está nos faltando um juvenal
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ESTÁ NOS FALTANDO UM JUVENAL do autor Aécio Flávio de CARVALHO, apresentado na X Jornada de Estudos Antigos e Medievais (GTSEAM/PLE/DLE/UEM).TRANSCRIPT
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doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.02004
EST NOS FALTANDO UM JUVENAL
CARVALHO, Acio Flvio de (GTSEAM/PLE/DLE/UEM)
Consideraes Iniciais
Trazer a esta mesa, de temtica pr-estabelecida como Histria e Histrias da
Educao na Antiguidade, uma palestra cujo resumo anuncia uma referncia obra
desconhecida de um poeta latino tambm desconhecido, deve parecer estranho, no contexto
desta assemblia. E, visto que se antecipa que o poeta se distinguiu pelo verso satrico, haver
quem possa imaginar que eu procuro, aqui, dar continuidade a sua aguda ironia. Pudera eu ter
igual estro potico e a mesma coragem denunciadora. Porque motivaes no faltam, nem
faltam ao contexto histrico que vivemos, infelizmente, semelhantes entraves liberdade de
expresso, agora talvez at mais eficazes, porque a coero que coibiu Juvenal no teve, como
ocorre frequentemente hoje, a fora da lei voltada contra a fora do direito. Nem falta,
tambm, o ambiente conspurcado provocador da indignao juveliana.
Foram reflexes desta natureza que fizeram lembrar de Juvenal, ao buscar um tema
que se ajustasse aos interesses da temtica desta mesa. Na verdade, na historia da educao da
antiguidade sobraram exemplos de valores e princpios, que continuam, ainda hoje, eficientes
construo de homens dignos para a coletividade. H um reconhecimento difuso do papel
fundamental da tradio na formao dos homens e das sociedades modernas. Entre os nomes
e/ou teorias oportunamente veiculados, porm, aparece muito raramente o nome de Juvenal.
que, de fato, ele no foi um pensador, no sentido clssico do termo; ou seja, no foi terico.
Foi poeta e escreveu stiras.
E que h, ou pode haver, de comum entre a stira e a educao? Para uma resposta,
entram em considerao a histria e, assim, se estabelece a primeira ligao possvel com a
temtica desta mesa - neste caso, com a histria da literatura.
Como modalidade literria, a stira tem uma origem, no mnimo, discutvel; mas com
certeza, remota. Os pesquisadores ligam primeira manifestao de crtica, ainda no
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denominada satrica, uma obra atribuda a Homero, Margites, referida por Aristteles na sua
Potica (1448b)1, ao tratar da origem da comdia. Se aceita essa informao de Aristteles, a
forma literria pela qual primeiro se apresentou a stira, foi o verso imbico; assim apareceu
tambm entre as elegias de Tirteu e Calino (sc. VII a. C.) e, principalmente, em Arquloco
(sc. VII a. C.) 2 cujos iambos Jaeger lembra por aplicar s pessoas que censura uma medida
de valor superinfividual (Jaeger, 1986, p. 108). No sc. IV, com Aristfanes, a stira toma as
feies de comdia e chega ao teatro atravs de peas contextualizadas naquele fecundo
momento histrico.
Entretanto, no obstante esses precedentes, Quintiliano (aprox. 90 d. C.) reclamar
para os latinos a inveno da stira genuina, numa frase categrica: satura tota nostra est a
stira toda nossa ( Institutiones Oratoriae, X, 1, 93). De fato, os crticos reconhecem entre os
latinos cultores mais explcitos do gnero satrico. E, independentemente do fato de passagens
claramente satricas terem aparecido, com nfase, tambm na comdia de Plauto (250 a. C.
