon this faire coniunction, That long haue frownd vpon their enmitie, What traitor heares me and saies not Amen? England hath long been madde and scard herselfe, The brother blindlie shed the brothers bloud, The father rashlie slaughterd his owne sonne, The sonne compeld ben butcher to the sire, All this deuided Yorke and Lancaster, Deuided in their dire deuision. O now let Richmond and Elizabeth, The true succeeders of each royall house, By Gods faire ordinance conioine together, And let their heires (God if thy will be so) Enrich the time to come with smooth-faste peace, With smiling plentie and faire prosperous daies, Abate the edge of traitors gracious Lord, That would reduce these bloudy daies againe, And make poore England weepe in streames of bloud, Let them not liue to tast this lands increase, That would with treason wound this faire lands peace, Now ciuill wounds are stopt, peace liues againe, That she may long liue heare, God saie Amen.

FINIS.454

Rich. Enterrem seus corpos conforme seus nascimentos. Proclamem um perdão para os soldados fugidos que retornarem para nós submissos. E, quando eu estiver consagrado, unirei as rosas branca e vermelha... O céu sorri para esta justa parelha, pois há muito tempo olhava carrancudo para sua inimizade. Que traidor, ao ouvir-me, não diria “Amen”? Por muito tempo, a Inglaterra esteve louca e feria a si mesma: de forma cega, o irmão derramou o sangue do irmão; de forma impetuosa, o pai assassinou o seu próprio filho; compelido, o filho foi assassino de seu pai. Tudo isso dividiu as casas York e Lancaster, divididas em suas terríveis fraturas... Oh, agora, deixem Elizabeth e Richmond, os verdadeiros sucessores de cada régia casa, unir-se pela justa vontade de Deus. E deixem seus herdeiros (se for, então, a vontade de Deus) enriquecer o tempo vindouro com paz suave e duradoura, com dias belos e prósperos de esplendorosa abundância. Acalmai a lâmina dos traidores, (gracioso Senhor!), que trariam de volta essa época sangrenta e fariam a pobre Inglaterra chorar rios de sangue!... Não os deixai viver para saborearem o crescimento desta terra, pois feririam com traição esta justa paz terrena. Agora, as civis feridas foram contidas e a paz novamente reina. Que ela possa, por muito tempo, reinar aqui. Deus diz Amen.

FIM.

Ora, quando nos reportamos novamente para o caso de Clarence, notamos

justamente que ele não ocupa a posição moral de distanciamento do demoníaco

que, como podemos perceber na teleologia moral da peça, é efetivamente aquela

dos inocentes da Torre e de Richmond. Pelo contrário, no decorrer do diálogo de

Clarence com seus assassinos na 3ª seqüência cênica, é explicitado para o

“leitor/audiência” o quanto ele participou do cenário demoníaco da Guerra das

Duas Rosas. No final das contas, tal como ocorrera com Eduardo, o demoníaco

agora se voltava contra ele: fechado na Torre, no momento derradeiro, sem outro

alguém para ouvi-lo, Clarence é julgado e sentenciado à morte por dois arrogantes

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assassinos anônimos de baixa condição social que fingidamente se dizem “loyal”

servidores do “rei” (na verdade, de Ricardo), contrapondo tal adjetivo ao “royal”

de Clarence. Assim, Clarence morre sem qualquer deferência à sua condição

ducal: é sepultado por mãos abjetas no anonimato de um barril ordinário.

A seqüência discursiva dramática do assassinato de Clarence exibe

contundentemente o mecanismo demoníaco da guerra civil: ela é o palco de

“apetite e fuga”; dos juramentos que se quebram; da paixão irrefreada e do

interesse egoísta e diabólico que se disfarçam de sacralidade; da busca de ganhos

por meios vis; da mutabilidade e enfraquecimento da deferência à honra

estamental ou ao self institucional; da insegurança ao patrimônio e à

descendência; do esmorecimento da autoridade patriarcal. Ora, ao casar-se com

Elizabeth de York, Richmond pretendia justamente pôr fim a tal mecanismo,

demonstrando que cada grande casa do reino deveria ver-se como (e portar-se

como parte de) uma Commonwealth455. Do ponto de vista histórico, como já

vimos no capítulo anterior, tal pretensão se expressou juridicamente em De Facto

Act (1495).

A guerra de engenhos verbais entre Clarence e os assassinos é tão eloqüente

na sua desqualificação social e moral – expondo que sua oscilação de fidelidade

durante a Guerra das Duas Rosas está longe de demonstrar um caracter inocente –

que valeria a pena expô-la na íntegra. Amplia o pathos trágico da cena, tal como

acontecera no caso do assassinato dos inocentes, o fato de pelo menos um dos

assassinos (2) de Clarence ter demonstrado sinais de remorso e arrependimento, a

ponto de não querer receber o seu pagamento pelo crime. Ironicamente, ao

proceder assim, um assassino anônimo acaba por ser posto numa posição

moralmente superior àquela de Clarence, Eduardo ou Ricardo durante a guerra

civil. Vejamos:

Cla. Where art thou keeper, giue me a cup of wine. 1 You shall haue wine enough my Lo: anon. Cla. In Gods name what art thou. 2 A man as you are. Cla. But not as I am, royall. 2 Nor you as we are, loyall. Cla. Thy voice is thunder, but thy lookes are humble. 2 My voice is now the Kings, my lookes mine owne. Cla. How darkly, and how deadly doest thou speake:

Tell me who are you, wherefore come you hither?

Cla. Onde estás tu, tenente. Dá-me um copo de vinho. 1 Vós já tivestes vinho suficiente, meu Lorde. Cla. Em nome de Deus, o que és tu? 2 Um homem, como sois vós. Cla. Mas não de sangue régio, como eu. 2 Nem sois vós leal, como nós. Cla. Tua voz é retumbante, mas humilde o teu semblante. 2 Minha voz é, agora, do Rei; e meu semblante meu mesmo. Cla. De modo tão sombrio e terrível tu falas...

Dizei-me: Quem sois vós? Porque viestes até aqui?

454SIMS, Valentine; WISE, Andrew. The Tragedy of King Richard the third. London: Sims-Wise, 1597.p.94 455Sobre este tópico, ver: KEMP, Theresa D.. “The Family is a Little Commonwealth: Teaching Mariam and Othello in a Special-Topics Course on Domestic England”. Shakespeare Quartely, volume 47, 1996(4): pp.451-460 456SIMS, Valentine; WISE, Andrew. The Tragedy of King Richard the third. London: Sims-Wise, 1597.pp.27-30

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Am. To, to, to. Cla. To murther me. Am. I. Cla. You scarcely haue the hearts to tell me so,

And therefore cannot haue the hearts to doe it. Wherein my friends haue I offended you?

1 Offended vs you haue not, but the King. Cla. I shal be reconcild to him againe. 2 Neuer my Lo: therfore prepare to die. Cla. Are you cald foorth from out a world of men

To slay the innocent? what is my offence. Where are the euidence that doe accuse me: What lawfull quest haue giuen their verdict vp Vnto the frowning Iudge, or who pronounst The bitter sentence of poore Clarence death, Before I be conuict by course of law?

[Página seguinte] To threaten me with death, is most vnlawfull: I charge you as you hope to haue redemption, By Christs deare bloud shed for our grieuous sinnes, That you depart and lay no hands on me, The deede you vndertake is damnable.

1 What we will doe, we doe vpon command.

Ambos. Para, para, para... Cla. Para assassinar-me... Ambos. Sim... Cla. Vós quase não tendes coragem para isso me dizer

e, portanto, não podeis ter coragem para isso fazer. Em que, meus amigos, eu vos ofendi?

1 Vós não nos ofendestes, mas ao Rei... Cla. Eu vou me reconciliar com ele novamente. 2 Nunca, meu Lorde! Assim, preparai-vos para a morte. Cla. Vós emergis da selvageria

para matar um homem inocente? Qual é a minha ofensa? Onde estão as evidências do que me acusam? Quais júris legais deram o seu veredicto para o Juiz carrancudo? Ou quem pronunciou contra Clarence a amarga sentença de morte antes que eu fosse condenado por processo legal? Ameaçar-me de morte é completamente ilegal. Eu vos instruo457, se desejais ter redenção, pelo sagrado sangue de Cristo derramado por nossos dolorosos pecados, que partais e não coloqueis em mim as mãos. O encargo do qual estais incumbidos é maldito.

1 O que nós faremos, temos ordens?... 457Dado o contexto de enunciação, esta parece ser a melhor opção de tradução, pois “charge”, no vocabulário jurídico, é geralmente utilizado para referir-se ao momento que, no exercício de sua autoridade (ou, conforme o caso, de forma autoritária), o juiz instrui o júri ou as testemunhas. A posição de Clarence é justamente esta, pois, neste momento de seu discurso, ainda está falando do alto de sua posição ducal e principesca – ou seja, ainda não está “mendigando pela vida”. Deste modo, para tentar demover os assassinos do crime pretendido, Clarence os instrui como um juiz soberano, lembrando que estarão condenados ao inferno se matarem um “inocente”. Esta é justamente a deixa para uma guerra de engenhos verbais em que Clarence será desfigurado à medida que descer ao nível de mendicante perante os seus algozes de “posição e rosto humildes”. 458Hipocritamente, Clarence diz que o assassino 2 está “perdido”, ou seja, estão longe do caminho da salvação. Ao “instruí-los” para tanto, Clarence ainda conserva sua altivez de nobre; mas, na verdade, como todo homem (nobre ou vulgar, se lembrarmos da fala de Brackenbury), apenas quer retardar a morte. 459Deste momento em diante, predomina um tratamento com pouca deferência pelo duque, com uma presença textual maior de “thou/thee” no lugar de “you/ye”. Deve-se também considerar que, todas as vezes em que Clarence usa “you/ye”, está se referindo a ambos os assassinos (i.e., “you” como plural de “thou”) – não se trata, pois, de um tratamento deferente. Se isso ocorresse, teria um efeito cômico, já que Clarence é um duque principesco. 460Como uma espécie de consciência moral, o assassino julga Clarence e lembra que ele não tem nada de “inocente”, pois traíra a Henrique VI e seu filho, vindo, ao final, para o lado de seu irmão Eduardo (IV) para torná-lo rei pela casa de York. 461Nesta seqüência, há uma completa sobreposição referencial entre Deus e Eduardo IV. 462Com esta frase, Clarence não apenas se nivela aos seus assassinos, mas se torna também um “cascalho moral” semelhante aos assassinos dos inocentes na Torre. Além disso, ele cria um plano causal em seu argumento que nivela semanticamente Eduardo e o Diabo. Com isso, a sua fala altera o campo semântico da sentença anterior, em que havia feito uma sobreposição referencial entre Deus e Eduardo IV. 463Além de conservar uma boa rima e ritmo em português para esta seqüência do diálogo, enfatizar “fault” como “pecados” ratifica a idéia de que o assassino, sem deferência, lembra que Clarence não pode “instruir” se está completamente imerso no pecado que fingidamente condena ao evocar o mandamento divino “não matarás”. Depois, na seqüência, Clarence apela para o tema religioso do julgamento humano: apenas quem não tem pecado (os pecados de tantos anos de guerra) poderia sinceramente julgá-lo. Assim, ao “leitor/audiência” é apresentada a condenação moral à guerra e o quanto pode ter um efeito destrutivo autofágico para a ordem social, pois faria os homens viverem “from out a world of men”. 464Hipocritamente, Clarence apela para o tema bíblico do “julgamento humano”, ou seja, que somente quem não tem pecado poderia “jogar a primeira pedra” contra ele. 465 Clarence reporta-se ao assassino 2. 466As edições contemporâneas preferem usar “drown” no lugar de “chop”, valendo-se da solução existente no fólio de 1623. No entanto, o termo “chop” no Q1(1597) da peça demonstra que tal seqüência estava muito mais obviamente revestida da imagem de uma “selvagem carnificina” do que a idéia de “apunhalar” e “afogar” Clarence. Um duque sendo picado em pedaços é desprovido completamente da figura de um homem, torna-se pasto para a ceia do Diabo (Ricardo). Comparando tal situação cênica com os assassinatos dos “sobrinhos inocentes” e de Hastings, as referências herodesianas à “ceia do Diabo” aparecem, por contigüidade temporal cênica, associadas à ceia ou ao jantar de Ricardo, que é sempre aludido depois de cada um desses assassinatos. 467Penso que o fato de o texto em inglês usar “performed” lembra ao “leitor/audiência” que o ato praticado é “cênico”, ou seja, uma interpretação/encenação textual/teatral da morte do duque, ao mesmo tempo que explicita a loucura do “teatro do mundo” – tal como aparece na oração final de Richmond –, da qual a própria Inglaterra das tantas guerras estava sendo palco. Inicialmente, pensei em deixar como tradução o termo “encenado” no lugar de “praticado”, mas tal solução eliminaria, em português, a ambigüidade semântica do termo “performed”, que oscila entre dar forma/fazer/executar/realizar e interpretar/atuar/encenar, que penso se conservar em português quando proponho que “um ato...(social e/ou teatral foi)...praticado”, já que podemos falar em português mais facilimente de “práticas/performances sociais” e “práticas/performances teatrais”.

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My friend, I spie some pitty in thy lookes: Oh if thy eye be not a flatterer, Come thou on my side, and intreat for me, A begging Prince, what begger pitties not?

[Página seguinte] 1 I thus, and thus: if this wil not serue, He stabs him.

Ile chop thee in the malmesey But, in the next roome. 2 A bloudy deede, and desperately performd,

How faine like Pilate would I wash my hand, Of this most grieuous guilty murder done.

1 Why doest thou not helpe me, By heauens the Duke shall know how slacke thou art.

2 I would he knew that I had saued his brother. Take thou the fee, and tell him what I say, For I repent me that the Duke is slaine. Exit.

1 So doe not I, go coward as thou art: Now must I hide his body in some hole, Vntill the Duke take order for his buriall: And when I haue my meede I must away, For this will out, and here I must not stay. Exeunt.456

Cla. Ceder e salvar vossas almas... 1 Ceder é covardia e afeminamento... Cla. Não ceder é bestial, selvagem, diabólico...

Meu amigo, percebo alguma piedade em tua face.465 Oh, se teus olhos não forem fingidos, vem para meu lado e suplique comigo... Não merece então piedade um príncipe mendicante que mendiga?

1 Sim...Assim e assim... Ele o apunhala Se isso não for bastante, eu te pico em pedaços466 no barril de malvasia no cômodo ao lado.

2 Um ato sanguinário e desesperadamente praticado467. Tão fingidamente quanto Pilatos, eu lavaria minhas mãos desta muito dolorosa culpa de assassinato.

1 Por que não me ajudas!... Pelos céus, o Duque saberá o quanto és covarde!...

2 Eu gostaria que ele soubesse que salvei o seu irmão. Fica para ti o ganho e fala para ele o que digo, pois me arrependo que o Duque não esteja vivo. Sai.

1 Mas eu não...Vai...Como tu és covarde!... Agora, devo esconder seu corpo em algum buraco Até que o Duque dê ordens para seu sepultamento. E para longe devo ir quando tiver meu pagamento. Por tudo que virá, aqui não devo ficar... Sai.

Deste modo, tal como o Duque de Buckingham, Clarence é apresentado como

um duque principesco que mudou de lado conforme os seus interesses particulares

durante a Guerra das Duas Rosas, sem se colocar qualquer trava moral por ter traído

Henrique VI e Eduardo de Lancaster. Além disso, na hora de sua morte, Clarence

mostra-se capaz de culpar o seu irmão Eduardo e o Diabo – nivelados semanticamente –

para justificar a sua traição aos Lancaster. Assim, paradoxalmente, o seu modo de

defender-se da acusação de traição já é um ato que revela os seus caracteres traiçoeiro e

perigosamente falastrão – nestes aspectos, ele nivela-se a Ricardo. Como os seus

argumentos esgotam-se em si mesmos, ele apela hipocritamente para um dos

mandamentos divinos, justamente aquele que é menos factível num ambiente de guerra

civil: “não matarás”. Assim, Clarence não consegue ser como Hastings (fiel estável à

Casa York) e, muito menos, como Stanley (fiel estável ao princípio da encarnação

virtuosa da dignidade régia), morrendo de forma muito mais infame e abjeta, posto que

revestida de anonimato, do que o Duque de Buckingham.

Enfim, última peça do ciclo shakespeareano da Guerra das Duas Rosas,

“Ricardo III” possui uma teleologia moral que ratifica a idéia de que não há corpo

político passível de configuração se duas grandes casas, iguais em dignidade e origem

(braços Plantagenet), não entrarem num acordo sobre como disporem de uma posição

eminente estável de comando. Durante a guerra civil, o egoísmo das facções políticas

apenas serviu para criar um mecanismo perigoso que tornava banal a traição e a

vingança pessoal, a perda da deferência e, no limite, a emergência de forças tirânicas

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demoníacas. Nesse sentido, independentemente de quem ocupe uma posição eminente

de comando, não haverá prosperidade e posteridade, mas tão somente acidente, se um

governo instituído não criar efeitos políticos que beneficiem a todos, de acordo com os

seus dons, méritos ou dignidades de nascimento. Este é o selo da paz duradoura

representada pelo advento de Richmond-Christus. Portanto, se o governo não for

conduzido no sentido da conservação e da renovação das honras e dignidades

patrimoniais-estamentais, sacrificando antigas ou criando novas somente em casos de

utilitas totius regni, não haverá Universitas possível.

A existência dramática de Ricardo III apenas exorbita um mecanismo que ele

não criou sozinho. Por isso, o “curso de sua vida odiosa” tem algo a ensinar: o

mecanismo de traição e vigança característico das guerras de facções

interdinásticas e intradinásticas medievais não faz ninguém efetivamente

prosperar, além de abalar a estabilidade do edifício social. Ora, como o advento

político de Ricardo representa dramaticamente a experiência extrema de

insegurança, imprevisibilidade e instabilidade institucional, o “curso de sua

vida odiosa” alimenta, pragmaticamente, um desejo (apetitus) pela recomposição

do corpo político em novas bases, mais virtuosas e fora de qualquer parâmetro

advindo de um mundo antigo tão cruamente dividido em duas rosas. Daí, o

advento político de Richmond representa justamente a inauguração de um novo

corpo místico para a Inglaterra, que deixa para trás o ethos guerreiro dos

faccionismos medievais e, exatamente por isso, cobra e pune com rigor quem

pretenda novamente azeitar os mecanismos da guerra civil através de

performances de traição e desonra.

Como sabemos, um componente marcante do ethos guerreiro medieval é a

prática da vingança privada, ou a obrigação da vingança, particularmente

manifesta nos duelos. Durante os períodos elizabetano e jacobita, a prática da

vingança foi oficialmente tratada como algo demoníaco468. Ora, numa perspectiva

histórico-sociológica, a sua condenação oficial pode ser entendida como mais um

indício importante de superação do ethos guerreiro medieval. Os paradoxos

morais e políticos de regular a vingança privada – transformando-a num problema

de ordem pública – e a transformação dos duelos numa prática esportiva (regrada

468Ver: WARD, David. “The King and Hamlet”. Shakespeare Quartely, volume 43, 1992(3):pp.280-302; HOLMER, Joan Ozark. “Draw, if you be men: Saviolo’s significance for Romeo and Juliet”. Shakespeare Quartely, volume 45, 1994(2): pp.163-189; MATHESON, Mark. “Hamlet and A matter tender and dangerous”. Shakespeare Quartely, volume 46,

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através de tratados específicos de etiqueta469) são marcos temáticos e dilemáticos

da emergência da configuração estatal da sociedade patrimonial-estamental. São

justamente os problemas relativos à regulação da prática da vingança – e,

vinculadas a isso, as expectativas morais e teológicas de manutenção da ordem

pública – que norteiam a análise que se segue, no próximo capítulo, do plano de

enredo e da caracterização moral e social dos personagens da peça “Romeu e

Julieta”(Q2, 1599).

1995(4): pp.383-397; MULLANEY, Steven. “Mourning and misogyny: Hamlet, the revenger’s tragedy, and the final progress of Elizabeth I, 1600-1607”. Shakespeare Quartely, volume 45, 1994(2): pp.139-162 469Ver especificamente: SAVIOLO, Vicentio. His Practise in two Books. London: John Wolf, 1594-95.

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Capítulo IV “Romeu e Julieta” e o avesso da Ordem Pública Tradicional

Os vários tratados políticos e de costume dos séculos XVI e XVII demonstram

uma sensibilidade refinada para as posturas, a fala e o comportamento que convêm ou

não a um indivíduo segundo sua posição e seu valor na sociedade, o que explica a

atenção que se dedica a cada manifestação da vida de uma pessoa – e, por extensão,

particularmente no caso da nobreza, da sua casa ou linhagem – para se verificar se está

respeitando a sua posição dentro dos limites tradicionais impostos pela hierarquia social.

Uma atitude que não respeitasse isso seria considerada como ofensa, deformação ou

desfiguração da honra ou posição social. Fazer esta consideração inicial é chamar a

nossa atenção para a necessidade de identificar os modelos culturais, expectativas de

prática social e a moralização da trama e de personagens da peça “Romeu e

Julieta”(1599), pois, semelhante à peça “Ricardo III”(1597), caracteriza punitivamente

o que seria considerado vício e ameaça à ordem pública, tanto ao nível do

comportamento individual quanto coletivo, para, através da catarse teatral, afirmar a

necessidade de que cada unidade doméstica de poder consolidasse o seu princípio

interno de autoridade patriarcal para se tornar efetivamente colaborativa com a

autoridade principesca da fictícia Verona e, por conseguinte, com a manutenção de uma

ordem pública tradicional.

Um dos pressupostos centrais para a manutenção desta ordem pública é que a

virilidade guerreira da nobreza não se perca do bom uso do discernimento e do

comedimento, pois, se se perder disso, torna-se uma mera fúria insensata ou furor

bélico, vingativo, particular e faccionista. Tal expectativa de comportamento explica-se

porque, com o advento da forma estatal de vínculos sociais, há uma demanda histórica

por comportamento exigente de que a virilidade guerreira não fosse desviada do que

agora seria considerado o seu verdadeiro uso: a segurança e a preservação de pessoas e

patrimônios que fossem de utilitas totius regni. Assim, esperava-se justamente que a

elite social – a nobreza – oferecesse o exemplo comportamental de excelência social e

política, de respeito às hierarquias naturais da sociedade, de discernimento e de

comedimento. Enfim, que tivesse um senso apurado de adequação do comportamento,

agora muito mais exigente quanto ao autocontrole dos impulsos agressivos e libidinais.

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O efeito histórico-sociológico disso seria a amenização ou refinamento dos costumes da

nobreza470.

Os vários tratados de costume e de política dos séculos XVI e XVII são

justamente exigentes de que o nobre ou gentil-homem consiga ser, ao mesmo tempo,

nascimento (senso de origem, i.e., não esquecer os laços sociais que o tornam humano e

definem as suas responsabilidades), céu (senso de transcendência, i.e., não esquecer as

virtudes cardeais e infundidas que o tornam semelhante a Deus) e terra (senso de

imanência, i.e., não esquecer os vícios do mundo e em si mesmo, assim como a

necessidade de agir sobre eles para evitar que recaiam sobre si e seu entorno os efeitos

destrutivos da fortuna). Nesse sentido, é fundamental que o desejo de glória e a

virilidade guerreira da nobreza sejam temperados pela engenhosidade, pelo

refinamento galante e por um senso aguçado de ocasião, pois, se o desejo de glória e a

virilidade guerreira permanecessem auto-referenciais, continuariam sendo tão somente

forças bestiais, anacrônicas e perniciosas para a configuração ou manutenção de um

corpus morale et politicum. Com isso, afirmo que o tipo de teleologia moral que

encontramos na configuração da trama e de personagens de “Ricardo III”(1597) é o

mesmo de “Romeu e Julieta”(1599).

Todavia, deve-se também considerar que, na trama da peça “Romeu e Julieta”,

tal como no paradoxo farmacológico das instituições e personagens em “Ricardo III”,

podemos observar o quanto que a engenhosidade, o refinamento galante e o senso de

ocasião poderiam também ser desviados dos fins mais virtuosos de acordo com as

intenções e espírito de cada indivíduo e, deste modo, gerar o oposto dos efeitos

esperados nos tratados de costume e de política: quebra da autoridade, desordem e

esfacelamento dos laços sociais e políticos. Nesse sentido, a peça “Romeu e Julieta”

não deixa também de ser um estudo centrado no indivíduo, pois encena a necessidade

de reformar o seu comportamento através de exemplos negativos de ações e eventos que

ameaçam a sua própria segurança e honra (e daqueles que lhe são caros), perigando

tornar tudo um nada social ou uma mera existência bestial. Eis uma das grandes

advertências morais a serviço da qual está a fictícia Verona dos Capuletos e

Montéquios, tal como esteve a fictícia Inglaterra dos Yorks e dos Lancasters da peça

“Ricardo III”.

470Ver: HOLBACH, Barão de. “Representantes”. In Verbetes Políticos da Enclopédia. São Paulo: UNESP, 2006. pp.231-244; ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, 2 vols.. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

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4.1. Uma proposta de legibilidade para o in-quarto de 1599 de “Romeu e

Julieta”

Entre 1597 e 1622, as edições in-quarto existentes da peça “Romeu e Julieta”

que são relacionadas à companhia teatral da qual Shakespeare fazia parte não o

mencionam como o seu autor em nenhum dos frontispícios. Somente podemos observar

o seu nome ser atribuído à peça a partir de uma variante da edição de 1622471. No fólio

de 1623, a peça não possui o primeiro prólogo e é anunciada tão somente como “A

Tragédia de Romeu e Julieta”, o que é bem distinto do modo como, até 1637, vemos a

peça ser anunciada nos frontispícios dos in-quartos: “A MAIS EXcelente e lamentável

Tragédia de Romeu e Julieta”. Observemos abaixo o frontispício do in-quarto de 1599:

Optei por utilizar o in-quarto de 1599 como edição-chave pois é a partir

dela que a peça é hoje mundialmente conhecida, lingüisticamente adaptada

para o teatro e traduzida. Assim, voltar a esta edição de base, mergulhar o

olhar em sua materialidade, tem o efeito de criar um misto de

familiaridade e estranhamento em relação a uma história muito conhecida

e, deste modo, chamar a atenção para uma proposta de legibilidade que

começa no próprio frontispício: a tragédia é excelente porque cumpre a

regra clássica de catarse teatral, ou seja, punir o vício e exaltar a virtude.

No entanto, isso está implicado com lamentáveis perdas que atingem as

471Ver Anexo Documental, que está em ordem alfabético-cronológica por título e português.

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principais casas da fictícia Verona: a casa principesca de Escalo, a casa

Capuleto e a casa Montéquio.

Como a materialidade de 1599 não divide a peça formalmente em atos e

cenas, não vou seguir a forma editorial clássica – utilizada pela edição

oxfordiana – de sobrepor marcas de atos e cenas à leitura do segundo in-

quarto; pelo contrário, quando eu estiver falando de cena, deve-se entender

por isso que me refiro à seqüência cênica (ou seqüência discursiva

dramática), isto é, o tempo em que, discursivamente em página, é sugerida

uma continuidade de “presença em palco” até que esteja completamente

vazio e uma nova ambientação temporal, espacial ou temática seja

proposta através das didascálias e falas dos personagens. Considerando

este critério, identifiquei na edição de 1599 um total de 24 seqüências

cênicas, as quais descrevo abaixo:

1ª seqüência cênica: Primeiro prólogo. O coro resume a trama central: a luta e o ódio entre duas grandes casas, iguais em dignidade, que abalam a paz civil e a ordem pública; e, em exata analogia ao descontrole desagregante e degradante de seu furor bélico, nasce no seio de sua contenda o furor amoroso de dois jovens amantes, cujas mortes, punitivamente, selariam a paz em Verona. 2ª seqüência cênica: Entram Sansão e Gregório, ambos servidores da casa Capuleto472, portando espadas e escudos. Sansão começa o diálogo, lançando bravatas sobre a sua valentia e seu ódio contra os Montéquios. Gregório inicia com ele uma cômica e obscena guerra de engenho verbal, fazendo troça de sua valentia e questionando a sua virilidade guerreira. No decorrer deste diálogo, há trocadilhos verbais de Sansão que aludem tanto à sua virilidade guerreira quanto sexual. Embora Gregório provoque os brios de Sansão, lembra também dos riscos legais de se provocar uma luta nas ruas de Verona contra os Montéquios. Entram dois servidores da casa Montéquio. Sansão planeja um artifício de provocação contra eles que criasse a aparência de que a briga foi iniciada pelos servidores Montéquios. Agindo assim, Sansão e Gregório esperavam que as leis de Verona ficassem do seu lado; em outras palavras, esperavam manipular os seus efeitos em favor de fins particulares que em nada serviam à paz civil. Benvoglio, parente da casa Montéquio, entra em cena e presencia o início do duelo de espadas. Benvoglio puxa a sua espada e tenta admoestá-los a conter os seus furores. Entra Teobaldo, membro da casa Capuleto, e interpreta a cena como uma luta de três Montéquios contra dois Capuletos. Por isso, Teobaldo desafia Benvoglio para um duelo singular. No entanto, Benvoglio se recusa, dizendo que estava tentando apartar a briga e, então, pede para Teobaldo fazer o mesmo. No entanto, Teobaldo não acredita que seja possível desembainhar a espada e, ao mesmo tempo, falar de paz. Teobaldo e Benvoglio lutam. O alarido chama a atenção de outros três ou quatro cidadãos. Eles entram em cena com lanças e porretes. Entram senhor e senhora Capuleto. O velho senhor Capuleto veste uma túnica e, vendo a confrontação, clama por sua

472É sintomático que a luta comece como uma “provocação Capuleto”, já que é a casa mais explicitamente desequilibrada: o senhor Capuleto é muito mais velho que sua esposa, que, por sua vez, derroga várias vezes a virilidade do marido em situações públicas em que ele próprio deveria ter palavra de autoridade. Além disso, o senhor Capuleto tem mudanças súbitas de humor ou opinião, sendo dado a furores desmedidos e demonstrando uma inconstância feminil. Assim, tal como ele mesmo perceberia mais adiante em sua confrontação com Teobaldo, os parentes e servidores do senhor Capuleto esquecem algumas vezes quem é o galo da casa.

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5ª seqüência cênica: Entram Romeu, Mercutio e Benvoglio486, com cin6376( )-136.376( )-136.3u seis376( )-136.3utros

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Romeu o motivo do súbito furor de Teobaldo, senhor Capuleto adverte-o a nada fazer contra o jovem Romeu, lembrando-lhe que Romeu é um perfeito cavalheiro e muito querido em Verona, além de ser um exemplo de jovem virtuoso e bem regrado. Como Teobaldo não parece dar ouvido às suas advertências, rebatendo os seus argumentos ao dizer que seria uma vergonha não reagir àquilo que entedia ser uma ofensa, senhor Capuleto usa um tom mais ríspido de autoridade para lembrar a Teobaldo quem era o “galo da casa”. Teobaldo sai de cena, prometendo cobrir de amargura a doçura de Romeu. Inicia o primeiro diálogo entre Romeu e a jovem dama. Galantemente, Romeu toca a sua mão, chamando-a de sagrado santuário; e metaforiza a jovem dama como uma imagem de santa e a si mesmo como um peregrino que veio adorá-la e purificar-se490. Por fim, quando trocam beijos, a jovem dama diz que Romeu beija tal como um cavalheiro de manual de etiqueta: “Youe kisse bith booke”491. Sem anunciar o nome da jovem dama, a Ama aparece dizendo que sua mãe quer falar-lhe. Então, Romeu pergunta a Ama a identidade da jovem, quando então fica sabendo que caíra em nova paixão transgressora, pois a sua jovem e ofuscante dama era Julieta Capuleto. Benvoglio chama Romeu para irem embora, pois a festa estava terminando. Senhor Capuleto se despede de todos com cortesia. Julieta, por fim, tem a chance de pedir para a Ama inquirir sobre a identidade de Romeu492. Ao saber que era um Montéquio, ela lamenta que seu único amor tenha nascido das entranhas do inimigo. Julieta é chamada e todos saem. 6ª seqüência cênica: Segundo prólogo, em que o coro fala da inconstância e mutabilidade dos olhos apaixonados dos jovens. Estes, mesmo com escassos recursos, mas movidos pela paixão, sabem encontrar os meios necessários para alcançarem os seus fins amorosos493. 7ª seqüência cênica: Entra Romeu sozinho, dizendo que não consegue partir. Entram Benvoglio e Mercutio. Romeu pula o muro do jardim dos Capuletos. Benvoglio o avista e chama-o, pedindo para Mercutio fazer o mesmo. No entanto, em vez de chamá-lo, Mercutio o conjura494. Benvoglio previne Mercutio para não tratar Romeu deste modo, pois, se escutasse, ficaria aborrecido. Por fim, chegam à conclusão de que não adianta procurar quem não quer ser achado e, assim, saem de cena. Romeu reaparece e, como se estivesse respondendo às troças de Mercutio, diz: “He ieast at scarres that never felt a wound...” (“Caçoa das chagas aquele que nunca foi ferido...”). Logo em seguida, avista Julieta495 e compara-a ao sol que nasce no oriente e ofusca a lua. Julieta inicia o seu primeiro solilóquio, sem perceber a presença de Romeu. Este fica à espreita e, fazendo isso, descobre que ela também está apaixonada por ele, mas percebe a angústia de Julieta – que é também a sua – devido à inimizade entre suas respectivas casas. Quando ela indaga sobre o que é um nome e, por fim, pensando estar sozinha, pede que Romeu jogue fora o seu nome ou jure somente pelo seu amor, Romeu sai da penumbra, surpreendendo-a, e diz que quer ser rebatizado se for necessário para tê-la por inteiro. Depois do breve susto de Julieta, eles iniciam um diálogo de sedução amorosa. Julieta testa a disposição de Romeu amá-la de verdade, deixando bem claro que não pretendia ser mais uma conquista feita com os artifícios dos

490O uso metafórico de “peregrino” e “imagem de santa” num jogo de sedução entre jovens explora a associação moral que o discurso reformado faz entre idolatria e fornicação. Por outro lado, a relação metafórica entre “peregrino” e “imagem de santa” dá a Julieta a posição cênica de imobilidade/passividade perante os movimentos de toque e beijo do jovem “peregrino” Romeu. Deste modo, ela mostra saber fazer o jogo galante: aceita ser cortejada sem aparentar ser uma jovem leviana. 491Como veremos mais adiante, isso faz parte do jogo de sedução decoroso: Julieta afirma com tal expressão que não cai em qualquer sedução galante, que não vai ser mais uma presa de mascaradas e que, portanto, não é uma jovem leviana que se deixa levar por qualquer sedutor que não queira mais do que uma aventura. Ela volta a isso no diálogo do balcão, testando as intenções de Romeu e exigindo dele que se casem antes de viverem plenamente o seu furor amoroso. 492Não é possível saber a quem a Ama inquire para ter conhecimento da identidade de Romeu, o que abre muita margem para diversas soluções cênicas. De qualquer forma, o fato de a Ama ser a personagem que revela a identidade dos jovens apaixonados um para o outro já começa a demarcar a sua tipificação dramática como velha alcoviteira. 493Em certa medida, este prólogo antecipa uma censura moral que Frei Lourenço dirigiria diretamente a Romeu em seu primeiro encontro na 8ª seqüência cênica. 494Tanto no in-quarto de 1599 quanto no fólio de 1623, a frase “Nay Ile coniure too” aparece graficamente como se fosse de Benvoglio. No entanto, dada a seqüência de argumentos entre Benvoglio e Mercutio, é certo imaginar que se trata do início da fala de Mercutio, tal como sugere a edição oxfordiana da peça. 495Dada a configuração dos diálogos, deduzimos que Julieta entra em cena (num plano mais elevado do palco) tão logo saem Mercutio e Benvoglio.

