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“ESSE GRANDE CUBANO”: A EXPERIÊNCIA DE UM ARTISTA NEGRO EM
BELÉM (1896)
DAVID DURVAL JESUS VIEIRA
Introdução
O presente trabalho trata da análise do relato do poeta João de Deus Rego sobre
Francisco Moré, publicado no jornal “Folha do Norte”1, em 2 de março de 1896. Pelo o que se
infere de uma publicação do jornal “A Republica”2, de 23 de novembro de 1893, Rego passou
a ficar conhecido principalmente com as obras literárias “Primeiras Rimas”3 e “N’uma petala
de rosa”. Moré, por sua vez, era um artista negro cubano que residia em Belém, e que
provocou a admiração do referido poeta, devido ao talento e habilidade com que tocava
violoncelo.
Analiso o conteúdo escrito do relato do poeta João de Deus Rego para se “compreender
criticamente o sentido manifesto ou oculto das comunicações” (SEVERINO, 2009). Mesmo
documentos produzidos por pessoas ligadas a grupos políticos poderosos podem dizer muita
coisa para o historiador, pois “o que os textos nos dizem expressamente deixou hoje em dia de
ser o objeto predileto de nossa atenção”, voltada geralmente com muito mais ardor ao que ele
nos deixa entender, sem haver pretendido dizê-lo”. A partir do momento que fazemos as
testemunhas falar, mesmo a contragosto, “mais do que nunca impõe-se um questionário”, pois
os documentos “não falam senão quando sabemos interrogá-los” (BLOCH, 2000: 78-79).
A produção deste trabalho é uma forma de contribuir para a implementação da lei
10.639, que torna obrigatório o ensino sobre a História e Cultura Afro-brasileira e Africana na
Professor de História da Educação Básica, Técnica e Tecnológica do Instituto Federal do Pará (IFPA). Mestre
em História Social da Amazônia (UFPA). Membro do Grupo de Pesquisa “Diversidade étnico-racial, saberes
tradicionais, e educação na Amazônia” (IFPA – Campus Parauapebas). A apresentação deste trabalho contou
com o apoio financeiro da PROPPG/IFPA. 1 “Jornal de circulação diária, independente, noticioso, político e literário. Fundado por Eneas Martins, Cipriano
Santos e outros”, combatia a política de Antonio Lemos, defendendo “o Partido Republicano Federal, chefiado
por Lauro Sodré e depois por Paes de Carvalho”. Foi publicado entre 1896-1974 (PARÁ, 1985: 154). 2 “Jornal de circulação diária, órgão do Partido Republicano”. Reinicia a sua publicação em 1890 “sob a
responsabilidade de Raymundo Martins, Manoel Barata, Theotonio de Britto e Martins Pinheiro e redação de
João Hosannah de Oliveira, Marques de Carvalho e João Chaves da Costa”. Saiu de circulação em 1897 (PARÁ,
1985: 132). 3 O jornal “A Republica”, de 20 de abril de 1890, publicou um elogio de “A Ephoca”, de Recife, sobre a obra
“Primeiras Rimas”, no qual se ressaltava que o poeta “possue uma maneira propria de dizer, em que a forma não
sacrifica o pensamento, nem este importa o sacrificio da metrificação”, percebendo-se “um bom poeta”, quase
“impecavel parnasiano”.
2
Educação Básica, e do Parecer CNE/CP 03/2004, que estabelece as Diretrizes Curriculares
Nacionais que regulamentam tal lei.
Além de regulamentar os referidos dispositivos, o Parecer “procura oferecer uma
resposta na área da educação, à demanda da população afrodescendente, no sentido de
políticas de ações afirmativas, isto é, de políticas de reparações, e de reconhecimento e
valorização de sua história, cultura e identidade”. Essas políticas correspondem a um conjunto
de ações direcionadas “à correção de desigualdades raciais e sociais, orientadas para oferta do
tratamento diferenciado com vistas a corrigir desvantagens e marginalização criadas e
mantidas por estrutura social excludente e discriminatória” (BRASIL, 2013: 83-85).
