estado da arte 14 - ucdigitalis | biblioteca digital da ... · eterna busca (coimbra, 2001), a...

26
José Ribeiro Ferreira Estado da Arte A M O R E M O R T E N A C ULTURA CLÁSSICA Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

Upload: vutu

Post on 15-Aug-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Estado da Arte

14

Imprensa da Universidade de CoimbraCoimbra University Press

2013

JOSÉ

RIB

EIR

O F

ER

RE

IRA

• AM

OR

E M

OR

TE

NA

CU

LTU

RA

CL

ÁSSIC

A

José Ribeiro Ferreira

Estado da Arte

José Ribeiro Ferreira, Professor Catedrático Jubilado da Universidade de Coimbra, tem feito investigação e publicado trabalhos no âmbito da cultura clássica, da História Antiga, da Arte Grega; da receção da cultura clássica nas culturas posteriores. Entre outras cadeiras, lecionou História da Cultura Clássica, História da Antiguidade Clássica, Literatura Grega, Arte Grega, Mitologia Greco-Romana. Exerceu vários cargos académicos na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. É Presidente da Direção da ANAI – Associação Nacional de Apoio ao Idoso.

Tem mais de centena e meia de trabalhos — entre livros, artigos em revistas e enciclopédias — publicados em Portugal e no estrangeiro, com realce para Hélade e Helenos. 1 – Génese e Evolução de um Conceito (Coimbra, 21993), A Democracia na Grécia Antiga (Coimbra, 1990), A Grécia Antiga. Sociedade e Política (Lisboa, 22004) Civilizações Clássicas 1 – Grécia (Lisboa, 1996), Manuel Alegre: Ulisses ou os Caminhos da Eterna Busca (Coimbra, 2001), A Busca da Beleza – A arte e os artistas na Grécia Antiga I – Arquitectura Grega (em colaboração Coimbra, Coleção “Fluir Perene”, 2008), Mitos das Origens. Rios e Raízes (Coimbra, 2008), Três Mestres Três Lições Três Caminhos (Coimbra, 2009), Dez Grandes Estadistas Atenienses (em colaboração com Delfim F. Leão, Lisboa, 2010).

No domínio da poesia, publicou: Pesa o momento a eterni dade (Coimbra, 1984), Veleiro da areia (Coimbra, 1985), O santuário e o oráculo (Coimbra, 1985), Ficta Imagem (Coimbra, 1992), Variações sobre o tema de Síbaris (Coimbra, 1994), Telhas de outro alpendre (Coimbra, 1994), Olhos no Presente (Coimbra, 1999), A Outra Face do Labirinto (Coimbra, 2002), Gaivotas (Coimbra, 2010), O Caminho e a Escolha (Coimbra, Fluir 2011).

Em junho de 2004 entrou para Rotary Club de Coimbra, de que foi Presidente no ano rotário de 2009/2010. Para o Clube tem feito algumas antologias evocativas de escritores e efemérides. Pertence ao Conselho de Administração da Fundação Rotária Portuguesa.

Amor e Morte na Cultura Clássica procura estudar, dentro da “dinâmica do mito de Eros ou o homem face à problemática do amor”, o binómio ‘amor e morte’ – ou melhor, apenas alguns aspectos ou pontos essenciais da interseção desse binómio que possam servir de paradigma e incentivo. Assim são analisados casos de amor que provoca destruição, como o de Páris e Helena ou que é causa de morte, como o de Dejanira por Héracles e o de Dido por Eneias; de amor que leva à rejeição da imortalidade para regressar para junto da pessoa amada, como acontece com Ulisses; de amor que vence a morte, de que apresento os casos de Alceste e Orfeu; sem esquecer o caso de Eros e Psique, onde a sombra da morte também paira. Por fim, coloca-se um capítulo sobre a interferência mútua de eros, pólemos e thánatos (ou seja, amor, guerra e morte), casos onde as situações se complicam e as consequências são mais gravosas.