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livros de galantaria496. Romeu recompõe as suas juras de amor, mas Julieta pede para ele não jurar, pela lua, a verdade do amor que sente por ela. Como a lua é inconstante, Julieta pede para Romeu jurar somente por si mesmo, pois o seu “self”497 seria o deus de sua idolatria498. Logo em seguida, Julieta pede para Romeu não jurar499 e fala de seu profundo e infinito amor por ele. Então, Julieta ouve algum barulho vindo de dentro. Trata-se de sua Ama. Julieta pede para Romeu esperar um pouco e sai de cena. Enquanto a espera, Romeu diz temer que possa estar sonhando. Julieta retorna e afirma que, se as intenções de Romeu forem realmente honráveis – i.e., se o seu propósito for efetivamente casamento –, iria com ele para qualquer lugar do mundo. Então, são surpreendidos pela voz da Ama, que chama Julieta para recolher-se. Em seguida, Julieta afirma que, se as intenções de Romeu não forem o casamento, deveria deixá-la com sua dor...Mais uma vez ouve-se a voz da Ama...Julieta fala que enviará alguém para encontrar Romeu, pois este deveria estipular local e hora em que ela deveria ir ao seu encontro. Eles se despedem com juras de amor e Julieta sai de cena. Logo em seguida, ela retorna e eles trocam mais juras de amor. Por fim, Julieta pergunta a Romeu a que horas deveria enviar um mensageiro ao seu encontro. Romeu define nove horas. Julieta quer-lhe falar mais alguma coisa, mas não lembra. Romeu diz que ficará ali até que ela se lembre. Julieta diz, então, que poderia continuar a esquecer só para ele permanecer ali para lembrá-la o quanto amava a sua companhia. No entanto, ela percebe que já estava amanhecendo. Então, despede-se amorosamente e sai. Romeu, fazendo uma breve alusão poética sobre a tensão entre noite e dia na abóbada do oriente, diz que não pode repousar quando o dia já está raiando500. Assim, pretende ir à cela de Frei Lourenço para pedir a sua ajuda e contar-lhe a sua felicidade. Romeu sai501. 8ª seqüência cênica: Entra em cena Frei Lourenço, carregando um cesto de ervas. Ele desenvolve o seu solilóquio sobre o paradoxo de benignidade e malignidade que todo ser da natureza contém, entre os quais, o homem. Romeu entra em cena tão logo Frei Lourenço afirma que, de acordo com as circunstâncias de ação, algumas vezes o vício dignifica502.

496Com tal atitude, Julieta também está respondendo conforme os manuais de etiqueta, pois está tentando manter para si, depois que Romeu “surpreendeu os seus pensamentos”, a aura respeitosa do recato, que exigia a resistência galante à galantaria cavalheiresca, tal como fizera ao final da festa (5ª seqüência cênica) ao afirmar que Romeu beija “bith book”. 497Aqui, o “self” de Romeu é aquele que serve aos interesses amorosos de ambos, ou seja, um “self” sem predicativos ou pedículos estamentais ou corporatistas. 498“Iu. Do not sweare at all:/ Or if thou wilt, sweare by thy gracious selfe,/ Which is the god of my Idolatrie,/ And Ile beleeue thee.”. Aqui, tal como na cena de sedução no baile de máscaras, há a associação implicativa entre idolatria e fornicação, o que significa dizer que os jovens “amam com os olhos”, tal como afirmaria posteriormente Frei Lourenço a Romeu. 499Há nessa seqüência de juras uma certa ironia dramática perceptível pelo “leitor/audiência”, mas não por Julieta: ela pede para Romeu não jurar pela lua e, em seguida, pede para ele jurar por seu “self” e, logo depois, pede para ele não jurar. Como o “leitor/audiência” já sabe desde a cena do baile de máscara (sendo mais uma vez lembrado no segundo prólogo), o “self” do jovem Romeu é a própria inconstância. Assim, para um maior conforto moral do “leitor/audiência” elizabetano, o diálogo evolui no sentido de Julieta cobrar de Romeu que, em vez de fazer apenas juras de amor “bith book”, deveria associar a galantaria amorosa a uma proposta efetiva de casamento. 500As catorze últimas linhas desta seqüência cênica variam quanto à atribuição de alguns versos a Romeu ou Julieta, se comparamos o in-quarto de 1599 ao fólio de 1623. Esta variação não altera o significado geral dos versos. No entanto, a edição oxfordiana suprime quatro versos que constam no in-quarto e no fólio, pois são basicamente os mesmos do início do solilóquio de Frei Lourenço na 8ª seqüência cênica. Com isso, elimina-se injustamente o continuismo do jogo de paradoxos que define o caracter cênico de Romeu – e que seria retomado, em novos termos, por Frei Lourenço. Como veremos, o solilóquio de Frei Lourenço, por contigüidade cênico-narrativa, funciona como uma preparação/apresentação da nova entrada de Romeu. Assim, a repetição re-estilizada no início de uma nova cena daqueles versos que foram enunciados no final de outra cena mantém na memória do “leitor/audiência” a sensação de continuidade, ou seja, que a presença em palco de Frei Lourenço anuncia que Romeu entrará em cena a qualquer momento e, portanto, que não transcorreu muito tempo entre a saída cênica de Romeu e seu encontro cênico com Frei Lourenço, pois ambos se vêem quando a aurora ainda começa a resplandecer na abóbada do oriente. Por isso, não concordo com a solução dada pela edição oxfordiana, que pensa ter corrigido um erro gráfico ou estilístico. 501É importante notar que na cena do encontro de Julieta e Romeu no jardim dos Capuletos, em que estão momentaneamente sozinhos, não há qualquer contato físico. Portanto, não veremos Romeu escalando a parede para alcançar Julieta, como é recorrentemente proposto em versões contemporâneas do teatro e do cinema. A figuração do espaço e do movimento corporal dos personagens, que pode ser deduzida de seus discursos, demonstra que Julieta e Romeu estão fisicamente distantes: ela no alto e ele solo do palco. Isso mantém as expectativas de decoro, pois os dois jovens, arrebatados pela paixão, apenas se tocam sozinhos duas vezes: quando consumam o casamento e quando morrem. Aliás, quando eles estão na cela do Frei Lourenço, pouco antes de se casarem, o próprio padre recomenda que eles não fiquem sozinhos por muito tempo, o que indiretamente confere ao seu furor amoroso uma dimensão lasciva e bestial. 502Este solilóquio caracteriza Frei Lourenço como um perito em alquimia botânica, o que cria um paralelo analógico com o mago renascentista. Sob um olhar reformado, isso compõe a caracterização de Frei Lourenço como alguém não muito confiável, pois o seu conhecimento tanto pode servir para curar quanto para matar. Ironicamente, no decorrer do

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Frei Lourenço não percebe a presença de Romeu, que o saúda tão logo o padre termina o seu solilóquio. Frei Lourenço estranha que Romeu esteja tão cedo a procurá-lo e indaga se, na verdade, ele dormiu em sua própria cama durante a noite. Como Romeu confirma que não dormiu, Frei Lourenço imagina que tivesse estado com Rosalina, desconjurando o seu pecado. Então, Romeu esclarece que já havia esquecido o nome de Rosalina, que amava Julieta, filha de seu inimigo, e pretendia se casar com ela. Frei Lourenço estranha a mudança súbita de humor em Romeu, pois há bem pouco tempo sofria plangentemente por Rosalina. No entanto, depois de censurar a inconstância e a idolatria amorosa de Romeu, Frei Lourenço aceita ajudá-lo, pensando haver nessa situação uma boa oportunidade de tirar do vício dos jovens um efeito politicamente virtuoso: o fim do rancor entre Capuletos e Montéquios. Eles saem, diferenciando-se claramente como caracteres dramáticos: Romeu quer partir depressa (impetuosidade), enquanto Frei Lourenço rebate dizendo que deve agir sábia e calmamente (prudência), pois sempre caem aqueles que correm depressa. 9ª seqüência cênica: Entram Benvoglio e Mercutio. Este pergunta se Romeu voltou para casa. Benvoglio diz que não, segundo o relato de um serviçal da casa Montéquio. Além disso, Benvoglio diz que Teobaldo enviou à casa dos Montéquios uma carta em que desafia Romeu para um duelo503. Mercutio questiona se Romeu poderia enfrentar Teobaldo, já que o considera combalido em sua virilidade devido à sua paixão por Rosalina. Além disso, Mercutio debocha do nome de Teobaldo e de sua etiqueta galante, chamando-o de Príncipe dos Gatos504 e de “valoroso capitão das formalidades”. Assim, Mercutio demonstra grande desprezo pelas etiquetas das galantarias e do duelo505, debochando de suas exigências de maneios corporais e verbais (particularmente a profusão de termos estrangeirados ou de sua prosódia). Então, entra Romeu506. Mercutio o descreve como um peixe seco e sem ova, ou seja, empalidecido e afeminado pelo amor não correspondido de Rosalina; em seguida, Mercutio mostra desagrado por Romeu tê-los abandonado ao final da festa do Capuletos. Então, Romeu desculpa-se, dizendo que tinha um assunto importante para resolver e que, em tais casos, um homem poderia violar as regras de cortesia. Isso dá a deixa para Mercutio iniciar com Romeu uma cômica e obscena guerra de engenhos verbais. No entanto, dada a agudeza manifestada por Romeu, Mercutio percebe que algo mudou em seu humor, pois

desenvolvimento dramático, ele criaria uma morte artificial para Julieta de modo a salvar a sua alma de um mal maior: a bigamia. No entanto, o traço mais explicitamente explorado em sua caracterização dramática é a ética maquiavélica dos fins, particularmente quando afirma que a virtude é definida pela adequação ou medida entre as coisas/ações e as circunstâncias, tal como sugere Maquiavel no capítulo XVIII de “O Príncipe”. Além disso, quando diz que, algumas vezes, o vício dignifica, esta fala de Frei Lourenço antecipa justamente a sua “solução maquiavélica” para as guerras civis entre as famílias dos jovens amantes: o amor “sem pedículo estamental”, “idólatra” e “desmedido” de Romeu e Julieta (portanto, um vício, mas, neste contexto, um mal menor particular) poderia ter efeitos virtuosos para a ordem pública (o bem maior do principado) se eles se casassem, mesmo à revelia da vontade dos pais (portanto, outro vício, mas, neste contexto, um mal menor particular), pois seria a chave inesperada para o fim das contendas de duas grandes casas, iguais em dignidade, que abalam a paz civil e derramam sangue cidadão. Enfim, na avaliação de Frei Lourenço, as guerras civis são um mal maior público (i.e., algo que afeta destrutivamente a utilitas totius regni) que um mal menor (i.e., o furor amoroso e a desobediência de Julieta e Romeu) poderia corrigir. No entanto, como sabemos, a teleologia moral da peça pune a sua ética maquiavélica com o malogro completo de seus planos. 503Este é o único momento da peça em que um personagem segue a etiqueta do duelo: envia uma carta para desafiar seu oponente, definindo armas, lugar e motivo. Como sabemos, Teobaldo agiu assim porque foi refreado pelo senhor Capuleto durante o baile. No entanto, por ironia trágica, como Romeu não passa em casa desde o baile, não terá conhecimento do desafio e, no final das contas, Teobaldo luta com Romeu de uma forma completamente contrária à etiqueta do duelo. Ver: HOLMER, Joan Ozark. “Draw, if you be men: Saviolo’s significance for Romeo and Juliet”. Shakespeare Quartely, volume 45, 1994(2): pp.163-189 504Mercutio chama Teobaldo (“Tybalt” na edição de 1599) de “Príncipe dos Gatos”, o que é uma alusão literária a Tibert, personagem do Roman de Renart. Conforme o bestiário medieval, o gato representa a ambigüidade moral: pode ser tanto dócil quanto furtivo e traiçoeiro, pois, como um predador não completamente domesticado, o gato é a fronteira simbólica entre a civilidade e a selvageria. Ora, as ações de Teobaldo demonstram justamente este caracter felino. Além disso, nos séculos XVI e XVII, tal imagem também serve para caracterizar tipologicamente o cortesão. Como bem lembram Maravall e Elias, o cortesão é o modelo de homem à espreita de tudo e de todos, e que está sempre buscando equilibrar em suas ações a civilidade cavalheiresca, a astúcia sorrateira e a virilidade guerreira. 505Em certa medida, é possível traçar um paralelo tipológico dos personagens Ricardo III e Eduardo IV da peça “Ricardo III”(1597) com os personagens Mercutio e Romeu da peça “Romeu e Julieta”. Na 5ª seqüência cênica, Mercutio indicia a deformidade física de seu rosto, o que logicamente o impede de exercitar galanteios com as damas sem se tornar risível. Nesse sentido, ele é o oposto de Romeu, cuja beleza poderia encher os olhos de qualquer dama – com exceção de Rosalina, que prefere a vida celibatária. Assim, na impossibilidade de ser um amante, Mercutio prefere ser um tratante muito dado à bufonaria e a ocasionais furores belicosos. 506Antes da entrada de Romeu, aparece em meio ao diálogo de Benvoglio e Mercutio uma suposta fala para Romeu (“Ro. Why what is Tybalt?”), que já aparece corrigida no fólio de 1623 (“Ben. Why what is Tibalt”).

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voltou a ser mais sociável e, portanto, não parecia ser mais aquele “imbecil melancólico e apaixonado de um amor chorão”. Este jogo de engenhos verbais entre Mercutio e Romeu dá o tempo dramático necessário para a entrada da Ama de Julieta e seu serviçal Pedro. A Ama se dirige aos três, querendo saber qual deles é Romeu507, mas é aturdida pela bufonaria obscena de Mercutio, que zomba dela chamando-a de puta velha e alcoviteira, sem que Pedro fizesse qualquer coisa para resguardar a sua honra. Depois que Benvoglio e Mercutio saem, a Ama inquire Pedro por deixar que Mercutio fizesse “uso dela a seu bel prazer”. Então, Pedro responde que não viu ninguém fazendo uso dela, pois, se o visse, botaria a sua arma para fora508. Tendo partido os dois cavalheiros, a Ama pode agora conversar mais calmamente com Romeu. Ela quer saber que recado ele teria para Julieta. Então, Romeu combina que Julieta deveria vir, à tarde, ao seu encontro na cela de Frei Lourenço para se casarem. Romeu recompensa os serviços da Ama e pede que ela o recomende a Julieta. Todos saem. 10ª seqüência cênica: Entra Julieta, que lamenta o fato de a Ama ser velha e coxa509, pois isso a fazia demorar com as notícias de Romeu. Entram a Ama e Pedro. Julieta interpela imediatamente a Ama. Resfolegante, a velha Ama manda Pedro ficar na porta, enquanto ela conta – fazendo várias tergiversações sobre a sua falta de fôlego e dores nos ossos e pelo corpo, às quais Julieta não dá efetiva importância – o plano de se casarem secretamente na cela de Frei Lourenço, a pretexto de Julieta estar indo se confessar. De sua parte, a Ama arrumaria as cordas para fazer a escada para Romeu ter acesso em segredo ao quarto de Julieta depois do casamento510. Combinado o plano, ambas saem. 11ª seqüência cênica: Entram Frei Lourenço e Romeu. O padre faz mais uma advertência a Romeu sobre a necessidade de amar com moderação. Entra Julieta, que troca juras de amor com Romeu. Frei Lourenço não quer que eles permaneçam sozinhos antes de realizarem os votos de matrimônio. Todos saem511.

507Do ponto de vista do continuismo textual, esta postura da Ama não é incongruente, pois, quando ela identificou Romeu no baile para Julieta, ele usava máscara (“anticque face”, como diz Teobaldo). De qualquer forma, a cena é configurada para criar um proposital choque cômico entre o “bufão Mercutio” e a “velha alcoviteira”. Ora, para colher o recado para Julieta, se a Ama seguisse o decoro, deveria ter abordado Romeu discretamente, o que significaria mandar Pedro se aproximar dos três cavalheiros em cena e, sendo Romeu previamente identificado pelo serviçal, Pedro deveria pedir para ele ir conversar reservadamente com a Ama. No entanto, se a Ama seguisse tal decoro, seria desperdiçada a única oportunidade dramática de criar um choque cênico entre os dois personagens bufônicos centrais da peça. Como podemos observar em outras peças do cânone shakespeareano, é comum sacrificar algumas nuances de verossimilhança em função da exploração de algumas tiradas cômicas. 508A fala de Pedro completa o jogo cômico-obsceno de Mercutio, o que demonstra que Pedro está caracterizado em palco do mesmo modo que Mercutio, ou seja, como um bufão. A Ama reclama por Pedro deixar que “euery knaue to vse me at his pleasure” (“qualquer vilão faça uso de mim ao seu bel prazer”), no sentido de Mercutio usá-la como objeto de escárnio; Pedro, para justificar a sua inação (e talvez covardia), dá às palavras da Ama uma conotação sexual – “I saw no man vse you at his pleasure: if I had, my weapon shuld quickly haue bin out” (“Eu não vi ninguém fazer uso de vós ao seu bel prazer. Se tivesse visto, minha arma rapidamente seria posta para fora!...”). Assim, como não houve ameaça sexual à honra da Ama, Pedro nada fez; mas, se houvesse alguma ameaça, ele botaria rapidamente a sua arma para fora. No entanto, isso cria uma ambigüidade de sentido para o uso de weapon: tanto poderia ser a arma que defenderia a honra ultrajada da Ama quanto poderia ser o próprio falo de Pedro a ultrajá-la, já que a duplicidade de sentido cria a impressão de que Pedro participaria de um ultraje sexual contra a honra da Ama caso tivesse oportunidade. Considerando isso, é provável que Pedro, tal como vemos indiciado em outras ocasiões, tenha sido encenado por William Kempe (c.1560-1603) em algumas performances durante a década de 1590, já que ele era um ator cômico renomado da companhia teatral de Shakespeare e seu nome é associado ao personagem “Pedro” numa didascália da 21ª seqüência cênica. 509A descrição física da Ama (velha e coxa), que está fazendo exatamente o papel de alcoviteira, arremata a nossa percepção de seu caracter como cômico-vulgar e moralmente condenável. Além disso, tal cena de Julieta com a Ama cria a circunstância cênica de confrontação entre dois tipos dramáticos: a jovem ardente apaixonada (com seu egoísmo cruel: a indiferença de Julieta em relação aos achaques da Ama) e a velha corrupta e alcoviteira (que quer tirar para si o melhor partido possível de um encontro amoroso ilícito). Como podemos notar ao longo da peça, a Ama constrói várias opiniões a respeito de Romeu, dependendo do interlocutor e das circunstâncias. Quando se evidencia para Julieta a astúcia sorrateira (ou inconstância de opinião) da Ama, a jovem deixará de cultivar qualquer cumplicidade com a velha. Quando isso acontecer, será o ápice do isolamento social de Julieta, completado por sua morte artificial e, logo em seguida, por sua morte efetiva. 510A necessidade de fazer a corda reforça a idéia de que Romeu não poderia ter tido qualquer tipo de contato físico com Julieta na 7ª seqüência cênica, diferentemente, portanto, do que sugere as produções teatrais e cinematográficas contemporâneas. 511Portanto, o casamento de Romeu e Julieta não tem existência cênica, o que intensifica para o “leitor/audiência” a sua dimensão de segredo ilícito. Portanto, com exceção do padre, não há testemunhas de seu casamento. Ora, como o casamento ocorre fora da vista de todos, o “leitor/audiência” é poupado da posição incômoda de testemunha de um ato ilícito. Além disso, deve-se destacar que o casamento secreto tem a anuência de um padre católico que aceita que a prática católica da confissão seja utilizada como pretexto para a realização de um ato ilícito (um casamento sem consulta ou mediação dos

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12ª seqüência cênica: Entram Mercutio, Benvoglio e outros homens. Benvoglio fala a Mercutio que deveriam sair logo dali, pois dias quentes de verão fervem o sangue e, se encontrassem Capuletos, seria pouco provável não haver contenda. Mercutio debocha de Benvoglio, dizendo que ele não poderia ser seu conselheiro em tal assunto, pois entrava em contendas, por qualquer motivo de pouca importância, até mesmo com as mais simples criaturas512. No entanto, ao falar de Benvoglio, Mercutio fala efetivamente de si mesmo, como comprovam os efeitos da entrada cênica de Teobaldo: quando este entra em cena com Petruchio e outros homens, pretendendo falar com Benvoglio ou Mercutio, este último já começa debochando de Teobaldo por trejeitar-se segundo os manuais de etiqueta, de modo a incitá-lo para um duelo. Então, Teobaldo enfurece Mercutio ao dizer que estaria concertando com Romeu. Benvoglio intervém, advertindo-os que não seria apropriada uma confrontação na rua aos olhos de todos e que, portanto, deveriam ou arrefecer os ânimos, ou ir embora dali. Mercutio não dá importância para as advertências de Benvoglio. Entra Romeu. Teobaldo volta a sua atenção para Romeu513, que estava acabando de vir de seu casamento secreto com Julieta. Teobaldo xinga Romeu de vilão, mas Romeu não aceita a provocação, dizendo que tinha razões para amar ternamente Teobaldo, assim como, o nome Capuleto como se fosse o seu próprio nome. Mercutio interpreta a atitude de Romeu como uma vil e afeminante submissão. Então, retoma a confrontação verbal com Teobaldo para incitá-lo a um duelo. Teobaldo aceita a provocação, mas Romeu tenta demover Mercutio da necessidade de lutar, o que não surte qualquer efeito. Teobaldo e Mercutio começam a duelar. Romeu pede para Benvoglio puxar a sua espada para ajudar a desarmá-los, e clama para que eles lembrem das ordens do príncipe, que proibiam confrontações armadas pelas ruas de Verona. Teobaldo foge. Mercutio grita ter sido mortalmente ferido, dizendo a Romeu que Teobaldo o feriu quando Romeu se colocou entre eles no momento do duelo, pois o estocou com a espada por baixo do braço de Romeu. Mercutio amaldiçoa várias vezes as casas Capuleto e Montéquio. Benvoglio sai de cena carregando Mercutio. Romeu lamenta que a sua doce Julieta o tenha afeminado a ponto de seu amigo Mercutio ter de lutar com Teobaldo em sua honra e, agora, sente o profundo pesar por seu amigo ter sofrido uma ferida mortal. Entra Benvoglio, que anuncia a morte de Mercutio. Então, Romeu pressagia que tal dia iniciaria o negro destino que outros dias findariam. Benvoglio grita que o furioso Teobaldo voltou de novo. Romeu irrita-se com o seu ar de triunfo perante a morte de Mercutio, afirmando que será agora “fogo e fúria” em sua conduta. Romeu desafia Teobaldo, que provoca Romeu ao dizer que, como consorte de Mercutio, deveria ter o mesmo destino. Eles lutam. Teobaldo cai morto. Benvoglio diz para Romeu fugir. Romeu lamenta ser um joguete da fortuna, e sai de cena. Entram os oficiais do príncipe, que procuram Teobaldo por ter assassinado Mercutio. Então, Benvoglio diz que agora Teobaldo estava também morto. Um dos oficiais fala para Benvoglio seguir com ele. Eles saem. Entram o príncipe, os senhores Capuleto e Montéquio, as suas respectivas esposas e todos os demais. O príncipe pergunta onde estão os vis responsáveis pelo início da contenda. Então, Benvoglio apresenta-se humildemente perante o príncipe e responde que Teobaldo a começara, matando o parente do príncipe (Mercutio) e terminara sendo morto por Romeu.

pais). Aliás, em mais de uma vez, a peça desinvestirá a confissão de qualquer sacralidade e mostrará a sua inutilidade para a efetiva reforma moral das consciências. Além disso, toda esta situação confere a Frei Lourenço a pecha de velho alcoviteiro, embora seja dramaticamente mais elevado e constante (quanto aos fins pretendidos) do que a Ama: o padre quer, através de meios moralmente condenáveis, garantir um interesse público (a paz civil), enquanto a Ama visa somente ganhos particulares. 512Ora, isso fere a ética e a etiqueta do duelo, pelo menos tal como estas são apresentadas pelo manual de Vicentio Saviolo, cuja aparição editorial na Inglaterra data de 1595. Joan O. Holmer desenvolveu um artigo em que identifica a presença da linguagem de duelo de Saviolo na edição de 1597 de “Romeu e Julieta”, o que seria também facilmente identificável na edição de 1599. Além disso, como lembra Norbert Elias, a dinâmica de distinção social estamental da vida cortesã condenaria que um nobre cavalheiro duelasse com um inferior social. Quando acontece de um inferior ferir a honra de um superior social, a tendência é que este envie os seus servidores para surrá-lo. Ver: HOLMER, Joan Ozark. “Draw, if you be men: Saviolo’s significance for Romeo and Juliet”. Shakespeare Quartely, volume 45, 1994(2): pp.163-189; ELIAS, Norbert. Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 513Devemos lembrar que Teobaldo havia enviado à casa dos Montéquios um desafio para Romeu. Assim, quando Teobaldo aborda – inicialmente de modo cortês – Benvoglio e Mercutio, a sua intenção era saber se já havia alguma resposta de Romeu. No entanto, como Mercutio inicia uma provocação contra Teobaldo, isso cria uma situação de destempero dos humores que faz todos esquecerem – com exceção de Benvoglio – a etiqueta do duelo. A permanência de Romeu fora de casa desde o baile dos Capuletos significa que ele desconhece as razões do furor ofensivo de Teobaldo. Dada a ordem dos eventos, podemos afirmar que Mercutio e Benvoglio não tiveram ocasião para avisá-lo.

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Subitamente, vendo o corpo de Teobaldo, que era filho de seu irmão, a senhora Capuleto514 clama ao príncipe que o sangue Capuleto derramado seja compensado com sangue Montéquio. No entanto, o príncipe dirige-se especificamente a Benvoglio e pergunta quem começou a contenda sangrenta515. Assim, Benvoglio descreve a sua versão dos fatos, em que explica como ele e Romeu se colocaram entre Mercutio e Teobaldo para impedir o duelo, mas que isso dera oportunidade para Teobaldo ferir mortalmente Mercutio por baixo do braço de Romeu. Feito isso, afirma Benvoglio, Teobaldo fugiu516, voltando depois para confrontar Romeu, que já estava com humor de vingança pela morte de Mercutio. Então, Benvoglio diz que eles lutaram e o resultado disso foi a morte de Teobaldo e a fuga de Romeu. A senhora Capuleto protesta contra o relato de Benvoglio, alegando que sua afeição pelos Montéquios tornava o seu testemunho falso. Então, ela volta a clamar por justiça/vingança, ou seja, pela morte de Romeu. No entanto, a partir do relato de Benvoglio517, o príncipe avalia que Romeu matou Teobaldo, que havia matado Mercutio (seu parente), mas não sabe (ou não quer saber) que foi Mercutio que ferveu o sangue de Teobaldo. Assim, tão somente indaga sobre quem pagaria pela morte de Mercutio. O senhor Capuleto518 afirma, então, que não poderia ser Romeu, que era amigo de Mercutio e cuja falta foi concluir o que a lei deveria terminar, ou seja, a vida de Teobaldo. No entanto, por ter tomado a lei para si e ser seu executor à revelia da autoridade principesca, mas em uma circunstância repleta de atenuantes, Romeu recebe do príncipe a pena de exílio. Deste modo, o príncipe comuta os efeitos da lei, transformando a pena de morte em exílio (morte simbólica), mas diz que estará mudo a qualquer pedido de clemência, de modo a impedir o transcurso de novos abusos à sua autoridade. Todos saem. 13ª seqüência cênica: Entra Julieta sozinha, fazendo um solilóquio em que mostra a sua ânsia pela chegada da noite para consumar o casamento. A Ama entra trazendo as cordas que deveriam servir de escada para Romeu chegar até o quarto de Julieta. Como a Ama mostra aflição, Julieta quer saber os seus motivos. Então, a Ama – falando fragmentadamente e com suspense sobre o que ocorrera a Teobaldo e Romeu – faz Julieta

514Em pleno pathos trágico mas contra qualquer senso de precedência, é a jovem senhora Capuleto que tempestivamente se dirige ao Príncipe, emudecendo em cena o seu velho marido e chamando Teobaldo de “my deare kisman”(1599)/“my deare kinsman”(1623), o que cria a suspeita de serem amantes – tanto mais reforçada pelo fato de Teobaldo “esquecer”, na cena do baile de máscara, quem é o “galo da casa”. Sem dirigir uma única palavra aos clamores da senhora Capuleto, o príncipe simplesmente volta a perguntar (desta vez, dirigindo-se especificamente para Benvoglio) quem iniciara a contenda. 515Vale lembrar que muitas produções cinematográficas e teatrais da peça configuram em cena o duelo entre Mercutio e Teobaldo a partir da descrição pós-facto de Benvoglio. Inclusive, muitas edições contemporâneas criam didascálias para o duelo seguindo a descrição de Benvoglio. 516Tal descrição feita por Benvoglio derroga a honra de Teobaldo, pois intensifica a sua imagem de “príncipe dos gatos”, já que foi de uma forma traiçoeira e selvagem (ou seja, não como um honrado vir-virtutis) que tirara a vida de Mercutio. 517Em nenhum momento Benvoglio expressa ao príncipe que foi o seu parente Mercutio que iniciou toda a contenda ao provocar verbalmente Teobaldo. Afinal, não podemos esquecer que eles foram inicialmente abordados de forma cortês por Teobaldo. Portanto, embora desde o início Teobaldo pretendesse duelar com Romeu, estava seguindo a etiqueta do duelo até ter o seu sangue fervido pelos deboches de Mercutio. Deste modo, o príncipe Escalo revela mais uma vez que é leniente na manutenção da paz civil: ele claramente falha no seu papel de Iustitia Mediatrix, pois ouve apenas o testemunho de Benvoglio, negligenciando, por exemplo, o testemunho de Petruchio. Embora Petruchio não tenha fala, há uma preocupação da didascália em enunciar que ele entra em cena com Teobaldo e “outros”. Portanto, Petruchio (personagem com nome próprio) e os “outros” serviriam como potenciais testemunhas para lembrar, por exemplo, as palavras galantes de Teobaldo a Mercutio quando avista Romeu: “Tyb. Well peace be with you sir, here comes my man.” (“Teobaldo. Bem, que a paz esteja convosco, senhor. Eis que chega meu homem.”). No entanto, Mercutio não arrefece o seu ânimo bélico e espera que Romeu responda virilmente ao desafio de Teobaldo. Como isso não acontece, pois Romeu não aceita duelar com Teobaldo, é Mercutio que levanta arma contra Teobaldo. Portanto, tudo poderia ter caminhado para um arrefecimento dos ânimos se não fosse a intervenção de Mercutio. O príncipe Escalo poderia ter conhecimento disso tudo se não se detivesse apenas no testemunho de Benvoglio. 518A edição oxfordiana encara como erro esta referência ao “senhor Capuleto”, substituindo-a por “senhor Montéquio”. No entanto, a mesma referência é mantida na versão da peça do fólio de 1623. Eu tendo a pensar que não se trata de um erro. Afinal, a senhora Capuleto, tal como Teobaldo, “cresce a crista” e esquece quem é o “galo da casa”. Assim, uma intervenção deste tipo do senhor Capuleto serve para conter o furor vingativo da senhora Capuleto, tal como ele fizera anteriormente, na cena do baile, em relação ao furor vingativo de Teobaldo contra Romeu. Nesses termos, duas vezes o senhor Capuleto teria defendido Romeu dos furores de vingança de seus parentes. Vale lembrar que senhor e senhora Montéquio estão na cena, mas não há necessidade de que falem nada quando já têm Benvoglio como defensor da causa de Romeu. Deste modo, a cena se equilibra: como é a senhora Capuleto que toma a frente para apelar por vingança, quebrando o decoro e emudecendo momentaneamente o seu velho marido, nada mais justo que seja este a calá-la. Por tudo isso, penso que a defesa do senhor Capuleto a Romeu tenha o sentido de contrariar e conter o humor tempestivo de sua esposa, tal como fizera outrora com Teobaldo, demonstrando o fim que um caracter furioso deve ter. Ao agir assim, senhor Capuleto exibe ao príncipe Escalo que aceita os efeitos das leis de Verona, ao mesmo tempo que demonstra se satisfazer com que elas atinjam um parente tão arrogante e hostil à sua autoridade patriarcal.

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confusamente pensar que Romeu morrera. Depois, para concluir os seus argumentos, com um único sopro, a Ama diz que Teobaldo está morto e que Romeu fora banido por ter causado a sua morte. Atônita, Julieta começa uma fala cheia de antíteses a respeito do caracter de Romeu, como a representar a divisão que momentaneamente assola o seu coração, que oscila entre a fidelidade à casa Capuleto e a fidelidade a seu marido e amor. Por fim, quando a Ama começa a censurá-lo, Julieta ralha com ela e censura a si mesma por ter sido, mesmo que brevemente, cruel em condená-lo. Julieta lembra que deve fidelidade ao marido, que não deve falar mal dele e lamenta a dor que lhe causa o desterro de Romeu. Então, Julieta ameaça se matar com as cordas, mas a Ama intervém, dizendo para Julieta ir para o quarto, pois sairá para encontrar Romeu. Ela diz saber que ele está escondido na cela de Frei Lourenço519. Elas saem. 14ª seqüência cênica: Entra Frei Lourenço, sendo seguido por Romeu. O frei diz que Romeu está casado com a calamidade e, por fim, informa-lhe a sentença do príncipe Escalo. Assim, Romeu fica sabendo que o príncipe o condenara ao exílio em vez da morte. Mas Romeu encara o exílio como se fosse a própria morte, pois todo o mundo seria um purgatório, sofrimento ou inferno longe dos muros de Verona, longe de sua amada Julieta. Romeu não aceita os argumentos do frei de que o príncipe foi misericordioso ao bani-lo, e muito menos aceita que a filosofia – tal como o frei sugere – possa servir-lhe de consolo no exílio520. Por fim, Romeu joga-se no chão, dizendo que irá tirar as medidas de sua própria cova. Entra em cena a Ama, que bate à porta. Frei Lourenço manda Romeu levantar-se e esconder-se, mas ele se recusa. As batidas ficam mais fortes e insistentes. Finalmente, o frei responde às batidas, dizendo que já estava indo. Então, há o encontro cênico com a Ama, que pede para entrar, pois vem em nome de Julieta. A Ama pergunta a Frei Lourenço onde estaria Romeu. Então, o frei aponta para Romeu, que ainda estava estirado no chão. Vendo o estado de Romeu, a Ama afirma que Julieta estava na mesma situação e, dirigindo-se a Romeu, pede para este erguer-se do chão e agir como um homem521. Romeu pergunta sobre Julieta. A Ama lhe informa o seu estado de sofrimento: chamava por Teobaldo e chorava por Romeu. Então, Romeu associa toda esta situação de sofrimento ao seu nome, a que compara a uma arma mortal e, por isso, pretende lutar com ele como contra um inimigo, ameaçando, deste modo, a sua própria vida. Frei Lourenço detém a desesperada mão de Romeu, impedindo-o de se matar, e censura fortemente a sua atitude, acusando-o de afeminamento e insensatez bestial; por fim, convence-o a reencontrar Julieta e consumar o casamento antes de partir para Mântua. Além disso, o frei o convence a permanecer em Mântua até que ele mesmo possa tornar público o casamento, mediar a conciliação das casas inimigas e conseguir o perdão do príncipe Escalo. Todos saem. 15ª seqüência cênica: Entram senhor Capuleto, a sua esposa e o conde Páris. Senhor Capuleto conversa com Páris sobre o seu potencial casamento com Julieta. O velho Capuleto está seguro de que sua filha se deixa conduzir por sua vontade, mas lembra que a morte de Teobaldo a abalou demais para que pudesse recebê-lo para namorarem. Páris compreende a situação e aceita que o casamento seja marcado para quinta-feira, ou seja, três dias depois da morte de Teobaldo. Senhor Capuleto afirma que tudo deverá ser feito sem muitos festejos devido ao luto recente da família, ordena a sua esposa para contar a Julieta a novidade e despede-se de Páris. Todos saem. 16ª seqüência cênica: Entram Romeu e Julieta, estando ambos num ponto mais alto do palco. Trata-se de seu último diálogo cênico enquanto vivos, depois da consumação madrigal de seu casamento. Enquanto Romeu e Julieta se despedem ternamente e dolorosamente, entram em cena a senhora Capuleto e a Ama. A Ama chama por Julieta,

519O fato de a Ama falar que Romeu foi desterrado, censurá-lo por matar Teobaldo e, agora, afirmar que ele está escondido na cela de Frei Lourenço, ratifica a sua ambigüidade moral, pois dá a informação sobre Romeu apenas depois que percebe que Julieta pretende manter-se fiel (até a morte) ao marido e não à casa Capuleto. Nesse sentido, se fosse o contrário, poderíamos imaginá-la indicando o paradeiro de Romeu para o furor de vingança Capuleto e não para o furor amoroso de Julieta. 520A seqüência cênica de diálogos entre Romeu e Frei Lourenço é a oportunidade de expor vários temas morais a partir da oposição de expectativas entre o “jovem” e o “velho”, mas sob uma perspectiva teológica reformada: impetuosidade vs. circunspecção; furor vs. prudência; saber sensível (ancorado nos olhos) vs. saber contemplativo (filosofia); carne vs. espírito; realidade sensível (olho externo) vs. verdade interior (olho interno); desejo vs. meditação; idolatria amorosa vs. Deus no coração. Ver: DIEHL, Huston. Staging Reform, Reforming the Stage: Protestantism and Popular Theater in Early Modern England. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997.pp.156-181 521Como já foi indicado no primeiro capítulo, há vários trocadilhos obscenos nessa intervenção da Ama.