aprox.) e, mais tarde, na obra de Petrnio, o Satyricon, apontada como a inaugurao da
narrativa romntica, apontam, consensualmente, nomes como Caio Luclio, Varro, Horcio,
Sneca, Prsio e Juvenal3 autorizam a concepo de uma vocao latina para a denncia
crtica do erro ou para a zombaria das mazelas humanas, tanto do indivduo na comunidade
1 o que consta, por exemplo, no site dictionary.sensagent.com/Satira/it-it; e o que aceita, justificando, Fabrcio Possebon, na Introduo do seu estudo e traduo da Batracomiomaquia (2003, p. 31), de Homero . 2 Calino e Tirteu so nomes que esto entre as referncias mais antigas da literatura no Ocidente, ambos ligados lrica elegaca; no sc. VII a. C., com a nao grega ainda em formao, os dois poetas faziam dos iambos um instrumento de educao para a guerra. O excerto a seguir, de Tirteu, exemplifica bem: Gloriosa a morte nas primeiras linhas / do soldado que luta pelo torro natal./ No h vergonha maiordo que/ mendigar longe da ptria e dos frteis campos, /amargando o exlio com a me estremecida e o velho / pai, os filhinhos e a esposa amada (In Schuler, 1985, 37-38). Arquloco, da mesma poca, j no demonstrava o mesmo entusiasmo por esses ideais aristocrticos; tendo perdido o escudo numa batalha, ironiza: Um saio apoderouse do meu escudo e se ri de mim, / para emu pesar arma excelente [...] . / Mas salvei a minha vida. O que me interessa o escudo? / Que se v! Em breve terei outro igual (Idem, p.41). 3 Caio Luclio (180-103 a. C), rico e aristocrata, teve liberdade para atacar tudo o que entendia censurvel: a venalidade dos homens pblicos, a corrupo, a vaidade, o luxo, a gula e at mesmo o esnobismo helenizante daqueles que repudiavam a prpria cultura e lngua. Marco Terncio Varro (116-27 a. C.), deixou 150 Stiras Menipeias, inspiradas em Menipo de Gadara, filsofo grego do sc. IV a. C.; a expresso stira menipeia corrente, ainda hoje, para designar uma forma mista do gnero. Sneca, conhecido como filsofo e dramaturgo, tem o nome ligado tambm stira por causa de uma comdia, Apolocintose (A aboborificao), stira menipeia que parodia a deificao post mortem do imperador Claudio. Prsio (34-62 d. C.), morto bem jovem, deixou uma coletnea de 6 stiras, de assunto variado.
Observao: as informaes desta nota encontram-se, expandidas, em A Literatura Latina, de Zlia de Almeida Cardoso (ver Referncias).
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quanto da comunidade do indivduo, com a stira por instrumento de expresso, enriquecida
pela arte literria.
A stira
Zlia de Almeida Cardoso refere-se stira, assim:
Muitas elucubraes lingusticas foram feitas em torno da palavra satura. Alguns nela viram uma possvel origem grega, aproximando-a do nome stiros (satiroy), divindades campestres associadas aos faunos e presentes nos dramas satricos. Tais dramas, porm, nada tm a ver com a satura dramtica. De outro lado, como a palavra satura designava tambm a cesta de primcias de frutas de vrias qualidades, ofertada aos deuses no incio de outono, e uma espcie de pat em cuja composio eram usados diferentes tipos de carne, a aproximao menonmico-catacrtica foi feita. A caracterstica da satura dramtica ou literria seria a explorao de assuntos variados em sua composio e a utilizao de diversidade de metros e de tons. Em ambos os casos a satura pode ser considerada como criao latina (CARDOSO, 2003, p. 90).
J Massaud Moiss, mais gericamente, esclarece sobre o contedo desta
modalidade literria, que
[...] consiste na crtica das instituies ou pessoas, na censura dos males da sociedade ou dos indivduos. Vizinha da comdia, do humor, do burlesco, da pardia, da ironia, e cognatos, envolve uma atitude ofensiva, ainda quando dissimulada: o ataque a sua marca distintiva, a insatisfao perante o estabelecido a sua mola bsica (MOISES, 2004, 412).
Moiss segue explicando, agora trazendo consideraes de Highet sobre as
caractersticas da stira, a saber: que tpica, chocante, informal, engraada; e que tem
como trao essencial a relao com a realidade. E traz, ainda, um pensamento de Swabey; a
stira provavelmente a forma de comicidade mais socialmente efetiva, de grande utilidade
como instrumento prtico de destruio das mazelas do cotidiano(idem, ibidem). Ao ressaltar
a efetividade social da stira, entendemos que, bem a propsito das presentes reflexes,
Swabei a insere, a um tempo, num plano histrico e num plano educativo.