9789892

606712

verificar medidas da capa/lombada: 10mm PANTONE Solid Coated 200C

A M O R E M O R T E N A C U L T U R AC L Á S S I C A

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

1

José Ribeiro Ferreira

Amor e Morte na Cultura Clássica

Estado da Arte

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

2

Coordenação editorial

Imprensa da Universidade de Coimbra

Email: [email protected]

URL: http://www.uc.pt/imprensa_uc

Vendas Online: http://livrariadaimprensa.uc.pt

ConCepção gráfiCa

António Barros

infografia

Mickael Silva

Imprensa da Universidade de Coimbra

exeCução gráfiCa

Gráfica de Coimbra

iSBn

978-989-26-0671-2

978-989-26-0684-2 (digital)

depóSito legal

366606/13

© Novembro 2013, ImpreNsa da UNIversIdade de CoImbr a

DOI

http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-0684-2

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

3

Sum á r io

Prefácio .............................................................................. 5

Introdução............................................................................. 9

Eroscausadedestruiçãoemorte....................................... 33

Amoremortalidade............................................................ 47

Amorcausademorte.......................................................... 59

Oamorvenceamorte........................................................ 83

AmorePsique................................................................... 109

AdialécticaentrePólemos,EroseThánatos................... 113

Abreviaturas...................................................................... 139

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

prefáCio

SempreadmireinaProf.ªDoutoraMariaHelenada

RochaPereiraohábito,ounorma,dedotarascadeiras

quelecionavadosmeiosnecessáriosaoestudodas

matérias,porpartedosalunos.Essefoiumexemplo

querecolhiequemeesforçoporpôremprática.

Amor e Morte na Cultura Clássicanascedesse

desiderato.Quandocomeceialecionaradisciplina

deMitologiaGregaeRomana, incluí,entreosas-

suntosdoprograma,oestudoda“dinâmicadomito

deErosouohomemfaceàproblemáticadoamor”

quecontemplaobinómio‘amoremorte’.Foieste

otemaqueescolhiparaestepequenovolume:ou

melhor,procureifocaraspectosoupontosessenciais

–e sublinhoqueapenas tratoalgunsexemplos–

dainterseçãodessebinómioquepossamservirde

paradigmaafuturostrabalhosdealunos.Assimsão

analisadoscasosdeamorqueprovocadestruição,

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

6

comoodePáriseHelenaouqueécausademorte,

comoodeDejaniraporHéracleseodeDidopor

Eneias;deamorquelevaàrejeiçãodaimortalidade

pararegressarpara juntodapessoaamada,como

acontececomUlisses;deamorquevenceamorte,

dequeapresentooscasosdeAlcesteeOrfeu;sem

esquecerocasodeErosePsique,ondeasombra

damortetambémpaira.Porfim,colocoumcapí-

tulosobreainterferênciamútuadeeros,pólemos

e thánatos (ou seja, amor,guerraemorte), casos

ondeassituaçõessecomplicameasconsequências

sãomaisgravosas.

PretenditransmitiraAmor e Morte na Cultura

Clássicaumaraligeirado,despojando-odecerta

cargade erudição, namedidadopossível, sem

perderqualidade científica. Por isso também se

reduziuaomínimoabibliografia.

Oque fica acimaé,quasena íntegra,oque

escrevi em 2004, no Prefácio da primeira edi-

ção deste opúsculo, saída na Ariadne Editora.

Mantenho-o, porque continua a ser válidopara

estaedição,quefoialteradaemalgunspassose

emcertoscapítulosacrescentada,emespecialna

“Introdução”.

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

7

Considereiapossibilidadedeabordaroutrosmi-

toseoutrassituações,masretardariamuitoolivro,

faceaostrabalhoseafazeresquetenhoemmãos.

Debati-metambémentredarmaiscorpoaoca-

pítulo“AmorePsique”oumantê-losemalteração.

Talvezmerecessemaisumpoucodeatenção,em

especialnoquerespeitaapossíveisinterpretações

e àsque sobreo conto se fazem.Nãome senti,

porém,comciênciaparatal.Omaisquepoderia

adiantarseriaresumirerepetiroqueoutrosjáavan-

çaram.Empróximasedições,seAmor e morte na

Cultura Clássicaasmerecer,repensareiaquestão.

Olivroagorajánãoéapenasmeu,maspassa

tambémaserdequemolê.Sedespertarointe-

ressedosleitoreseseforútilaosalunos,duplica

arecompensadogostoquetiveemescrevê-lo.