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dizendo que o dia já raiou, que sua mãe lhe quer falar e que está vindo para seu quarto. Romeu e Julieta prolongam mais um pouco a despedida, entre beijos e juras de amor. Romeu sai. Julieta lamenta a inconstância da fortuna e lhe pede para trazer Romeu de volta. Senhora Capuleto encontra-se cenicamente522 com Julieta e pergunta como ela se sente. Como Julieta diz não estar bem, a sua mãe pensa que se trata do pesar pela morte de Teobaldo e censura Julieta pelo luto exagerado523. Então, senhora Capuleto diz para Julieta não mais chorar por Teobaldo, pois conseguirá vingar-se de Romeu, enviando alguém a Mântua para envenená-lo. Julieta finge concordar com a sua mãe sobre a necessidade de vingar-se contra Romeu. Por fim, senhora Capuleto diz ter notícias que poderão alegrar Julieta: o casamento na quinta-feira com o conde Páris. Julieta recusa a idéia de se casar, dizendo-se surpreendida que deva se casar antes de ter sido cortejada em namoro pelo pretendente, e pede para a sua mãe demover tal idéia da mente de seu pai. Porém, senhora Capuleto fala para tratar diretamente com ele, já que estava chegando em seu quarto. Senhor Capuleto e a Ama entram. O velho Capuleto quer saber se a esposa já havia contado a Julieta a decisão de que deveria casar-se com Páris. Então, senhora Capuleto afirma que Julieta se recusa e que, por isso, preferia vê-la morta. O velho Capuleto fica irritado com a filha, considerando Julieta ingrata com seus pais previdentes. Assim, ele começa a humilhá-la e diz que a levaria arrastada para casar-se se fosse preciso. Percebendo o furor do marido, senhora Capuleto tenta apascentá-lo. Pondo-se de joelho perante o pai524, Julieta suplica para que ele a ouça, mas isso apenas aumenta a sua fúria, não a poupando de xingamentos e acusando-a de desobediente. A Ama tenta interceder, dizendo que não era adequado que um pai tratasse uma filha de forma tão aviltante, mas o velho Capuleto a cala, chamando-a de intrometida e fofoqueira. Desta vez, diferentemente do primeiro encontro entre Páris e senhor Capuleto, é este último que não aceita argumentos como “sou muito jovem para casar”, já que estava oferecendo a Julieta a oportunidade de casar-se com um jovem honrável, bonito e de boa linhagem. Por fim, o velho Capuleto ameaça deserdar Julieta e jogá-la na rua, caso se recusasse a casar-se com Páris e, então, sai tempestivamente de cena. Julieta pede para a mãe ajudá-la a postergar o casamento em pelo menos um mês; mas, indiferente, senhora Capuleto diz não ter mais nada a tratar com Julieta e sai. Então, Julieta dirige-se a Ama, solicitando algum aconselhamento e palavra de conforto frente à sua paradoxal situação. Não obstante, mesmo sabendo do grande pecado (condenação eterna da alma) que envolveria a bigamia de Julieta, a Ama recomenda que ela se case com Páris, enaltecendo as suas virtudes e beleza em detrimento de Romeu. Surpreendida com a atitude da Ama, Julieta pergunta se afirmava tudo aquilo sinceramente. Então, Julieta finge que se sente confortada e pede para a Ama ir até a cela de Frei Lourenço, pois “pretendia” – depois de ter desagradado o seu pai – confessar-se com o padre. Depois que a Ama sai, Julieta desconjura a sua hipocrisia e diz que quer encontrar Frei Lourenço para ouvir seus conselhos sobre como contornar toda aquela situação. Julieta sai. 17ª seqüência cênica: Entram Frei Lourenço e conde Páris, que veio acertar a data de casamento para quinta-feira. O padre interpela Páris sobre as razões de estar fazendo isso sem antes conhecer as intenções de Julieta. Então, Páris afirma que o excesso de luto em Julieta não permitiu que falasse com ela de amor e que sua tristeza muito preocupava o seu pai. Assim, segundo Páris, o senhor Capuleto também compartilhava com ele a idéia de que o casamento poderia deter os rios de lágrimas de Julieta. Entra Julieta. Páris a corteja galantemente, fala do casamento na quinta-feira e pergunta se Julieta veio se confessar. Julieta é evasiva e faz alusões indiretas a Romeu, as quais somente Frei Lourenço e o “leitor/audiência” poderiam entender. Então, Julieta dirige-se especificamente a Frei

522Dado do desenrolar da cena, é de supor que a Ama sai de cena tão logo há o encontro cênico entre Julieta e sua mãe. 523Sob um olhar protestante, a censura de senhora Capuleto não pode ser entendida necessariamente como uma atitude pragmática ou hipócrita de querer que a filha deixe o “luto” para ter ânimo para um casamento vantajoso para a sua casa. Afinal, a moralidade religiosa protestante associava o luto exagerado à idolatria e, portanto, ao pecado. Ver: DIEHL, Huston. Staging Reform, Reforming the Stage: Protestantism and Popular Theater in Early Modern England. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997. pp.120-124; MULLANEY, Steven. “Mourning and misogyny: Hamlet, the revenger’s tragedy, and the final progress of Elizabeth I, 1600-1607”. Shakespeare Quartely, volume 45, 1994(2): pp.139-162; THOMAS, Keith. Religião e o Declínio da Magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.p.489 524Os puritanos consideravam este tipo de exibição de reverência aos pais como moralmente condenável, pois entendiam como uma forma de idolatria. Considerando a forma como Julieta interpela o seu pai, este é posto cenicamente na posição de um deus-ídolo implacável. Ver: THOMAS, Keith. Religião e o Declínio da Magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.p.409

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Lourenço e pergunta se poderia falar consigo. Frei Lourenço responde afirmativamente e pede a Páris para deixá-los sozinhos. Assim, pensando que não deveria atrapalhar uma devoção religiosa que antecede o casamento, Páris despede-se beijando Julieta e sai de cena525. Julieta pede para o Frei fechar a porta para chorar com ela. Depois, pensando não haver conselhos que pudessem resolver a sua situação, ameaça matar-se com uma adaga. Frei Lourenço encontra exatamente na disposição de Julieta de querer matar-se a chave para resolver o seu problema. Assim, propõe como solução uma “falsa-morte”, que seria provocada se Julieta tivesse coragem de tomar uma droga que a faria dormir por 42 horas, mas que daria a todos a impressão de que estaria morta – esfriamento do corpo e enrijecimento. Ela deveria tomar a droga quarta-feira à noite, pois, quando fosse encontrada na quinta-feira de manhã, seria dada como morta e seria sepultada na tumba dos Capuletos. O padre diz que enviaria uma carta a Romeu para avisar-lhe dos planos e, deste modo, ambos velariam o despertar de Julieta, que poderia fugir com Romeu para Mântua. Julieta não titubeia em aceitar o plano, pega o frasco com a droga e se despede do Frei. Ambos saem. 18ª seqüência cênica: Entram senhor Capuleto, a sua esposa, a Ama e dois ou três serviçais. O velho Capuleto dá ordens aos serviçais sobre os preparativos da recepção do casamento526 e entrega uma lista de convidados a um deles. Depois, pergunta a Ama se Julieta já havia ido conversar com Frei Lourenço, esperando que este lhe desse bons conselhos, mas não deixa de referir-se à sua filha como uma “prostituta petulante e voluntariosa”. Julieta entra em cena e segue o conselho de Frei Lourenço: fingir contentamento e disposição de casar-se com Páris. Assim, aparentando arrependimento por ter sido uma filha desobediente, Julieta ajoelha-se perante o seu pai e pede perdão. O velho Capuleto mostra-se feliz. O engodo de Julieta e do frei mostra-se eficaz, o que reveste a cena de particular comicidade. Julieta chama a Ama para acompanhá-la e ajudá-la na escolha das roupas. A sua mãe protesta, dizendo que é muito cedo para tanto; mas o velho Capuleto ordena a Ama que vá com Julieta, mostrando-se exultante com a possibilidade de levar, no dia seguinte, a sua filha à Igreja. Todos saem. 19ª seqüência cênica: Entram Julieta e a Ama. Julieta fala com a Ama que quer ficar sozinha, pois pretendia fazer muitas orações para comover os céus a respeito de sua situação de pecado, que a Ama sabia muito bem qual era. Entra a senhora Capuleto, perguntando se Julieta precisava de mais alguma ajuda. Julieta responde que já havia feito tudo o que era necessário e pede para ficar sozinha, lembrando que sua mãe teria muitas coisas a resolver a respeito do “repentino negócio” de seu pai. A sua mãe se despede e diz para Julieta repousar. Senhora Capuleto e a Ama saem. Julieta inicia o seu derradeiro solilóquio, em que demonstra certo pavor pelo ato que agora encenará sozinha e indaga-se sobre o caráter e confiabilidade de Frei Lourenço, perguntando a si mesma se não seria mais conveniente para ele que ela se envenenasse para uma morte efetiva; depois, diz temer acordar antes do prazo, sozinha na escuridão da tumba, antes que Romeu chegasse para resgatá-la. Por fim, brinda a Romeu e bebe a droga. 20ª seqüência cênica: Aparecem senhor Capuleto, a sua esposa e a Ama, todos envolvidos nos preparativos da recepção do casamento de Julieta e Páris. Saem senhora Capuleto e a Ama. Entram três ou quatro serviçais, carregando espetos, lenhas e cestas, e são interpelados pelo senhor Capuleto. Este nota que já é dia e percebe que Páris está perto de chegar, pois já conseguia ouvir a música que o conde prometera trazer para a festa. 21ª seqüência cênica: A Ama entra e tenta acordar Julieta, mas se desespera ao pensar que ela está morta. Senhora Capuleto entra, inquirindo sobre o alarido da Ama. Ao saber que a filha está “morta”, senhora Capuleto também se desespera e grita por socorro. Entra senhor Capuleto, exigindo que Julieta seja logo trazida perante a presença de Páris, que a esperava

525Possivelmente, beija a mão ou a testa, já que usa a expressão “holy kisse”. 526Nas duas situações de festa – baile de máscara e, agora, o casamento de Julieta com Páris –, é o senhor Capuleto que supervisiona os preparativos, como se fosse a “senhora da casa”. Isso pode ser uma forma cômica de explorar o contraste cronológico entre senhor Capuleto e sua esposa quando se casaram. Deste modo, a diferença de idade do casal explicaria o mal hábito de o velho Capuleto se intrometer em espaços de gestão doméstica que deveriam estar sob o controle direto de sua esposa ou de um mordomo. Afinal, nas casas aristocratas, seria esperado que um marido muito velho de uma esposa muito jovem (imatura) soubesse instruí-la a assumir plenamente a sua condição de “senhora da casa”. Como temos notado desde o incidente envolvendo Teobaldo no baile de máscara (5ª seqüência cênica), o velho Capuleto tem dificuldade de firmar-se como “galo/falo” da sua própria casa.

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23ª seqüência cênica: Entra Frei João, que chama por Frei Lourenço. Reconhecendo a voz de João, Frei Lourenço entra em cena para recebê-lo e pergunta se havia alguma mensagem de Romeu. Então, Frei João explica que não conseguiu enviar as suas cartas para Romeu, pois ficara retido, juntamente com outro irmão da ordem dos descalços, em Mântua, sem que pudesse encontrar Romeu, pois os sentinelas os mantiveram trancados numa casa por suspeitarem que traziam consigo a peste. Assim, devido ao medo de contaminação, sequer conseguiram que alguém se aproximasse para que pudesse levar as cartas até Romeu. Frei Lourenço lamenta por tal infortúnio e teme por suas conseqüências. Assim, pede para Frei João trazer para a sua cela uma alavanca de ferro. Frei João sai. Frei Lourenço diz que agora terá que ir sozinho para a tumba dos Capuletos e, assim, esperar o despertar de Julieta, além de dizer que despacharia uma nova mensagem para Romeu, visando instruí-lo a vir diretamente à sua cela, onde manteria escondida Julieta. Frei Lourenço sai. 24ª seqüência cênica: Entram o conde Páris e seu pajem. Eles se encontram no cemitério. O pajem segura uma tocha e algumas flores. Páris pede para que o pajem fique de sentinela e que assobie caso alguém se aproximasse. Páris pega a tocha e as flores com a pajem. O pajem se afasta. Páris caminha até o túmulo de Julieta e começa as suas exéquias fúnebres, deixando flores em seu túmulo e prometendo cultuá-lo todas as noites532. O pajem assobia. Páris percebe a chegada de alguém com tochas e, por isso, esconde-se no escuro. Entram Romeu e Baltazar533 em cena. Romeu pede o alvião, a tocha e a barra de ferro que Baltazar trazia e lhe dá algumas instruções: entregar uma carta a seu pai ao amanhecer; permanecer afastado e não interromper o que Romeu estivesse fazendo, independentemente do que ouvisse. Romeu disfarça as suas intenções, dizendo que pretendia rever o rosto de Julieta e tirar de seu dedo morto um anel precioso. Por fim, Romeu faz uma violenta ameaça a Baltazar caso retornasse ali para espioná-lo. Baltazar diz a Romeu que partirá, mas, na verdade, afasta-se e se esconde, pois os olhares furiosos de Romeu o fizeram suspeitar das suas reais intenções. Romeu caminha até o túmulo de Julieta. Páris o reconhece e pensa ser Romeu o causador da morte de Julieta, pois, em sua compreensão, o assassinato de Teobaldo tê-la-ia feito definhar até a morte. Além disso, por suspeitar que Romeu pretendia estender a vingança dos Montéquios contra os Capuletos até o túmulo, Páris pretende prendê-lo e entregá-lo à autoridade do príncipe Escalo. Ao ser abordado por Páris, Romeu tenta brandamente demovê-lo de suas intenções, pedindo-o para partir, pois já estava suficientemente armado contra si mesmo. No entanto, como Páris insiste na intenção de prendê-lo como traidor, Romeu duela com ele. O pajem de Páris534 vê a briga e corre para chamar as sentinelas. Páris é mortalmente ferido e pede para Romeu ser misericordioso: colocar o seu corpo no túmulo de Julieta. Páris morre e Romeu se aproxima de seu corpo

a alma dos homens...Eu te vendo veneno, tu não me vendeste nada”). Deste modo, isso cria um efeito de equalização moral entre o socialmente “elevado” Romeu e o socialmente “baixo” boticário, pois a relação que se estabelece é de escambo de “venenos”. Nesta relação, cada um tem o “veneno” que mais lhe interessa conforme as suas necessidades e finalidades pessoais. Vale lembrar que, neste momento, “poyson” tem o mesmo campo semântico de “pharmacon”, tal como aparece significado no primeiro solilóquio de Frei Lourenço, quando então define a paradoxal condição de todo ser criado, entre os quais, o homem. Nesse sentido, dependendo da medida e dos propósitos, “poyson” pode ser a cura de um “achaque” (físico-moral) tanto quanto a sua causa. Vale lembrar que é a suposta morte de Julieta (por efeito de um pharmacon, cuja finalidade era possibilitar o seu reencontro com Romeu e evitar uma infame bigamia – e, portanto, a condenação da alma de Julieta) que faz Romeu buscar o suicídio (o que significa a condenação de sua alma). Assim, é deliberadamente se impondo um dano físico que Romeu espera uma cura para seus imediatos pesares emocionais. Por outro lado, o boticário sabe que a intenção de Romeu é matar, apenas não sabe quem seria a sua vítima. Nesses termos, é deliberadamente se impondo um dano moral que o boticário espera uma cura para seus imediatos pesares materiais. Deste modo, por suas escolhas e atitudes, ambos demonstram fraqueza moral e correm o risco de condenar as suas respectivas almas. Portanto, o encontro de ambos mescla indistintamente benignidade e malignidade, tal como um “poyson”. 532Sob um olhar reformado, a atitude excessiva de luto de Páris e a promessa de culto ao túmulo de Julieta seriam claramente entendidas como idolatria. Ver: THOMAS, Keith. Religião e o Declínio da Magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.pp.488-489 533A didascália indica “Peter”. Como veremos no desdobramento da cena, trata-se claramente de um erro, pois, mais adiante, é Baltazar que dá o seu testemunho perante o príncipe Escalo, descrevendo o percurso de Romeu desde que recebera notícias em Mântua sobre a morte de Julieta. Assim, somente Baltazar (e não “Peter”, um serviçal dos Capuletos referido em minha sinopse como “Pedro” – representado como bufão pelo ator William Kempe) poderia testemunhar os detalhes que expôs a Escalo. O fólio de 1623 mantém este erro, mas a edição oxfordiana o corrige. 534Neste momento da seqüência cênica, a disdascália não é clara, pois a seguinte exclamação aparece em itálico, sem indicação de caracter cênico e afastada em relação à margem esquerda da página: “O Lord they fight, I will go call the Watch.”. Por dedução do desdobramento desta cena, sabemos que se trata do pajem de Páris. A edição do fólio de 1623 atribui esta fala a “Peter”[i.e., Baltazar], o que é completamente incongruente com o desdobramento da cena. A edição oxfordiana corrige este erro, dando a fala para o pajem de Páris.

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para ver o seu rosto. É somente neste momento que Romeu fica sabendo que se tratava de Páris, parente de Mercutio. Romeu tira o seu corpo da terra e abre o túmulo de Julieta, depositando-o ao lado do corpo de sua amada535. Em seguida, o próprio Romeu entra no túmulo e, depois de um longo solilóquio, toma o veneno, cujo efeito é bem rápido, tal como prometera o boticário. Romeu beija Julieta e morre. Frei Lourenço entra em cena, trazendo uma lanterna, uma alavanca e uma pá. Então, encontra Baltazar e fica sabendo que Romeu está há mais de meia-hora na tumba dos Capuletos. O frei pede para Baltazar acompanhá-lo até a tumba, mas ele se recusa, lembrando das ameaças feitas por Romeu. Então, Frei Lourenço se encaminha sozinho até a tumba, temendo por um desenlace pior dos acontecimentos. Assim, ao aproximar-se do túmulo de Julieta, o frei encontra os corpos de Romeu e Páris, percebendo também que Julieta já estava começando a despertar. Ela avista o frei e pergunta sobre Romeu. O frei ouve um barulho vindo de fora e pede para Julieta sair rápido dali, sem fazer muita pergunta, pois o plano havia falhado e, agora, Romeu e Páris jaziam em seu peito. O frei diz pretender levar Julieta para um convento, mas foge sobressaltado, temendo a chegada das sentinelas. Abandonada na tumba de sua família, Julieta diz que não pretendia fugir. Ela encontra o frasco de veneno nas mãos de Romeu, mas, como está vazio, tenta captar de seus lábios algum resquício dele, percebendo, no calor dos lábios de Romeu, a sua morte recente. Entram em cena o pajem de Páris e os sentinelas. Julieta ouve o barulho e tenta ser rápida: saca uma adaga e se mata536. Conduzidos pelo pajem, os sentinelas se aproximam do lugar onde as tochas ainda queimavam, avistam marcas de sangue no chão e, por fim, encontram os corpos de Páris, Romeu e Julieta. O chefe dos sentinelas manda alguns de seus homens vasculharem o cemitério e prender todos que encontrar para fazer averiguações, e envia outros para chamarem os parentes dos jovens mortos. Um sentinela retorna, trazendo consigo Baltazar. Um outro sentinela entra, trazendo consigo Frei Lourenço, que treme, suspira e chora. O sentinela diz ter encontrado com o frei um alvião e uma pá. O chefe dos sentinelas espera a chegada do príncipe Escalo. O príncipe entra em cena, sendo seguido pelos pais de Julieta. O chefe dos sentinelas expõe ao príncipe a cena que encontrara na tumba dos Capuletos, apresentando Frei Lourenço e Baltazar para prestarem esclarecimentos perante o príncipe. Senhor Capuleto chama a atenção da esposa para o fato de o corpo de Julieta estar sagrando muito e que a adaga cravada em seu peito é da bainha de Romeu. Entra senhor Montéquio. Escalo chama-o para ver o corpo de seu filho e herdeiro. Então, senhor Montéquio diz que sua esposa morrera por não suportar a dor do exílio do filho537. Escalo ordena que as partes suspeitas iniciem seus depoimentos. Assim, Frei Lourenço resume toda a história para o príncipe. Em seguida, é a vez de Baltazar538, que relata a sua parte da história, lembrando da reação de Romeu em Mântua quando lhe trouxe a notícia da “morte” de Julieta e do modo tempestivo como Romeu pretendera voltar para Verona até a noite e, assim, ver o túmulo de Julieta. Baltazar diz que Romeu deixou consigo uma carta para ser entregue na manhã do dia seguinte aos seus pais. O príncipe fica com a carta e, em seguida, ordena que o pajem de Páris explique as razões de seu mestre estar na tumba dos Capuletos. Depois de ouvir o pajem, Escalo lê a carta de Romeu e constata a verdade do relato de Frei Lourenço. Então, Escalo chama os senhores Capuleto e

535A cena é claramente construída para representar uma bigamia póstuma, pois, na Inglaterra elizabetana e jacobita, a promessa de casamento praticamente cria o ato de casamento. Além disso, a igreja reformada não considerava o ato de casamento um sacramento. Como Páris não sabe que Romeu está casado com Julieta, ele se tipifica em cena como um “viúvo” de “luto excessivo”. Assim, para um leitor inglês de 1599, a situação de Julieta era de uma odiosa bigamia. Portanto, o fato de Julieta acordar com Romeu e Páris recostados em seu peito – com o leitor sabendo que foi o próprio Romeu que criou esta situação cênica ao ser “misericordioso” com Páris – reforça visualmente a ironia trágica de sua bigamia. Além disso, considerando que, na prática, os três jovens serão encontrados juntos e sem vida pelas sentinelas do príncipe Escalo, é plausível pensar que o féretro de Julieta torna-se também uma sinédoque tragicamente irônica das três instâncias de autoridade da fictícia Verona: senhor Capuleto (através de Julieta, filha virago de um pai afeminado), senhor Montéquio (através de Romeu, filho afeminado de uma mãe idólatra) e príncipe Escalo (através de Páris, parente comedido de um soberano leniente). Deste modo, os erros do passado destas três instâncias de autoridade são punidos e metaforicamente sepultados. 536Como podemos observar na edição de 1599, não há didascália indicando que Julieta saca a adaga de Romeu. Só podemos conhecer o seu efetivo movimento cênico a posteriori, quando senhor Capuleto, observando o corpo ensangüentado da filha, percebe que é a adaga de Romeu que está encravada no peito de Julieta. 537Sob um olhar reformado, trata-se de uma manifestação de idolatria de mente e coração, pois a senhora Montéquio assentou excessivamente a sua felicidade num ser mortal. 538Desta vez, a disdascália da edição de 1599 indica corretamente o nome de Baltazar. A edição do fólio de 1623 indica um genérico “Boy”.

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Montéquio para que contemplem o resultado fatídico de suas inimizades, sem poupar crítica a si mesmo por ter muitas vezes fechado os olhos aos seus conflitos. Assim, constatamos que todos os três grandes senhores nobres da trama foram punidos com alguma perda por suas desmedidas ou leniências em relação aos termos necessários para a condução de um governo civil. Por fim, senhor Capuleto pede a mão de senhor Montéquio, num gesto que simultaneamente simboliza a promessa de paz e representa um reconhecimento póstumo do casamento de Julieta e Romeu. Então, Escalo encerra a peça com o seu solene epílogo dramático:

Prin. A glooming peace this morning with it brings, The Sun for sorrow will not shew his head: Go hence to haue more talke of these sad things, Some shall be pardoned,and some punished. For neuer was a Storie of more wo, Then this of Iuliet and her Romeo.

Príncipe: Esta manhã uma sombria paz consigo traz. Por sofrimento assaz, o Sol sequer despontará no firmamento. Partamos para conversarmos mais sobre estes tristes eventos. Algumas pessoas serão perdoadas, e outras punidas, pois nunca houve História mais sofrida do que esta de Julieta e seu Romeu.

Na luta que os detentores dos poderes políticos e sociais mantêm entre si,

particularmente numa época de quebra do consenso religioso, pode ser de gravíssima

conseqüência para a sua autoridade que os seus próprios conflitos alimentem anseios

agônicos de liberdade entre seus dependentes ou súditos. Ora, considerando os

desgastes materiais e financeiros com a política externa anti-espanhola de Elizabeth nas

décadas de 1580 e 1590, a monarquia e a igreja da Inglaterra tiveram que lidar com

muitas forças agônicas potencialmente destrutivas dos laços sociais e políticos. Por isso

mesmo, o último governo Tudor buscou sistematicamente reforçar as suas várias

instâncias sociais e políticas de autoridade e controle social539. Como foi apontado no

capítulo anterior, isso explica a calculada periodicidade das condenações oficiais por

traição, quase sempre associadas a “ameaças papistas”540; assim como, a recorrência da

preocupação com a “juventude desregrada”, expressada nos vários relatos, tratados,

peças teatrais e memórias da época541. Daí, não deve nos espantar que, durante a década

de 1590 – quando cada vez mais se desenhavam dúvidas sobre a sucessão dinástica e a

continuidade das instituições inglesas –, um tema recorrentemente explorado (nos

discursos oficiais, na literatura, nas artes em geral e na religião) fosse a tensão viva

entre autoridade e liberdade, a qual, sem incorrer em anacronismo, não pode ser

539LOADES, David. Tudor Government: Structures of Authority in the Sixteenth Century. Oxford/Malden: Blackwell, 1997. 540Ver: LAKE, Peter; QUESTIER, Michael. “Agency, Appropriation and Rhetoric under the Gallows: Puritans, Romanist and the State in Early Modern England”. Past & Present, 1996(153): pp.64-107; HAIGH, Christopher. English Reformations: Religion, Politics, and Society under the Tudors. Oxford: Oxford University Press, 1993.pp.187-295; BREIGHT, Curt. “Treason doth never prosper: The Tempest and the Discourse of Treason”. Shakespeare Quartely, volume 41, 1990(1):pp.1-28. 541BAINTON, Martin. “'Good Tricks of Youth': Renaissance Comedy, New Comedy and the Prodigal Son Paradigm”. Renaissance Forum, volume 5, 2001(2).[Edição Eletrônica]; HOLMER, Joan Ozark. “Draw, if you be men: Saviolo’s significance for Romeo and Juliet”. Shakespeare Quartely, volume 45, 1994(2): pp.163-189; NEILL, Michael. “Broken English and Broken Irish: Nation, Language, and the Optic of Power in Shakespeare’s Histories”. Shakespeare Quartely, volume 45, 1994(1): pp.1-32; McEACHERN, Claire. “Henry V and the paradox of the Body Politic”. Shakespeare Quartely, volume 45, 1994(1): pp.33-56; HATTAWAY, Michael. “Blood is their argument: men of war and soldiers in Shakespeare and others”. In Religion, Culture and Society in Early Modern Britain. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. pp.84-101.

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Nesse sentido, quem falha em definir medida e adequação para si mesmo corre

um sério risco de destruir a si e a seu mundo, principalmente se não encontra nenhuma

barreira ou contenção suficientemente forte erguida pelas convenções do passado e

mantida ou atualizada pelas autoridades do presente. Tudo se perde quando tais

autoridades não conseguem definir comedidamente contornos para si mesmas. A

tragédia amorosa de Julieta e Romeu está claramente marcada por uma moral

acomodatícia: depois da exposição das lamentáveis perdas, desencontros e danos dos

protagonistas, a exploração dramática da harmonia de contrários ao final da peça (o

reconhecimento póstumo do casamento de Julieta e Romeu pelos patriarcas Capuleto e

Montéquio) explicita concludentemente a sensação de uma ameaçadora desordem que

deveria ter sido contida, desde o início, em favor da ordenação conservantista da

sociedade.

Ora, tal como vimos na peça “Ricardo III”, figurar um mundo em ameaça de

desagregação é um modo de demonstrar dramaticamente a necessidade instrumental de

que as instituições sociais e políticas sejam respeitadas e aperfeiçoadas por todos

aqueles que fazem uso e dependem delas, para que elas efetivamente adquiram a

capacidade de prefigurar o comportamento do indivíduo e de consolidar um senso

contratual de adequação comportamental e de previsibilidade, sem o qual as

instituições sociais e políticas não gerariam o sentimento de segurança naqueles que se

submetem ao seu princípio de autoridade. No caso específico da peça “Romeu e

Julieta”, este senso contratual de adequação comportamental e de previsibilidade

apenas atinge as diferentes instâncias sociais e políticas de poder da fictícia Verona

quando o movimento punitivo da peça evidencia a necessidade instrumental de todos os

súditos abandonarem as suas paixões e humores egoístas, rixentos, bestiais e insolentes.

Além disso, deve-se considerar que as exigências éticas para a figuração do Estado em

“Romeu e Julieta” são inseparáveis da condenação à ética dos fins maquiavélica, ao

“olhar idólatra” e às “práticas litúrgicas papistas”.

4.2. O esmorecimento da autoridade patriarcal como ameaça à corporidade estatal

Em “Crítica e Crise”(1959), Koselleck propõe uma leitura da obra

“Leviathan”(1651) que oferecesse ferramentas de análises úteis para se pensar o

contexto cultural do Iluminismo, particularmente nos seus aspectos de laicização do

ambiente social do debate filosófico e de afirmação do princípio da autonomia crítica.

Nesses termos, a condição de possibilidade do Iluminismo seria a superação daquilo que

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Koselleck identifica, a partir da filosofia política de Thomas Hobbes(1588-1679), como

o “mecanismo da guerra civil”(religiosa). Este mecanismo seria sempre acionado todas

as vezes que um indivíduo (ou agrupamento de indivíduos), por mais vulgar que fosse,

considerasse ser a sua verdade ou paixão religiosa mais correta do que as demais, e

pretendesse impor à força o seu padrão de aperfeiçoamento moral às demais partes do

corpo político. Para que este mecanismo fosse superado, cada parte do corpo político

deveria perceber a necessidade instrumental de um pacto de submissão que não

fundamentasse a unidade estatal numa verdade ou moral religiosa.

Ao longo dos séculos XVI e XVII, um dos efeitos das guerras de religião no

debate filosófico foi o recrudecimento do ceticismo a respeito da possibilidade de as

verdades da fé serem demonstráveis, assim como, a consciência de que elas serviram

como “pretextos elevados” para as ações e paixões mais bestiais, que injustamente

vinham fragilizando os vínculos políticos e o respeito às hierarquias tradicionais. Tal

ceticismo explicaria porque a antítese de Hobbes entre “Estado Político” e “Estado de

Natureza” tornou-se uma imagem conceitual de grande ressonância no debate filosófico

iluminista, a ponto de ganhar um longo verbete na “Encyclopédie”547. Há detalhes

conceituais no “Leviathan” a que os autores iluministas estiveram atentos, mas que a

tradição de leitura da ciência política do século XX passou ao largo: “político” em

oposição à “natureza” aparece em Hobbes no sentido de “polidez” (amenização dos

costumes ou controle dos apetites e paixões mais bestiais). É nesse sentido que

“político” se contrapõe ao “estado de guerra”, à instabilidade do “appetitus et fuga”, ou

àquilo que o Barão de Holbach (1723-1789) chamaria, em meados do século XVIII, de

“governo feudal”548.

Dizer tudo isso nos serve para lembrar que o “estado político” de Hobbes ainda

não designa o Estado pensado por Koselleck como condição de possibilidade para o

Iluminismo, ou seja, um dispositivo administrativo e burocrático de poder,

monopolizador dos meios legítimos de violência, cuja soberania se afirma em

contraponto à “sociedade estamental”. Para Koselleck, a obra “Leviathan” seria uma

antecipação lógica do paradigma burocrático de Estado, pois as monarquias do século

XVIII seriam estamentais “em plano social” mas não “em plano político”549. No final

547Ver: DIDEROT, Denis. “Hobbesianismo ou Filosofia Política de Hobbes”. In Verbetes Políticos da Enciclopédia. São Paulo: Unesp, 2006. pp.153-191 548O Barão de Holbach seguia de perto a filosofia política de Hobbes quando escreveu o seu verbete “Representantes” para a “Encyclopédie”. Ver: HOLBACH, Barão de. “Representantes”. In Verbetes Políticos da Enciclopédia. São Paulo: Unesp, 2006. pp.231-244 549KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise. Rio de Janeiro: UERJ/Contraponto, 1999.p.20

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das contas, esta forma de indagação que separa o “social” do “político” reproduz o

modelo analítico tocquevilleano (“absolutismo” versus “sociedade de corpos”) ao qual

me referi no capítulo II. Ora, vale lembrar que, escrevendo em meados do século XVIII,

o Barão de Holbach não pensava que a dinâmica social que conduzira à superação da

“instabilidade e insegurança feudais” tivesse acontecido em contraponto ao princípio

estamental de distinção social e de constituição de vínculos sócio-políticos550.

Na verdade, o pacto de submissão que originaria o “estado político” hobbesiano

representa a superação do mecanismo da guerra civil porque exige de cada súdito que

abra mão de expressar a sua liberdade (de consciência religiosa) no espaço público, em

nome do interesse de dividir com todos os demais a responsabilidade de preservar a

estabilidade da (e a segurança na) Universitas. Como o próprio frontispício da edição

de 1651 ilustra, o Leviathan é esta Universitas:

Portanto, a obra “Leviathan, or the Matter, Form, and Power of a

Commonwealth, Ecclesiastical and Civil” refere-se à figura mitológica do Leviathan

como todo o corpo da sociedade política. Em outras palavras, o Leviathan é uma

Universitas teorizada dedutivamente por Hobbes em novas bases: não há uma razão

objetiva inscrita por Deus nas coisas do mundo que o tenha inspirado, já que, em nome

desta suposta inspiração, tantas pessoas praticaram as coisas mais vis que desagregavam

550HOLBACH, Barão de. “Representantes”. In Verbetes Políticos da Enciclopédia. São Paulo: Unesp, 2006. pp.231-244

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o corpo político551, mas sim uma razão social que, nascida de perdas lamentáveis e do

ceticismo decorrentes da guerra civil, suscitou nelas o interesse pragmático de conter as

suas paixões em nome da composição da unidade política a partir de formas

corporatistas de vínculos sociais e políticos. Fundamentar a origem de uma Universitas

numa vontade ou inspiração pragmática fez a fortuna crítica de Hobbes, até o século

XVIII, em bases bem distintas daquelas que encontramos em Koselleck.

Obviamente, iniciar esta seção de meus argumentos com esta longa e aparente

tergiversação não é gratuito, pois me possibilita explicitar recorrentes modelos

analíticos que conformam a tradição teórica em que se inscreve a leitura política

proposta por Viveiros de Castro e Ricardo Benzaquen à peça “Romeu e Julieta”552. Na

legibilidade que proponho para a peça, entendo que ela segue um tipo de moralização

dramática que defende a necessidade de fortalecer – em vez de esmorecer – as

autoridades patriarcais, pois isso seria a condição de possibilidade para a existência do

Estado. Para tanto, seria necessário que os detentores dos poderes políticos e sociais

encenados na peça – os patriarcas Capuleto e Montéquio, assim como o príncipe Escalo

– sofressem lamentáveis perdas decorrentes tragicamente de seu “espírito de facção”, de

sua “violência insolente”, de sua afirmação exorbitante de independência e

individualidade, ou de suas leniências em figurar adequadamente a autoridade.

Portanto, diferentemente de Viveiros de Castro e Ricardo Benzaquen, não

afirmo que os poderes das casas Capuleto e Montéquio (enquanto corporações sócio-

políticas) tenham que desaparecer para que a autoridade (igualmente patriarcal) do

príncipe Escalo tenha que prevalecer. Afinal, o próprio príncipe afirma, ao final da peça,

que “todos nós fomos punidos”, embora não, obviamente, pelas mesmos motivos: a

recorrente desordem social que derrama sangue nas ruas de Verona é uma decorrência

direta da leniência do príncipe em punir adequadamente os seus responsáveis, o que

abriu a brecha para a violência insolente dos mestres e servidores das casas Capuleto e

Montéquio. Em sua primeira fala na peça, o príncipe dá a entender ao “leitor/audiência”

551Esta cisão entre verdade (subjetiva da fé) e realidade (sócio-política) como condição para a superação do mecanismo da guerra civil se inscreve na tradição teológica agostiniana, havendo um óbvio paralelo com a moral política senequiana, para a qual as instituições são o resultado da necessidade de se conter a perversidade humana, e com a função epistemológica da lei em Calvino, para o qual a lei não controla ou corrige o pecado, mas o representa ao mostrar às pessoas os múltiplos modos de transgressão. Afinal, o homem não precisaria de leis antes da Queda e, portanto, contemplar as leis é lembrar da condição imperfeita de pecador. Ver: DUMONT, Louis. O Individualismo. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.pp.47-51; DIEHL, Huston. “Infinite Space: Representation and Reformation in Measure for Measure”. Shakespeare Quartely, volume 49, 1998(4): p.403 552CASTRO, E.B. Viveiros de; ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. “Romeu e Julieta e a Origem do Estado”. In Arte e Sociedade: Ensaios de Sociologia da Arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. pp.130-169

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ruptura periódica dos laços vicinais de amizade, sem os quais a Universitas de Verona

pereceria.