Pelo que acabamos de ver, pode-se concluir que, desde o nascimento, a stira vingou a
partir da explorao de um repertrio mais ou menos limitado de temas, de situaes, de
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caracteres. De uma para outras pocas sucedem-se lugares comuns, mais ou menos bem
trabalhados pela inteligncia do satrico do momento, mas, rigorosamente, passveis de
enquadramento em moldes estratificados, velhas frmulas, clichs consagrados... A
perenidade dos temas se justifica por uma razo: fazendo stira pessoal ou social, todos os
satricos trabalharam sobre a matria comum que o homem e/ou a sociedade. Ora, o homem
e a natureza humana no mudam, substancialmente, de um para outro momento da histria; as
paixes humanas cujo entrechoque na interao social eclode, so, hoje as mesmas que
motivaram a indignao de Juvenal amor, dio, ambio, inveja, cobia do poder e da
riqueza, desprezo pelos fracos, insensibilidade com os oprimidos.. . O elemento varivel o
eu potico de que se investe cada autor, satrico ou no, no seu momento criador. Por um
travestimento literrio, o poeta faz, de si ou de outrem, um alter ego, misturando arte literria
a uma ao crtico-moralizante, que, por sua vez, resulta da maior ou menor repulsa a alguma
situao do contexto histrico. Por outras palavras, o travestimento literrio, mais consciente
no poeta medida do seu engenho, pode ser explicado, tambm, como uma resposta
inteligente do artista s circunstncias do seu tempo.
A stira latina Horcio
, de novo, Massaud Moises que nos auxilia na continuidade deste trabalho, quando,
ao particularizar a stira latina, e especialmente os nomes de Horcio e de Juvenal, informa
sobre a diviso da stira estabelecida pelos crticos - em dois modelos: o horaciano, em que
os tons da crtica se revestem de mais ironia e tm mais sutileza e a censura indireta; e o
juvenaliano, quando a crtica mordaz, escrachada, sempre direta.
Horcio e Juvenal so, reconhecidamente, os representantes mximos do gnero
satrico em Roma. Ambos tm caractersticas especiais e bem marcadas. Vamos a uma sntese
do traballho satrico de um e de outro, apontando o que, eventualmente, os aproxima e,
principalmente, o que os distancia, frisando particularmente as marcas juvenalianas.
A manifestao satrica de Horcio est contida em duas obras; a primeira, uma
coleo de 17 poemas intitulada Epodos; a segunda, contm 18 poemas, conhecidos sob o
ttulo Stiras. As stiras horacianas, em geral, evidenciam um poeta de temperamento
reflexivo, capaz de captar do quadro social as nuanas do desequilbrio moral para,
censurando com humor, expressar uma lio moral. Nas stiras, como tambm nas suas outras
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manifestaes poticas, Horcio faz, se assim possvel dizer, uma poesia filosfica, constri
versos que levam reflexo. Manifesta-se, de acordo com o lema que criou e
universalmente referido, dentro da aurea mediocritas. Por isso, sempre circunspecto, no se
abandona emoo, mesmo na crtica.
Em Horcio, tem-se como finalidade da stira o que est dito em seu famoso verso:
Omne tulit punctum qui miscuit utile dulci lectorem delectando pariterque monendo (Ars
potica, v. 344) / ganha todos os pontos aquele mescla o til ao agradvel, deleitando o leitor
e, ao mesmo tempo divertindo-o; e que essa fosse a inteno dele fica corroborado num outro
verso,, quando, maneira retrica, questiona: Ridentem dicere verum quid vetat?/ O que
impede de, rindo, dizer a verdade?4
Ao pesquisador, evidencia- se claramente o contraste com Juvenal.
parte a polmica possvel, inicio algumas consideraes sobre Juvenal, informando:
as Stiras de Juvenal so obra de um homem j vivido, desgastado e agastado pelas
vicissitudes existenciais, profundamente impressionado pelas conjunturas do seu tempo. Isto
explica as motivaes do seu trabalho que ele mesmo faz questo de revelar: facit indignatio
versus (Saturae, I, 79): impele a sua pena uma indignao viva e operante que, na opinio de
Pierrot, brota de noble passion des verits dun ordre suprieur (Pierrot, J. In Ouvres
Compltes de Juvenal et de Perse, Paris, p. XXIV). A stira de Juvenal, ento, nasce
assinalada pela nobreza da verdade desejada com paixo, at a exploso em versos. Trata de
realidades de realidades detestveis, de vcios objetivamente reconhecidos como tais. E o
poeta no os vitupera, apenas; mas remonta s suas fontes: condena no apenas o mal, mas as
fontes do mal. Por isso, como destaca Pierrot, coloca a verdade acima das convenincias. Faz
isso em versos sempre contundentes, movido por uma indignao que se presume sincera,
potencializada por recursos retricos trabalhados com maestria. Nesse momento, bom
lembrar aquilo que, mais tarde, Fernando Pessoa dir, com indignao explcita: o poeta um
fingidor, finge to completamente que, s vezes, finge que dor, a dor que deveras sente.