Coimbra,nodiadeS.GregórioMagno,Papae

Doutor(3desetembrode2013).

JoséRibeiroFerreira

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

introdução

Na cultura clássica oAmor (Eros, no grego)

aparecia como um deus associado a Afrodite/

Vénus,adeusadaseduçãoedaatraçãosexual.

Nostextoshelénicosmaisantigos,osPoemas

Homéricos (Ilíada e Odisseia),nãoencontramos

erospersonificado,masessapersonificaçãonadi-

vindadeErosjánossurgenaTeogoniadeHesíodo.

Vejamosessesdadosdostextosmatriciais,através

dealgunsexemplos.

Na Ilíada, sãováriososmomentosemqueo

amorestápresenteedemodogeralnãofaltaapre-

sençaetutela,declaradaouimplícita,deAfrodite/

Vénus.Vouescolhertrêsdessesmomentos,queme

parecemparadigmáticos,doisdaIlíadaeooutroda

Odisseia.UmdosexemplosdaIlíadaencontra-se

noCanto3,noepisódioemquePáris,vencidoem

confronto individual comMenelau,é retiradodo

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

10

combateporAfroditequeolevaparaotálamoe

neleincutefortedesejoporHelena.Anteacensura

de cobardiaporparte desta, opríncipe troiano

pede-lhequenãolhefalemaisemMenelauese

dediquemantesaoamor(vv.441-442:

Vamospoisparaoleitoevoltemo-nosparao

[amor(philotes).

Nuncadestamaneiraodesejo(eros)meenvolveu

[ocoração

Outropasso,quenosdáideiasignificativamente

claradospoderesdeAfrodite, colho-o também

na Ilíada,nocélebreepisódiodo‘DolodeZeus’

(Canto 14. 153-353). Parapermitir a intervenção

dePoséidon,Heradecidearmar-sedetodaasua

belezaeirtercomZeus,naesperançadeoseduzir

edeo levaradesejarunir-seaelaemamor(v.

163). Para isso, conseguequeAfrodite lhedêo

amoreodesejo(v.198),oseuirresistívelpoder

deseduçãoamorosa(14.198-199):

Dá-meagoraoamor(philótes)edesejo(hímeros)

[comquetuatodos

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

45

De imediatoo coro classifica (v. 1072)o seu

actodehorrível –deinón ergon.Destemodoo

poetamanifestaasuadesaprovação.Adesgraçada

enlouqueceradedesgosto.

Trata-sedecenacheiadepatético.Masosa-

crifício de Evadne, ao contrário do deAlceste,

napeçadomesmonome, edodeMacária nas

Fenícias, não aparece comuma finalidade útil.

Alcesteoferece-sepelomarido,paraqueeleviva,

Macária para salvar a sua cidade,mas Evadne

suicida-seporlheserimpossívelcontinuaraviver

semCapaneu.Porissodarochaselançanapira

paramorrer também e assimmisturar as suas

cinzascomasdele.Quandofalaemfeitoglorioso

ebelotriunfo,Evadneestáautilizaralinguagem

eternadosquemorremporamor.

AcenadeEvadneedeÍfis,cheiadepatético,

visa condenar as expediçõesmilitares, quantas

vezesevitáveis,mostrandoomalqueelasprovo-

cam19.Colocadanofimdapeça temporfunção

19-SobreasinterpretaçõesdacenadeEvadneedeÍfisvideH.D.F.Kitto,A Tragédia Grega II (trad.port.,Coimbra,1972),pp.70-72(apartirdeagora:Kitto,TrG);J.deRomilly,L’évolution

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

46

chamaraatençãoparaosofrimentoqueaguerra

semprecausa,sejaelaumaguerrajustaouinjusta.

AempresainsensatadeAdrastotantotrouxedore

desgraçaanívelcoletivo,aArgosenquantogrupo

social,comodevastouaexistênciaindividualde

Evadnee,pormeiodela,deÍfis20.

du pathétique d’ Exchyle a Euripide (Paris, 1980), pp 37-39; G.Zuntz,PPE,pp.12-13;Collard,Euripides: Supplices,pp.353-356ad980-1113.

20-SobreoproblemadaguerranasSuplicantesdeEurípidesvideJoséRibeiroFerreira,"AspectospolíticosnasSuplicantesdeEurípides",Humanitas37-38(1986)103-117.