Além da inversão no uso da espada da justiça, o discurso de Escalo já expõe o

ciclo trágico que afeta a ele e aos mestres das casas Capuleto e Montéquio. Quando

Escalo censura que “Three ciuill brawles bred of an ayrie word,/ By thee old Capulet

and Mountague,/ Haue thrice disturbd the quiet of our streets”, a partícula “By thee” é

bastante significativa:

(1) “By thee” reforça a distinção entre Escalo e os senhores Capuleto e Montéquio justamente no momento em que estes, contra toda a verossimilhança dramática, empunham armas e tornam-se “velhos mestres” de “homens-fera” (seus servidores e parentes) que perturbam a paz civil. No entanto, depois que decreta a pena de morte em caso de novos distúrbios e manda os senhores Capuleto e Montéquio dirigirem-se para o sítio da justiça soberana de Verona (a Vila Franca), Escalo volta ao tratamento “You”, redefinindo seus laços interdependentes de autoridade. Isso fica mais evidente quando observamos a conversa do senhor Capuleto com o conde Páris (parente de Escalo) no início da 3ª

seqüência dramática:

Enter Capulet, Countie Paris, and the Clowne. Capu. But Mountague is bound as well as I,

In penaltie alike, and tis not hard I thinke, For men so old as we to keepe the peace.

Par. Of honourable reckoning are you both, And pittie tis, you liu'd at ods so long:555

Entram Capuleto, Conde Páris e o Bobo. Capu. Mas Montéquio está obrigado, assim como eu,

à mesma penalidade, e não é difícil, penso eu, para homens como nós, tão avançados em idade, manter a paz.

Par. De honrosa conta sois vós ambos e é pena que, por tanto tempo, viveis vos estranhando.

(2) No contexto enunciativo de Escalo, a partícula “By thee” pode significar “através de ti”/“por meio de ti” tanto quanto “em nome de ti”. Isso cria nos versos uma ambigüidade de referente, pois, tanto pode significar que os distúrbios civis foram capitaneados pelos próprios senhores Capuleto e Montéquio quanto pode significar que foram conduzidos à sua revelia, mas estrategicamente “em seu nome”, por jovens desregrados que, sob qualquer pretexto banal, quiseram exibir sua virilidade irredenta em combates vãos. Ora, considerando que o distúrbio civil representado na 2ª seqüência cênica foi iniciado por servidores e não pelos seus mestres, a advertência de Escalo também poderia ser entendida deste modo: “Três lutas civis nasceram de uma palavra desairosa;/ em nome de ti, velho Capuleto, e de ti, velho Montéquio,/ três vezes perturbaram a quietude de nossas ruas”. Nesses termos, a censura de Escalo ganha outro objeto: a autoridade dos mestres das duas grandes casas de Verona, iguais em dignidade, estaria agora sendo abalada subrepticiamente pelos seus próprios servidores. Assim, como demonstra o desenrolar tragicômico da 2ª seqüência cênica, são os mestres (velhos) que são agora conduzidos pelos servidores (jovens) para o distúrbio civil. Nesse sentido, a censura de Escalo poderia também significar que os senhores Capuleto e Montéquio deveriam restaurar a justa medida de sua autoridade, antes que

555CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.p.12

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viessem a perdê-la completamente. Para tanto, deveriam acordar em manter definitivamente a paz. Ora, exatamente nisso reside a grande ironia trágica contra os poderes figurados

na peça: como vimos acima na fala do senhor Capuleto, parece haver uma sincera

concordância quanto à necessidade de manter a paz, mas há também o indício,

confirmado pela teleologia da peça, de que agora isso é bem mais difícil de ser

realizado, pois o mecanismo da discórdia civil sai periodicamente de seu controle e cai

sob o domínio de jovens destemperados. Nesse sentido, é bastante eloqüente que

nenhum dos conflitos encenados ao longo da peça tenha sido efetivamente iniciado

pelos senhores Capuleto e Montéquio. Como sugere o primeiro prólogo, a causa dos

distúrbios civis é remota. Assim, se tais distúrbios foram iniciados pelos chefes das

casas Capuleto e Montéquio (e alimentados pela leniência do príncipe em punir

adequadamente as suas primeiras manifestações), o tempo efetivamente encenado na

peça serve para demonstrar um mundo em perigo de desagregação como sendo o

resultado direto do mal exemplo de conduta no passado dos principais detentores dos

poderes políticos e sociais.

Deste modo, podemos perceber que o vínculo orgânico das três instâncias de

autoridade patriarcal está sugerido pela própria trama da peça. Por isso, creio que seja

insustentável o argumento de que a peça propõe um dualismo concêntrico

príncipe/indivíduo556 como condição de possibilidade para a estabilização do governo

soberano do príncipe Escalo. Afinal, os erros passados das três instâncias de autoridade

patriarcal da fictícia Verona criaram, no presente efetivamente encenado na peça,

aquilo que hobbesianamente podemos chamar de mecanismo do “appetitus et fuga” da

guerra civil. Portanto, podemos afirmar que o grande e perigoso efeito das desmedidas

dos detentores dos poderes políticos e sociais na peça foi fazer com que os seus

respectivos parentes e servidores se afirmassem excessivamente como individualidades

bélicas, perdendo-se completamente de qualquer finalidade que fosse verdadeiramente

honrosa, legal e centrada na paz.

Considerando isso, penso que o modelo analítico de Viveiros de Castro e

Ricardo Benzaquen (“amor vs. esfera jural”) não se acomoda bem à teleologia moral da

peça, pois eles têm como tese que o “amor” entre indivíduos (Julieta e Romeu) que

renegam a fidelidade a pedículos corporatistas estamentais (as “esferas jurais” das casas

556CASTRO, E.B. Viveiros de; ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. “Romeu e Julieta e a Origem do Estado”. In Arte e Sociedade: Ensaios de Sociologia da Arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. pp.148-149

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Capuleto e Montéquio) seria a condição de possibilidade para o fim do faccionismo

político e, consequentemente, da emergência do Estado Moderno557. Considero que este

modelo é insuficiente para abarcar a teleologia moral da peça por duas razões

principais:

(1) Como temos observado, a peça não apresenta a autoridade do príncipe Escalo como algo que tivesse uma lógica, dinâmica ou natureza diferente daquela dos patriarcas Capuleto e Montéquio. Todas essas instâncias de autoridade são exigentes em pedículos estamentais ou corporatistas, e igualmente sofrem, em suas respectivas esferas de poder, os efeitos dissolventes de seus maus exemplos do passado. (2) Viveiros de Castro e Ricardo Benzaquen não perceberam que o tema da “juventude desregrada” é apresentado como um problema a ser superado, seja ele manifesto através do furor bélico, seja ele manifesto através do furor amoroso. Ambos os tipos de furor são análogos em seus efeitos dissolventes: a afirmação agressiva de individualidades que solapam, através de táticas subreptícias, as diferentes instâncias de autoridade de Verona. Ao longo da peça, no caso de Julieta e Romeu, podemos indiciar vários

momentos em que a individuação através do furor amoroso é apresentada como um

problema a ser superado. O mesmo podemos afirmar a respeito da individuação

decorrente do furor bélico, particularmente nos casos de Mercutio e Teobaldo. Como

reservarei uma seção específica para tratar das figurações morais condenatórias do amor

de Julieta e Romeu, gostaria agora de demonstrar as figurações morais condenatórias do

furor bélico a exemplo de Mercutio e Teobaldo. Para tanto, será importante seguir de

perto as sugestões de Joan O. Holmer558, que identifica em “Romeu e Julieta” a

presença da linguagem e das expectativas éticas do manual de esgrima de Vicentio

Saviolo: “Vicentio Saviolo: His Practise in two Books”(1594-1595)559.

As partes técnica (1595) e ética (1594) do manual de esgrima de Saviolo foram

dedicadas ao Conde de Essex, sendo que a segunda parte é uma

tradução/adaptação/ampliação de “Il Duello”(1550) de Girolamo Muzzio. Da obra de

Saviolo provém evidências textuais – e até mesmo iconográficas – de que a peça

“Romeu e Julieta” respondeu à sua dicção e teoria geral, o que corroboraria a tese de

que esta peça não foi escrita antes de 1593560. Uma dessas evidências textuais fica

particularmente exposta na 9ª seqüência cênica, em que podemos observar as ironias de

557CASTRO & ARAÚJO, Ibdem Op. cit..pp.132-144 558HOLMER, Joan Ozark. “Draw, if you be men: Saviolo’s significance for Romeo and Juliet”. Shakespeare Quartely, volume 45, 1994(2): pp.163-189 559SAVIOLO, Vicentio. His Practise in two Books. London: John Wolf, 1594-95. No transcorrer de meu argumento, quando eu fizer citações diretas desta obra, não preservarei nenhuma analogia com sua materialidade editorial (com exceção de sua forma de pontuação e irregularidade ortográfica), pois em nada afeta os pontos centrais de interpretação que proponho para esta obra. 560HOLMER, Joan Ozark. “Draw, if you be men: Saviolo’s significance for Romeo and Juliet”. Shakespeare Quartely, volume 45, 1994(2): pp.163-166

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Mercutio em relação aos “estrangeirismos” lingüísticos e às regras de etiqueta na

esgrima, personificando isso em Teobaldo:

Ro. Why what is Tybalt?561 Mer. More then Prince of Cats. Oh hees the couragious

captain of Complements: he fights as you sing pricksong, keeps time, distance & proportion, he rests, his minum rests, one two, and the third in your bosome: the very butcher of a silke but- ton, a dualist a dualist, a gentleman of the very first house of the

[Página seguinte] first and second cause, ah the immortall Passado, the Punto re- uerso, the Hay.

Ben. The what? Mer. The Pox of such antique lisping affecting phantacies,

these new tuners of accent: by Iesu a very good blade, a very tall man, a very good whore. Why is not this a lamētable thing graundsir, that we should be thus afflicted with these straunge flies: these fashion-mongers, these pardons mees, who stand so much on the new forme, that they cannot sit at ease on the old bench. O their bones, their bones. 562

Ben. Ora essa! O que é esse Teobaldo?... Mer. Mais do que um Príncipe dos Gatos563. Oh, ele é o

valoroso capitão das formalidades!...Ele luta tal como vós cantais música: mantém tempo, distância e proporção. Ele se apóia em pausas mínimas, um, dois e a terceira em vosso peito. O verdadeiro assassino de uma bola de seda. Um duelista, um duelista!...Um cavalheiro de alta linhagem atento às causas primeira e segunda. Ah, o imortal ‘Passado’, o ‘Punto riverso’, o ‘Hay’!

Ben. Hein?... Mer. A peste desse grotesco ceceio de afetadas

‘fantassias’!...Estes novos moduladores de tom!... ‘Por Jesus, uma lâmina muito boa!’, ‘Um homem muito valente’, ‘Uma puta muito boa’... Por que não é uma coisa lamentável, meu digno senhor, que nós sejamos tão atormentados por estas moscas estrangeiras? Estes seguidores da última moda, estes pardon me’s, que se apegam tanto à nova forma que mal conseguem acomodar-se em velho assento!... Oh, os seus bon’s, os seus bon’s!...

No trecho citado acima, é possível perceber que há uma intenção editorial de

marcar visualmente em página a performance cômico-vulgar da fala de Mercutio.

Afinal, embora Mercutio fale em rimas, o texto é graficamente configurado como

prosa – e tal solução visual também é mantida na edição oxfordiana e no fólio de

1623. Além disso, o trecho está repleto de termos em inglês que devem ser

entendidos à luz do vocabulário da esgrima: “complements”, “time”, “distance”,

“proportion”, “minum rests”, “silke button” e “first and second cause”.

Especificamente “time”, “distance”, “proportion” e “minum rests” são termos que

possibilitam o paralelo metafórico das regras do duelo com as regras da música.

No entanto, diferentemente do que acontece com Mercutio, isso não é para

Saviolo matéria de deboche:

“I thinke it necessarye that euery one should learne this arte [of rapier], for as a man hath voice and can sing by nature, [he] shall neuer doo it with time and measure of musicke vnlesse he haue learned the arte”564

“Penso ser necessário que todos aprendam esta arte [esgrima], pois, da mesma forma que um homem tem voz e, por natureza, pode cantar, nunca o fará com tempo e medida da música a menos que tenha aprendido tal arte”

561Como foi apontado anteriormente, trata-se de um erro gráfico e de referente de caracter que já aparece corrigido no fólio de 1623: “Ben. Why what is Tibalt”. 562CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.pp.35-36 563Como foi explicado antes, trata-se de uma alusão literária a Tibert, personagem do “Roman de Renart”, para sugerir que Teobaldo, tal como um gato, pode ser tanto dócil quanto furtivo e traiçoeiro. Nesse sentido, o “valoroso capitão das formalidades” poderia esconder, sob a máscara da civilidade galante, uma natureza selvagem e furor assassino, o que poderia ser efetivamente perigoso para um Romeu afeminado pelo furor amoroso. 564SAVIOLO, Vicentio. His Practise in two Books. London: John Wolf, 1594-95. p.22

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Em música, “time” significa “medida musical”; “distance” significa “intervalo

na música”; e “proportion” significa “ritmo e métrica na música”. Na esgrima, tempo

designa o equilíbrio e número adequado de movimentos de arma e corpo para

maximizar a efetividade de ataque e desvio; distância (também chamada

medida/“measure”) designa o uso adequado da distância entre os esgrimistas, seja no

ataque, seja na defesa; proporção (também chamada de guarda/“guard”) designa

posições iniciais de ataque565. No entanto, “minum rests” refere-se às notas mínimas na

música, não sendo, pois, um termo técnico da esgrima, mas “rests” refere-se às pausas

na esgrima, que são momentos estratégicos em que o esgrimista planeja uma pausa (ou

finge seguir uma determinada via de ataque) antes de executar o golpe efetivamente

pretendido. Assim, Mercutio faz uma sobreposição metafórica perfeita entre esgrima e

música – “he rests, his minum rests, one two, and the third in your bosome” – para, ao

final, enfatizar o caracter traiçoeiro/felino que Teobaldo esconde embaixo da aparência

de cortesia. Afinal, se ao longo da peça Mercutio duas vezes chama Teobaldo de “rei”

ou “príncipe” dos “gatos”, não se trata de uma imagem gratuita, pois corresponde a

chamá-lo também de “leão” ou “tigre”, que são emblemas morais que representam

homens orgulhosos, arrogantes, rebeldes e coléricos566.

Atualmente, na prática da esgrima em competições, a bola (“button” ou

“protective knob”) que é colocada na ponta dos floretes é metálica. A sua função é

proteger os duelistas da penetração da lâmina quando praticam a esgrima, pois cada

toque da ponta da lâmina representa pontuação. Em sua fala, Mercutio dá a entender

que, ao final do século XVI, a bola era feita de seda: “silke button”. Deste modo, dizer

que Teobaldo é “the very butcher of a silke button” é debochar de sua forma de duelar

segundo os manuais de etiqueta e, no final das contas, é também troçar de sua virilidade

guerreira. Em certa medida, a imagem construída de Teobaldo por Mercutio é a

antípoda daquela que temos de Gregório e Sansão na abertura da 2ª seqüência cênica,

pois estes são caracteres vulgares. Afinal, diferentemente de Teobaldo, eles não são

parentes mas sim servidores da casa Capuleto e, do ponto de vista da verossimilhança

dramática, são “bobos fanfarrões” sem qualquer preocupação com regras de galantaria.

No entanto, Gregório, Sansão, Teobaldo e Mercutio estão implicados na mesma

desmedida: deixam-se levar pelo furor bélico e, por conseguinte, desrespeitam as

instâncias de autoridade em Verona.

565SAVIOLO, Vicentio. His Practise in two Books. London: John Wolf, 1594-95.pp.46-54

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A expressão “first and second cause” reporta-se diretamente àquilo que Saviolo

entende como “causas” recorrentes e censuráveis da prática do duelo: (1ª) “wordes”

(palavras ofensivas ou calúnia); (2ª) “deedes” (atos ou feitos ofensivos)567. Obviamente,

quando Mercutio diz que Teobaldo é “a gentleman of the very first house of the first

and second cause”, trata-se de um deboche que não segue as mesmas expectativas éticas

de Saviolo. Mais uma vez, podemos lembrar exemplarmente da abertura da 2ª

seqüência cênica, em que deliberadamente Sansão e Gregório usam gestos ofensivos

(“second cause”: exibir o polegar ereto ou morder o polegar) e, depois, palavras

ofensivas (“first cause”), para provocar uma contenda com dois servidores da casa

Montéquio. Devemos lembrar também que, durante a intervenção do príncipe Escalo

nesta contenda civil tão banalmente provocada por Sansão e Gregório, ele censura os

motins que nascem de “ayrie word” (portanto, uma “first cause”) e do “pernicious

rage”. Ora, isso parece fazer eco à afirmação de Saviolo de que muitas querelas

começam pequenas e se estendem por toda a família e vizinhos, havendo um

derramamento de sangue sem fim568.

Segundo Joan O. Holmer, não há paralelo do discurso de Escalo no poema que é

considerado como a fonte principal da peça: “Tragicall Historye of Romeus and

Juliet”(1562), de Arthur Brooke (m.1563). No entanto, é fácil fazer muitos paralelos

com a obra de Saviolo, que descreve a cólera como “aquela paixão que leva os homens

a essa resolução mortal” de duelar, e castiga aqueles homens rixentos que, “insolentes e

presunçosos,...apressadamente correm para suas mortes como feras”569. Portanto, a

censura de Escalo não somente se aproxima bastante das expectativas éticas de Saviolo,

mas também recorre às mesmas metáforas derrogatórias animalizantes:

“...for the triall of the sworde being doubtfull, and the ciuile certaine, the ciuile is that way by which euery man of reckoning and reputation ought to iustifie himselfe...I will say nothing else...,but that the ciuile profe is the profe of reason, & fighting but the proofe of force: and that reason is proper vnto man, and force of wilde beastes. Leauing the ciuile proofe and taking the armes, we leaue that which is conuenient for men, to haue recourse to that which is belonging to brute beastes...”570

“pois sendo duvidosa a prova através da espada e sendo a prova civil certa, a prova civil é o meio através do qual todo homem de boa conta e reputação pode se justificar...Eu não direi outra coisa senão que a prova civil é a prova da razão, e que a luta é somente prova de força; e que a razão é própria do homem, e a força é própria das feras selvagens. Abandonando a prova civil e pegando em armas, nós abandonamos o que é conveniente aos homens para recorrer àquilo que é característico das feras brutas...”

566RIPA (OF PERUGIA), Caesar. Iconologia or Morall Emblems. London: P. Tempest & Benjamin Motte, 1709. p.51; 64; 75 567SAVIOLO, Vicentio. His Practise in two Books. London: John Wolf, 1594-95.pp.156-157 568SAVIOLO, Vicentio. His Practise in two Books. London: John Wolf, 1594-95.pp.154-155 569HOLMER, Joan Ozark. “Draw, if you be men: Saviolo’s significance for Romeo and Juliet”. Shakespeare Quartely, volume 45, 1994(2): p.176 570SAVIOLO, Vicentio. His Practise in two Books. London: John Wolf, 1594-95. pp.182-183

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Nesse sentido, a resolução de se chegar a um duelo deveria ter como fim

principal estabelecer a verdade e a justiça, mas somente quando os meios jurídicos e

civis de conciliação foram esgotados. Portanto, a “prova através da espada”, tal como o

julgamento medieval através da justa cavalheiresca, deveria ser um recurso

extraordinário calcado na virtude, cujo propósito central deveria ser o proveito público,

que nasceria da verdade e da justiça, em vez de servir para meras vinganças pessoais,

pois nada seria mais gracioso e aceitável perante Deus do que o bom governo entre os

homens571. Além disso, os papéis de punir os crimes e manter a paz civil caberiam ao

príncipe que, acima de todos os súditos, deveria ser o exemplo mais elevado de

humanidade, comedimento e discernimento. O oposto disso é uma mera existência

bestial. Ora, ao repetir a mesma metáfora animalizante que encontramos no discurso de

Escalo e aplicando-a a circunstâncias semelhantes, Saviolo declara que...

“as often as hee shall effect any thing without reason and with violence, hee worketh like a beast, and is transformed euen into a verye beast”572

“todas as vezes em que alguém efetuar qualquer coisa sem o uso da razão e com violência, funcionará como uma fera e estará verdadeiramente se tornando uma fera”

Nesses termos, se o gentil-homem que pegar em armas não estiver sendo

conduzido pela reta razão e pela ocasião justa e legal, transfigurar-se-á em fera furiosa.

Tal modelo de comportamento inscrevia-se na tradição humanista cristã baixo-medieval

da “gentileza” (gentilesse), que assentava a verdadeira nobreza não tanto no nascimento

nobre mas no comportamento nobre. Por sua parte, Saviolo chega a afirmar que “ser

cavalheiro” é marca de valor, não de condição573. De qualquer forma, nessa tradição

humanista, o comportamento nobre, por excelência, pressupunha saber temperar a

coragem com a prudência, pois qualquer ação de valentia verdadeiramente nobre

deveria ter por finalidade a justiça, em vez da vingança pessoal. Com isso, afirma-se

que a “verdadeira natureza” do duelo seria refrear o homem, em vez de dar livre curso

para a ofensa574. Ora, se avaliados por este prisma, os três jovens socialmente elevados

da peça (Teobaldo, Mercutio e Romeu), por motivos e circunstâncias díspares, violam

os padrões éticos de duelo apregoados por Saviolo. E, significativamente, todos eles são

punidos no decorrer do movimento trágico da peça. Antes de prosseguirmos neste

ponto, voltemos para o vocabulário da esgrima em Mercutio.

571SAVIOLO, Vicentio. His Practise in two Books. London: John Wolf, 1594-95.pp.197-201 572SAVIOLO, Vicentio. His Practise in two Books. London: John Wolf, 1594-95. p.267 573SAVIOLO, Vicentio. His Practise in two Books. London: John Wolf, 1594-95. p.257 574HOLMER, Joan Ozark. “Draw, if you be men: Saviolo’s significance for Romeo and Juliet”. Shakespeare Quartely, volume 45, 1994(2): pp.180-181

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Em sua fala anteriormente citada, Mercutio refere-se debochadamente a termos

italianizados da esgrima: “passado”, “hay” e “punto reuerso”. O termo “passado”

aparece duas vezes ao longo da peça e, em ambas as ocasiões, em falas de Mercutio.

Saviolo fala em “passata” como “passage” ou “passing by”, o que pode ser tanto um

passo à frente de ataque quanto um “remoue”, ou seja, um desvio lateral para escapar de

um golpe e ensaiar um contra-ataque575. Por sua vez, derivada provavelmente do termo

italiano “hai”, a interjeição italianizada “hay” não é um termo técnico que defina um

movimento corporal ou de armas na esgrima, pois se trata de um grito de ataque ou

exclamação que significa “you have it” ou “have at you now” quando se golpeia um

adversário576. O “punto reuerso” (Saviolo fala em “punta riuersa” ou “puncta riuersa”) é

o ataque perfurante feito com o movimento supino da mão e do ante-braço e conduzido

a partir da linha interna do atacante577. Como se pode perceber, a elucidação desses

termos é importante não apenas porque afetam as nossas imagens conceituais de

tradução, mas também porque sugerem performances e empréstimos lingüísticos

derivados de Saviolo.

Considerando isso, uma outra expressão italianizada é importante de ser

analisada: “Alla stucatho carries it away”578. Esta frase aparece na 12ª seqüência cênica

como uma fala de Mercutio, no momento de sua confrontação com Teobaldo. Mercutio

a utiliza para dizer que vai duelar com Teobaldo, depois de ter testemunhado a

“dishonourable, vile submission” de Romeu se negar a duelar com Teobaldo, mesmo

após este ter-lhe dito “thou art a villaine”579, ou seja, depois de Teobaldo ter criado uma

“first cause” para o duelo. Por sua vez, para chamar Teobaldo para briga, Mercutio lhe

dá também uma “first cause” ao xingá-lo de “ratcatcher” e “Good King of Cats”580. Ora,

tudo isso é exatamente o oposto do que sugere a ética de Saviolo:

“After the defie it is not lawfull that one Gentleman should offend the other, but in the steccata, which is the place of Combat”581

“Depois do desafio, é ilegal que um gentil-homem ofenda outro, pois somente deve fazê-lo na steccata, que é o lugar de Combate”

575SAVIOLO, Vicentio. His Practise in two Books. London: John Wolf, 1594-95. p.59 576HOLMER, Joan Ozark. “Draw, if you be men: Saviolo’s significance for Romeo and Juliet”. Shakespeare Quartely, volume 45, 1994(2): pp.164-172 577SAVIOLO, Vicentio. His Practise in two Books. London: John Wolf, 1594-95. pp.57-89 578CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.p.46 579CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.p.45 580CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.p.46 581SAVIOLO, Vicentio. His Practise in two Books. London: John Wolf, 1594-95. p.189

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Podemos afirmar que há no plano trágico da peça “Romeu e Julieta”, tal como

no manual de Saviolo, a apresentação de um problema comportamental cuja solução

passaria pela moderação dos costumes e hábitos rixentos da nobreza (modelo de

excelência social), em particular, e da sociedade em geral. Ora, a expressão “Alla

stucatho carries it away” sugere um senso de triunfo insolente, dissoluto e violento, pois

Mercutio não está se incumbindo de uma causa justa e útil para o bem público. Por isso

mesmo, a teleologia moral da peça reserva-lhe punitivamente a morte. Segundo Joan O.

Holmer, o uso da voz passiva (“carried away”) em Saviolo torna ainda mais aguda a

nossa percepção da ironia trágica em torno de Mercutio, Teobaldo e Romeu, pois

Saviolo várias vezes adverte que os gentis-homens não devem ser levados (carried

away) pela fúria perigosa, ou seja, exatamente a paixão fatal pela qual os três jovens se

perderam582. Em sua carta ao leitor, Saviolo enfatiza justamente o código de virtude que

fundamentaria o duelo verdadeiramente honroso e lamentava que tal código fosse quase

sempre ignorado por seus contemporâneos, que faziam “grandes querelas” por “causas

pequenas”, o que tão somente lhes trazia mais desonra e perdas lastimáveis. Em sua

perspectiva, quanto maior a habilidade e a coragem do esgrimista, maior deveria ser o

seu autocontrole e humildade em palavras e ações:

“...I have endeuoured to express in this discourse, and to make plain by picture all de skill and knowledge which I have in this art: Exorting all men so good mindes and noble spirites to learne and purchase the same, not to the end to abuse it in insolencies and injuries, but to use it in cases of necessitie for the defence of iust causes, and to the maintenance of the honour of themselues and others...For by the rule and precept of this Art, men are taught by how much they are resolute in courage, and skilful of the use of the...weapon, by so much the more to shew themselues vertuous, humble, and modest in speech & action, and not to be liers, vanters, or quarrellers, for those which in this sort demeane themselues, (notwithstanding their skill or courage) do commonly carry away wounds and dishonor, and sometimes death.”583

“Eu ousei expressar neste discurso, e torná-lo bem claro por meio de gravuras, toda a técnica e conhecimento que tenho nesta arte, exortando em todos os homens boníssimos entendimentos e espíritos nobres para aprender e apreender a mesma, não com a finalidade de fazer mal uso dela em insolências e ofensas, mas sim utilizá-la quando necessária para a defesa de causas justas, e para a preservação da própria honra e dos outros...Daí, pela regra e preceito desta Arte, os homens são ensinados que, quanto mais estão resolutos em coragem e hábeis para usar a...arma, muito mais devem se mostrar virtuosos, humildes e modestos em palavras e ação, e não serem caluniadores, vãos e rixentos, pois aqueles que assim agem se rebaixam. Não obstante a sua habilidade e coragem, carregam comumente sofrimentos, desonra e, algumas vezes, a morte.”

No que concerne especificamente à expressão “Alla stucatho”, Joan O. Holmer

sugere haver na prosódia de Mercutio um trocadilho fonético de “allo steccato/alla

steccata” (i.e., a referência espacial ao campo de duelo) com “alla stoccata” (i.e., a ação

de tocar ou ferir com a ponta da espada ou do florete)584. Esta hipótese pode ser

582HOLMER, Joan Ozark. “Draw, if you be men: Saviolo’s significance for Romeo and Juliet”. Shakespeare Quartely, volume 45, 1994(2): pp.169-170 583SAVIOLO, Vicentio. “To the Reader”. In His Practise in two Books. London: John Wolf, 1594-95. pp.9-10 584HOLMER, Joan Ozark. “Draw, if you be men: Saviolo’s significance for Romeo and Juliet”. Shakespeare Quartely, volume 45, 1994(2): pp.170-171

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corroborada pelo fato de que, na materialidade textual da edição de 1599, a expressão

“Alla stucatho” é a única que apresenta a linguagem italianizada da esgrima em corpo

tipográfico itálico, o que dá grande destaque visual, no capital da página, à prosódia

debochada de Mercutio585. Vejamos:

Do ponto de vista lingüístico, a contração pronominal “Alla” serviria para

Mercutio se referir tanto ao golpe de florete (“stoccata”) quanto ao local ou campo de

duelo para a esgrima (“steccata” ou “steccato”). Nas variações da prosódia inglesa, as

letras “o”, “e” e “u” podem foneticamente representar “œ”/“ō”. Nesse sentido, o uso do

corpo tipográfico itálico e o uso da contração pronominal feminina “Alla” associada ao

substantivo “stucatho” poderiam indicar uma intenção editorial de destacar visualmente

em página a sobreposição fonética, na prosódia cômica de Mercutio, dos significados

direcional e locacional da expressão “Alla stucatho”: se direcional, o significado

reporta-se a uma ação de luta (“vamos à luta de espada” ou, de acordo com italiano-

padrão hodierno, “andiamo alla stoccata”); se locacional, o significado reporta-se a um

lugar de luta (“vamos ao campo” ou, de acordo com italiano-padrão hodierno,

“andiamo alla steccata” ou “andiamo allo steccato”).

Ora, o trocadilho fonético de Mercutio, destacado em corpo tipográfico itálico,

serviria potencialmente para expor ao “leitor/audiência” a loucura de toda aquela

situação, pois evidenciava que Teobaldo (parente do mestre Capuleto) e Mercutio

(parente do príncipe Escalo) estavam deliberadamente subvertendo as regras do duelo

verdadeiramente honroso, pois, além de suas causas serem egoístas, vãs e rixentas, eles

não lutavam numa “steccata” cavalheiresca e comedidamente ajustada por escrito, mas

sim praticavam destemperadamente “stoccate” bestiais nas ruas de Verona, o que

significava não apenas uma violenta insolência contra a autoridade do príncipe Escalo,

585CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.p.46

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que havia proibido discórdias civis sob pena de morte, mas também contra os mestres

Capuleto e Montéquio que, como sabemos, concordaram em manter a paz e estavam

ligados entre si não pela amizade, mas pelo efeito da mesma penalidade.

Tudo isso nos faz pensar na questão que fundamenta esta seção do capítulo: o

fim trágico que se desenharia para Teobaldo e Mercutio não é resultado de uma

fidelidade a qualquer espécie de “esfera jural”, mas o efeito direto de uma insolente

afirmação de individualidade através de seus respectivos furores guerreiros. Quando

eles fazem isso – tal como Julieta e Romeu o fazem através do furor amoroso –,

perigam a se tornar um “nada social”, “bestas que correm para o matadouro”, “comidas

de verme”. Por isso, é uma manifestação de valentia vã, insensata e insincera que, antes

de morrer, Mercutio pragueje nos seguintes termos:

Mer. Helpe me into some house Benuolio,

[Folha seguinte] Or I shall faint, a plague a both your houses. They haue made wormes meate of me, I haue it, and soundly, to your houses. 586

Mer. Ajuda-me entrar em alguma casa, Benvoglio,

ou vou desmaiar...Que uma praga recaia sobre vossas casas!... Elas fizeram de mim pasto de vermes... Também tenho o meu, e bom!...Vossas casas!...

O último discurso de Mercutio deveria ser contextualizado à luz de um emblema

do manual de Saviolo. Em tal emblema, vemos a seguinte inscrição que o margina em

letras capitais:

“O WORMES MEATE: O FROATH: O VANITIE: WHY ART THOV SO INSOLENT”

“OH, PASTO DE VERMES! OH, INSENSATEZ! OH, VAIDADE! PORQUE TU ÉS SÃO INSOLENTE?”

No emblema em que aparece esta inscrição, é figurado um esqueleto inteiro

jazendo ao chão, estando aos pés de um homem andrajoso e de outro magnificamente

trajado e empinando o seu cavalo, com sua espada presa à cintura:

586CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.pp.46-47

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Deste modo, por contigüidade, o emblema ensina que a violência insolente de

um gentil-homem apenas pode gerar a sua própria miséria (homem andrajoso) e, no

limite, morte infame e esquecimento (esqueleto ao chão�ausência de monumento

funerário). Ora, tal efeito é, ironicamente, o oposto da pretendida glória guerreira. É

interessante notar que tal emblema aparece duas vezes nos livros de Saviolo: a primeira

ocorrência é no livro 1, em que tal emblema é a única figura ilustrativa não relacionada

à técnica de esgrima e movimento corporal, estando localizado ao final da seção

“Discourse of Rapier and Dagger”587; a segunda ocorrência é no livro 2, em que o

emblema é a única figura efetivamente ilustrativa de idéias éticas588. Neste último caso,

o emblema foi colocado, significativamente, ao final da seção chamada “Of the Duello

or Combat”, ou seja, justamenta naquela em que Saviolo afirma a necessidade de que a

escolha do campo não se dê publicamente e que seja acordada por escrito, caso

contrário, seria ilegal, além de enfatizar que não se deve duelar por ninharias.

Aliás, como notara Gerald Harriss, desde o século XV já era perceptível que

uma mentalidade legal estava substituindo ou se mesclando à mentalidade cavalheiresca

na Inglaterra. Na prática administrativa, isso era medido pelo fato de a elite nobre

(classe armada) se habituar a recorrer mais às cortes legais do que à vingança privada.

Outra mudança comportamental também estava ocorrendo: a honra passou a residir não

tanto na bravura militar, mas na reputação de integridade de atitudes condizentes ao

status social589. Ora, como já sabemos, no sentido de gentileza de Saviolo, a valentia

não mais poderia se dissociar da prudência, da mesma forma que a “prova através da

espada” não deveria se dissociar da justiça, do bem comum e das formas de distinção

social590. Nesse sentido, os combatentes deveriam sempre lutar com “boa consciência”,

pois “Deus sempre pune a má intenção” e o “apetite de vingança”591.

Segundo Joan O. Holmer, a seção “Of the Duello or Combat” do livro 2 é um

acréscimo de Saviolo ao traduzir e adaptar para o inglês o livro “Il Duello” de

Muzzio592. Nesta seção, Saviolo sublinha a ética divina que governava o código de

honra do duelo nos “tempos passados”. Por isso, lamenta as numerosas transgressões

recentes ao espírito deste código antigo:

587SAVIOLO, Vicentio. His Practise in two Books. London: John Wolf, 1594-95.p.99 588SAVIOLO, Vicentio. His Practise in two Books. London: John Wolf, 1594-95.p.266 589HARRISS, Gerald. “Political Society and the Growth of Government in Late Medieval England”. Past & Present, 1993(138): p.53 590SAVIOLO, Vicentio. His Practise in two Books. London: John Wolf, 1594-95.pp.227-230 591SAVIOLO, Vicentio. His Practise in two Books. London: John Wolf, 1594-95.pp.197-201 592HOLMER, Joan Ozark. “Draw, if you be men: Saviolo’s significance for Romeo and Juliet”. Shakespeare Quartely, volume 45, 1994(2): p.175

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“I woulde in lyke manner aduertise Gentlemen, of an euill custome which of late yeres hath installed it self amongst men of all sortes and nations: to bee delighted with broiles and hurliburlies, to set men together by the eares, & cause quarrels betwixt friends, neighbours, and kinsfolke...Now vppon euerie occasion Armes are taken, and one friend for a word will not only violated the sacred respect which ought to be zealouslie obserued in friendshippe, by turning their familiaritie into strangenes, their kindnesse into malice, & their love into hatred, but also accompany this strange and unnaturall alteration with a wicked resolution of seeking one anothers ouerthrowe, not resting till the enmitie be confirmed by fight, & fight ended by death...Now malice and hatred ouerrunneth all, strife and rancor are the bellows of quarrels, and men vpon euerie light cause enter into more actions of defiance, than for any iust occasion offered in respect of iustice and honour”593

“Da mesma forma, eu advertiria os Gentis-homens a respeito do mau costume que recentemente tem se instalado entre os homens de todos os tipos e nações: satisfazer-se com lutas e tumultos que, aos gritos, reúnem homens e causam querelas entre amigos, vizinhos e parentes...Agora, sob qualquer pretexto, pegam-se armas, e um amigo, através de palavra desairosa, não somente viola o respeito sagrado que deve ser zelosamente observado na amizade – transformando a sua familiaridade em estranhamento, a sua ternura em malícia e a sua estima em ódio –, mas também faz com que esta estranha e monstruosa altercação seja acompanhada da perversa resolução de destruir uns aos outros, não descansando até que a inimizade seja confirmada pela luta, e a luta findada com a morte...Agora, a malícia e o ódio a todos guiam, conflito e rancor são os pulmões das querelas, e os homens entram em desafios mais por qualquer causa insignificante do que por alguma justa ocasião oferecida em decorrência da justiça e da honra”

Embora eu tenha traduzido no texto de Saviolo a expressão “by the eares” como

“aos gritos”, não podemos perder de vista o seu significado para este autor na etiqueta

do duelo: ela representa justamente a antonomásia da exigência de que o desafio de

duelo seja feito “by wordes”, isto é, por escrito. Ora, escolher o campo e expressar o

desafio por escrito exigiriam um patamar mais alto de autocontrole dos impulsos

agressivos, qualidade central que diferenciaria o cavalheiro gentil do furioso, a bravura

útil à ordem civil – e, portanto, verdadeiramente honrosa – da bravura bestial que

simplesmente a destrói. Por isso, deve-se situar adequadamente a expressão “by the

eares” no contexto metafórico da etiqueta do duelo, de modo a não se criar sentidos

equivocados na leitura e, muito particularmente, na tradução das falas de Mercutio.