Verdadeira ou fingida, importante dar nfase indignao juvenaliana, cuja vivacidade,
entretanto, se perderia no fossem os recursos expressivos da retrica. Por outras palavras,
Juvenal fez uso exemplar da retrica, que era a moda estilstica da poca, para , talvez
4 Esse verso de Horcio ser, mais tarde, no sc. XVII, parafraseado em verso que mais conhecida, cunhada por Jean de Santeuil: ridendo castigat mores.
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fingindo ser verdadeira a indignao que deveras sentia, dar fora de autenticidade aos seus
versos. Esclarecendo mais: o tom de Juvenal de um discurso retrico to bem elaborado que
leva o leitor impresso de uma exploso colrica; e isto, opina Duret (Duret, In REL,Tome
LXI, 1984, p. 213), resulta de uma tcnica, no de uma inspirao potica.
Assim se explicaria, a diferena entre os dois poetas, Horcio e Juvenal, ambos
fingidores, mas cada um sua moda e, cada um a seu estilo, os nomes mais significativos da
tradio satrica, quer a lembremos como instrumento histrico na construo informal dos
homens na sociedade, quer a estudemos nos componentes literrios que lhe so
caractersticos.
A stira latina Juvenal
Em Juvenal, vamos repetir, h um comportamento diferente do comportamento de
Horcio. Juvenal desdenha artifcios. Em seus versos, despreza a sutileza do ridculo e faz da
stira uma arma de contundncia mais direta e imediata. Sua obra pode ser dividida assim: da
stira I a VII, mais a IX e a XI, toem por tema a crtica dos costumes contemporneos; as
stiras VIII, X, XII e XIV, tm inspirao estica, e trabalham uma temtica moralizante. O
estilo sempre veemente. O tom viril e livre que as caracteriza no teve modelos Fustigou
tanto os corruptos do trono quanto os das tavernas e jamais teve imitadores. No usufruindo
as benesses do poder e, quem sabe, haja algum ressaibo de frustrao por isso fala do
poder como usurpao. Denunciando o despotismo poltico, atribui-lhe a corroso dos
valores, fazendo da sua obra uma mensagem de censura ao passado recente, entendendo que
Roma precisava ser lembrada da virtus romana autntica. Ao censurar, envileceu ainda mais o
que j , de per si, abominvel.
Sua pena no se move pelo impulso lento de um raciocnio firmado, nem sob a
inspirao difana das musas, mas aos socos, impelida pela indignao. ele mesmo quem o
diz: Si natura negat, facit indignatio versus (I,79)/ Se a natureza nega (a inspirao), a
indignao faz o verso. E argumenta, justificando a sua indignao: Nihil erit ulterius quod
nostris moribus addat posteritas,eadem facient cupientque minores, omne in praecipiti vitium
stetit (I,147-150) / Nada haver que a posteridade possa acrescentar a tais costumes nossos;
nossos descendentes faro e desejaro as mesmas coisas: todos os vcios esto no seu ponto
mximo. E, como convm ao incio de um trabalho, desfia, desde a Stira I, os tais costumes:
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luxrias, sovinices, avarezas, adultrios, crimes de toda a espcie, concluindo: difficile est
saturam non scribere (I,30)/ difcil no escrever stira.
Entretanto, h que se pr um dado em jogo nestas consideraes. Juvenal no tinha
em sua poca razes suficientes para a intensidade da sua indignao. Quando suas 16
stiras foram veiculadas em Roma, por volta de 92 d. C, o imprio era governado por
Domiciano, que, a bem da verdade, iniciava nessa poca um perodo de terror. Mas os
precedentes imediatos, Vespasiano e Tito, tinham construdo uma era de grande prosperidade,
que, na sequncia, o imperador Trajano iria retomar. O que poderia, ento, justificar a
indignao de Juvenal? vlido supor que a ameaa de um retorno aos desmandos despticos
de um Calgula, de um Nero, com o corolrio de traies, assassinatos e imoralidades pblicas
e privadas, pudesse ter sombreado a mente e a inspirao do poeta. Penso que Will Durant
justifica esta suposio quando comenta que [...] poltica de Nerva e Trajano libertou o
esprito de Roma e deu literatura do reinado de ambos um feroz tom de ressentimento contra
o despotismo j passado mas que podia voltar (DURANT, 1971, p. 339).