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

amor e mor talidade

OutrocasodeamoresofrimentoéodeUlisses

ePenélopenaOdisseia.Sebemqueamortenão

compareçaexplicitamente,elanãodeixadeestar

implícitaporoutravia.Vejamoscomo.

Integradona expedição contraTróia,Ulisses

nela se demoroudurante dez anos, a combater

a nas peripécias que envolveramo cerco;mas,

conquistadaacidade,maisoutrosdezhaviamjá

decorrido. Todos os outros chefes aqueus já ti-

nhamregressado,edeUlissesnãohavianotícia

de que estivesse vivo oumorto.O seupalácio

viviadiasdifíceis,ocupadopelosPretendentesque

assediavamPenélope.Estacontinuavaàesperado

regressodeUlisseseprocuravaprotelaromomen-

todaescolhapormeiodetodososestratagemas:

omaisconhecidoéodateiaqueteciadediae

denoitedesmantelava(Od.19.137sqq.).

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

48

EntretantoUlisses,depoisdeperipéciasetra-

balhosvários,aportaraaumlugaredénico,ailha

deOgígia, e aí se encontrava retidopela ninfa

Calipso.Tomadadeamoresporele,oferecia-lhea

imortalidadeeumavidafeliz,seconsentisseem

ficarcomela.E,noentanto,noprimeirocontacto

quetemoscomoheróivamosencontrá-lo,afastado

dosaposentosdaninfa,juntoàpraia,sentadonum

rochedoachorarpeloregresso(Od.5.152-153):

Nãoselheenxugavamosolhosdelágrimas.

[Consumia

adocevidaasuspirarpeloregresso...........21

Denoite via-se obrigado a dormir na gruta,

contra-vontade,comaninfaqueodesejava,mas

malraiavaamanhã(Od.5.156-158)

passavaosdiassentadonasfalésiasdamargem,

[sacudidopelopranto,pelossuspirosedores,]

21 - Tradução de M. H. Rocha Pereira, Hélade (Lisboa,102009),p.81.

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

49

olhandoopélagoestéril,edeixandocairas

[lágrimas.22

Imagem impressionante do exilado. A ninfa

acabaporodeixarpartir,porordemdosdeuses.

Aindaotentacomasuabeleza,emnadainferior

àdePenélope(Od.5.203sqq.),comaprofeciadas

penassemcontaqueoesperam,antesdechegara

casa,ecomaofertadeimortalidade(Od.5.206-210):

Seemteuespíritosoubessesquantaspenas

odestinotereserva,antesdechegaresàterra

[pátria,

tuficariasaquicomigoaguardarestamorada,

eseriasimortal,emboradesejassesmuitover

tuamulher,porquemsempresuspirasdiaadia.

Na respostaUlissespedeàninfaque senão

zangue,masconfessaterconsciênciaplenadeque

Penélope,nasuaqualidadedemortal,éinferiora

umaimortalquenãoestásujeitaàvelhice.Apesar

22-TraduçãodeM.H.RochaPereira,Hélade(Lisboa,102009),p.81.

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

50

disso,prefere-aedesejaatodoomomentovoltar

paracasaeverodiadoregresso(Od.5.215-220)23.

Paraissosuportarátodasaspenasqueosdeuses

lheenviem,comotantasoutrasjásofreunomar

enaguerra.DessemodoUlissesdárespostaaos

três pontos essenciais do discurso de Calipso:

abelezadela,odesejodeleemregressaràterra

pátriaeossofrimentosqueoesperam.

Assim,obtidosdaninfaaautorizaçãodepartire

ojuramentosolenedequelhenãoarmaumacilada

(Od.5.160sqq.e182sqq.),comafã,lançaUlisses

mãoàconstruçãodajangada.Prontaesta,faz-seao

mar.Umaviolentatempestade,desencadeadapor

Poséidon,atira-oparaaterradosFeaces.Acolhido

porestescomosuplicante,narra-lhesasaventuras

porquepassoueéporelesrepatriado.EmÍtaca,

vinga-sedospretendentescomaajudadofilhoe

doporqueiroEumeuerecuperaodomíniodopa-

23-Esteepisódio,talvezconhecidoatravésdeumatraduçãodaOdisseiadeLecontedeLisle,inspirouEçadeQueirósnacom-posiçãodoconto "Perfeição".SobreoassuntovideManueldosSantosAlves,"DeEçadeQueirósaHomeroatravésdeLecontedeLisle",Arquivos do Centro Cultural Português17(1982)253-333.