Mercutio usa a expressão “by the eares” duas vezes ao longo da peça. Na

primeira, ele brinca com Romeu quando lhe diz: “I will bite thee by the eare for that

ieast.”594 Aqui, não é possível manter o jogo de sentido e, por isso mesmo, melhor seria

uma tradução mais livre e explicitadora da metáfora da etiqueta do duelo: “Sem carta de

desafio, por esse chiste te pico”. Na segunda vez em que aparece a expressão, Mercutio

está provocando a sua luta fatal com Teobaldo: “Will you plucke your sword out of his

pilcher by the eares? make haste, least mine be about your eares ere it be out.”595. Neste

último caso, Mercutio usa a expressão “by the eares” para ironizar o fato de Teobaldo,

“o valoroso capitão das formalidades”, felinamente esquecer-se rápido de usar com ele a

mesma etiqueta que fizera questão de usar, pelo menos inicialmente, com Romeu.

593SAVIOLO, Vicentio. His Practise in two Books. London: John Wolf, 1594-95.pp.264-265 594CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.p.37 595CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.p.46 (Vide acima a foto do detalhe desta página que contém trecho citado)

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Como podemos notar, Mercutio engenhosamente faz um trocadilho com “eares” que

não é possível de manter na tradução: “Sem carta de desafio, ides puxar vossa espada de

sua bainha? Fazei-o rápido, pois temo que a minha corte vossas orelhas antes disso”.

Portanto, de acordo com o vocabulário de Saviolo, o uso da expressão “by the eares”

por Mercutio demonstra que a sua bravura e aquela de Teobaldo é vã, insensata e

perigosa para o ordem civil.

A expressão “occasion” é outra derivada do vocabulário de esgrima de Saviolo.

Ela aparece três vezes em duas circunstâncias em “Romeu e Julieta”. Na primeira

circunstância, é utilizada por Pedro na 9ª seqüência cênica, quando acompanhava a

Ama de Julieta, cujo trabalho de alcoviteira visava colher o recado de Romeu sobre a

hora e o local do seu casamento secreto, num contexto enunciativo claramente bufônico

e obsceno:

Pet. I saw no man vse you at his pleasure: if I had, my weapon shuld quickly haue bin out : I warrant you, I dare draw assoone as an other man, if I see occasion in a goodquarel,& the law on my side.

596

Pedro. Eu não vi ninguém fazer uso de vós ao seu bel prazer. Se tivesse visto, minha arma rapidamente seria posta para fora!... Eu vos garanto que ouso sacar a espada tão prontamente quanto qualquer homem, se eu perceber ocasião para uma boa luta e a lei estiver do meu lado.

Na segunda circunstância, a expressão “occasion” é utilizada por Teobaldo e

Mercutio no início da 12ª seqüência cênica, quando Mercutio faz trocadilhos bufônicos

para incitar Teobaldo a uma contenda em plena rua de Verona e aos olhos de todos:

596CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.p.39

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Enter Tybalt, Petruchio, and others.

Ben. By my head here comes the Capulets. Mer. By my heele I care not. Tybalt. Follow me close, for I will speake to them.

Gentlemen, Good den, a word with one of you. [folha seguinte]

Mer. And but one word with one of vs, couple it with some-thing, make it a word and a blowe.

Tib. You shall find me apt inough to that sir, and you wil giue me occasion.

Mercu. Could you not take some occasion without gi-uing?

Tyb. Mercutio, thou consortest with Romeo. Mer. Consort, what doest thou make vs Minstrels? and thou

make Minstrels of vs, looke to hear nothing but discords: heeres my fiddlesticke, heeres that shall make you daunce: zounds con-sort.

Ben. We talke here in the publike haunt of men : Either withdraw vnto some priuate place, Or reason coldly of your greeuances: Or else depart, here all eyes gaze on vs.

Mer. Mens eyes were made to looke, and let them gaze. I will not budge for no mans pleasure I.

Enter Romeo. Tyb. Well peace be with you sir, here comes my man. Mer. But ile be hangd sir if he weare your liuerie:

Marrie go before to field, heele be your follower, Your worship in that sense may call him man.597

Entram Teobaldo, Petruccio e outros. Ben. Por minha cabeça, os Capuletos estão vindo aqui! Mer. Por meu calcanhar, não me importo.598 Teobaldo. Fiquem perto de mim, pois vou falar com eles...

Bom dia, cavalheiros, gostaria de trocar uma palavra com um de vós.

Mer. Mas somente uma palavra com um de nós? Junte-a com alguma coisa...Faça dela um pretexto de combate.599 Teob. Achar-me-íeis bastante disposto para isso, senhor, se me

désseis ocasião. Mercu. Não podeis requerer uma ocasião por vós mesmo?600 Teob. Mercutio, tu concertas com Romeu...601 Mer. Concerto?...No que nos transformas, em menestréis?!... E

já que nos transformas nisso, não procures ouvir nada senão dissonâncias. Eis meu arco...Eis o que vos fará dançar... Concerto, ora essa!... Ben. Para o público assombro dos homens, aqui nós falamos.

Ou nos retiramos para algum lugar reservado, ou que a razão arrefeça vossos agravos, ou, de outro modo, partamos. Aqui, todos os olhos estão fixos em nós. Mer. Os olhos foram feitos para olhar... Deixa que vejam!

Não me demoverei para a satisfação de ninguém!... Entra Romeu.

Teob. Bem, que a paz esteja convosco, senhor. Eis que vem meu homem... 602 Mer. Que ele seja enforcado, senhor, se vestir vossa libré! Pela

Virgem, apresentai-vos ao campo!603 Ele será vosso partidário. É nesse sentido que podeis chamá-lo de vosso homem.

597CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.pp.44-45 598Há um jogo entre “alto” e “baixo” nas falas de Benvoglio e Mercutio que é importante salientar, pois diferencia as suas respectivas posturas cênicas. Com a expressão “por minha cabeça”, a fala de Benvoglio parece fazer uma alusão indireta ao termo latino “capu” (cabeça) contido em Capuleto, o que cria um claro contraste com a expressão rebaixadora e rixenta “por meus calcanhares” de Mercutio. 599Observe o deslocamento semântico que Mercutio faz com “word”: quando Teobaldo fala “a word with one of you”, está abordando Benvoglio e Mercutio sem qualquer intenção de ofensa, já que o interesse dele era Romeu; no entanto, Mercutio diz para Teobaldo que deveria “couple it with some-thing, make it a word and a blowe”, ou seja, transformar “word” numa “first cause” (ofensa verbal) para um combate. Isso explica a minha solução de tradução, pois, no final das contas, Teobaldo cede às provocações e ofende verbalmente a honra cavalheiresca de Mercutio e Romeu: “Mercutio, thou consortest with Romeo”. 600Uma tradução mais próxima da frase em inglês seria: “Não podeis tomar uma ocasião sem vos ser dada?”. Na verdade, trata-se de uma provocação com clara consciência de suas implicações legais, tal como vemos anteriormente na fala de Pedro: quem inicia a briga sofre efetivamente a penalidade das leis de Verona. Daí a preocupação estratégica, que podemos observar desde a 2ª seqüência cênica nas figuras de Sansão e Gregório, de que a lei esteja “do nosso lado”. Com isso, podemos perceber que Mercutio quer arrogantemente testar a “coragem” de Teobaldo nos seguintes termos: se Teobaldo, contra todas as leis de Verona, for um homem efetivamente corajoso, ele próprio tomaria a iniciativa de dar “ocasião” de luta para Mercutio. Portanto, isso explica a minha opção de tradução. Como os versos que se seguem demonstram, Teobaldo cede à provocação, mas Benvoglio intervém e, como sabemos, a entrada de Romeu tira a atenção imediata de Teobaldo em relação a Mercutio. 601Devemos considerar que esta frase tem um campo semântico duplamente infamante, o que explicaria a alusão de Mercutio aos menestréis. A frase tanto pode significar que Teobaldo e Romeu fazem par como músicos de aluguel que tocam instrumentos de corda, particularmente violas e rabecas, quanto pode significar que Teobaldo e Romeu fazem par como consortes matrimoniais. De qualquer forma, ambas as sugestões são calúnias infamantes contra a honra de um nobre. Portanto, depois da provocação de Mercutio, Teobaldo tomou a iniciativa, dando-lhe uma banal “first cause” e uma equivocada “occasion” para o combate. 602Quando um nobre fala “meu homem”, pode significar “meu servidor”, “meu serviçal”, “meu pajem”, “meu parente” ou “meu aliado”. O sentido certo dependerá do contexto de enunciação. De qualquer forma, geralmente quem diz “meu homem” pressupõe o referido “homem” como seu dependente e inferior hierárquico. Considerar isso possibilita entender porque Mercutio afirma que Romeu deveria ser enforcado se se tornasse um submisso serviçal (“vestir a libré”) de Teobaldo. Daí a cólera de Mercutio, logo depois, com a “vile submission” de Romeu. 603A expressão “go before to field” está dentro do vocabulário da esgrima, mas há uma certa ironia trágica que seja pronunciada por alguém que instantes antes não importaria em duelar nas ruas. O trágico desdobramento da 12ª seqüência cênica demonstra, na prática, que Mercutio e Romeu não se importarão com esta etiqueta do duelo (e com as leis de Verona) quando arrebatados pela fúria vingativa.

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Como podemos notar, as duas circunstâncias de uso de “occasion” estão longe

de seguir o sentido ético apregoado por Saviolo. Ao longo de seu manual, Saviolo usa

“occasion” e “cause” de forma intercambiável, e sempre enfatiza a “iust occasion”

como um fator crítico a legitimar um duelo:

“...I saie that the Lye is not the thing that induceth fight, but the occasion whereupon it was giuen, and if there were no proofe of the defect whereof a man is blamed, that hee can in no sorte binde the other to fight, because the regarde ought to bee to the qualitie of the iniurie, and not to the Lie. But I am sure some will account this opinion newly vpstart: to whome I aunswere, their custome and opinion is farre more newe, and that mine is rather to bee proued auncient...”604

“Eu afirmo que a Calúnia não é aquilo que induz a lutar, mas a ocasião em que ela ocorrera. E se não há prova da falta da qual um homem é acusado, de modo nenhum alguém está obrigado a lutar, pois o olhar deve voltar-se para a qualidade da ofensa, e não para a Calúnia. Estou certo que alguns considerarão esta opinião recente e pretensiosa. Para estes, eu respondo: são seu comportamento e sua opinião muito mais recentes, enquanto que a minha opinião, pelo contrário, é comprovadamente antiga”

No confronto cênico entre Teobaldo e Romeu, o primeiro o chama de “vilão”.

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F I G. 301. Valore : V A L O R . Este Homem está em sua Primazia. A sua Indumentária é de

Tecido Dourado. Está com um Cetro Laureado de Guirlanda em sua Mão direita; com a sua mão esquerda, ele acaricia a Cabeça do Leão.

Virilidade, ou Condição de Homem (“Vir”), denota o Suporte do Valor e da Bravura. O Cetro denota que a Preeminência é devida a isso. O Laurel denota o seu ser constante no mesmo Humor. O Leão denota a Qualidade dos Homens corajosos de conseguir, através de sua Cortesia, a Estima dos seres mais bárbaros.609

Embora se possa especular que é o amor por Julieta que faz Romeu manter o

autocontrole frente às ofensas de Teobaldo, parece que ele, pelo menos até antes do

assassinato de Mercutio, assim como Benvoglio e o conde Páris, são os únicos

caracteres jovens e socialmente elevados que sinceramente demonstram preocupação

em respeitar as leis de Escalo que proibiam as lutas e discórdias civis. O mesmo já não

se pode falar de Mercutio e Teobaldo. O emblema moral da “Paz” na “Iconologia” de

Cesare Ripa é igualmente eloqüente em demonstrar a necessidade de domar com

cortesia a “ferocidade bestial” de súditos rebeldes, de modo a criar uma unidade política

próspera para todos:

F I G. 215. Pace : P A Z. Uma jovem Mulher alada e coroada com Ramos de Oliveira

e Trigo. Um Leão e uma Ovelha repousando unidos. Troféus de Armas sendo queimados.

A Oliveira foi sempre um Emblema da Paz. Os Ramos de Trigo demonstram que Paz gera Abundância. O Leão e a Ovelha unidos por correntes significam que a Paz reconcilia a Ferocidade bestial com a Gentileza; que transforma a Crueldade da Inimizade entre as Pessoas em mútua Amizade. Queimar as Armas também denota Paz.610

Portanto, podemos observar que os três emblemas recorrem à imagens

felinas/feéricas para representar os súditos “orgulhosos, arrogantes e coléricos” que

609RIPA (OF PERUGIA), Caesar. Iconologia or Morall Emblems. London: P. Tempest & Benjamin Motte, 1709.p.75 610RIPA (OF PERUGIA), Caesar. Iconologia or Morall Emblems. London: P. Tempest & Benjamin Motte, 1709.p.54

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Enter Mercutio, Benuolio, and men. Ben. I pray thee good Mercutio lets retire,

The day is hot, the Capels abroad: And if we meete we shall not scape a brawle, for now these hot daies, is the mad bloodstirring. Mer. Thou art like one of these fellowes, that when he enters

the confines of a Tauerne, claps me his sword vpon the table, and sayes, God send me no need of thee: and by the operation of the second cup, draws him on the drawer, when indeed there is no need. Ben. Am I like such a fellow? Mer. Come, come, thou art as hot a Iacke in thy moode as

any in Italie: and assoone moued to be moodie, and assoone moodie to be moued. Ben. And what too? Mer. Nay and there were two such, we should haue none

shortly, for one would kill the other : thou, why thou wilt quarell with a man that hath a haire more, or a haire lesse in his beard, then thou hast: thou wilt quarell with a man for cracking Nuts, hauing no other reason, but because thou hast hasel eyes: what eye, but such an eye wold spie out such a quarrel?thy head is as full of quarelles, as an egge is full of meate, and yet thy head hath bene beaten as addle as an egge for quarelling: thou hast quareld with a man for coffing in the streete, because hee hath wakened thy dogge that hath laine asleep in the sun. Didst thou not fall out with a taylor for wearing his new doublet be-fore Easter, with an other for tying his new shooes with olde ri-band, and yet thou wilt tuter me from quarelling? Ben. And I were so apt to quarell as thou art, any man should

buy the fee-simple of my life for an houre and a quarter. Mer. The fee-simple, ô simple.

613

Entram Mercutio, Benvoglio e outros homens Ben. Eu te rogo, bom Mercutio, vamos nos retirar.

O dia está quente. Os Capuletos estão por aí a circular. E se nos encontrarmos, não escaparemos de lutar, pois, em dias como estes, o sangue furioso se agita. Mer. Tu és como esses homens que, quando entram

numa taberna, batem com sua espada na mesa e dizem: “Que Deus não me faça precisar de ti!”. E, já sob o efeito do segundo copo, saca a espada contra o taberneiro quando na verdade não há necessidade. Ben. Eu sou como tais homens?... Mer. Ora essa!... Tu és uma pessoa de humor tão

colérico quanto qualquer outra na Itália...E rápido passa do estado colérico para o melancólico, e do melancólico para o colérico.614 Ben. E o que mais?... Mer. De fato, se existissem dois de ti, tão logo não

teríamos nenhum, pois um mataria o outro. Tu...pois tu brigarias com um homem que tivesse mais ou menos pêlo na barba do que tu! Tu brigarias com um homem por estar quebrando Nozes, não tendo outro motivo para isso senão o fato de teus olhos serem castanhos!...Que outro tipo de olho senão este buscaria tal tipo de contenda? Tua cabeça está tão cheia de querelas quanto um ovo está cheio de comida, mesmo que, por querelar, tenha sido tão confusamente batida quanto um ovo. Tu brigaste com um homem por tossir na rua porque despertou o teu cão que deitado dormia ao sol. Ora, tu não brigaste com um alfaiate por ele estar vestindo o seu novo gibão antes da Páscoa, e com outro por amarrar seus novos sapatos com tiras velhas?...E, mesmo assim, tu me vens advertir de querelas?... Ben. E fosse eu tão apto a querelar quanto tu és,

qualquer homem compraria o feudo-simples de minha vida por uma hora e um quarto.615 Mer. O “feudo-simples”?!...Que simplório!...616

Se Mercutio é uma mistura dramática de bufão e furor bélico, Benvoglio

(literalmente, “bem querer” ou “bem-te-quero”) é, por sua vez, particularmente no que

toca as leis de Verona sobre discórdias civis, a caracterização cênica da “prudência

613CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.p.44 614Desde o início deste trecho, como podemos notar, Mercutio recorre a muitas imagens conceituais da teoria clássica dos humores. Por isso, as minhas soluções de tradução muito devem ao artigo de Philippe Parker: “Définir la passion: Corrélation et Dynamique”. Vide bibliografia. 615Com isso, Benvoglio afirmar que é Mercutio que procura brigas e põe a sua vida em risco por qualquer ninharia. A tradução do termo “fee simple” poderia ser somente “feudo”, desde que não se perdesse de vista o sentido jurídico do termo. No entanto, isso tornaria incompreensível o trocadilho de Mercutio na tradução. Por outro lado, a frase “any man should buy the fee-simple of my life” não poderia ser traduzida como “qualquer homem compraria o simples feudo de minha vida”, pois apagaria a idéia de que “fee simple” é uma expressão jurídica para se referir a um regime específico de propriedade e herança fundiária na Inglaterra de finais do século XVI: o “fee simple” é o antípoda jurídico do “fee tail”, pois não é um patrimônio fundiário inalienável, indivisível e definido legalmente pelo poder régio para fundar ou manter uma linhagem ou dinastia. Se comparado com o regime de terras em Portugal do mesmo período, poderíamos afirmar que o “fee simples” tem uma personalidade jurídica que é um meio-termo entre o morgadio e o alódio. Considerando tudo o que foi exposto aqui, pode-se entender a minha opção de traduzir “fee simple” como um substantivo composto: “feudo-simples”. 616Aqui, Mercutio está debochando de Benvoglio por não conseguir lhe responder as provocações com o mesmo engenho verbal, sendo, pois, simplório em seu trocadilho se comparado com a avalanche verbal de Mercutio.

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seu caracter irascível e pouco discreto, apenas torna um deleite pessoal o campo de

discórdias há muito tempo configurado pelas casas Capuleto e Montéquio. Por isso

mesmo, a teleologia moral da peça o pune com a morte: ele torna-se,

emblematicamente, “comida de verme”, pagando um alto preço por deliberademente se

manter às margens das regras da boa convivência social, pois se valeu de sua elevada

condição social e eloqüência para engendrar novas discórdias civis. Daí, como afirmei

antes, soa insincero e insolente que ele pragueje contra as casas Capuleto e Montéquio

somente na hora de sua morte.

Assim, embora fosse um representante das “altezas sociais” da fictícia Verona,

Mercutio não utiliza a sua engenhosidade discursiva (dom da eloqüência), posição

social e capacidade bélica para colaborar efetivamente com o príncipe Escalo na

manutenção da paz civil; pelo contrário, através de sua arrogante despreocupação com

as leis de Verona, expõe na prática que o excesso de clemência de Escalo no passado

teve como efeito criar súditos violentos e insolentes no presente. Portanto, Mercutio

exibe-se cenicamente como uma jovem individualidade bélico-bufônica desregrada que

não responde a nenhuma “esfera jural” – nem mesmo aquela do príncipe Escalo, do qual

é parente. Nesse sentido, Mercutio é o antípoda dramático de seu outro parente: o conde

Páris.

Ora, se considerarmos a forma como Páris se comporta com o senhor Capuleto

no início da 3ª seqüência dramática, vemos que ele não pretende casar com Julieta

para inscrever-se no antigo campo de discórdias das casas Capuleto e Montéquio.

Lembremos mais uma vez de sua conversa com o patriarca Capuleto ao referir-se à sua

antiga contenda com a casa Montéquio: “De honrosa conta sois vós ambos/ e é pena

que, por tanto tempo, viveis vos estranhando”619. Ao proceder assim, Páris é o exemplo

cênico de caracter socialmente elevado, jovem, belo e bem regrado que respeita as leis

de Escalo. Sobre isso, a cena derradeira de sua morte na tumba Capuleto é eloqüente:

mesmo sentindo um profundo pesar pela “perda” de sua jovem noiva, a sua reação ao

perceber que era Romeu que entrava na tumba foi levá-lo às autoridades de Verona. A

sua interpretação da presença de Romeu na tumba Capuleto é bastante significativa:

619CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.p.12

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Pa. This is that banisht haughtie Mountague,

That murdred my loues Cozin, with which greefe

[página seguinte] It is supposed the faire creature died, And here is come to do some villainous shame To the dead bodies: I will apprehend him, Stop thy vnhallowed toyle vile Mountague: Can vengeance be pursued further then death? Condemned villaine, I do apprehend thee, Obey and go with me, for thou must die.620

Pa. Aquele é o arrogante Montéquio que fora banido, que matara o primo de meu amor – por cujo pesar, se supõe, a bela criatura morreu – e aqui veio para fazer alguma cruel ignomínia aos mortos...Vou prendê-lo... Pára com tua guerra sacrílega, vil Montéquio! Pode a vingança ser perseguida para além da morte? Condenado vilão, eu te prendo! Obedece e vem comigo, pois tu deves morrer!...

Nesse sentido, a reação de Páris é lógica e comedida: (1) Romeu foi condenado

ao exílio e, portanto, estar em Verona é um arrogante desrespeito ao decreto de Escalo;

(2) Romeu assassinou Teobaldo, provocando um luto profundo em Julieta, que definhou

até a morte; (3) o assassinato de Teobaldo redundou para Romeu a má reputação de

exilado; (4) Romeu quer estender a vingança Montéquio até os Capuletos mortos; (5)

profanação de túmulo é algo sacrílego, desonrante e criminoso, ou seja, trata-se do

oposto da atitude de Páris em relação à tumba de Julieta. Malgrado tudo isso, Páris não

reage como uma individualidade belicosa e destemperada: o retorno de Romeu a Verona

significa a sua condenação à morte pelos efeitos diretos das leis de Escalo – o único

autorizado a punir em nome das leis e governo civis.

Assim, mesmo que Páris pudesse internamente sentir alguma satisfação pessoal

com a morte de Romeu, não manifesta tal furor assassino, não exterioriza qualquer

pretensão de vingança pessoal e se, ao final, ele luta com Romeu e morre, isso decorre

diretamente da recusa de Romeu (que silenciosamente almejava o suicídio) se deixar

levar para ser morto longe do túmulo de Julieta e pelos efeitos diretos das leis de

Verona. Ora, sob este prisma, o pretendido e executado suicídio de Romeu na tumba

Capuleto é a demonstração final de uma individualidade desregrada pelo furor amoroso

– e desviada da vida civil devido a um inesperado furor bélico nascido do trágico

desfecho das ninharias de Mercutio – que nega as três coisas que definem, na teleologia

moral da peça, a sua condição humana: o nascimento (a boa reputação e a continuidade

do nome de sua casa); o céu (as leis divinas condenam ao inferno aqueles que se

suicidam); e a terra (o respeito às leis do governo civil). Nesse sentido, não é como

“gentil-homem”, mas sim como “individualidade desregrada e bestial”, que Romeu se

conduz arrogantemente para o “matadouro”. E tudo poderia ter um fim diferente se

Mercutio não tivesse duelado com Teobaldo devido àquilo que insolentemente

620CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.pp.83-84

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considerava ser a “vil submissão” de Romeu. Como podemos notar, a afirmação da

individualidade desregrada de Romeu e Mercutio tem nuanças distintas daquelas do

jovem Teobaldo. E é sobre a trajetória deste último nessa direção que eu gostaria de me

debruçar agora.

Enquanto esteve vivo, Teobaldo teve três aparições cênicas emblemáticas. A

primeira delas (2ª seqüência cênica) ocorre quando ele confronta Benvoglio que, ao

pretender apartar a briga iniciada por Gregório e Sansão contra dois servidores da casa

Montéquio (Abraão e anônimo), sofre a sua intervenção, pois Teobaldo imagina que o

duelo, contra toda as regras de etiqueta da esgrima, estava acontecendo com partes

desiguais de combatentes. Embora Benvoglio tentasse explicar que não estava lutando,

mas sim apartando a briga, pedindo, inclusive, a ajuda de Teobaldo, a reação deste é

contundente e violenta:

They fight. Benuo. Part fooles, put vp your swords, you know not what

you do. [folha seguinte]

Enter Tibalt. Tibalt. What art thou drawne among these hartlesse hindes?

turne thee Benuolio, looke vpon thy death. Benuo. I do but keepe the peace, put vp thy sword,

or manage it to part these men with me. Tib. What drawne and talke of peace? I hate the word,

as I hate hell, all Mountagues and thee: Haue at thee coward.621

Eles lutam. Benvo. Apartai-vos, loucos! Embainhai vossas

espadas! Não sabeis o que fazeis!... Entra Teobaldo.

Tibalt. O que?! Sacaste a espada em meio a estes serviçais covardes!622 Vira-te, Benvoglio, e vislumbra a tua morte. Benvo. Quero apenas manter a paz!... Embainha a

tua espada ou comigo a maneja para apartar estes homens. Tib. O que?! Sacas a espada e falas de paz?!...

Eu odeio tal palavra, assim como odeio o inferno, todos os Montéquios e a ti!...Tome isso, covarde!...

Nesta aparição cênica, Teobaldo claramente reage como um Capuleto que se

antepõe aos Montéquios, encenando selvagemente a sua fidelidade jural à sua casa,

mesmo que isso signifique agir como louco contra as leis do príncipe Escalo. Como

sabemos, esta cena se desdobra com o próprio envolvimento direto dos velhos mestres

das casas Capuleto e Montéquio na discórdia civil iniciada pelos jovens serviçais

desregrados. No entanto, depois da intervenção do príncipe Escalo, uma nova situação

621CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.pp.6-7 622No começo desta seqüência cênica, as didascálias dizem: “Enter Sampson and Gregorie, with Swords and Bucklers, of the house of Capulet.” no in-quarto de 1599; “Enter 2. Seruing-men of the Capolets.” no in-quarto de 1597; e “Enter Sampson and Gregory, with Swords and Bucklers, of the House of Capulet.” no fólio de 1623. Para se referir à entrada dos Montéquios, as didáscálias desta seqüência cênica dizem: “Enter two other seruing men.” no in-quarto de 1599; “Enter two Seruingmen of the Mountagues.” no in-quarto de 1597; “Enter two other Seruingmen.” no fólio de 1623. Todo o contexto enunciativo que desemboca no trecho citado, se tomarmos as três edições comparativamente, reforça a idéia de que o termo “hindes” está sendo pensado como “serviçais” ou “servidores”, em vez de “rústico”, “camponês” ou “vilão”. Por outro lado, na edição de 1599, considerando a época do texto e o contexto enunciativo de Teobaldo – que imagina estar vendo uma luta de dois (Gregório e Sansão) contra três (serviçal anônimo, Abraão e Benvoglio) –, penso que “hartlesse” (sem-coração) não significa “cruel”, como fazem alguns tradutores, mas sim “sem coragem” ou “covarde”, já que “coração” (heart) é o emblema cavalheiresco para “coragem”. Ademais, a própria enciclopédia Webster aponta o seguinte significado arcaico de “heartless”: falta de coragem ou entusiasmo. Vide: Webster’s Encyclopedic Unabridged Dictionary of the English Language. New York: Gramercy Books, 1996. p.654

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política e judicial se desenha: os senhores Capuleto e Montéquio estão ligados através

da mesma penalidade e aceitaram o compromisso, firmado na Vila Franca, de manter a

paz em Verona. A partir de então, qualquer membro das casas Capuleto e Montéquio

que tomasse a iniciativa de brigar nas ruas de Verona não estaria apenas ferindo a

autoridade de Escalo, mas também aquela de seus respectivos patriarcas.

Ora, como o furor bélico dos jovens não cessa, a ironia trágica sobre tais

autoridades cabalmente se manifesta: o campo de discórdias civis criado pelos velhos no

passado desembocou, no presente, em jovens individualidades bélicas desregradas que

respondem aos “chamados do sangue” apenas quando convém aos seus propósitos

particulares de vingaça ou glória pessoal623, criando uma cadeia de “pequenas

traições”624 às diferentes instâncias de autoridade da Universitas veronesa. Como

sabemos, todas essas “pequenas traições” desembocam, ao longo da peça, em

circunstâncias mais abrangente de desobediência civil, premeditada ou não. A trajetória

de Teobaldo justamente demonstra a necessária relação implicativa entre o

enfraquecimento da autoridade patriarcal das “esferas jurais” e o esmorecimento da

autoridade soberana estatal.

Assim, se na 2ª seqüência cênica Teobaldo evoca o ódio aos Montéquios e

duela fora de um campo reservado, indo assim contra as leis de Escalo, isso apenas

isoladamente poderia sugerir que ele responde cegamente à “esfera jural” dos Capuletos

em contraponto ao “poder estatal” de Escalo. Na verdade, a trajetória de Teobaldo

aponta para um sentido contrário a ambas as esferas de autoridade. A sua segunda

aparição cênica, durante o baile de máscara dos Capuletos (5ª seqüência cênica), já

começa a demonstrar que o seu ódio selvagem aos Montéquios tornou-se um furor

banal, particular, gratuito e perigosamente anti-jural, pois Teobaldo se mostra

impetuosamente capaz de ferir a própria autoridade patriarcal à qual, em princípio,

deveria ter fidelidade e respeito deferente:

Ro. What Ladies that which doth enrich the hand Ro. Que Dama é aquela que enriquece a mão

623O seguinte trabalho faz uma interessante análise da recorrência deste tema no ciclo das peças “históricas” do cânone shakespeareano: HATTAWAY, Michael. “Blood is their argument: men of war and soldiers in Shakespeare and others”. In Religion, Culture and Society in Early Modern Britain. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. pp.84-101 624Ver o desenvolvimento desta idéia em: DOLAN, Frances E.. “The Subordinate(‘s) Plot: Petty Treason and the Forms of Domestic Rebellion”. Shakespeare Quartely, volume 43, 1992(3): pp.317-340; BERNTHAL, Craig A.. “Treason in the family: The Trial of Thumpe v. Horner”. Shakespeare Quartely, volume 42, 1991(1): pp.44-54; CUST, Richard. “Honour and Politics in Early Stuart England: The Case of Beaumont v. Hastings”. Past & Present, 1995(149): pp.57-94; KEMP, Theresa D.. “The Family is a Little Commonwealth: Teaching Mariam and Othello in a Special-Topics Course on Domestic England”. Shakespeare Quartely, volume 47, 1996(4): pp.451-460; BAINTON, Martin. “'Good Tricks of Youth': Renaissance Comedy, New Comedy and the Prodigal Son Paradigm”. Renaissance Forum, volume 5, 2001(2).[Edição Eletrônica]. 625CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.pp.22-23

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Of yonder Knight? Ser. I know not sir. Ro. O she doth teach the torches to burn bright:

It seemes she hangs vpon the cheeke of night: As a rich Iewel in an Ethiops eare, Bewtie too rich for vse, for earth too deare: So showes a snowie Doue trooping with Crowes, As yonder Lady ore her fellowes showes: The measure done, Ile watch her place of stand, And touching hers, make blessed my rude hand. Did my hart loue till now, forsweare it sight, For I nere saw true bewtie till this night. Tibal. This by his voyce, should be a Mountague.

Fetch me my Rapier boy, what dares the slaue Come hither couerd with an anticque face, To fleere and scorne at our solemnitie? Now by the stocke and honor of my kin, To strike him dead, I hold it not a sin. Capu. Why how now kinsman, wherefore storme Tib. Vncle, this is a Mountague our foe: (you so?

A villaine that is hither come in spight, To scorne at our solemnitie this night. Cap. Young Romeo is it. Tib. Tis he, that villaine Romeo. Capu. Content thee gentle Coze, let him alone,

A beares him like a portly Gentleman: And to say truth, Verona brags of him, To be a vertuous and welgouernd youth, I would not for the wealth of all this Towne, Here in my house do him disparagement: Therefore be patient, take no note of him, It is my will, the which if thou respect, Shew a faire presence, and put off these frownes, An illbeseeming semblance for a feast. Tib. It fits when such a villaine is a guest,

[folha seguinte] Ile not endure him. Capu. He shall be endured.

What goodman boy, I say he shall, go too, Am I the master here or you? go too, Youle not endure him, god shall mend my soule, Youle make a mutinie among my guests:

de altivo Cavalheiro? Ser. Não sei, senhor. Ro. Oh, ela ensina as tochas a brilhar!...

Na face da noite, suspensa parece estar, como uma jóia rica em um orelha etíope... Beleza assaz rica para ser usada e, para a Terra, assaz cara. Como altiva Dama acima das outras se mostra, assim é uma nívea Pomba reunida a Corvos... Com a devida distância, vigiarei seu pedestal e, tocando-o, tornarei minha rude mão abençoada. Meu coração amou até agora? Jurai que não, olhos, pois nunca vi beleza verdadeira até esta noite...626

Teob. Esse, por sua voz, deve ser um Montéquio... Traga a minha Espada, rapaz!...Como ousa o miserável vir até aqui oculto em máscara grotesca para zombar e caçoar de nossa solenidade?!... Agora, pela linhagem e honra de minha família, estou seguro que matá-lo não será pecado...

Capu. O que há, sobrinho? Por que estais tão atormentado? Teob. Tio, lá está um Montéquio, nosso inimigo... 627

Um vilão que maliciosamente veio até aqui para nesta noite zombar de nossa solenidade!...

Cap. Trata-se do jovem Romeu.628 Teob. Trata-se dele, aquele vilão do Romeu!... Capu. Contém-te, deixa-o em paz, nobre Sobrinho!...

Ele se porta como um perfeito Cavalheiro. E, para dizer a verdade, Verona dele se gaba por ser um jovem virtuoso e bem regrado... Nem por toda a riqueza da cidade, aqui em minha casa, eu iria depreciá-lo!... Portanto, acalma-te, deixa-o passar despercebido. Essa é a minha vontade...Se tu a respeitas, mostra uma bela presença e desfranza o cenho, que é, para uma festa, um semblante descabido.

Teob. Ajustar-me, quando tal vilão é um convidado? Não vou aturá-lo!...

Capu. Ele vai sim ser aturado!... Como, fidalgote?!...Já disse que vai...Sai!... Sou eu o mestre aqui ou tu?...Sai!... Não vais aturá-lo?!...Deus salve minha alma!... Vais fazer um motim entre meus convidados?!... Vais levantar a crista?!...Vais ser o galo?!...

Ti. Mas, Tio, isso é uma vergonha!... Capu. Sai!...Sai!...