O parecer também estabelece que o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e
Africana se fará por diferentes meios ao longo do ano letivo, com vistas à divulgação e estudo
da participação dos africanos e de seus descendentes em episódios da história mundial e do
Brasil, na construção econômica, social e cultural das nações do continente africano, da
diáspora, e do Brasil, “destacando-se a atuação de negros em diferentes áreas do
conhecimento, de atuação profissional, de criação tecnológica e artística, de luta social”, tais
como Zumbi, Martin Luther King, Nelson Mandela, etc.
Sobre a supervalorização dessas personalidades negras, Santos (2011) argumenta que
pode se assemelhar ao viés da história feita por “grandes homens”, desconsiderando-se os
outros sujeitos negros partícipes do processo de luta contra o racismo e pela igualdade de
direitos entre etnias e/ou raças.
Para que a lei 10.639, o parecer que a regulamenta, e a abordagem crítica do ensino de
história do negro no Brasil, passem a vigorar na prática, é preciso mais pesquisas nessa área
de conhecimento.
Analisando a fonte
Na publicação do jornal “Folha do Norte”, o poeta João de Deus Rego (1896) dizia que
Francisco Moré era “maior de cincoenta annos, batido sempre pela vaga insolita do infortúnio,
a luctar com a indifferença dos ignorantes e com o preconceito dos pretenciosos”, mas que
não era, “um invalidado para as gratas affectividades ou forte elemento de ogeriza e de odio
contra todos”.
3
Rego (1896) iniciava o texto, descrevendo e qualificando o perfil físico de Moré. Dizia
que este último era “alto, magro e esgronviado, cabeça mal feita e toucada por uns carapinhos
que começava a grisalhar, olhos pequenos e vivos, nariz demolido a meio por uma
enfermidade que ahi se acastellara em outros tempos”, além de “rosto todo gretado pela
variola, beiços grossos, uma expressão physionomica de simio”, e “ofegante a toda a hora
como quem termina trabalho excessivo e mortificante”. O autor também ressaltava o tipo de
roupa que Moré costumava usar: “sempre enclausurado em um croiste que o envolvia como
uma sotaina, tão comprido era”. Em suma, para Rego, ele era “extremamente feio”, e quem o
visse passar, certamente o tomaria “por um commum, por um medíocre, em quem a natureza
architectou um physico para insulto da plástica, e constante provocação aos ricurs e aos
dandys” (grifo do autor).
Por conta disso, Rego (1896) relatava que muitos que não o conhecia, “o alvejaram com
ditos picarescos e viam em toda aquella structura apenas um motivo para o comentario
humoristico e para a gargalhada desopilativa”, além de “muitos que tiveram pejo em
acotovella-lo, julgando macular a nitidez dos paletots pelintras ao contacto d’aquella
sobrecasaca, deposta pela moda, debruns em ruina, perdida á força de uso, a côr primitiva”.
Porém, o colunista ressaltava que essas mesmas pessoas “mal sabiam que aquelle negro, tão
originalmente feio, era um verdadeiro principe da Arte, uma poderosa vergontea dessa
augusta dynastia dos eleitos do Talento”, justificando que “sob aquelle thorax negro” batia
“um coração de predestinado e dentro d’aquella cabeça, negra também”, fulgia, “branca e
auroral, a chamma das intelligencias preclaras”.
Segundo Rego (1896), nenhum desses preconceitos “molestava o inspirado artista”, pois
quando ele pegava no “arco”, vingava-se de “toda essa turba de apedrejadores baratos”, já nas
“primeiras vibrações”, que “acabavam as mais das vezes por deixar-se enlevar pela magia do
seu divino violoncelo, onde Moré fazia suspirar o Dannubio Azul, o Carnaval de Veneza ou
outra qualquer composição da excelsa familia das suas favoritas” (grifo do autor).
Após essa consideração, o poeta tece uma série de elogios a Moré, dizendo que “o
extincto artista pertencia á rara e privilegiada familia de espiritos que nunca decahem, que
reverdecem sempre e que não conhecem saciedades nem tedios”. Em seguida, o autor
destacava que “em Moré não se operou o phenomeno natural da transição do moço para o
velho”, pois “os prazeres, as alegrias emocionantes” dos seus “vinte annos continuaram até os
4
50 a ser por ele procuradas e a vibrar n’aquella extraordinaria rede nervosa com a intensidade
poderosa de outras éras”, nunca perdendo para ele “o sabor primitivo”.