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

51

lácio.SóafielPenélopeaindanãoestáconvencida

dequeseencontranapresençadeUlissesedecide

submetê-lo aumaúltimaprova.Astuciosamente

ordenaquetragamoleitoconjugalparaomégaron.

ÉentãoqueUlissesexclamaestupefacto:Mascomo

épossívelsefoifeitosobreumtroncodeoliveira

eseencontraagarradoaosolo.Certificadaagora

dequeestánaverdadenapresençadomarido–só

elesosdoisconheciamosegredodaconstrução

do leito –,Penélope retomaa alegriadeviver e

recupera«avalia,belezaeporte»que,dissera(Od.

19.124-126),lhehaviamlevado

................osimortais,quandoembarcarampara

[Ílion

osArgivos,entreosquaisseguiaUlisses,meu

[marido.

Estamosnocanto23epossivelmenteopoema

terminaria aí, comodefendemvárioshelenistas,

comoreencontrodocasal24.Nãoseriamportanto

24-Sobreabibliografiaeosdadosessenciaisdaquestãovide

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

52

autênticososcercadeoitentaúltimosversosdo

canto 23, emqueUlisses conta a Penélope, de

formabreve,assuasaventuraseocanto24,em

que as almas dos Pretendentes são conduzidas

paraoHadesporHermes,Ulissesvaivisitarseu

paiLaertes,eosdoiscomaajudadeTelémaco

lutamcontraasfamíliasdosPretendentes,atéque

Atenarestabeleceapaz.

Nestaversão,opoematerminarianoverso296

docanto23quedescrevea idadosdoisparao

leito.Setalacontecia,comomeinclinoapensar,

ésignificativoqueopoematerminecomoreen-

controdemaridoemulherecomaentradados

doisparaoquartoconjugal.

DessemodosubjacenteàOdisseiaeaotema

centraldafidelidadedosdoisespososseencontra

obinómioamor/morte.Ulissesrejeitaaimortalida-

deeprefereacompanhiaeoamordePenélope

queémortal,portantomenosperfeitaembeleza

eestaturadoqueCalipsoeaelainferior.Como

ocomentário,daautoriadeA.Heubeck,aosversos23.297-24.548dovolumeVIdaediçãodaOdisseia,daFundazioneLourenzoValla(1986,pp.317-320).

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

53

acentuaoUlissesdoconto"Perfeição"deEçade

Queirós,naspalavrasfinaisquerecusamaoferta

daNinfa:

–Ohdeusa,oirreparávelesupremomalestá

[natuaperfeição!

O homem, um sermortal e imperfeito, não

consegue viver com a perfeição absoluta.Nem

sequerapodeconseguir.Éumserperecível,por

issoestásujeitoàsmarcasdotempoeviveparedes

meiascomamorte.

OmitodeEoseTitonopareceilustraroque

seacabadedizer.NarradonoHino HoméricoV–

A Afrodite, é aduzidopela deusado amor eda

seduçãoparajustificarasuadecisãodeabandonar

Anquisesedeonãotornarimortal.

Afrodite, como vimos, é a deusa que tudo

submete ao seu domínio e em todos infunde

odocedesejo–nosdeuses,noshomens,nasaves

eemtodososanimaisqueaterraeomarnutrem.

RefereoHino (vv. 7, 33, 38)queAfrodite ilude

osamantes,demodoafazer-lhescrerqueagem

espontaneamente,quandoafinalsesujeitamauma

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

133

sofista,dadotratar-sedeumdiscursomodelo,oferece

umindíciodequeessaargumentaçãoconstituiria

umtópicododomíniopúbliconaaltura.Nãoseria

aliásexemplosemprecedênciaemEurípides,jáque

muitosdosagônes dassuaspeçassãooreflexode

debatesediscussõeshabituaisemAtenas.