626Conduzido pelos olhos, mas cego de paixão, Romeu não percebe o perigo que o cerca, pois não sabe que Teobaldo o reconhece pela voz e que, impetuosamente, pretende matá-lo. 627Nesta seqüência, há o uso de pronomes do inglês que, se fossem lidos isoladamente na tradução em português, dariam a impressão que Teobaldo está perto demais, ou até mesmo segura Romeu, enquanto fala com o senhor Capuleto. Por exemplo, se a frase “This by his voyce, should be a Mountague” fosse traduzida como “Este, por sua voz, deve ser um Montéquio”, e se a frase “this is a Mountague our foe” fosse traduzida como “isto/este é um Montéquio, nosso inimigo”, seria inevitável a sensação de inconsistência dramática para todo o desdobramento da cena e de seu ápice: quando Romeu toca a mão de Julieta e galantemente a beija. Ademais, o fato de Teobaldo referir-se a Romeu na terceira pessoa corrobora com a idéia de que a cena propõe uma distância que permite Teobaldo ouvir Romeu sem ser notado, desenvolver o seu breve solilóquio de ódio parental e, depois, manter o seu tenso diálogo com o senhor Capuleto.

628Observe que a identificação de Teobaldo começa genérica: “a Mountague”. O senhor Capuleto é específico na identificação: “Young Romeo is it”. Romeu é “young” em contraste com o “old” Romeu, já que o patriarca Montéquio também tem o mesmo nome, tal como sugere o jovem Romeu quando encontra a Ama de Julieta na 9ª seqüência cênica: “I am the youngest of that name, for fault of a worse”(p.38), que podemos traduzir como “eu sou o mais jovem desse nome, por falta de um pior”. Assim, a ênfase identificadora do senhor Capuleto lembra o seu compromisso de manter a paz firmado em Vila Franca, em claro contraste com o furor bélico de Teobaldo, que injuria o nome de Romeu. 629É bem evidente que a mudança para “you” obedece mais a razões de métrica e rima do que uma intenção de tratamento deferente. Seria estranho imaginar tal tipo de tratamento se considerarmos o contexto enunciativo de senhor Capuleto e de Teobaldo. Por isso, para manter uma forma métrica análoga em português e adequada ao contexto enunciativo, optei pelo tratamento “tu” ao traduzir o seu tenso diálogo.

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You wil set cock a hoope, youle be the man. Ti. Why Vncle, tis a shame. Capu. Go too, go too,

You are a sawcie boy, ist so indeed? This trick may chance to scath you I know what, You must contrarie me, marrie tis time, Well said my hearts, you are a princox, go, Be quiet, or more light, more light for shame, Ile make you quiet (what) chearely my hearts. Ti. Patience perforce, with wilfull choller meeting,

Makes my flesh tremble in their different greeting: I will withdraw, but this intrusion shall Now seeming sweet, conuert to bittrest gall. Exit.625

Tu és um rapaz insolente, não é verdade?... Este jogo pode causar tua desgraça, eu bem sei! Se tu deves contrariar-me, pela Virgem, este é o momento!...(Muito bem dito, meus queridos!) Tu és um arrogante! Sai!... Fica quieto ou...(Mais luz, mais luz!...) Que vergonha! Vou calar-te à força!...(Hein?...Alegria, meus queridos!) 629

Ti. O estranho encontro da paciência forçada e da voluntariosa cólera faz minha carne tremer. Vou me retirar, mas esta intrusão vai converter a atual aparente doçura na mais figadal amargura. Sai.

Neste trecho, a caracterização cênica de Teobaldo já aponta para o emblema

moral que Mercutio usaria contra ele mais adiante: Teobaldo é efetivamente um “rei” ou

“príncipe” dos gatos. Se fizermos um paralelo entre a manifestação do caracter de

Teobaldo no trecho acima citado e a forma como o emblema “Rebelião” é figurado e

explicado na “Iconologia” de Cesare Ripa desde 1593, torna-se mais evidente que a

figuração de Teobaldo é aquela do “súdito” e “parente” rebelde que apenas na aparência

responde a fidelidades patriarcais. Vejamos:

F I G. 257. Rebellione : R E B E L I Ã O. Ele parece um Rebelde, armado com um Colete e segura um

Dardo com ambas as mãos. Ele tem um Gato como Crista de seu elmo e tem aos pés um Jugo quebrado [e uma coroa].

A Juventude denota que ele não suporta ser governado. Ele está armado porque teme ser surpreendido. O Gato denota que ele odeia ser refreado. O semblante arrogante denota que ele tem pouco Respeito pelos Superiores. O Jugo e a Coroa ao chão demostram o Poder e as Leis por ele desprezados.630

A explicação do emblema no livro de Cesare Ripa destaca em itálico exatamente

os elementos que, no trecho acima citado, caracterizam Teobaldo: ele é um Rebelde que,

tal como um gato, não gosta de ser refreado; teme as surpresas e, por isso, arma-se

contra elas; não suporta ser governado por Superiores e, em sua ação e expressão facial,

exibe uma arrogância bélica que demonstra desprezo pelas Leis e pela Autoridade.

630RIPA (OF PERUGIA), Caesar. Iconologia or Morall Emblems. London: P. Tempest & Benjamin Motte, 1709.p.64

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Afinal, quando o baile ocorre, os senhores Capuleto e Montéquio já haviam se

apresentado e se comprometido com a paz perante o príncipe Escalo na Vila Franca.

Portanto, a potencial rebeldia de Teobaldo feria simultaneamente as autoridades de

Escalo e do mestre Capuleto. Além disso, em contraponto ao caracter furioso de

Teobaldo, o próprio senhor Capuleto afirma que Romeu age durante a festa com

cortesia.

Assim, nada é mais coerente do que o senhor Capuleto exigir de Teobaldo

comedimento e um(a) semblante/aparência (“semblance”/“Look”) adequado(a) ao

ambiente cortês de sua festa. Para tanto, o senhor Capuleto evoca dois pontos centrais:

(1) lembra que Romeu tinha boa reputação, sendo reconhecido por todos em Verona

como um bom exemplo de jovem virtuoso e bem regrado – e, portanto, a sua presença

inesperada na festa não deveria ser interpretada como uma ameaça ou desonra –; (2)

feria a cortesia e a autoridade do senhor Capuleto que Teobaldo, tomando ares de

senhor da casa, alimentasse uma contenda entre seus convidados. O trecho acima citado

também evoca outro agravo infamante contra Teobaldo: como ele pede para um serviçal

trazer a sua espada, isso sugere que todos os nobres que entraram na festa estariam

adequadamente desarmados (como exigia o costume) e, portanto, o primeiro impulso de

Teobaldo não foi fazer um desafio por escrito a Romeu (como fará efetivamente na

manhã seguinte ao baile), mas sim sacar a espada contra um bem afamado e desarmado

gentil-homem.

Finalmente, na terceira e fatal aparição de Teobaldo (12ª seqüência cênica), já

não o observamos respondendo à autoridade de ninguém, mas tão somente aos seus

desígnios particulares: transformar em “amargo fel” o “doce mel” de Romeu. Além

disso, é importante salientar que, nesta seqüência cênica, Teobaldo já não se refere a

Romeu através de seu nome de família (como na 5ª seqüência cênica: “a Mountague

our foe”), dando à sua potencial confrontação com Romeu um tom bem distinto daquele

que aparece na confrontação com Benvoglio (2ª seqüência cênica: “I hate hell, all

Mountagues and thee”). E, como sabemos, se não houvesse a intervenção de Mercutio,

Romeu teria desarmado Teobaldo, através da força da eloqüência, de seus intentos

furiosos, confirmando a sua reputação de jovem bem regrado e virtuoso.

Considerando isso, a intervenção de Mercutio cria uma ironia trágica em outro

sentido: se supostamente duela com Teobaldo pela honra de Romeu, é Mercutio que,

todavia, ferirá a reputação de Romeu como jovem bem regrado e virtuoso, pois o seu

assassinato por Teobaldo impelirá Romeu a responder, furiosamente, sangue com

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Immediately we do exile him hence: I haue an interest in your hearts proceeding: My bloud for your rude brawles doth lie a bleeding. But ile amerce you with so strong a fine, That you shall all repent the losse of mine. It will be deafe to pleading and excuses, Nor teares, nor prayers shall purchase out abuses. Therefore vse none, let Romeo hence in hast, Else when he is found, that houre is his last. Beare hence this body, and attend our will, Mercie but murders, pardoning those that kill.

Exit.632

nós imediatamente o exilamos... Eu tenho interesse em vossos feitos ousados. Por vossas rudes discórdias, meu sangue jaze derramado. Mas vou punir-vos com um imposto tão pesado que vós todos ides minha perda lastimar. Serei surdo a queixumes e desculpas... Nem lágrimas, nem preces reparariam tantos abusos. Portanto, nada usai. Que Romeu parta logo, pois, de outro modo, se for encontrado, tal instante será seu último!... Levai este corpo daqui e cumpri nossa vontade. A clemência não é senão assassina ao perdoar aqueles que matam.

Sai.

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31 Which mê,though they knewe the Law of God, how that they which commit su-che things , are worthie of death , yet not onely do the same, but also fauour them that do them. 635

Embora conheçam a Lei de Deus e o quanto que aqueles que cometem tais coisas são dignos de morte, ainda assim não somente fazem o mesmo, mas também favorecem aqueles que o fazem.

Há aqui a exposição de uma relação implicativa entre idolatria, cupidez e

desordem social tal como é exposta analogamente na teleologia moral da peça “Romeu

e Julieta”. No entanto, outra parte das “Epístolas Paulinas” torna ainda mais explícito

o tropismo bíblico que estabelece um nexo causal entre idolatria, cupidez, alienação de

Deus, jactância, busca de glória vã e desordem social:

16 Then I say ,* walke in the Spirit , and ye shal not fulfil the lustes of the flesh.

Então, eu digo: * Andai em Espírito, e não satisfareis as lascívias da carne.

17 For the flesh lusteth against the Spirit, and the Spirit against the flesh:and these are contrarie one to the other, so that ye can not do the same things that ye wolde.

Porque a carne atenta contra o Espírito, e o Espírito contra a carne. E estes são reciprocamente contrários, de modo que não poderíeis fazer as mesmas coisas.

[outra coluna textual na mesma página]

18 And if ye be led by the Spirit,ye are not vnder the Law.

E se sois conduzidos pelo Espírito, não estais sob o jugo da Lei.

19 Moreouer the workes of the flesh are manifest,which are adulterie, fornicaciõ, vnclennes,wantonnes,

Além disso, as obras da carne são explícitas: adultério, fornicação, impureza, libertinagem,

20 Idolatrie, witchcraft ,hatred, debate, emu-lacions, wrath, contentions, sedicions, he-resies,

idolatria, bruxaria, ódio, discórdia, rivalidades, ira, contendas, sedições, heresias,

21 Enuie, murthers, dronkennes, glottonie, and suche like, whereof I tell you before, as I also haue tolde you before, that they which do suche things , shal not inherite the kingdome of God.

inveja, assassinato, bebedeira, gula e coisas semelhantes, às quais me referi antes. Como também vos falei antes, aqueles que fazem tais coisas não herdarão o reino de Deus.

22 But the frute of the Spirit is loue, ioye, peace, long suffring, gentlenes, goodnes, faith,

Todavia, os frutos do espírito são: amor, alegria, paz, longanimidade, gentileza, bondade, fé,

23 Mekenes , temperancie : against suche there is no Law.

mansuetude, temperança. Contra tais coisas não há Lei,

24 For they that are Christs , haue cruci-fied the flesh with the affections and the lustes.

pois aqueles que são de Cristo crucificaram as paixões e luxúrias da carne.

25 If we liue in the Spirit, let vs also walke in the Spirit.

Se vivemos no Espírito, andemos também no Espírito.

26 Let vs not be desirous of vaine glorie, prouoking one another,enuying one ano-ther. 636

Não sejamos desejosos de glória vã, provocando uns aos outros, invejando uns aos outros.

A cupidez, a jactância e a busca de glória vã são “ídolos de mente e coração”

que compõem o tema da “juventude desregrada” e alimentam o desrespeito às

autoridades patriarcais em “Romeu e Julieta”. Portanto, se partirmos dos tropismos

bíblicos protestantes contra a idolatria, poderemos afirmar que as duas formas de furor

635Ver Romanos (1:18-31) em: CALVIN, John; KNOX, John; FOXE, John et alii. The Bible and Holy Scriptvres conteyned in the Olde and Newe Testament. Geneva: Rovland & Ali, 1560.p.1092

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encenadas em “Romeu e Julieta” estão mutuamente implicadas como desdobramentos

de idolatria e têm efeitos semelhantes: a afirmação insolente de indivíduos que

esmorecem a autoridade dos patriarcas Capuleto e Montéquio, assim como, do príncipe

Escalo, impedindo, deste modo, a manutenção de uma vida social pacífica e a

emergência de uma fé verdadeira. Não por acaso, alternadamente ao longo da peça,

ambos os tipos de furores são apresentados como potências bestiais e desagregadoras.

Assim, se anteriormente tivemos a chance de observar o príncipe Escalo metaforizar os

amotinados das casas Capuleto e Montéquio como “feras inimigas da paz”, podemos

agora, na mesma seqüência cênica, observar Romeu convergir a linguagem de ambos

os furores:

Ben. Alas that loue so gentle in his view, Should be so tirannous and rough in proofe. Romeo. Alas that loue, whose view is muffled still,

Should without eyes, see pathwaies to his will: Where shall we dine? ô me! what fray was here? Yet tell me not, for I haue heard it all: Heres much to do with hate, but more with loue: Why then ô brawling loue, ô louing hate, O any thing of nothing first created: O heauie lightnesse, serious vanitie, Mishapen Chaos of welseeming formes, Feather of lead, bright smoke, cold fier, sicke health, Still waking sleepe that is not what it is. This loue feele I, that feele no loue in this, Doest thou not laugh? Benu. No Coze, I rather weepe. Rom. Good hart at what? Benu. At thy good harts oppression. Romeo. Why such is loues transgression:

Griefes of mine owne lie heauie in my breast, Which thou wilt propogate to haue it preast, With more of thine, this loue that thou hast showne, Doth ad more griefe, too too much of mine owne. Loue is a smoke made with the fume of sighes, Being purgd, a fire sparkling in louers eies, Being vext, a sea nourisht with louing teares, What is it else? a madnesse, most discreete, A choking gall, and a preseruing sweete: Farewell my Coze.637

Ben. Ai de mim! Esse amor, em sua aparência tão gentil, seria, se posto à prova, muito tirânico e brutal.

Romeo. Ai de mim! Que o amor, cuja visão ainda está vendada, cego encontre, para seu desígnio, as estradas! Onde vamos jantar? Ai de mim, que guerra houve aqui?! Nada me contes, pois já sei de tudo... Aqui muito se ocupa com o ódio, mas muito mais com o amor... Por que, então, oh, amor rixoso?!... Oh, ódio amoroso! Oh, tudo criado originalmente do nada!... Oh, pesada leveza, gravosa vaidade, caos disforme de belas formas!... Oh, pluma de chumbo, luminosa neblina, fogo friorento, saúde doentia!... Sono de durável vigília, que não é o que é!... Tal amor eu sinto, mas não sinto nenhum amor nisto. Tu não ris?...

Benv. Não primo, pelo contrário, eu choro... Rom. De que, bondoso coração? Benv. Da opressão de teu bondoso coração... Romeu. Pois tal é a transgressão do amor...

Meus próprios pesares repousam pesadamente em meu peito, os quais multiplicarás ao acrescentar os teus... Este amor que tu demonstraste adicionou muito mais sofrimento ao meu... O amor é uma neblina feita com o vapor das vistas; se purgado, é um fogo faiscante nos olhos dos amantes; se aborrecido, é um mar com lágrimas amorosas nutrido. O que mais?...Uma loucura muito discreta, um fel que sufoca e um mel que preserva... Adeus, meu primo!...

Aqui, o jogo de significado entre “loue” e “hate” é moralmente emblemático,

pois teriam a mesma natureza da loucura: a cegueira da mente ou perda do controle de

si, que geram um misto de saciedade, inquietação e sofrimento638. Não se trata, pois, de

636Ver Gálatas (5:16-26) em: CALVIN, John; KNOX, John; FOXE, John et alii. The Bible and Holy Scriptvres conteyned in the Olde and Newe Testament. Geneva: Rovland & Ali, 1560.p.1129 637CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.p.10 638Ver: RIPA (OF PERUGIA), Caesar. Iconologia or Morall Emblems. London: P. Tempest & Benjamin Motte, 1709. p.12; 26; 30

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“loue” tal como é figurado nos trechos acima citados da “Bíblia de Genebra”, que pode

significar tanto a “caridade”(caritas) quanto a “estima razoável”(amicitia) entre as

pessoas. Afinal, o que Romeu sente são os tormentos do Cupido (“This loue feele I”),

dos quais não gosta (“that feele no loue in this”), mas não é senhor de si para evitá-los.

Tal é a cruel tirania do Cupido que, caprichosamente, dá as rédeas do destino de Romeu

a uma jovem inacessível e celibatária (Rosalina) para, depois, em sua inconstância,

oferecê-las a uma jovem acessível e concupiscente (Julieta). Assim, tal como Eduardo

IV em “Ricardo III”, Romeu é afeminado por sua cupidez, pois o seu abalo emocional

tragicomicamente inverte a relação de domínio entre homem e mulher. Não por acaso,

Romeu pergunta a Benvoglio: “Doest thou not laugh?”. Mas Benvoglio considera

lastimável rir do que se deve, na verdade, lamentar: “No Coze, I rather weepe”.

Portanto, nas várias vezes em que Romeu fala de “loue”, não se trata de algo

espiritualizado – tal como aparece na “Bíblia de Genebra”, quando é figurado como o

oposto de “flesh/carne” e é associado aos conceito de fé, esperança e caridade –, mas

da alusão às travessuras de Eros/Cupido, que pode ser metaforizado como um pequeno

arqueiro alado (e, algumas vezes, vendado). Ora, se é uma criaturinha alada e armada,

não é, portanto, fácil de ser domada. Daí, considerando os efeitos carnais animalizantes

e afeminantes de Eros/cupidez, isso explica porque Mercutio recorre debochadamente à

metáfora do domador de animais de tração na 5ª seqüência cênica:

Mer. You are a Louer, borrow Cupids wings, And sore with them aboue a common bound.

Rom. I am too sore enpearced with his shaft, To sore with his light feathers, and so bound, I cannot bound a pitch aboue dull woe, Vnder loues heauie birthen do I sincke.

Horatio. And to sink in it should you burthen loue, Too great oppression for a tender thing.

Rom. Is loue a tender thing? it is too rough, Too rude, too boystrous, and it pricks like thorne.

Mer. If loue be rough with you, be rough with loue Prick loue for pricking, and you beate loue downe,[...]639

Mer. Vós sois um Apaixonado. Pegai emprestadas as asas do Cupido e voai com elas para além dos limites comuns estabelecidos.

Rom. Por sua flecha estou dolorosamente ferido para conseguir voar com suas leves plumas, e tão preso estou que não consigo fixar-me num ponto acima dessa dor estúpida. Sob o fardo pesado do amor, sucumbo.

Mercutio640. E, sucumbindo nisso, esmagaríeis o amor. Tamanha opressão por algo tão delicado...

Rom. O amor é algo delicado?!... Ele é tão ríspido, tão rude, tão bruto e fere como espinho!...

Mer. Se o amor é bruto convosco, sede brutal consigo. Espetai-o com esporas que conseguirás domá-lo.[...]

Como já sabemos, tal tropo é corriqueiro nos tratados morais, políticos e

religiosos dos séculos XVI e XVII, em que o amor erótico é visto como algo

simultaneamente afeminante e animalizante para o homem. Na 14ª seqüência cênica,

639CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.p.18 640Como afirmei no primeiro item, dada a coerência do conjunto textual cênico, é certo considerar que se trata de uma fala para Mercutio. Todavia, também podemos operar com a possibilidade de este “lapso editorial” demonstrar, na verdade, uma intenção implícita de caracterizar Mercutio de modo horaciano em sua primeira aparição cênica.

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quando Romeu ameaça se matar, a admoestação de Frei Lourenço expõe exatamente

esta convergência emblemática:

Fri. Hold thy desperate hand: Art thou a man? thy forme cries out thou art: Thy teares are womanish, thy wild acts deuote[641] The vnreasonable furie of a beast. Vnseemely woman in a seeming man, And ilbeseeming beast in seeming both, Thou hast amaz'd me. By my holy order, I thought thy disposition better temperd.642

Frei. Detém a tua desesperada mão!... És um homem?!... Tua forma apregoa que és!... Tuas lágrimas são de mulher, teus atos selvagens denotam a fúria insensata de uma fera!... Mulher deformada em forma de homem, e mal formada fera em forma de homem e mulher! Assombrado me deixas. Por minha Santa Ordem, pensei que tua disposição fosse melhor temperada.

Como é capaz de infringir intensos danos, desvios, inversões, deformações e

sofrimentos, o fogo do amor erótico é o antípoda moral do amor conjugal, que nunca é

representado através da imagem do cupido nos emblemas morais dos séculos XVI e

XVII643. Na 2ª seqüência cênica, especificamente, pudemos observar no discurso de

Romeu a metáfora emblemática do cupido vendado, o que representa a idéia de que o

“amor/Eros é cego”, ou seja, não segue regras – mas sim seus próprios caprichos –

quando provoca a atração (erotização) e a cegueira da mente entre os seres mais

diversos, tal como uma Capuleto e um Montéquio. Além disso, a engenhosa exploração

de oximórons na fala de Romeu não deixa dúvidas sobre a convergência metafórica dos

furores bélico e amoroso como um elemento que, ao longo da peça, serve para expor o

problema da “juventude desregrada” – implicando-o com os perigos da “idolatria de

mente e coração” – para as formas existentes de autoridade política e social. Afinal, na

2ª seqüência cênica, Romeu sabe que seu amor é transgressor (Rosalina é Capuleto),

mas isso lhe dói menos do que o fato de não ser correspondido. Por isso mesmo, depois

que se apaixona por Julieta e é correspondido, Romeu se deixa conduzir pelos seus

“encantos” – pela “neblina feita com o vapor das vistas” (“smoke made with the fume

of sighes”). Assim, da melancolia Romeu passa a uma euforia que o faz perder o

controle de si a ponto de pretender abandonar o seu nome de família – i.e., o seu

pedículo estamental. Daí, no jardim dos Capuletos, quando Julieta, sem se dar conta da

presença de Romeu, diz:

641Como já pudemos perceber, a letra “u” substitui a letra “v” na materialidade textual desta edição. No entanto, especificamente aqui, não se trata de “deuote”(devotar) mas de “denote”(denotar), tal como sugere o fólio de 1623. Portanto, houve um erro tipográfico de inversão de “u” e “n”. 642CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.p.57 643Ver: RIPA (OF PERUGIA), Caesar. Iconologia or Morall Emblems. London: P. Tempest & Benjamin Motte, 1709. p.16

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Iuli. O Romeo, Romeo, wherefore art thou Romeo?

Denie thy father and refuse thy name: Or if thou wilt not, be but sworne my loue, And ile no longer be a Capulet.

[...] Iu. Tis but thy name that is my enemie:

Thou art thy selfe, though not a Mountague, Whats Mountague? it is nor hand nor foote,

[Outra página] Nor arme nor face, ô be some other name Belonging to a man. Whats in a name that which we call a rose, By any other word would smell as sweete, So Romeo would wene he not Romeo cald,[644] Retaine that deare perfection which he owes, Without that tytle, Romeo doffe thy name, And for thy name which is no part of thee, Take all my selfe.645

Juli. Oh, Romeu, Romeu, porque tu és Romeu? Renega teu pai e recusa teu nome ou, se não puderes, jura somente por meu amor e eu não mais serei uma Capuleto. [...] Ju. Apenas o teu nome é meu inimigo.

Tu és tu mesmo, não um Montéquio. O que é Montéquio? Não é nem mão, nem pé, nem braço, nem rosto – Oh, sê qualquer outro nome!– pertencentes a um homem. O que há num nome? Isso que nós chamamos rosa, por qualquer outra palavra, cheiraria tão doce. Então Romeu, não fosse ele chamado Romeu, reteria essa cara perfeição, que ele possui sem tal título. Romeu, joga fora teu nome e, por teu nome – que não é parte de ti –, toma todo o meu ser.

Revelando-se para Julieta, Romeu prontamente responde:

Ro. I take thee at thy word: Call me but loue, and Ile be new baptizde, Henceforth I neuer will be Romeo.646

Ro. Tomo-te em tua palavra. Chama-me somente de amor e serei novamente batizado. De agora em diante, jamais serei Romeu.

Em meados do século XVIII, ao introduzir a sua “Clarissa”, Samuel

Richardson(1689-1761) também dizia que aquilo que é genericamente chamado de

“amor” deveria ser chamado por outro termo, por mais chocante que pudesse ser:

cupidez ou estímulo erótico647. Com isso, ele queria chamar a atenção para a distinção

conceitual entre a estima razoável (i.e., descarnalizada) e o desejo erótico, ambos os

significados contidos na palavra “amor”. No entanto, diferentemente do que ocorria nos

séculos XVI e XVII, a necessidade em Richardson de condenar o “estímulo erótico”

envolvia uma redefinição das relações entre homem e mulher em que se excluía desta

última a paixão sexual para, deste modo, figurá-la idealmente como o pilar de uma

opção sensata de casamento, ou seja, baseado na amizade racional, prudência e

afinidade, de modo que houvesse o triunfo dos laços espirituais sobre os carnais648.

Como notara Ian Watt, tal modo de discriminação biológica dos sexos é na Inglaterra

uma originalidade romântica, cuja escala ética deixou de pensar a castidade como uma

virtude entre outras para destacá-la como a virtude suprema de homens e mulheres.

Deste modo, até o final da Era Vitoriana, a heroína exemplar dos romances seria muito

644Como há aqui um grosseiro erro tipográfico, a solução editorial do fólio de 1623 parece mais plausível: “So Romeo would, were he not Romeo cal’d,[...]”. 645CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.pp.27-28 646CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.p.28 647WATT, Ian. A Ascensão do Romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.p.141 648THOMAS, Keith. Religião e o Declínio da Magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.p.459

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jovem, inexperiente e de constituição física e mental tão delicada que desmaiaria diante

de qualquer investida sexual649.

Portanto, na moralidade já laicizada da forma romance de prosa dos séculos

XVIII e XIX, os “anjos” de inocência, ou quaisquer outras metáforas angelicais ou

sacralizantes da mulher, não são termos que identificam na narrativa um “olhar idólatra”

a ser condenado, mas sim termos que atestariam um passado delicadamente protegido,

doméstico e descarnalizado, apontando preferencialmente para um futuro similar.

Tratavam-se, pois, de mentes e corpos essencialmente passivos que, antes do casamento

– ou da ação de um “agente externo corruptor” (geralmente da nobreza) –, não sentiam

nada sexualmente tangível por seu admirador650.

Ora, tal imagem romântica ideal do feminino era o oposto de uma Julieta que,

embora jovem (quase 14 anos), é arguta, é dissimulada, é virgem (mas não sexualmente

inocente) e demonstra plena consciência e domínio dos códigos de galantaria para

resistir-lhes com astúcia. Portanto, o ideal romântico de feminino estava em completa

oposição à visão patriarcal cristã e à tradição clássica de amor na literatura inglesa, que

enfatizava a fraqueza moral intrínseca às mulheres e, por isso mesmo, exibia a sua

concupiscência como algo potencialmente destrutivo para a virilidade e a

discrição/discernimento dos homens. No entanto, se o ideal romântico de feminino se

inscrevia numa discriminação biológica e numa escala ética entre os sexos que seriam

novidades históricas na tradição narrativa da prosa, o mesmo não se poderia dizer da

demanda subjacente de contenção dos impulsos sexuais651.

Isso significa que afirmar que o amor de Julieta e Romeu é um exemplo de

cupidez ou estímulo erótico – i.e., a relação carnal triunfa sobre o laço espiritual –

não é suficiente para desconstruir uma leitura moral romântica sobre a peça, pois

o código romântico, a exemplo de Richardson, também tinha como expectativa

moral (mas agora em roupagem completamente laica) a resistência aos desejos

carnais como condição de possibilidade para o êxito social, já que vencer a carne

proporcionaria à lei do espírito uma oportunidade melhor para entrar em ação na

vida social652. Nesse sentido, uma tragédia que encena um fim fatal para dois

jovens que não conseguem transcender a relação carnal não seria estranha, por

exemplo, à moralidade romântica de Richardson. Ora, com isso afirmo que

649WATT, Ian. A Ascensão do Romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.pp.142-147 650WATT, Ian. A Ascensão do Romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.pp.142-186 651Ver: ELIAS, Norbert. Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 652WATT, Ian. A Ascensão do Romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.p.137

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modo, ligarem metaforicamente a sedução das imagens sacras católicas aos truques e

engodos do corpo sensual feminino, pois a sua beleza, por fazer emergir o desejo carnal

e fixar o olhar no visível, seria perigosamente sedutora, fazendo o homem perder-se de

si mesmo e de Deus.

Ora, se a violência ou a desconfiança em relação à beleza feminina nas

tragédias elizabetanas e jacobitas, ou a sua figuração problemática como uma

ameaça afeminante (i.e., derrogadora do discernimento e da virilidade do

homem), é recorrentemente encenada, isso faz eco evidente à violência protestante

(discursiva e prática) contra “hábitos idólatras” e à sua censura do imaginário656.

A exemplo do que observamos acima na “Bíblia de Genebra”, a sedução pelos

olhos, ou a incapacidade de distinguir o visível do divino, é repetidamente tratada

nas tragédias elizabetanas e jacobitas como algo que possuía um significado

perigosamente destrutivo para o indivíduo e para a vida social. Na peça “Romeu e

Julieta”, isso fica particularmente evidenciado, por exemplo, no modo como

Romeu se deixa seduzir e na forma como metaforiza a imagem de Julieta durante

o baile de máscara dos Capuletos. Vou repetir aqui um trecho já citado

anteriormente, mas agora sem o diálogo entre o mestre Capuleto e Teobaldo, de

modo a encadeá-lo com o diálogo ocorrido entre Romeu e Julieta:

Ro. What Ladies that which doth enrich the hand Of yonder Knight? Ser. I know not sir. Ro. O she doth teach the torches to burn bright:

It seemes she hangs vpon the cheeke of night: As a rich Iewel in an Ethiops eare, Bewtie too rich for vse, for earth too deare: So showes a snowie Doue trooping with Crowes, As yonder Lady ore her fellowes showes: The measure done, Ile watch her place of stand, And touching hers, make blessed my rude hand. Did my hart loue till now, forsweare it sight, For I nere saw true bewtie till this night.657

[...] Ro. If I prophane with my vnworthiest hand,

This holy shrine, the gentle sin is this, My lips two blushing Pylgrims did readie stand, To smoothe that rough touch with a tender kis. Iu. Good Pilgrim you do wrõg your hãd too

much Which mannerly deuocion showes in this,

Ro. Que Dama é aquela que enriquece a mão de altivo Cavalheiro? Ser. Não sei, senhor. Ro. Oh, ela ensina as tochas a brilhar!...

Na face da noite, suspensa parece estar, como uma jóia rica em um orelha etíope... Beleza assaz rica para ser usada e, para a Terra, assaz cara. Como altiva Dama acima das outras se mostra, assim é uma nívea Pomba reunida a Corvos... Com a devida distância, vigiarei seu pedestal e, tocando-o, tornarei minha rude mão abençoada... Meu coração amou até agora? Jurai que não, olhos, pois nunca vi beleza verdadeira até esta noite...

[...] Ro. Se eu profano com minha mão tão indigna

este sagrado santuário, o gentil pecado é este, meus lábios, dois Peregrinos ruborizados, prontos a suavizar esse toque rude com um beijo delicado. Ju. Bom Peregrino, assaz ofendeis vossa mão,

que demonstra nisso cortês devoção, pois santas possuem mãos que as mãos dos Peregrinos

656DIEHL, Huston. Staging Reform, Reforming the Stage: Protestantism and Popular Theater in Early Modern England. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997.pp.40-93; 156-181. 657CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.p.22 658CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.pp.23-24

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For saints haue hands, that Pilgrims hands do tuch, And palme to palme is holy Palmers kis. Ro. Haue not Saints lips and holy Palmers too? Iuli. I Pilgrim, lips that they must vse in praire. Rom. O then deare Saint, let lips do what hands

do, They pray (grant thou) least faith turne to dispaire. Iu. Saints do not moue, thogh grant for praiers

sake. Ro. Then moue not while my praiers effect I

take, Thus from my lips, by thine my sin is purgd. Iu. Thē haue my lips the sin that they haue

tooke. Ro. Sin from my lips, ô trespas sweetly vrgd:

[Outra página] Giue me my sin againe. Iuli. Youe kisse bith booke.658

tocam e, palma com palma, é o beijo dos santos Peregrinos... Ro. Não têm lábios as Santas e também os santos

Peregrinos? Juli. Sim, Peregrino, lábios que devem ser usados em

preces. Rom. Oh, cara Santa, deixa então os lábios fazerem

o que fazem as mãos. Eles rezam, garanto-te, por temerem que a fé se torne desespero. Ju. Santas não se movem, embora às preces acedam... Ro. Então, não te movas, enquanto colho das minhas o

efeito. Assim, através de teus lábios, o pecado dos meus é purgado. Ju. Então, meus lábios contêm o pecado que

colheram... Ro. Pecado de meus lábios?...Oh, dano docemente

desejado! Dá-me de volta o meu pecado!... Juli. Beijais conforme a etiqueta...

Como já sabemos, o “olhar idólatra” de Romeu se deixa levar pelos encantos de

Julieta a ponto de não perceber o perigo físico e imediato representado por Teobaldo.

Além disso, podemos notar aqui que a bela dama desejada por Romeu está adornada

para figurar-se adequadamente num baile de máscaras. Ora, é neste ambiente de

ornamentos verbais e visuais, de regras galantes de etiqueta e de máscaras sociais que

Romeu metaforiza Julieta como um objeto de arte, como um artifício que excede a

natureza terrena, como uma santa ou santuário, e metaforiza a si mesmo como um

peregrino devoto. Ou seja, é num contexto cênico de mascaramento, encantamento

erótico e de jogo de sedução que Romeu recorre às mesmas imagens conceituais da arte

e da idolatria que caracterizam a crítica protestante quando alerta contra os “perigos e

falsidades” da “carnalização idólatra” do culto católico659.

Ademais, como o trecho citado demonstra, embora muito jovem, Julieta está

longe de ser sexualmente inocente: quando ela diz “Youe kisse bith booke”, demonstra

que é completamente consciente dos maneios dos jogos de sedução e mascaramentos

corteses que podem compor a linguagem verbal e corporal de um jovem cortesão

(Romeu). Tanto é verdade que, na 7ª seqüência cênica, Julieta testaria as intenções de

Romeu ao propor que a abandonasse em seu sofrimento amoroso (ardor erótico) caso a

sua intenção não fosse o casamento660.

659Sobre a troca entre palco, página e púlpito desta linguagem, ver: DIEHL, Huston. Staging Reform, Reforming the Stage: Protestantism and Popular Theater in Early Modern England. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997.pp.170-172 660CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.pp.29-30

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Como podemos notar, o trecho citado acima não é um caso isolado, pois, em

vários outros momentos ao longo da peça, a manifestação do amor erótico entre Julieta

e Romeu recorre às mesmas metáforas de devoção idólatra e, muito particularmente,

Julieta manifesta uma consciência dos riscos de se fiar nos olhos carnais, principalmente

num mundo de formalidades corteses ou galantarias teatrais repletas dos estrangeirismos

lingüísticos – i.e., os correspondentes lingüísticos das “imagens estranhas e prostitutas”

do tropismo iconoclasta protestante661– que tanto incomodavam Mercutio e que ele

mesmo detratava através de sua linguagem bufônica662. De qualquer forma, uma vez

que Julieta e Romeu são provocados por suas respectivas belezas carnais, eles somente

podem pensar um no outro com uma luxúria definida metaforicamente como devoção:

Ro. Lady, by yonder blessed Moone I vow,

That tips with siluer all these frute tree tops. Iu. O swear not by the moone th'inconstant moone,

That monethly changes in her circle orbe, [Outra página]

Least that thy loue proue likewise variable. Ro. What shall I sweare by? Iu. Do not sweare at all:

Or if thou wilt, sweare by thy gracious selfe, Which is the god of my Idolatrie, And Ile beleeue thee. 663

Ro. Senhora, eu prometo, pela Lua altiva e abençoada que desponta prateada por entre as copas de todas estas árvores frutíferas... Ju. Oh, não jures pela lua – a inconstante lua –

que todo mês muda de forma em sua trajetória no céu, pois temo que teu amor seja igualmente infiel!... Ro. Pelo que deveria eu jurar? Ju. Não jures por nada, ou se quiseres,

jura por teu graciosos ser, que é o deus de minha Idolatria, e acreditarei em ti...