E, como que a propsito dos nossos objetivos, Durant acrescenta: [...] Juvenal nunca
tratou de outra coisa; e Tcito [...] fez-se o delator temporis acti o acusador dos tempos
passados (idem, ibidem). Como se v, Durant atribui a ambos, ao poeta satrico e ao
historiador contemporneos iguais sentimentos de repugnncia volta ao passado.
Paratore se manifesta de maneira semelhante, coincidentemente falando tambm sobre
os mesmo personagens, Juvenal e Tcito, aos quais atribui o mrito de serem os ltimos
grandes herdeiros da espiritualidade romana, aqueles que a concluem sob o aspecto da crise
poltica secular (Paratore, 1983, p. 758). E diz, mais, que
Juvenal lana o grito extremoo da alma itlica, ligado ao ideal da antiga sobriedade e honnestidade. Ambos desambientados do sculo, exprimem, com o protesto mais tenebroso, a sua inadaptao aos tempos em que a gravitas romana se dilui, submersa pelos preponderantes influxos estrangeiros [...] (idem, ibidem).
Por tais consideraes pode ser entendida a obra de Juvenal como uma stira
retroativa: faz a condenao do passado referindo-o como uma lio; preciso evitar os males
antes vividos. E, assim, precisamente por essa atemporaneidade proposital da sua crtica,
acaba por responder ao seu contexto histrico. Acaba realizando o princpio de que o melhor
meio de louvar o presente atacar o passado; quando isto no possvel, deduz-se que o mal
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de hoje to grande quanto o de ontem; e que os riscos da censura da poca de outrora, cujo
terrorismo poltico-cultural sacrificara um Sneca e um Lucano, ainda podem voltar. Por essas
razes todas, a obra de Juvenal tem componentes de historicidade latente, isto , sugere fatos
e nomes de personagens da histria real de Roma a partir do ano 54 d.C., ano da morte
do imperador Claudio e da ascenso de Nero ao poder. No trata, pois, da sociedade que lhe
contempornea. Conscientemente, fala do passado para que a sua indignao atue no presente.
A esse primeiro expediente do seu instrumental potico Juvenal, acrescenta outros. Da
tcnica retrica extrai uma gama variada de recursos que, distinguindo-lhe os versos da
espontaneidade irrefletida, bem como dos vulgarismos habituais de uma stira comum,
concorrem para lhe dar uma invulgar impresso de violncia e dramaticidade.
Do instrumental retrico juvenaliano consta, ainda, uma linguagem de funo ftica
constante, com a qual o autor prende o leitor ao seu texto, interpelando-o como a um ouvinte,
ora atravs de um questionamento encadeado, ora por meio de uma exclamao enftica, ou
da citao cumulativa de exemplos culminando com uma insinuao irnica.
Do discurso todo fica um vigoroso apelo moralizante / educativo, para cujo melhor resultado
concorrem, abundantemente, pardias, antteses e frases de efeito. Seguem, na sequncia,
alguns apontamentos para comprovao das afirmaes anteriores:
Semper ego auditor tantum? nunquamne repnam vexatus toties raci Theseide Codri? Inpune ergo mihi recitaverit ille togatas, Hic elegos? Impuune diem consumpserit ingens Telephus, aut summi plenam iam margine libri Scriptus, et in tergo, necdum finites, Orestes. Serei eu sempore um ouvinte? Nunca replicarei, tantas vezes atromentado pela Teseida do rouco Cordo? E ele, pois, investira impunemtente contra mim nas suas togatas? e, este outro, nas elegias? Impunemente, o volumo Tlefo, acabou com um dia inteiro meu? E o Orestes, j escrito at nas margens do ltimo volume e ainda no acabado?