Feitacombasenumaargumentaçãotradicional,

adefesadeHelenanãoéconvincente–eeraesse

precisamente o objectivo visado.Discordo, por

isso,daopiniãodeVellacott85,deque,aoculpar

Hécuba e PríamopelaGuerra de Tróia e suas

consequências, aspalavras deHelena são «uma

irónica reductio ad absurdum domesmo argu-

mentoaplicadoaelaprópria»(p.141)edeque,

aoapontarafatalidadedopoderdoamor,estáa

reclamarumdireitoqueoshomensconsideravam

exclusivamenteseu–aliberdadedeasmulheres

escolheremourejeitaremomarido(p.143).Aceito

queacenaapresentasituaçõesepassoseivados

423eII,p.151,«DieAnfangedergriechischenPoetik»,NGG1920,pp.16-17(=KleineSchriften II,pp.460-461).Preuss,DeEuripidis Helena (Leipzig,1911),data-ade414,entreasTroianas eaHelena.

85Ironic Drama, pp.138-148.

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

134

deironia,aceitotambémqueEurípidesvêamulher

«comoumaigualmeiapartedaraçahumana»(p.

144),masnãomeparecequeofaçaoupretenda

dizernestacenaepelabocadeHelena.

Hécuba,incitadapeloCoro,respondeaHelena,e

tambémmenãoparecequeaargumentaçãodarainha

seja improcedente. Se, aoacusá-lade ter seguido

de livrevontadePáris, seduzidapela suabeleza,

estáaconfirmaraconfissãodaprópriaHelenanos

versos945-947,nãosepodedizerquearainhade

Tróianãoprofiraumaúnicapalavradecontestação

àalegaçãodafilhadeZeusdetersidoimpedidade

fugirporDeífobo,depoisdamortedePáris(vv.952

sqq.)86.Nãoserádifícilverumarespostanaafirmação

dequepreferiraoluxoeareverênciadosBárbaros.

Hécuba racionaliza os deuses e dignifica-os.

AconselhaHelenaanãofazerdas«deusasinsensatas

paraembelezaroseuvício»(vv.981-982)erecusa-se

aacreditarqueHeraeAtenafossemaoIdapelo

«frívologozodeumconcursodebeleza)epossam

chegaràinsensatezdevenderArgosaosBárbaros

86P.Vellacott,Ironic Drama,pp.145-146.

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

135

eAtenasaosFrígios(vv.971-981).DesejariaHera

conseguirumesposo superior aZeuse «andaria

Atena à caça de algum deus», quando obteve

dopaioprivilégiode ser virgempor ser avessa

aocasamento?TambémnãotemlógicapôrAfrodite

porcompanhiaeserventedePáris(vv.981-992):

Nãofaçasdasdeusasinsensatasparaembelezar

o teu vício, que não persuadirás quem souber

pensar.Disseste – e é coisa bem ridícula – que

Cípria foi ao palácio deMenelau na companhia

do meu filho. Então ela não podia permanecer

tranquilanocéuelevar-teparaTróiacomacidade

deAmiclasetudo?Foiabelezasuperiordomeu

filhoeoteuespíritoque,aovê-lo,setransformou

emCípria.Todaaintemperançaéparaosmortais

Afrodite, e é com razão que o nome da deusa

começa comoo de afrodisíaco. Ao vê-lo com as

suas vestes bárbaras, refulgente de ouro, o teu

espíritoentrouemdelírio.87

87TraduçãodeM.H.RochaPereira,Eurípides,As Troianas(Lisboa,Edições70,1995).

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

136

Comessa atitude,predispõe-nos a aceitaros

seusargumentos88.Paraela,oqueHelenaapelida

depoderevontadedeAfroditenãopassaraafinal

de falta de senso (aphrosyne, v. 990) – e liber-

tinagem.Preferira o luxodopaláciodePríamo

eestimavamuitoareverênciadosBárbaros.Por

isso,nuncaacederaaosseuspedidosinsistentes

paraquepartisseepusessefimàguerraentreos

HelenoseosTroianos(v.1019).Nofim,arainha

e o coro aconselhamMenelau amatarHelena,

coroandoaHéladededignidade(v.1030)eevi-

tandoincorrernasuareprovação(v.1034).Nada

conseguem.Issonãojustificaqueseacuseaar-

gumentaçãodenãoconvincente.Menelaudárazão

aHécuba(vv.1036-1041)edeclaraHelenaculpada.