Portanto, como podemos notar, a retórica do desejo em Julieta e Romeu

manifesta-se através de uma linguagem religiosa de devoção idólatra. Deste

modo, a peça representa não a visão romântica do nascimento de um “amor

espiritual”, mas sim a cadeia analógica que a crítica protestante enfatiza como

própria da “carnalidade” dos ritos católicos: idolatria�possuir fisicamente o

divino�fornicação664. Além disso, não podemos esquecer que, pouco antes, o

“deus de...idolatria” de Julieta aceitou jogar fora o seu “nome”, ou seja, aceitou

tornar-se, por Julieta, um “self” sem predicativos sociais. Numa perspectiva moral

e social aristotélica, como sabemos, isso eqüivale a ser um “animal” ou um

“deus”. Ora, como já pudemos observar, Romeu é tratado de ambos os modos no

corpo discursivo da peça.

661DIEHL, Huston. Staging Reform, Reforming the Stage: Protestantism and Popular Theater in Early Modern England. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997.pp.32-39; 70-120 662WEST, William N.. “Mercutio’s Bad Language”. In Rematerializing Shakespeare: Authority and Representation on the Early Modern English Stage. New York: Palgrave Macmillan, 2005. pp.115-129 663CREEDE, Thomas; BURBY, Curthbert. The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo and Iuliet. London: Creede-Burby, 1599.pp.29-30 664DIEHL, Huston. “Infinite Space: Representation and Reformation in Measure for Measure”. Shakespeare Quartely, volume 49, 1998(4): p.400

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Por outro lado, numa perspectiva iconoclasta estritamente protestante, Romeu

torna-se ainda mais condenável para o “leitor/audiência” do final do século XVI:

além de definir Julieta como um “ídolo de adoração” à “imagem e semelhança” de

sua concupiscência, também deixa-se definir por ela nos mesmos termos. Em

outras palavras, Romeu deixa-se transfigurar como um “self” sem predicativos por

(ou à “imagem e semelhança” de) um ser mortal que lhe é inferior. Afinal, Julieta

é uma jovem dama. Deste modo, Romeu realiza plenamente o tropo bíblico

protestante da idolatria: transforma, com sua imaginação concupiscente, um ser

mortal que lhe é inferior em ídolo de adoração/atração e, por fim, deixa-se definir

por ele, alienando-se simultaneamente da vida social e de Deus. Dessa situação se

deduz uma questão para o “leitor/audiência” elizabetano: tudo isso poderia ser

evitado se ambos vivessem num ambiente menos propício às “idolatrias de mente

e coração” – a fictícia Verona não deixa de ser uma sinédoque teatral hiperbólica

do mundo católico ou de uma ameaça católica bastante familiar a um inglês de

finais do século XVI – e se tivessem uma orientação religiosa adequada, isto é,

preocupada menos com as aparências mundanas do que com a reforma efetiva das

consciências.

Assim, destruir o “olhar idólatra” seria uma forma de evitar o potencial

afeminante e animalizante da carnalidade de Julieta, mas a juventude (i.e.,

fraqueza corporal e espiritual) de Romeu o prende demasiadamente ao olhar

carnal e, por isso, Romeu nunca deixa de ser devoto dos encantos de Julieta. De

certo modo, isso também expõe um paradoxo inerente à própria crítica protestante

da imagem: a expressão de tanto temor de se deixar seduzir pelos olhos é um

testemunho evidente de que, na realidade, a retórica protestante na Inglaterra não

conseguiu erradicar completamente o prazer, a sedução e o encantamento mágico

que nasciam do “belo visível”, do “artifício dos ornamentos”665. Daí,

compensativamente, tal como podemos notar em várias peças do cânone

shakespeareano, há a necessidade de sempre figurar a sedução pelos signos

visíveis de forma problemática, ameaçadora ou ambígua para, deste modo, ser um

estímulo à auto-reflexão, particularmente quando tomavam a forma da beleza

feminina666. Afinal, o amor erótico, por originar nos olhos carnais, é

665DIEHL, Huston. Staging Reform, Reforming the Stage: Protestantism and Popular Theater in Early Modern England. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997.pp.156-159 666DIEHL, Huston. Staging Reform, Reforming the Stage: Protestantism and Popular Theater in Early Modern England. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997.pp.58-63

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explicitamente identificado em “Romeu e Julieta” como um impedimento para a

emergência da “fé verdadeira”, que não depende nem da razão, nem de prova

ocular, mas daquele “espaço infinito” entre appetitus e conscientia em que se

inscreve a graça divina667.

O fato de a retórica protestante dos períodos elizabetano e jacobita feminilizar

metaforicamente todas as imagens sacras – incluindo aquelas do corpo de Cristo

na cruz – como “prostitutas” atesta que ela opera com uma ordem simbólico-

teológica que hierarquiza o masculino como o “espiritual” e o feminino como o

“carnal”, ou seja, o exato oposto da moralidade laica do ideal romântico de

feminino. Como “prostitutas”, as imagens sacras seduzem e enganam, sendo

sinédoques da maior das “proxenetas”: a Igreja Católica. Nesse sentido, a

iconoclastia poderia ser entendida como um tipo de ritual de purificação da

consciência dos indivíduos e da comunidade do apelativo carnal das imagens. Nas

peças teatrais elizabetanas e jacobitas, um equivalente dramático possível deste

ritual de purificação seria o sacrifício do amor erótico668. Ora, olhando por esta

perspectiva a cena final do suicídio de Julieta e Romeu, observamos que a morte

destes personagens torna-se moralmente problemática justamente porque eles não

cumprem a expectativa de transcender o físico: eles sacrificam-se pelo amor

erótico.

Por isso, se há em tal atitude uma coerência trágica – o amor de Julieta e

Romeu inscreve-se completamente na carnalidade, logo, o fim (ou suposto fim) da

vida carnal de um dos amantes alimenta um desejo de suicídio sacrificial do outro

–, há também a exposição problematizante de sua ignomínia, tornando a morte

dos jovens moralmente lamentável numa perspectiva teológica protestante. Afinal,

o suicídio de Julieta e Romeu é duplamente pecaminoso: além de condenar a alma

ao inferno, o seu suicídio é um ato de sacrifício a um “ídolo/amante” (ou seja, a

um “deus de...idolatria” que aliena cada jovem do Deus invisível e verdadeiro) e

uma manifestação imprudente de egoísta rebeldia contra a autoridade de seus

respectivos pais, pois o suicídio condena os velhos mestres Capuleto e Montéquio

a não terem uma descendência direta para suas respectivas casas.

667Ver: DIEHL, Huston. “Infinite Space: Representation and Reformation in Measure for Measure”. Shakespeare Quartely, volume 49, 1998(4): pp.393-410 668DIEHL, Huston. Staging Reform, Reforming the Stage: Protestantism and Popular Theater in Early Modern England. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997.pp.161-163

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Além disso, podemos perceber que, além de punir com a morte o amor

erótico de Julieta e Romeu, a teleologia da peça desinveste o seu casamento da

sacralidade pretendida pela Igreja Católica (representada caracteristicamente por

Frei Lourenço), figurando-o significativamente como uma duvidosa medicina

libidinis

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associações retóricas compõem a linguagem amorosa de “Romeu e Julieta”, mas tudo

isso é explorado de forma problematizante, tal como ocorre no sermonário protestante

de finais do século XVI, que utilizava essas mesmas associações retóricas para

levantarem suspeitas contra a arte, a mulher e os fantasmas eróticos (i.e., aquelas

imagens interiores da amada no homem apaixonado que tanto o encantam, cativam,

obsessionam e, por fim, cegam o seu espírito). “Romeu e Julieta”, como outras peças

do cânone shakespeareano, explora as mesmas desconfianças em relação a Eros e à

Imaginação, o que se evidencia nas constantes atenções, problematizações ou ataques

aos “ídolos interiores” da mente e do coração 671.

Ora, como o próprio teatro era objeto de crítica dos protestantes mais radicais,

foi desenvolvido um tipo de teatralidade na Inglaterra que se assentava

completamente nas expectativas protestantes de reforma da mente, olhos e

coração672. Assim, para fazer frente às demandas morais e teológicas dos

reformadores ingleses, não surpreende que surgisse na Inglaterra elizabetana e

jacobita um discurso metateatral que tinha como alvo de crítica não apenas as

imagens eclesiásticas, mas quaisquer outros equivalentes de idolatria, tal como o

fato de alguém assentar a sua inteira felicidade numa pessoa (amor erótico ou

afeição excessiva por um ente mortal, o que é recorrentemente tratado como uma

forma de loucura), num objeto (provas oculares de virtude ou santidade,

relíquias, hóstia, vinho de missa, engenhos mágicos em geral etc) ou num

pensamento (soberba intelectual, glória guerreira, jactâncias em geral etc)673.

Deste modo, tal como ocorria nos púlpitos, essas modalidades de ídolo eram

elevadas em palco para serem dissecadas, desmistificadas, problematizadas,

destituídas de todo o seu encantamento ou simplesmente destruídas, de forma a

desvelar todo o seu perigo e erros fatais tanto para a consciência do

“leitor/audiência”674 quanto para uma vida social cristã.

Os discursos protestantes contra as performances teatrais também exploravam

recorrentemente o tropo feminilizante da “prostituta” para desqualificar a arte

teatral e advertir os seus “leitores/ouvintes” contra os seus enganos e os perigos de

671Sobre este tema, ver também: DIEHL, Huston. “‘Strike All the that Look Upon With Marvel’: Theatrical and Theological Wonder in The Winter’s Tale”. In Rematerializing Shakespeare: Authority and Representation on the Early Modern

English Stage. New York: Palgrave Macmillan, 2005.pp.19-34 672DIEHL, Huston. Staging Reform, Reforming the Stage: Protestantism and Popular Theater in Early Modern England. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997.pp.64-212 673DIEHL, Huston. Staging Reform, Reforming the Stage: Protestantism and Popular Theater in Early Modern England. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997.pp.74-165 674Ver também: CROCKETT, Bryan. The Play of Paradox: Stage and Sermon in Renaissance England. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1995.

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de auto-exame periódico da consciência679. Enfim, podemos afirmar que o teatro

inglês também aprendeu a suscitar o temor pela idolatria do coração e da mente

para que o fiel praticasse, de algum modo, a sua própria iconoclastia interior e

reforma de consciência. Todavia, tais considerações nos fazem pensar no zênite

dramático da peça “Romeu e Julieta”: Qual o status teológico da promessa de se

erguer uma estátua de ouro para Julieta e Romeu? Poderemos responder isso se

considerarmos a forma como a teologia protestante entendia o significado do

ritual da Última Ceia ao final do século XVI.

Para os reformadores do início do protestantismo, as imagens e os rituais

relacionados à Última Ceia tinham uma importante função mnemônica: lembrar não

apenas da grandeza do sacrifício de Cristo, mas principalmente da pequenez física e

espiritual do homem, que deve depositar toda a sua fé na graça de um Deus invisível

que, depois de Cristo, não se comunica mais com os homens através de provas oculares,

milagres e prodígios em geral, pois “a esperança que se vê já não é esperança”680.

Portanto, a condenação protestante da “carnalidade” e “idolatria” nos ritos da Igreja

Católica não significa negar a importância em si das imagens como signos concedidos

ou permitidos por Deus para que o homem – cujo espírito está aderido a um corpo física

e moralmente corruptível – tivesse a memória perpétua de sua condição de pecador e da

promessa de redenção de um Deus invisível681, que tomou misericordiosamente a forma

da carne em Cristo para imolar o pecado adâmico e renovar o pacto anterior de Deus.

De fato, para a mente protestante dos séculos XVI e XVII, o signo visível seria a

ferramenta retórica através da qual Deus exortaria o homem a ir em Sua direção, tal

como fizera outrora com Cristo ao torná-lo o Seu Verbo encarnado e Cordeiro de

imolação do pecado original. Aliás, o próprio Calvino várias vezes afirmou que Deus se

comunicava com os seres humanos através de signos terrenos e visíveis por julgá-los

mais adequados a seres cujas almas inscrevem-se ainda em corpos carnais. Portanto, em

sua soberana misericórdia, para trazer o homem para Si, Deus acomodaria a sua

grandeza em representações mais adequadas à percepção humana, mas isso nunca

estava completamente livre dos assaltos e artimanhas do demônio, que poderia tornar as

imagens sedutoras demais a ponto de alienar o homem de Deus. Para se evitar tal risco

679CROCKETT, Bryan. The Play of Paradox: Stage and Sermon in Renaissance England. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1995.pp.1-28 680Ver Romanos 8:24 em: CALVIN, John; KNOX, John; FOXE, John et alii. The Bible and Holy Scriptvres conteyned in the Olde and Newe Testament. Geneva: Rovland & Ali, 1560.p.1097 681DIEHL, Huston. Staging Reform, Reforming the Stage: Protestantism and Popular Theater in Early Modern England. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997. pp.101-102

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de sedução idólatra, seria fundamental que os signos visíveis dos sacramentos sempre

fossem acompanhados por palavras que os explicassem e santificassem, pois seria

exatamente esta associação entre imagem e verbo – tal como acontecia no rito da Última

Ceia (a substituta protestante da Missa Católica) – que suscitaria no fiel um sincero

auto-exame de consciência e a fé naquilo que efetivamente está longe do alcance dos

olhos carnais: Deus682.

Daí, não surpreende que Calvino imaginasse o sacramento da Última Ceia como

uma representação dramática em que a palavra falada tinha a capacidade de tornar pleno

aquilo que os signos visíveis representavam, o que igualmente explica a desconfiança de

Calvino em relação às formas de dramas (ou outras formas de performances imagéticas)

que encenassem qualquer ação divorciada de palavras explanatórias. Nesse sentido, o

rito reformado da Última Ceia deveria ser simples, estritamente figurativo e acessível

para comunicar com eficácia o mistério divino683. Portanto, diferentemente do que

pensam críticos literários como Stephen Greenblatt684, a ênfase protestante no caráter

figurativo deste sacramento não o desvia para um significado estritamente estético. Pelo

contrário, os reformadores protestantes criaram a sua própria forma de investir o

sacramento da Última Ceia de mistério divino: o pão e o vinho seriam símbolos dados

por Deus ao homem para que pudesse lembrar do sacrifício e da promessa de Cristo e,

deste modo, participar de Seu mistério. Portanto, seria um erro “tipicamente católico” e

“idólatra” entendê-los literalmente como “carne” e “sangue” de Cristo.

Nesse sentido, a representação ritual da Última Ceia serviria para trazer à

memória algo que, acompanhado das palavras reveladas por Deus na bíblia, poderia

provocar misteriosamente a reforma na consciência do fiel685. Ora, na peça “Romeu e

Julieta”, a promessa de erguer uma estátua de ouro de Julieta e Romeu segue o

propósito de criar símbolos visíveis para a memória nos mesmos termos do iconoclasmo

de mente e coração presente no rito protestante da Última Ceia, sugerindo, tal como

esta, a necessidade de se reformar os velhos hábitos de devoção. Afinal, tratam-se de

signos visíveis sugeridos em “palco/página” que são claramente indissociados das

palavras de dor, perda e sofrimento dos patriarcas Capuleto e Montéquio. Em suas falas

finais, a associação de palavras pesarosas com a promessa de se erguer signos visíveis

682Ver: CALVIN, John. Commentaries to Bible.(www.ccel.org/c/calvin) 683DIEHL, Huston. Staging Reform, Reforming the Stage: Protestantism and Popular Theater in Early Modern England. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997. pp.101-102 684GREENBLATT, Stephen. Shakespearean Negotiations. Berkeley: University of California Press, 1988.pp.121-128 685DIEHL, Huston. Staging Reform, Reforming the Stage: Protestantism and Popular Theater in Early Modern England. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997. pp.102-108

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de lembrança de suas respectivas perdas justamente convida o “leitor/audiência”, de

modo análogo à audiência do rito protestante da Última Ceia, a ter uma postura auto-

reflexiva e a desenvolver um olhar céptico e crítico sobre os erros e malogros de todos

os personagens envoltos, direta ou indiretamente, no fim lamentável de Julieta e Romeu.

Aliás, não é casual que todos os personagens socialmente elevados que

morreram ou foram assassinados abusaram, em alguma medida, dos “ídolos de coração

e mente”: (1) Teobaldo e Mercutio pecaram por “excessiva jactância”; (2) conde Páris e

Romeu pecaram por “luto excessivo” a uma falsa imagem de Julieta morta, mas,

diferentemente de Páris, Romeu foi muito além, pois pretendia imolar-se no

“túmulo/altar” de sua “santa”, embora o fizesse de forma não-viril, já que não derrama o

próprio sangue, preferindo o artifício feminil do veneno; (3) senhora Montéquio pecou

por “luto excessivo” à morte simbólica (exílio) de seu muito estimado filho; (4) Julieta

pecou por “luto excessivo” a um Romeu suicida, chegando ao ponto de também imolar-

se pelo “deus de sua idolatria”, mas, diferentemente de Romeu, faz isso de forma viril,

pois derrama o seu próprio sangue utilizando-se de parte da indumentária (a adaga) de

seu “ídolo”; (5) Julieta e Romeu pecaram pelo “amor erótico” que excessivamente

cultivaram como fundamento último ou único de sua felicidade terrena.

Deste modo, explorando a ironia trágica contida nisso, a peça oferece ao final a

promessa de duas estátuas de ouro que aludem problematicamente à passagem bíblica

da devoção ao bezerro de ouro, que é recorrentemente evocada na crítica protestante

contra a “idolatria da Igreja Católica”686. No entanto, não são apresentadas como “ídolos

de adoração”, mas sim são verbalizadas como símbolos para a lembrança da história

lamentável e sofrida das paixões idólatras de Julieta, de Romeu e de seus amigos e

parentes. Portanto, como advertência para os personagens no “mundo do teatro” e no

“teatro do mundo”, tal promessa verbal de monumento fúnebre é uma provocação ou

estímulo à auto-reflexão nos mesmos termos que caracterizam a retórica iconoclasta dos

reformadores protestantes ingleses de finais do século XVI. Assim, como símbolos

visíveis e verbais para a memória, as estátuas serviriam para lembrar, a exemplo dos

tropismos da “Bíblia de Genebra”, a relação implicativa que há entre idolatria,

cupidez, jactância, insolência, desobediência aos pais, busca de glória vã, assassinato,

calúnia e discórdias civis.

686DIEHL, Huston. Staging Reform, Reforming the Stage: Protestantism and Popular Theater in Early Modern England. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997. pp.46-63

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Conclusão

Quando de reportava a um “autor”(entendido

como individuação psicológica e autônoma de

inspiração e significados), o par analítico

“vida”(como processo)/“obra”(como

manifestação de um gênio individualizado) foi

uma convenção criada pela história da literatura

e das artes em geral desde finais do século

XVIII. Tal convenção analítica estava marcada

por uma perspectiva teleológica que situava a

“vida” e a “obra” como unidades fixas e

integradas, respectivamente, causadora e

causada da/pela essência genial de um “autor”.

Como tivemos oportunidade de observar, esse

tipo de convenção analítica interferiu no modo

como se constituiu um cânone editorial para

‘Shakespeare’ nos séculos XIX e XX, pois

norteou a prática de fazer “depuração textual”

com o objetivo de achar ou se aproximar mais

perfeitamente da intenção do autor. Ora, em

termos analíticos, o que aconteceu quando

abrimos mão de focar as peças por tal

perspectiva?

A resposta é que voltamos a conferir a elas justamente o caráter ocasional e

contingente de sua textualidade editorial. Nos termos desta perspectiva analítica, não

haveria peças “Romeu e Julieta” ou “Ricardo III” mais ou menos perfeitas, mais ou

menos próximas de uma unidade criativa, primordial, fixa, organizadora e genial de

Shakespeare, mas tão somente variações textuais em torno de temas e histórias que

foram, em certos momentos, eventos coletivos de palco. Portanto, encarei as peças

como um fenômeno anônimo, coletivo e volátil no tempo, igualmente referido a (ou

realizado a partir de) auctoritates institucionais com demandas próprias de

sobrevivência e valor, o que não veio dissociado da idéia de que as peças possuiriam um

patrimônio retórico-temático próprio no modo de ratificar ou questionar as formas do

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poder político, de figurar a necessidade ou a negação das hierarquias sociais existentes e

de cobrar, estrategicamente, o funcionamento das autoridades sociais e políticas então

constituídas. Além disso, tornou-se evidente para mim que a forma material de

apresentação do texto das peças teatrais era mais um elemento a ser considerado como

parte dos significados possíveis do texto na época de suas primeiras edições.

Inicialmente, quando consideramos os pontos relativos à materialidade textual

das peças no contexto histórico-sociológico de Shakespeare, pudemos perceber que não

é desimportante saber que, por exemplo, até pouco antes da guerra civil “puritana”, os

in-quartos da peça “Ricardo III” propunham, desde o seu frontispício, um percurso

moral para o leitor/ouvinte da peça, e que o primeiro in-quarto de 1597 faz alusão à

companhia teatral e à patronagem, mas não ao “poeta cênico”; ou que, até 1622, os in-

quartos da peça “Romeu e Julieta” não faziam qualquer alusão ao “poeta cênico”, pois

estavam genericamente referidos à sua companhia teatral e à sua nobre patronagem; ou

ainda saber que ler uma edição not-spelling de “Ricardo III” da Oxford, que funde

trechos do Q1(1597) com aqueles do fólio de 1623, não produz os mesmos efeitos de

leitura que ler/ouvir cada edição separadamente e pode, inclusive, apagar determinadas

marcas editoriais de legibilidade e dinâmicas de caracterização de personagens.

Além disso, mesmo que o projeto editorial da

Oxford preservasse, palavra por palavra, o texto

de uma peça, como quase acontece com a sua

edição de “Romeu e Julieta”, que é baseada no

Q2(1599), ler a edição de John Jowett não é a

mesma coisa que ler a edição de Thomas

Creede: em primeiro lugar, o formato

oxfordiano, tal como o fólio de 1623, confere

um caráter monumental para cada peça e para

seu ‘autor’; em segundo lugar, foram apagadas

ou alteradas didascálias e muitas marcas

tipográficas e disposições topográficas de versos

que originalmente participavam da

caracterização cênica de alguns personagens,

tais como Mercutio, a Ama de Julieta e o mestre

Capuleto. E, fundamentalmente, ler um

“monumento para todas as eras”, ou acreditar

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neste efeito de encantamento, subtrai justamente

aquilo que mais caracteriza a leitura dos textos

no formato in-quarto: a sua vulnerabilidade e a

sua contingência retórico-semântica no mercado

editorial. Assim, como pudemos perceber ao

longo deste trabalho, lidar com a materialidade

das peças da virada do século XVI para século o

XVII foi inesperadamente estruturante do

objetivo de propor para elas uma chave

interpretativa que as retirasse de uma leitura

romântico-liberal e as inscrevesse

hipoteticamente numa leitura histórico-

sociológica de Antigo Regime.

Desde 1996, tenho desenvolvido estudos

comparativos sobre a dinâmica das relações

sociais, padrões de conflitos e os dispositivos de

integração social e política específicos do

Antigo Regime. Tal experiência demonstrou

para mim que o Antigo Regime na Europa não

poderia ser estudado a partir de critérios que

pressupusessem, teleologicamente, um roteiro

de realização de “essências nacionais”,

principalmente se, como partes de tais

essências, estivessem forças trans-históricas

(“espírito” da nação ou das instituições) que

definiriam a propensão de determinadas regiões

para o atraso cultural-tecnológico e para o

autoritarismo, enquanto outras propenderiam

para o progresso industrial e a democracia

liberal. Ora, lembrar disso é reportar justamente

para como, respectivamente, Portugal/Espanha e

Grã-Bretanha passaram a ser figuradas nos

discursos de modernidade da virada do século

XIX para o XX. No entanto, também devemos

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lembrar que tal moldura analítica foi utilizada,

em meados do século XIX, por Alexis de

Tocqueville (1805-1859) que, afetado

negativamente em sua vida pessoal e

profissional pela emergência do poder imperial

em Napoleão III (1808-1873) a partir de 1852,

pretendeu desqualificar, frente às experiências

britânica e estadunidense, o “caráter dos

franceses” e as “instituições francesas”,

indicando a sua propensão histórica para

formas autoritárias e personalistas de Estado

“desde Luís XIV”. Como pudemos perceber ao

longo deste trabalho, não foi nesta moldura que

assentei as minhas hipóteses de análise.

De certo modo, tal moldura analítica ainda está

presente na forma como as ciências humanas

geralmente lidam com o tema da modernidade,

pois, desde o Iluminismo, as categorias

“tradicional” e “moderno” são apresentadas

como pares antitéticos. Em seus marcos, a idéia

de uma sociedade de corpos de privilégios, ou

Ancien Régime, seria incompatível com a noção

de indivíduo, que geralmente é pensada como

algo que gradativamente – tal como o Estado –

emergiria em contraponto à sua dinâmica

político-social estamental. Como tivemos

oportunidade de observar, é nesta moldura

analítica que se assentou o artigo de Ricardo

Benzaquen e Viveiro de Castro sobre a peça

“Romeu e Julieta”. Além disso, outra

simplificação conceitual da modelização teórica

tocquevilleana foi entender privatae leges como

se fossem dispositivos jurídicos constitutivos

exclusivamente da nobreza, que, nesse sentido,

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representaria as “forças do atraso” ou as “forças

da tradição” em face às “forças do progresso

capitalista” da burguesia moderna.

Como demonstrei, tal moldura analítica não

daria conta de uma realidade bastante distinta,

quanto às concepções e práticas políticas, como

é a Europa dos séculos XVI e XVII. Afinal, o

modelo de análise social que opõe o

“tradicional” ao “moderno” – ou Antigo Regime

a processo de individuação – costuma também

ver as experiências políticas, sociais e

econômicas da Inglaterra, desde o

Renascimento, como uma espécie de prelúdio

do liberalismo. Nesses termos, o indivíduo –

que indubitavelmente emerge nas peças

associadas ao nome Shakespeare – foi

geralmente visto como uma antecipação

circunscrita de valores da sociedade liberal, que

passaria a conter em si a própria essência da

condição moderna. Ora, o que propus em minha

pesquisa foi justamente que se levasse em

consideração a singularidade histórica estrutural

da configuração estatal da sociedade

patrimonial-estamental – comodamente

chamada aqui de Estado no Antigo Regime –,

o que implicou em entendê-la de uma forma

bem mais dinâmica do que deixaram

transparecer a crítica liberal e as abordagens

marxistas e weberianas sobre o surgimento das

instituições administrativas estatais.

Além disso, a abordagem que propus implicou

também em entender um processo de

individuação que ocorreu fora dos marcos do

heroísmo individualista romântico-liberal, sendo

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de emancipação do indivíduo em relação ao

fardo das tradições e das hierarquias naturais.

Em todo caso, não deixa de ser irônico notar

que, ao pretender substituir a teleologia

marxista da alienação capitalista pela

teleologia da emancipação individual, o modelo

filosófico neotocquevilleano recaiu em algo que

Marshall Berman já tinha notado, desde finais

da década de 1970, no “Manifesto

Comunista”(1848): neste opúsculo de Marx, o

discurso sobre a modernidade apresenta-a como

um processo de expansão do indivíduo (“mão-

de-obra livre”) em oposição às tradições

(“relações sociais feudais de produção”). Ora,

no final das contas, marxistas e

neotocquevilleanos acabaram por reduzir a

noção de indivíduo, enquanto fator de

organização da vida social e política, a um

atributo exclusivo da modernidade – cujo marco

intelectual seria o Iluminismo, e cujo marco

institucional seria o Estado Nacional.

Por isso, seria anacrônico projetar para os

séculos XVI e XVII este modelo filosófico

neotocquevilleano, já que está implicado com

um processo específico de individuação que

está historicamente ligado à emergência de um

tipo de Estado juridicamente nivelador e

antecipador de projetos sociais e econômicos,

tal como a imagem conceitual sugerida por

Zygmunt Bauman do “Estado engenheiro

social” (ou “Estado jardineiro”) capaz de forçar

a sociedade arrinconada em seus “nós

comunais” a deixar de ter vários tempos e

lugares para ser um único tempo no espaço. Em

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330

termos filosóficos, pode-se afirmar que tal

forma de Estado reproduziu em sua ação

administrativa o império do sujeito iluminista

(i.e., uma vontade autônoma completamente

indiferente aos desafios de

acomodação/comunicação com os “tempos e

lugares”, ou seja, demolidora de costumes,

tradições e esferas jurais locais) e, como tal,

sempre voltado para um futuro radiante, em

nome do qual as ações no presente – ainda que

brutais – seriam justificáveis.

No entanto, como demonstrei neste trabalho,

constituir a ordem pública no Antigo Regime

era algo muito distinto de qualquer pretensão de

nivelamento político-jurídico da sociedade: a

ação administrativa dos poderes soberanos

centrais não buscava eliminar, mas sim

acomodar e integrar os indivíduos e os corpos

sociais de privilégios na direção de um fim

comum (segurança/bonança/integração

duradoura/paz civil), num momento em que a

tendência à auto-referencialidade dos domínios

medievais foi posta em questão devido às novas

demandas de configuração social relacionadas à

expansão comercial e à complexificação das

relações de trabalho no campo e na cidade.

Certamente, esta nova sensibilidade de

abordagem sobre o tema do Estado em meu

trabalho está ligada à conjuntura que se abre no

cenário intelectual europeu ao final da década

de 1980.

Frente aos dilemas em torno da União Européia

e do enfraquecimento do antigo bloco soviético

– havendo o pipocar de vários movimentos de

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331

minorias étnicas silenciadas durante décadas por

“Estados jardineiros”–, ocorreram na Europa

muitos congressos e a fundação de revistas em

que se discutiam os dilemas da relação entre

poderes centrais e singularidades locais. Em

História Moderna, esta foi a ocasião de

encontros de pesquisadores e de projetos

editoriais coletivos, assim como de formação de

grupos de trabalhos internacionais, em que o

grande chapéu temático das origens do Estado

Moderno na Europa (séc.XIII-XVIII) serviu

para ampliar as trocas entre os pesquisadores

europeus. Nesses termos, uma Europa das

experiências estatais anteriores à modernidade

(e, portanto, anteriores à existência institucional,

jurídica e social da igualdade civil liberal e à

concepção de fronteiras nacionais) emergiria

como um grande topos temático para

perspectivar uma Europa hodierna que

pretendia se unificar e, para tanto, não poderia

esquecer ou negligenciar as suscetibilidades

locais – o “grande erro” das “biografias

nacionais”.

Ora, em si mesmos, os topoi “l’État et les

sociètès” ou “l’État et les pouvoirs” (para

retomar expressões caras ao trabalho de Pierre

Goubert nas décadas de 1960 e 1970) não eram

uma novidade temática. A novidade estava na

abordagem: em vez de enfatizar, como nas

décadas de 1960 e 1970, os estudos das

experiências de resistência das “sociedades de

corpos” em relação a um “Estado

homogeneizante e insensível” (i.e., a fórmula

analítica tocquevilleana: absolutismo vs.

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332

sociedade de corpus), houve uma ênfase no

estudo das tensas e reciprocamente interessadas

e estratégicas trocas entre as localidades de

poder e os poderes centrais emergentes, assim

como das formas de constituição de

legitimidade para as autoridades centrais e

locais. Enfim, ao longo da década de 1990,

surgiram trabalhos que demonstraram que os

chamados poderes centrais e locais no Antigo

Regime formavam entre si complexas redes

sociais de interesses, mais ou menos estáveis,

que se mantinham justamente a partir de uma

dinâmica senhorial de formação de clientelas

políticas, tanto mais clara de ser entendida se o

pressuposto estamental de organização das

hierarquias sociais e funcionais fosse

analiticamente implicado com uma estrutura

patrimonial de poder.

Como tivemos a oportunidade de acompanhar

neste trabalho, a dinâmica social e institucional

de Antigo Regime é aqui explicitada nos termos

de uma modelização teórica marcadamente

eliasiana, mas já incorporando ao modelo as

revisões críticas a respeito das implicações

analíticas anacrônicas do uso do conceito

absolutismo para se referir à dinâmica do poder

soberano das monarquias européias entre os

séculos XIII e XVIII. Com isso, a nossa forma

de entendimento das hierarquias sociais e da

autoridade política soberana representadas nas

peças associadas ao nome ‘Shakespeare’ se

alterou completamente, pois perdeu sentido

imaginar que Estado é sinônimo de “poder

central”, embora a centralização política seja

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333

constitutiva da forma estatal de sociedade; da

mesma forma, perdeu sentido falar em

burocracia – no sentido weberiano – como

sinônimo de administração estatal, ou pensar

que a experiência estatal de sociedade

demandaria necessariamente o surgimento de

uma burocracia; além disso, evidenciou-se que

seria anacrônico imaginar, como se fazia desde

os trabalhos de Roland Mousnier sobre a

venalidade dos ofícios na França, que os cargos

e ofícios administrativos fossem concebidos ou

funcionassem numa “dinâmica burocrática

moderna” e, portanto, distinta do “senhorialismo

e atraso da nobreza de espada”. E, finalmente,

perdeu sentido imaginar que no Antigo Regime

não houvesse uma noção de coisa pública (ou

ordem pública) somente porque não se

manifestava através de dispositivos sociais e

político-administrativos especificamente

burocráticos.

Ora, justamente por levarmos em consideração os caracteres histórico-

sociológicos do Antigo Regime quando comparamos os enredos das peças “Romeu e

Julieta”(1599) e “Ricardo III”(1597), pudemos perceber que o casamento secreto de

Julieta Capuleto e Romeu Montéquio é o avesso moral do casamento político de

Elizabeth de York e Henrique de Lancaster. Afinal, Julieta e Romeu não fizeram de seu

casamento um ato político em nome da Commonwealth, mas tão somente um ato

privado, egoísta e pouco deferente às autoridades patriarcais e à utilitas totius civitatis

da fictícia Verona. Este avesso moral torna-se ainda mais evidente quando lembramos

que, desde o século XV, era recorrente nos tratados políticos a exigência moral de que

as altezas sociais deveriam adequar o seu comportamento individual e/ou grupal às

exigências políticas da corporidade estatal. Como sabemos, tal exigência moral, por

estar implicada com um patamar estatal de integração social, gradativamente deslocou o

ethos guerreiro medieval para um ethos cortesão, o que justamente cobrava do indivíduo

um maior autocontrole psíquico de seus impulsos libidinais e agressivos. Este fenômeno

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334

civilizacional estava ligado a um processo de individuação que pressupunha um

consciente autodistanciamento subjetivo de cada ator social em relação às máscaras

sociais que encenasse no mundo. Daí, não é fortuito que o nascimento do Estado na

Idade Moderna esteja conjunturalmente ligado à recorrência da tópica literária do

“teatro do mundo” ou do “mundo como teatro”.

Nesse sentido, se é correto afirmar, como fizeram Viveiros de Castro e Ricardo

Benzaquen, que “o psicológico aparece quando o social passa a ser visto como o

estatal”, deve-se, entretanto, considerar que tal psicológico no Antigo Regime ainda não

pressupunha, como queriam estes autores, o “dualismo concêntrico príncipe/indivíduo”

– ou a “emancipação do indivíduo” no sentido filosófico neotocquevilleano – como

condição de possibilidade para que houvesse segurança, um senso contratual de

previsibilidade, estabilidade de forma e perpetuidade sucessiva para as instituições

sociais e políticas. Como notara Norbert Elias, a emergência da configuração estatal dos

vínculos sociais cobra de cada ator social uma maior capacidade de autocontrole de seus

impulsos e emoções como condição fundamental para seus êxitos sociais e políticos. No

entanto, se é certo dizer que a individuação psicológica está historicamente implicada

com a configuração estatal dos vínculos sociais e políticos, isso não implica em

inscrever tal individuação numa teleologia de modernidade, pois esta se ancora numa

concepção romântico-liberal de liberdade individual e numa concepção iluminista de

autonomia subjetiva.

Ao estudar a literatura espanhola dos séculos XVI e XVII, José Antonio

Maravall foi bastante convincente em demonstrar a singularidade estrutural do processo

de individuação deste período: num mundo em que houve uma expansão singular dos

horizontes de aspirações, emergiu a consciência de que o mundo humano é o produto

necessário e instrumental de convenções humanas que justamente cobram de cada

indivíduo a opressão do coração para que pudesse se ajustar adequadamente à vida

social. No entanto, a forma de conceber ordem social e vínculo político de autoridade

nesse mundo de horizontes mais amplos de experiências permaneceu inscrita numa

dinâmica estamental-patrimonial de poder. Portanto, a tensão viva entre autoridade e

liberdade nos séculos XVI e XVII não pode ser entendida como tendo o mesmo

significado em relação a épocas precedentes ou posteriores, pois, como lembrava

Maravall, uma singularidade cultural dos tratados morais, peças teatrais, novelas

exemplares, etc deste período era justamente a afirmação, através de exemplos negativos

ou avessos morais, de um princípio de autoridade.