Construes assim so constantes ao longo de toda a obra. Frequentes tambm so
as construes antitticas, na qual a busca do efeito ftico se insere, Juvenal procurando
criar o elemento surpresa, sintetizado, muitas vezes, em frase de sabor proverbial; outras
frases, mesmo no apresentando o chamariz da anttese, guardam o contedo sentencioso,
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prendem pela sonoridade ou... destilam sarcasmo. Seguem excertos conhecidos, apenas
para o deguste essencial:
Probitas laudatur et alget (I, 74). A honestidade elogiada, mas morre de frio. Dat veniam corvis, vexat censura columbas. (II, 63) A crtica indulgente com os corvos, mas severa com as pombas. Quantum quisque sua nummorum servat in arca, tantum habet et fidei (III, 143-144). Cada um tem de confiabilidade o tamanho de sua conta no banco. Nil habet infelix paupertas durius in se quam quod ridiculos homines facit (III, 152-153). A amargura da pobreza no tem consequncia mais cruel do que tornar ridiculos os homens. Omnia Romae cum pretio. (III, 183-184) Em Roma, tudo tem preo. Sed quis custodiet ipsos custodes? (VI, 347-348) Mas quem guardar os guardas?
Felix ille tamen corvo quoque rarior albo. (VII, 202) Um homem feliz mais raro do que um corvo branco.
Nobilitas sola est atque unica virtus.(VIII, 20) A nica virtude a nobreza, ela somente, Fructus amicitiae magnae cibus. (V, 14) A comida o lucro da amizade ao poderoso. Cum iam semianimum laceraret Fluvius orbem ultimus er calvo serviret Roma Neroni (IV, 37,38) Quando o ltimo dos Flavianos, moribundo, deixava este mundo, Roma passava a sujeitar-se ao careca Nero ... causidici nova cum veniat lectica Mathonis plena ipso (I, 32-33) ... quando aparece a liteira nova do advogado Mato, que s com ele j fica lotada... Summum crede nefas animam praeferre pudori Et propter vitam vivendi perdere causas (VIII, 83, 84) Considera maior infmia preferir a vida honra e, pela vida, abrir mo das razes de viver.
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Vale lembrar que, ao lado de Virglio, Horcio, Juvenal o poeta latino que deixou
o maior nmero de versos e expresses proverbiais. So frequentes as citaes de Juvenal,
destacadas do texto original, e, mesmo assim, na sntese, frases ou expresses vigorosas,
vibrantes da mensagem que encerram, cumprindo, ainda, uma funo moral e educativa. A
maioria das vezes, quem as emprega no sabe donde vieram, como nasceram, quem as
criou. Como as que seguem, por exemplo:
Mens sana in corpore sano. (X, 356) Uma mente s, num corpo so.
Panem et circences. (X, 81) Po e circo. Maxima debetur puero reverentia. (XIV, 47) criana, deve-se o maior respeito.
Mas as mensagens esto a, ecoando l do passado, to vlidas ontem quanto hoje,
servindo argumentao em muitas falas e ilustrando a perorao de muitos discursos e palestras. Como nessa minha, agora.
Mas no assim que desejo terminar essa consideraes. Queria lembrar que Juvenal tentou ser profeta, nos versos que seguem e que, agora recordo, j foram citados:
Nada haver que a posteridade possa acrescentar a tais costumes nossos; nossos descendentes faro e desejaro as mesmas coisas: todos os vcios esto no seu ponto mximo.
No, Juvenal, os vcios do seu tempo no estavam no ponto mximo. Receio que
possam estar agora, em nossa atualidade. Mas, agora, nos falta a indignao de um Juvenal. REFERNCIAS BAYET, Jean. Literatura Latina. Traduccin del francs y del latn por Andrs Spinosa Alarcon. Barcelona: Ediciones Ariel, 1966. CARDOSO, Zlia de Almeida. A Literatura Latina. So Paulo: Martins Fontes, 2003. DURET, Luc. Juvenal rplique a Trebatius... In REL, Tome LXI. Paris, 1984. HOMERO. Batracomiomaquia. Estudo e traduo de Fabricio Possebon. So Paulo: Humanitas, CH/USP, 2003. JAEGER, Werner. Paideia: a formao do homem grego. So Paulo: Martins Fontes, 1986. JUVENAL. Satires. Paris: Les Belles Lettres, 1974. ORAZIO. Satire. Trad. Mario Labate. Milano: Rizzoli Editore, 1981. PARATORE, Ettore. Histria da Literatura Latina. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983.
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SCHULER, Donaldo. Literatura Grega. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.
A stira de Juvenal e o momento histrico
O nosso momento
A indignao como sentimento provocado pela educao