Dentre os “prazeres favoritos” de Moré, Rego (1896) destacava a serenata. Era nela
“que o seu genio tinha as mais celestiaes expansões, era mais poetente e deslumbrador do que
nas ruidosas exhibições de theatro4 e nos concertos de sala, em face de auditorios, illustres”.
Sobre Moré, Rego (1896) guardava uma recordação “inextinguivel”, que o “acarinhava
saudosamente”. Uma noite, em Belém, “ao chegar ao largo da Polvora5, sons dulcissimos”,
chegavam-lhe vagarosamente aos ouvidos, “como uma surdina nostálgica, serenamente triste,
melancholicamente suggestiva”, induzindo o seu “espirito ao extase que adormenta e á reverie
que consola e alheia” (grifo do autor), quando avistou “junto a um dos bancos da Avenida
Indio do Brazil6, um homem, de pé”, que “era quem produzia tudo aquilo n’um violoncelo”.
Era Francisco Moré, voltando “áquella hora da bohemia de um dos nossos subúrbios”, e ali
parando para executar “uma melodia que, havia vinte annos”, compusera “quando pela
primeira vez um coração que o amou e compreendeu – uma mestiça de Cuba”, recordando
“dias mais felizes de sua vida”, lendo em seus “olhos a nostalgia fremente da Patria”. Nesse
momento, Moré “parecia até transfigurar-se d’aquelle instrumento”, não havendo, “certo,
indiferença que não acordasse, alma em que não alvorecesse triumphante a aurora da
affectuosidade e do carinho”.
Rego (1896) havia conhecido Moré nessa circunstância, ligando-o “o duplo vinculo da
admiração pelo seu genio e d’uma dolorosa sympathia pela sua individualidade, tão mal
compreendida e tão parcamente apreciada”.
O poeta ainda relata outras características de Moré. Ele “conhecia alguns idiomas, tendo
perfeita familiaridade com as literatturas franceza, hespanhola, e portuguesa”. Gostava de ler
as obras de Victor Hugo, Rámon de Campoamor, Guerra Junqueiro e José de Alencar (REGO,
1896).
Segundo Rego (1896), Moré morreu “n’um hospital, obscuramente, sem assistencia de
um amigo”. Em seguida questionava: “a que mãos desconhecidas terá ido parar esse salvo-
4 Uma exibição teatral de Francisco Moré, em Belém, foi anunciada pelo jornal “Correio Paraense”, de 24 de
maio de 1894: “Amanhã á noite terá lugar no Theatro da Paz um grande concerto vocal e instrumental produzido
pelo eximio flautista brasileiro Gervazio de Castro, e em que tomarão parte gentilmente os distintos artistas
maestro Silvio Barbini, signorita Palmira Ramini, Nicoletti, Vinci, L Sarti, E. Bosio, Luigi Delmadé, Cameli
Secondo, Eurico Locatelli, Alexandre, Francisco Moré”. 5 Atual Praça da República (CRUZ, 2013, p. 105). 6 Atual Avenida Assis de Vasconcelos (CRUZ, 2013, p. 81).
5
conducto para o seu ingresso na posteridade”, ressaltando que fora “elaborado a golpes de
talento e insano lâbor, muitas vezes em dias em que no triste lar do artista minguavam até os
elementos de subsistência”.
Rego (1896) concluía o seu relato, evocando Moré como “grande negro d’alma
abençoada e branca”, para quem a arte foi um “Golgotha”, a que ele ascendeu “com os
vigores de um heróe e a beatifica resignação d’um mártyr, d’um santo”, deixando um “espolio
artistico de valia”, que o autor havia conhecido “perfeitamente”.
Esse relato sensibilizou um leitor do jornal “Folha do Norte” daquela época. Dois dias
depois, em 4 de março de 1896, esse jornal publicava a pedido de Luciano C. dos Reis o
texto “A’ memoria de F. Moré”. Reis dizia que observou “com a devida atenção a rapida,
porem bem elaborada biographia do immortal Francisco Moré, feita pela autorisada penna do
poeta João de Deus do Rego”, não podendo furtar-se ao desejo de vir sobre a campa desse
grande artista” verter as suas “sentidas lagrimas”, nem achando “uma só palavra” que pudesse
exprimir o seu “pesar!”.