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335

Ora, tal perspectiva está presente nas várias

peças teatrais associadas ao nome

‘Shakespeare’: se, por um lado, observamos a

caracterização de alguns personagens com um

consciente autodistanciamento subjetivo em

relação às suas máscaras sociais/cênicas, por

outro lado, eles estão implicados numa

teleologia dramática que justamente lhes cobra a

capacidade de regulação das paixões e apetites

individuais, pois somente deste modo poderiam

encenar as suas máscaras sociais no sentido de

manter a ordem pública e a segurança social,

reduzindo os efeitos destrutivos da fortuna sobre

suas vidas e sobre a corporação política.

Quando isso não ocorre, a teleologia moral das

peças os pune com o malogro de seus projetos

pessoais de amor e/ou poder, o que está quase

sempre associado à negação da posteridade.

Assim, o consciente autodistanciamento

subjetivo de alguns personagens

shakespeareanos em relação às suas máscaras

sociais é um indício epocal importante de

processo de individuação, mas não se trata

ainda da auto-afirmação moral de indivíduos

wertherianos contrapostos aos fardos da tradição

e das convenções sociais estamentais.

No alvorecer da Idade Moderna, como temos notado, a consciência ou

sentimento de autodistanciamento subjetivo que cinde o indivíduo em “Ser-Interior”

(pensado como unidade humoral potencialmente desagregadora) e “Parecer-Exterior”

(pensado como potência socialmente agregadora) é concomitante a um processo de

despersonificação das instituições sociais e políticas que ainda se inscreve e demanda

convenções estamentais-patrimoniais de vínculos sociais e políticos. Daí, não

surpreende que a desfiguração da honra (e, por extensão, do corpo político) tenha se

tornado um tema recorrente nos textos políticos e literários dos séculos XVI e XVII. Na

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336

peça “Romeu e Julieta”, por exemplo, tivemos uma amostra eloqüente disso no modo

como Frei Lourenço admoesta Romeu contra os riscos de se tornar uma “fera feminil

inconstante” – ou seja, o oposto dos atributos curiais (virilidade, discernimento,

comedimento e engenho) que se esperava encontrar associados à dignidade ou pessoa

social de um cavalheiro primogênito da casa nobre Montéquio.

Quando se refere a reis (ou mesmo a outras instâncias de autoridade

governativa), a expectativa moral que está implícita no tema da desfiguração da honra é

sempre a mesma: independentemente dos pendores e talentos pessoais de cada rei, este

deveria, antes de tudo, conformar as suas ações e os seus humores pessoais à dignidade

institucional que estivesse encarnando (no caso especificado, a dignidade régia) e, por

isso mesmo, deveria guardar no silêncio de seu coração tudo aquilo que, se fosse

externado, poderia criar efeitos práticos perigosos ou destrutivos para a manutenção da

corporidade estatal. Nesses termos, um rei ímpio ou indigno não seria aquele que

mentisse a respeito de seus pensamentos, desejos ou humores mais secretos, mas sim

aquele que, não sabendo controlar os seus pendores pessoais, fosse inconstante e

deixasse-se levar por caprichos pessoais que deformassem os efeitos práticos dos

atributos de seu self contingente ou máscara social no “teatro do mundo”.

O duque de Gloucester, na peça “Ricardo III”, ao tornar-se rei, é um exemplo

eloqüente de desfiguração da honra da dignidade régia, pois não poupa a própria honra

do irmão (Eduardo IV) e da mãe (Duquesa de York) em seu projeto pessoal de poder.

No entanto, diferentemente de Romeu, Ricardo não é uma “mal formada fera em forma

de homem e mulher”, mas a figuração do vilão dramático portador de uma virilidade

demoníaca (ou masculinidade desregrada) oriunda do esmorecimento da autoridade

patriarcal no interior da casa ducal de York. Assim, com tais caracteres, Ricardo torna

imprevisíveis e inseguras tanto a honra quanto as integridades física e patrimonial dos

membros do corpo político, particularmente porque as suas mudanças súbitas de humor,

as suas exorbitantes desconfianças e os seus crimes hediondos que sequer parecem

justificáveis por qualquer necessidade pública impedem o assentamento de qualquer

senso contratual de adequação comportamental e de previsibilidade de ação dos

indivíduos no seio das instituições sociais e políticas.

Portanto, como tivemos oportunidade de perceber, a preservação da honra, do

self institucional ou da máscara social, a capacidade de (auto-)edificação do indivíduo e

um senso aguçado de ocasião que delimitasse ou conformasse adequadamente as

corporalidades físico-psicológicas às corporidades institucionais fundadoras da ordem

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337

pública são expectativas de práticas sociais e políticas recorrentemente expressas nos

patrimônios retórico-semântico e temático das peças “Ricardo III” e “Romeu e

Julieta”. Tais índices de valor devem servir como parâmetros tanto para o príncipe

quanto para qualquer indivíduo, nome, família, dinastia ou “casa” que corporifique uma

dignidade política ou social. Em todo caso, como pudemos notar, esses índices de valor

convergem para o mesmo ponto: a moral do parecer, que é justamente, como destaquei

ao longo deste trabalho, o índice de valor estruturante e evidenciador de um processo de

individuação e de um processo de despersonificação das instituições sociais e políticas

que são característicos da configuração do Estado no Antigo Regime. Afinal, é na

obrigação de assemelhar-se externamente às virtudes autônomas da dignidade

principesca – tal como sugere modelarmente Maquiavel – que um monarca deixa de ser

um cavalheiro medieval (impulsivo, instável, imprevisível e aventureiro) para se tornar

um príncipe moderno; deixa de confundir-se com seus velhos domínios medievais e

passa a corporificar – abstratamente – a própria idéia de Estado.

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Anexo Documental

Tabela Analítica de Chamadas Editoriais de in-quartos associados ao nome “Shakespeare”, 1594-1637

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ANEXO DOCUMENTAL

Tabela Analítica de Chamadas Editoriais de in -quartos associados ao nome “Shakespeare”, 1594-1637

Peças Impressas (In-Quartos)

Ano Direito de Venda

Direito de Impressão

Chamada de Frontistpício

Classificação

Referência a texto

ampliado ou corrigido

Comad

res Alegres de Windsor

1602 Arthur Johnson

Thomas Creede

A most pleasaunt and excellent conceited comedie, of Syr Iohn

Falstaffe, and the merrie wiues of Windsor. Entermixed with sundrie variable and pleasing humors, of

Syr Hugh the Welch knight, Iustice Shallow, and his wise cousin M. Slender. With the

swaggering vaine of Auncient Pistoll, and Corporall Nym. By

William Shakespeare. As it hath bene diuers times acted by the

Right Honorable my Lord Chamberlaines seruants. Both before her Maiestie, and else-

where.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

Comadres Alegres de Windsor

(*) Referência única, apenas foi alterada, para efeito de classificação na tabela analítica, a ordem dos nomes dos “livreiros”, devido à sobreposição de “copyrights”.

1619 (*)

Arthur Johnson [i.e. Thomas Pavier] (*)

William Jaggard A most pleasant and excellent conceited comedie, of Sir Iohn

Falstaffe, and the merrie wiues of Windsor. With the swaggering vaine of Auncient Pistoll, and Corporall Nym. Written by W.

Shakespeare.

Referência ao “poeta cênico”.

Comadres Alegres de Windsor

(*) Referência única, apenas foi alterada, para efeito de classificação na tabela analítica, a ordem dos nomes dos “livreiros”, devido à sobreposição de “copyrights”.

1619 (*)

Thomas Pavier [sobre Arthur Johnson] (*)

William Jaggard A most pleasant and excellent conceited comedie, of Sir Iohn

Falstaffe, and the merrie wiues of Windsor. With the swaggering vaine of Auncient Pistoll, and Corporall Nym. Written by W.

Shakespeare.

Referência ao “poeta cênico”.

Comadres Alegres de Windsor

1630 Thomas Harper

R. Meighen

The merry wiues of Windsor. With the humours of Sir Iohn Falstaffe, as also the swaggering vaine of

Ancient Pistoll, and Corporall Nym. Written by William Shake-

speare. Newly corrected.

Referência ao “poeta cênico”.

OK

Hamlet 1603 Nicholas Ling John Trundell

Valentine Simmes

The tragicall historie of Hamlet Prince of Denmarke by William Shake-speare. As it hath been

diuerse times acted by his Highnesse seruants in the cittie of

London: as also in the two vniuersities of Cambridge and

Oxford, and else-where.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

Hamlet 1604 Nicholas Ling

James Roberts The tragicall historie of Hamlet, Prince of Denmarke. By William Shakespeare. Newly imprinted

and enlarged to almost as much againe as it was, according to the

true and perfect coppie.

Referência ao “poeta cênico”.

OK

Hamlet 1605 Nicholas James Roberts The tragicall historie of Hamlet, Prince of Denmarke. By William

Referência ao OK

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340

(variante de 1604)

Ling Shakespeare. Newly imprinted and enlarged to almost as much

againe as it was, according to the true and perfect coppie.

“poeta cênico”.

Hamlet 1611 John Smethwicke

George Eld The tragedy of Hamlet Prince of Denmarke. By William

Shakespeare. Newly imprinted and enlarged to almost as much

againe as it was, according to the true and perfect coppy.

Referência ao “poeta cênico”.

OK

Hamlet 1622 John Smethwicke

William Stansby The tragedy of Hamlet Prince of Denmarke. Newly imprinted and

inlarged, according to the true and perfect copy lastly printed. By

William Shakespeare.

Referência ao “poeta cênico”.

OK

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341

Hamlet

1637 John

Smethwicke R. Young The tragedy of Hamlet Prince of

Denmark. Newly imprinted and inlarged, according to the true and

perfect copy last printed. By William Shakespeare.

Referência ao “poeta cênico”.

OK

Henrique IV, parte I

1598 Chamado in-quarto “0”(zero), conhecido por apenas um

fragmento.

Henrique IV, parte I

1598 Andrew Wise

Peter Short

The history of Henrie the Fourth; with the battell at Shrewsburie,

betweene the King and Lord Henry Percy, surnamed Henrie Hotspur of the north. With the humorous conceits of Sir Iohn

Falstalffe [sic].

Sem referência à patronagem, à

performance ou ao “poeta cênico”.

Henrique IV, parte I

1599 Andrew Wise

Simon Stafford

The history of Henrie the Fourth: with the battell at Shrewsburie,

betweene the King and Lord Henry Percy, surnamed Henry Hotspur of the north. With the humorous conceits of Sir Iohn

Falstalffe [sic]. Newly corrected by W. Shake-speare.

Referência ao “poeta cênico”.

OK

Henrique IV, parte I

1604 Mathew Law

Valentine Simmes

The history of Henrie the Fourth, with the battell at Shrewsburie, betweene the King, and Lord

Henry Percy, surnamed Henry Hotspur of the north. With the humorous conceits of Sir Iohn

Falstalffe [sic]. Newly corrected by W. Shake-speare.

Referência ao “poeta cênico”.

OK

Henrique IV, parte I

1608 Mathew Law John Windet The history of Henry the fourth, with the battell at Shrewseburie,

betweene the King, and Lord Henry Percy, surnamed Henry Hotspur of the north. With the

humorous conceites of Sir Iohn Falstalffe [sic]. Newly corrected by

W. Shake-speare.

Referência ao “poeta cênico”.

OK

Henrique IV, parte I

1613 Mathew Law William White

The history of Henrie the fourth, with the battell at Shrewseburie,

betweene the King, and Lord Henrie Percy, surnamed Henrie Hotspur of the north. With the

humorous conceites of Sir Iohn Falstaffe. Newly corrected by W.

Shake-speare.

Referência ao “poeta cênico”.

OK

Henrique IV, parte I

1622 Mathew Law Thomas Purfoot

The historie of Henry the Fourth. With the battell at Shrewseburie,

betweene the King, and Lord Henry Percy, surnamed Henry Hotspur of the north. With the humorous conceits of Sir Iohn Falstaffe. Newly corrected. By

William Shake-speare.

Referência ao “poeta cênico”.

OK

Henrique IV, parte I

1632 William Sheares

John Norton The historie of Henry the Fourth: with the battell at Shrewesbury,

betweene the King, and Lord Henry Percy, surnamed Henry Hotspur of the north. With the humorous conceits of Sir Iohn Falstaffe. Newly corrected, by

William Shake-speare.

Referência ao “poeta cênico”.

OK

Henrique IV, parte II

1600 (in-quarto

A)

Andrew Wise William Aspley

Valentine Simmes

The second part of Henrie the fourth, continuing to his death,

and coronation of Henrie the fift. With the humours of Sir Iohn

Falstaffe, and swaggering Pistoll. As it hath been sundrie times publikely acted by the Right

Honourable, the Lord Chamberlaine his seruants.

Written by William Shakespeare.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

Henrique IV, parte II

1600 (in-quarto

B)

Andrew Wise William

Valentine Simmes

The second part of Henrie the fourth, continuing to his death,

and coronation of Henrie the fift.

Referência à patronagem, à

performance e ao

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342

Aspley With the humours of Sir Iohn

Falstaffe, and swaggering Pistoll. As it hath been sundrie times publikely acted by the Right

Honourable, the Lord Chamberlaine his seruants.

Written by William Shakespeare.

“poeta cênico”.

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343

Henriq

ue V

1600 Thomas Millington John Busby

Thomas Creede

The cronicle history of Henry the fift, with his battell fought at Agin

Court in France. Togither with Auntient Pistoll. As it hath bene sundry times playd by the Right

Honorable the Lord Chamberlaine his seruants.

Referência à patronagem e à

performance, mas não ao “poeta

cênico”.

Henrique V

1602 Thomas Pavier

Thomas Creede The chronicle history of Henry the fift, with his battell fought at Agin Court in France. Together with Auntient Pistoll. As it hath bene sundry times playd by the Right

Honorable the Lord Chamberlaine his seruants.

Referência à patronagem e à

performance, mas não ao “poeta

cênico”.

Henrique V

1619 (sobre 1608)

Thomas Pavier

William Jaggard The chronicle history of Henry the fift, with his battell fought at Agin Court in France. Together with Ancient Pistoll. As it hath bene sundry times playd by the Right

Honourable the Lord Chamberlaine his seruants.

Referência à patronagem e à

performance, mas não ao “poeta

cênico”.

Henrique VI, parte II

1594 Thomas Millington

Thomas Creede

The first part of the contention betwixt the two famous houses of

Yorke and Lancaster, with the death of the good Duke

Humphrey: and the banishment and death of the Duke of Suffolke, and the tragicall end of the proud Cardinall of Winchester, with the notable rebellion of Iacke Cade:

and the Duke of Yorkes first claim unto the crowne.

Sem referência à patronagem, à

performance ou ao “poeta cênico”.

Henrique VI, parte II

1600 Thomas Millington

Valentine Simmes

The first part of the contention betwixt the two famous houses of

Yorke and Lancaster, with the death of the good Duke

Humphrey: and the banishment and death of the Duke of Suffolke, and the tragical end of the prowd Cardinall of Winchester, with the notable rebellion of Iacke Cade:

and the Duke of Yorkes first clayme to the crowne.

Sem referência à patronagem, à

performance ou ao “poeta cênico”.

Henrique VI, parte II

Atenção: Nesta edição, as partes II e III de “Henrique VI” foram publicadas juntas.

1619 Thomas Pavier

William Jaggard The whole contention betweene the two famous houses,

Lancaster and Yorke. With the tragicall ends of the good Duke

Humfrey, Richard Duke of Yorke, and King Henrie the sixt. Diuided

into two parts: and newly corrected and enlarged. Written by William Shakespeare, Gent.

Referência ao “poeta cênico”.

OK

Henrique VI, parte III

1595 (primeiro in-octavo)

Thomas Millington

Peter Short

The true tragedie of Richard Duke of York, and the death of good King Henrie the Sixt, with the

whole contention betweene the two houses Lancaster and Yorke, as it was sundrie times acted by

the Right Honourable the Earle of Pembrooke his seruants.

Referência à patronagem e à

performance, mas não ao “poeta

cênico”.

Henrique VI, parte III

1600 Thomas Millington

William White The true tragedie of Richarde Duke of Yorke, and the death of

good King Henrie the sixt: with the whole contention betweene the

two houses, Lancaster and Yorke; as it was sundry times acted by

the Right Honourable the Earle of Pembrooke his seruantes.

Referência à patronagem e à

performance, mas não ao “poeta

cênico”.

Henrique VI, parte III Atenção: Nesta edição, as partes II e III de “Henrique VI” foram publicadas juntas.

1619 Thomas Pavier

William Jaggard The whole contention betweene the two famous houses,

Lancaster and Yorke. With the tragicall ends of the good Duke

Humfrey, Richard Duke of Yorke, and King Henrie the sixt. Diuided

into two parts: and newly corrected and enlarged. Written by William Shakespeare, Gent.

Referência ao “poeta cênico”.

OK

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344

Megera Domada

1631 John Smethwicke

William Stansby A wittie and pleasant comedie called the taming of the shrew. As

it was acted by his Maiesties seruants at the Blacke Friers and

the Globe. Written by Will. Shakespeare.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

Mercador de Veneza

1600 Thomas Heyes

James Roberts The most excellent historie of the merchant of Venice. With the

extreame crueltie of Shylocke the Iewe towards the sayd merchant, in cutting a iust pound of his flesh: and the obtayning of Portia by the choyse of three chests. As it hath beene diuers times acted by the Lord Chamberlaine his seruants. Written by William Shakespeare.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

Mercador de Veneza

1619 Thomas Pavier

William Jaggard The excellent history of the merchant of Venice. With the

extreme cruelty of Shylocke the Iew towards the saide merchant,

in cutting a iust pound of his flesh. And the obtayning of Portia, by

the choyse of three caskets. Written by W. Shakespeare.

Referência ao “poeta cênico”.

Mercador de Veneza

1637 Laurence Hayes

Marmaduke Parsons

The most excellent historie of the merchant of Venice. With the

extreame crueltie of Shylocke the Iewe towards the said merchant,

in cutting a just pound of his flesh: and the obtaining of Portia by the choice of three chests. As it hath beene divers times acted by the Lord Chamberlaine his servants. Written by William Shakespeare.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

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345

Muito

barulho por nada

1600 Andrew Wise William Aspley

Valentine Simmes

Much adoe about nothing. As it hath been sundrie times publikely acted by the Right Honourable,

the Lord Chamberlaine his seruants. Written by William

Shakespeare.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

Otelo Atenção: Esta versão de “Otelo” é a primeira dos ‘good’ in-quartos de “Shakespeare” que divide o texto em atos. Também figura entre os poucos in-quartos, entre 1594 e 1637, que possuem páginas numeradas.

1622 Thomas Walkley

Nicholas Okes

The tragœdy of Othello, the Moore of Venice. As it hath beene diuerse times acted at the Globe,

and at the Black-Friers, by his Maiesties seruants. Written by

William Shakespeare.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

Otelo Atenção: Impresso a partir do in-quarto de 1622, com correções possivelmente derivadas do fólio de 1623.

1630 Richard Hawkins

Augustine Mathewes

The tragœdy of Othello, the Moore of Venice. As it hath beene diuerse times acted at the Globe,

and at the Black-Friers, by his Maiesties seruants. Written by

William Shakespeare.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

Péricles Obra não incluída no fólio de 1623.

1609 Henry Gosson

Thomas Creede William White

The late, and much admired play, called Pericles, Prince of Tyre.

With the true relation of the whole historie, aduentures, and fortunes of the said prince: as also, the no

lesse strange, and worthy accidents, in the birth and life, of his daughter Mariana. As it hath been diuers and sundry times

acted by his Maiesties seruants, at the Globe on the Banck-side.

By William Shakespeare.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

Péricles Obra não incluída no fólio de 1623.

1609 (segundo in-quarto)

Henry Gosson

Thomas Creede William White

The late, and much admired play, called Pericles, Prince of Tyre.

With the true relation of the whole historie, aduentures, and fortunes of the said prince: as also, the no

lesse strange, and worthy accidents, in the birth and life, of his daughter Mariana. As it hath been diuers and sundry times

acted by his Maiesties seruants, at the Globe on the Banck-side.

By William Shakespeare.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

Péricles Obra não incluída no fólio de 1623.

1611

Simon Stafford

The late, and much admired play, called Pericles, Prince of Tyre.

With the true relation of the whole history, aduentures, and fortunes of the sayd prince: as also, the no

lesse strange, and worthy accidents, in the birth and life, of his daughter Mariana. As it hath been diuers and sundry times

acted by his Maiestyes seruants, at the Globe on the Banck-side.

By William Shakespeare.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

Péricles Obra não incluída no fólio de 1623.

1619 Thomas Pavier

William Jaggard The late, and much admired play, called, Pericles, Prince of Tyre.

With the true relation of the whole history, aduentures, and fortunes of the saide prince. Written by W.

Shakespeare.

Referência ao “poeta cênico”.

Péricles Obra não incluída no fólio de 1623.

1630 Robert Bird

John Norton The late, and much admired play, called Pericles, Prince of Tyre.

With the true relation of the whole history, aduentures, and fortunes of the sayd prince: written by Will.

Shakespeare:

Referência ao “poeta cênico”.

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346

Péricle

s Obra não incluída no fólio de 1623.

1630 (variante)

Robert Bird

John Norton The late, and much admired play, called Pericles, Prince of Tyre.

With the true relation of the whole history, aduentures, and fortunes of the sayd prince: written by Will.

Shakespeare:

Referência ao “poeta cênico”.

Péricles Obra não incluída no fólio de 1623.

1635

Thomas Cotes The late, and much admired play, called Pericles, Prince of Tyre.

With the true relation of the whole history, adventures, and fortunes of the said prince. Written by W.

Shakespeare.

Referência ao “poeta cênico”.

Rei Lear

1608 Nathaniel Butter

Nicholas Okes

M. William Shak-speare: his true chronicle historie of the life and death of King Lear and his three daughters. With the vnfortunate life of Edgar, sonne and heire to

the Earle of Gloster, and his sullen and assumed humor of

Tom of Bedlam: as it was played before the Kings Maiestie at

Whitehall vpon S. Stephans night in Christmas hollidayes. By his

Maiesties seruants playing vsually at the Gloabe on the Bancke-side.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

Rei Lear

1619 (sobre 1608)

Nathaniel Butter

William Jaggard

M. William Shake-speare, his true chronicle history of the life and

death of King Lear, and his three daughters. With the vnfortunate life of Edgar, sonne and heire to the Earle of Glocester, and his sullen and assumed humour of

Tom of Bedlam. As it was plaied before the Kings Maiesty at

White-hall, vppon S. Stephens night, in Christmas hollidaies. By his Maiesties seruants, playing

vsually at the Globe on the Banck-side.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

Ricardo II

1597 Andrew Wise

Valentine Simmes

The tragedie of King Richard the second. As it hath been publikely acted by the Right Honourable the Lorde Chamberlaine his seruants.

Referência à patronagem e à

performance, mas não ao “poeta

cênico”.

Ricardo II

1598 Andrew Wise

Valentine Simmes

The tragedie of King Richard the second. As it hath been publikely acted by the Right Honourable the Lorde Chamberlaine his seruants.

By William Shake-speare.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

Ricardo II

1598 (Terceiro in-quarto)

Andrew Wise

Valentine Simmes

The tragedie of King Richard the second. As it hath been publikely acted by the Right Honourable the Lorde Chamberlaine his seruants.

By William Shake-speare.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

Ricardo II

1608 Mathew Law William White

The tragedie of King Richard the second. As it hath been publikely acted by the Right Honourable the Lorde Chamberlaine his seruants.

By William Shake-speare.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

Ricardo II

1608 (variante)

Mathew Law William White

The tragedie of King Richard the second: With new additions of the

Parliament sceane, and the deposing of King Richard, as it hath been lately acted by the

Kinges Maiesties seruantes, at the Globe. By William Shake-

speare. (*)

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

OK (*) Durante os

últimos e conturbados

anos do governo de Elizabeth, o enredo de

“Ricardo II” foi posto sob suspeita,

particularmente a cena da

deposição, pois parecia

alegorizar o mesmo destino

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347

contra

Elizabeth. Por isso, em suas

primeiras impressões, as

versões da peça não

continham a cena da

deposição.

Ricardo II

1615 Mathew Law Thomas Purfoot The tragedie of King Richard the second: with new additions of the

Parliament sceane, and the deposing of King Richard. As it hath been lately acted by the

Kinges Maiesties seruants, at the Globe. By William Shake-speare.

(*)

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

OK (*) Durante os

últimos e conturbados

anos do governo de Elizabeth, o enredo de

“Ricardo II” foi posto sob suspeita,

particularmente a cena da

deposição, pois parecia

alegorizar o mesmo destino

contra Elizabeth. Por isso, em suas

primeiras impressões, as

versões da peça não

continham a cena da

deposição.

Ricardo II

1634 John Norton The life and death of King Richard the second. With new additions of

the Parliament scene, and the deposing of King Richard. As it hath beene acted by the Kings

Majesties servants, at the Globe. By William Shakespeare.

(*)

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

OK (*) Durante os

últimos e conturbados

anos do governo de Elizabeth, o enredo de

“Ricardo II” foi posto sob suspeita,

particularmente a cena da

deposição, pois parecia

alegorizar o mesmo destino

contra Elizabeth. Por isso, em suas

primeiras impressões, as

versões da peça não

continham a cena da

deposição.

Ricardo III 1597 Andrew Wise

Valentine Simmes Peter Short

The tragedy of King Richard the third. Containing, his treacherous plots against his brother Clarence:

the pittiefull murther of his iunocent [sic] nephewes: his

tyrannicall vsurpation: with the whole course of his detested life, and most deserued death. As it hath been lately acted by the Right Honourable the Lord Chamberlaine his seruants.

Referência à patronagem e à

performance, mas não ao “poeta

cênico”.

Ricardo III 1598 Andrew Wise

Thomas Creede The tragedy of King Richard the third. Conteining his treacherous

plots against his brother Clarence: the pitiful murther of his innocent

nephewes: his tyrannicall vsurpation: with the whole course

of the detested life, and most

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

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348

deserued death. As it hath been

lately acted by the Right Honourable the Lord

Chamberlaine his seruants. By William Shake-speare.

Ricardo III 1602 Andrew

Wise Thomas Creede The tragedie of King Richard the

third. Conteining his treacherous plots against his brother Clarence: the pittifull murther of his innocent

nephewes: his tyrannicall vsurpation: with the whole course

of his detested life, and most deserued death. As it hath bene

lately acted by the Right Honourable the Lord

Chamberlaine his seruants. Newly augmented, by William

Shakespeare.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

OK

Ricardo III 1605 Mathew Law Thomas Creede The tragedie of King Richard the third. Conteining his treacherous

plots against his brother Clarence: the pittifull murther of his innocent

nephewes: his tyrannicall vsurpation: with the whole course

of his detested life, and most deserued death. As it hath bin

lately acted by the Right Honourable the Lord

Chamberlaine his seruants. Newly augmented, by William Shake-

speare.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

OK

Ricardo III 1612 Mathew Law Thomas Creede The tragedie of King Richard the third. Containing his treacherous

plots against his brother Clarence: the pittifull murther of his innocent

nephewes: his tyrannicall vsurpation: with the whole course

of his detested life, and most deserued death. As it hath beene

lately acted by the Kings Maiesties seruants. Newly

augmented, by William Shake-speare.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

OK

Ricardo III 1622 Mathew Law Thomas Purfoot The tragedie of King Richard the third. Contayning his treacherous plots against his brother Clarence: the pittifull murder of his innocent

nephewes: his tyrannicall vsurpation: with the whole course

of his detested life, and most deserued death. As it hath been

lately acted by the Kings Maiesties seruants. Newly

augmented. By William Shake-speare.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

OK

Ricardo III

1629 Mathew Law John Norton The tragedie of King Richard the third. Contayning his trecherous

plots, against his brother Clarence: the pittifull murther of his innocent nepthewes [sic]: his

tiranous vsurpation: with the whole course of his detested life, and most deserued death. As it hath beene lately acted by the Kings Maiesties sernauts [sic].

Newly agmented [sic]. By William Shake-speare.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

OK

Ricardo III

1634 John Norton The tragedie of King Richard the third. Contayning his treacherous

plots, against his brother Clarence: the pitifull murder of his innocent nephewes: his tyranous vsurpation: with the whole course

of his detested life, and most deserued death. As it hath beene

lately acted by the Kings Maiesties seruants. Written by

William Shake-speare.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

Romeu e Julieta 1597 John Danter An excellent conceited tragedie of Referência à

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349

Edward Allde Romeo and Iuliet. As it hath been

often (with great applause) plaid publiquely, by the Right

Honourable the L. of Hunsdon his seruants.

patronagem e à performance, mas

não ao “poeta cênico”.

Romeu e Julieta 1599 Cuthbert Burby

Thomas Creede The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo

and Iuliet. Newly corrected, augmented, and amended: as it

hath bene sundry times publiquely acted, by the Right Honourable

the Lord Chamberlaine his seruants.

Referência à patronagem e à

performance, mas não ao “poeta

cênico”.

OK

Romeu e Julieta 1609 John Smethwicke

John Windet The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo

and Iuliet. As it hath beene sundrie times publiquely acted, by

the Kings Maiesties seruants at the Globe. Newly corrected, augmented, and amended:

Referência à patronagem e à

performance, mas não ao “poeta

cênico”.

OK

Romeu e Julieta 1622 John Smethwicke

William Stansby The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo

and Iuliet. As it hath beene sundrie times publikely acted, by the Kings Maiesties seruants at

the Globe. Newly corrected, augmented, and amended.

Referência à patronagem e à

performance, mas não ao “poeta

cênico”.

OK

Romeu e Julieta 1622

(variante de 1622)

John Smethwicke

William Stansby The most excellent and lamentable tragedie, of Romeo

and Iuliet. As it hath beene sundrie times publikely acted, by the Kings Maiesties seruants at the Globe. Written by W. Shake-

speare. Newly corrected, augmented, and amended:

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

OK

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Romeu

e Julieta

1637 John Smethwicke

R. Young The most excellent and lamentable tragedie of Romeo

and Iuliet. As it hath been sundry times publikely acted by the Kings Maiesties servants at the Globe.

Written by W. Shake-speare. Newly corrected, augmented, and

amended.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

OK

Sonhos de uma Noite de Verão

1600 Thomas Fisher

Richard Bradock

A midsommer nights dreame. As it hath beene sundry times

publickley acted, by the Right Honourable, the Lord

Chamberlaine his seruants. Written by William Shakespeare.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

Sonhos de uma Noite de Verão (*) Referência única, apenas foi alterada, para efeito de classificação na tabela analítica, a ordem dos nomes dos “oficiais tipógrafos”, devido à sobreposição de “copyrights”.

1619 (sobre 1600)

(*)

James Roberts [i.e. William Jaggard e Thomas Pavier] (*)

A midsommer nights dreame. As it hath beene sundry times

publikley acted, by the Right Honourable, the Lord

Chamberlaine his seruants. Written by William Shakespeare.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

Sonhos de uma Noite de Verão (*) Referência única, apenas foi alterada, para efeito de classificação na tabela analítica, a ordem dos nomes dos “oficiais tipógrafos”, devido à sobreposição de “copyrights”.

1619 (sobre 1600)

(*)

Thomas Pavier

William Jaggard [sobre James Roberts] (*)

A midsommer nights dreame. As it hath beene sundry times

publikley acted, by the Right Honourable, the Lord

Chamberlaine his seruants. Written by William Shakespeare.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

Tito Andrônico

1594 Thomas Millington Edward White

John Danter

The most lamentable Romaine tragedie of Titus Andronicus as it

was plaide by the Right Honourable the Earle of Darbie,

Earle of Pembrooke, and Earle of Sussex their seruants.

Referência à patronagem e à

performance, mas não ao “poeta

cênico”.

Tito Andrônico

1600 Edward White

James Roberts

The most lamentable Romaine tragedie of Titus Andronicus. As it hath sundry times beene playde

by the Right Honourable the Earle of Pembrooke, of Darbie, the Earle of Darbie, the Earle of

Sussex, and the Lorde Chamberlaine theyr seruants.

Referência à patronagem e à

performance, mas não ao “poeta

cênico”.

Tito Andrônico

1611 Edward White

Edward Allde

The most lamentable Romaine tragedie of Titus Andronicus. As it hath sundry times beene plaide by the Kings Maiesties seruants.

Referência à patronagem e à

performance, mas não ao “poeta

cênico”.

Trabalhos de Amor Perdidos

1598 Cutbert Burby

William White

A pleasant conceited comedie called, Loues labors lost. As it

was presented before her Highnes this last Christmas.

Newly corrected and augmented by W. Shakespere.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

OK

Trabalhos de Amor Perdidos

1631 John Smethwicke

William Stansby Loues labours lost. A wittie and pleasant comedie, as it was acted by His Maiesties seruants at the

Blacke-Friers and the Globe. Written by William Shakespeare.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

Tróilo e Créssida

1609 (in-quarto

A)

R. Bonian H. Walley

George Eld The historie of Troylus and Cresseida. As it was acted by the Kings Maiesties seruants at the

Globe. Written by William

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

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351

Obs.: Em alguns exemplares do fólio de 1623, esta peça não foi incluída, possivelmente por problemas de copyright. Naqueles em que aparece, ficou localizada entre “Henrique VIII” e “Coriolano”

Shakespeare.

Tróilo e Créssida Obs.: Em alguns exemplares do fólio de 1623, esta peça não foi incluída, possivelmente por problemas de copyright. Naqueles em que aparece, ficou localizada entre “Henrique VIII” e “Coriolano”

1609 (in-quarto

B)

R. Bonian H. Walley

George Eld The famous historie of Troylus and Cresseid. Excellently

expressing the beginning of their loues, with the conceited wooing

of Pandarus Prince of Licia. Written by William Shakespeare.

Referência ao “poeta cênico”.

Atenção: Esta versão

se diferencia do in-quarto A somente na chamada editorial de venda no frontispício,

em que não se faz nenhuma menção à performance, e pela adição de uma folha que se segue àquela

do frontispício, intitulada com “A

neuer writer, to na euer reader. Newes”,

que oferece “a new play, neuer stal’d with the Stage”.

Two Nobles Kinsmen (*)

(*)Sem Título no Mercado Editorial Brasileiro. Obra não incluída no fólio de 1623.

1634 John Waterson

Thomas Cotes The two noble kinsmen: presented at the Blackfriers by the

Kings Maiesties servants, with great applause: written by the

memorable worthies of their time; Mr. Iohn Fletcher, and Mr. William

Shakespeare. Gent.

Referência à patronagem, à

performance e ao “poeta cênico”.

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352

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OUTLET BOOK COMPANY. The Complete Works of William Shakespeare. New York/Avenel: Gramercy Books, 1990. ROBERTS, James; HEYES, Thomas. The most excellent historie of the merchant of Venice..., by William Shakespeare. Roberts-Heyes, 1600. (A versão fotográfica que utilizo está disponível no sítio virtual da BRITISH LIBRARY, seção “Shakespeare Treasures”. No entanto, uma versão de texto digital que respeita, com menos falhas, as marcas editoriais de cada texto pode ser encontrada no sítio Internet Shakespeare Editions da University of Victoria, Canadá) ROBERTS, James; LING, Nicholas. The tragicall historie of Hamlet, Prince of Denmarke, by William Shakespeare. London: Roberts-Ling, 1604-05. (A versão fotográfica que utilizo está disponível no sítio virtual da BRITISH LIBRARY, seção “Shakespeare Treasures”. No entanto, uma versão de texto digital que respeita, com menos falhas, as marcas editoriais de cada texto pode ser encontrada no sítio Internet Shakespeare Editions da University of Victoria, Canadá) SIMMES, Valentine; LING, Nicholas. The tragicall historie of Hamlet Prince of Denmarke, by William Shake-speare. London: Simmes-Ling, 1603. (A versão fotográfica que utilizo está disponível no sítio virtual da BRITISH LIBRARY, seção “Shakespeare Treasures”. No entanto, uma versão de texto digital que respeita, com menos falhas, as marcas editoriais de cada texto pode ser encontrada no sítio Internet Shakespeare Editions da University of Victoria, Canadá) SIMMES, Valentine; WISE, Andrew. The Tragedy of King Richard the third. London: Simmes-Wise, 1597. (A versão fotográfica que utilizo está disponível no sítio virtual da BRITISH LIBRARY, seção “Shakespeare Treasures”. No entanto, uma versão de texto digital que respeita, com menos falhas, as marcas editoriais de cada texto pode ser encontrada no sítio Internet Shakespeare Editions da University of Victoria, Canadá) WELLS, Stanley; TAYLOR, Gary (eds.). The Oxford Shakespeare: The Complete Works. Oxford: Claredon Press, 1998.

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