Ecomessasentençamostratambémqueaguerra

foraumerro,porsebasearnaindignidadedeuma

mulher89.Porém,nãoamata.Deixaapromessa

dequeo fará, quando chegar a Esparta. Todos

sabem,noentanto,queissonãovaiacontecer.Um

88R.Scodel,The Trojan Trilogy of Euripides,p.96.89AssimentendeKitto,TrG2,p.52.

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

137

sentimentopoderososelheopôs.Otombruscoque

MenelautemparaHécuba(vv.1036sqq.)édisso

adenúncia.Eurípidesnãoodizexpressamente,mas

deixaclaroqueo reideEsparta sucumbiráante

osencantosdeHelena,comoaconteceracomesta

aoverPáris.Ironiaevidente!Adeclaradaculpada

nãoépunidaeferecomomesmoferrocomque

fora atingida.As cativas troianas são explícitas,

ao lamentarem-se,noestásimoque se segue,de

queaescravaturaasesperanaHélade,enquanto

a filha de Zeus semirará em espelho de ouro

(vv.1105-1109).EdesdeaOdisseia queatradição

amostraaviver, com faustoe feliz,emEsparta,

na companhiadeMenelau.Escapara a vingança

sobreaúnicaculpada,oflagelodaHéladeedos

Troianos (vv. 1114-1117), como refereocoroque

formulaodesejodequeelaeMenelaunãovoltem

averaLacónia90.

O fogo envolve a cidade de Tróia que se

desmorona.Hécubatentaembrenhar-senaurbe

90 Sobre a cena do julgameno de Helena, vide G. M. A.Grube,The Drama of Euripides(london,1941),pp.291-295;K.H.Lee,Euripides:Troades(London,1976), pp.XXI-XXIV.

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

138

em chamas e acabar juntamente com ela,mas

é impedida. As trombetas chamampara a par-

tida. A peça termina com as palavras do coro:

«Desventurada cidade!Vá, caminhemospara as

barcosdosAqueus»(vv.1331-1332).

Nãoé seguraaconclusãoa tirardacríticade

Eurípidesàguerra. Seumaspeças suasparecem

apontarparaadefesadaharmonizaçãodosHelenos,

nageneralidadeaatençãodotragediógrafoincide

nosinocentes–mulheresecrianças–que,semterem

culpadaguerranemparaelahaveremcontribuído,

sãodosquemais lhe sofremas consequências.

Aocondenaraguerra,Eurípidesnãotememmente

umpovoouraça,masvisaahumanidade.

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

139

aBreviaturaS

Damosaseguirasabreviaturasdasobrasmais

utilizadas:

Blaiklock–E.M.Blaiklock,The Male Characters of Euripides(Wellington,1952).

Dale–A.M.Dale,Euripides: Helen(Oxford,1967).

E.,A.–Eurípides,Alceste.

E.,And.–Eurípides,Andrómaca.

E.,El.–Eurípides,Electra.

E.,Hi.–Eurípides,Hipólito.

E.,IT.–Eurípides,Ifigénia entre os Tauros.

E.,M.–Eurípides,Medeia.

E.,Or.–Eurípides,Orestes.

E.,S.–Eurípides,As Suplicantes.

E.,Tr.–Eurípides,As Troianas.

H.H.–Hinos Homéricos.

Il.–Ilíada.

Od.–Odisseia.

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

140

JRF, E., Andr. – J. Ribeiro Ferreira, Eurípides: Andrómaca(Coimbra,1971).

Kitto, TrG –H.D. F. Kitto, A Tragédia Grega (trad. port.Coimbra,1972).2vols.

Lesky–A.Lesky,A Tragédia Grega(trad.port.,SãoPaulo,1971).

O.,M.–Ovídio,Metamorfoses.

Romilly–J.deRomilly,A Tragédia Grega(trad.port.,Lisboa,1999).

S.,Tr.–Sófocles,As Traquínias.

V.,G.–Virgílio,Geórgicas.

Zuntz, PPE – G. Zuntz, The political plays of Euripides(Manchester,1955,repr.1963).

Versão integral disponível em digitalis.uc.pt