Assim como João de Deus Rego, Reis havia conhecido e teve “occasião de apreciar o
talento artistico de Moré e as sublimes qualidades que lhe ornavam o caracter”. Portanto,
reunia as suas lágrimas às do poeta, “para diffundil-as sobre tumulo daquelle que
objectivamente já não existe, porém existe vivamente impresso na memoria dos que tiveram a
felicidade de conhecel-o”.
Após a exposição desses relatos, partamos para algumas análises. Rego chama a atenção
para os diversos tipos de preconceitos sofridos por Francisco Moré. Um deles se referia ao
modo como esse artista se vestia. No final do século XIX, o consumismo “tornou-se parte do
cotidiano das camadas mais abastadas, para as quais era fundamental adquirir as últimas
novidades vindas da Europa”. Nesse sentido, “as tradicionais sobrecasacas”, como a que Moré
costumava vestir, deram lugar ao paletó, porque aquelas simbolizavam a “sociedade patriarcal
e aristocrática do império”, em detrimento dos “novos tempos” de “ordem e progresso” do
período republicano (RASPANTI, 2013: 202-204).
Outro preconceito que Moré sofria, sendo o mais ressaltado por Rego, era o referente à
aparência física. Um dos motivos para isso era o impacto da varíola sobre o seu rosto. Na fase
de agravamento dessa doença, o vírus “se estabelece na garganta e nas fossas nasais, quando a
enfermidade assume a sua forma mais violenta, começando a aparecer erupções
6
avermelhadas, que se manifestam na garganta, boca, rosto e, depois, espalham-se pelo corpo
inteiro”7 (SOUSA, 2011: 240). Rego citava outros fatores que contribuíam para a “feiura” de
Moré. Nessa esteira, o próprio poeta acabava praticando preconceitos.
Rego incluía características estéticas que lembravam a ancestralidade africana, como
“carapinhos” e “beiços grossos”, na qualificação corporal de Moré. Naquela época, o modelo
branco de beleza, era considerado o padrão pela classe dominante. Valorizava-se o “nariz
afilado, cabelos lisos, lábios finos, cútis claras” (DOMINGUES, 2002: 577-578). Caso não se
inserisse nesse modelo, o indivíduo poderia estar sujeito a comparações com o macaco, como
Rego fez com Moré.
Interessante notar que o poeta usa o termo “simio” como metáfora, talvez buscando um
respaldo científico para tal comparação. Segundo Vigarello (2006: 127), “os anatomistas do
século XIX banalizaram os limites dos corpos que Lamarck e Darwin diziam derivar de
acordo com as espécies, as raças, o tempo”. Descrevia-se “o fêmur dos brancos como mais
longo do que o dos negros porque mais bem adaptado ao esquema bípede”, a estreiteza da
bacia dos brancos como sinal de melhor adaptação à estação, “o rádio igualmente mais longo
porque mais bem adaptado ao manejo dos instrumentos”.
Conforme Rego, a aparência física e o modo de se vestir de Moré provocavam a “fúria”
dos “dandys”. Este termo vinha de um personagem “nascido na Inglaterra do fim do século
XVIII, em que Byron e Brummel pretendem fazer de seu ser ‘exterior’ o núcleo de
identidade”. Para tanto, dândi transformara “em verdadeiro ofício a arte de se mostrar:
Brummel dispõe de dois luveiros, cada um encarregado de tarefas diferentes, três
cabeleireiros, vários alfaiates rigorosamente especializados...” (VIGARELLO, 2006: 116).
Para Vigarello (2006: 116), a figura do dândi ilustrava uma época em que “a igualdade
prometida pela nova sociedade, a da burguesia inglesa ou a da Revolução Francesa, continua
a ser uma perspectiva longínqua”. Por conta disso, “a postura, para o dândi, torna-se de
repente o ‘único domínio em que ele só deverá a si próprio ser o que é’”, ocorrendo uma
“revisão das rudezas”, em que o modelo masculino de beleza passou a ser o da combinação
entre “força e delicadeza, vigor e fragilidade”.
7 Os sintomas da varíola são “febre, dores nas costas e cefaleia, os quais se agravam do sétimo ao décimo sétimo
dia”. Com o decorrer do tempo, “as lesões evoluem e transformam-se em pústulas, que provocam coceira intensa
e dor, podendo levar o paciente a infeccionar os olhos por causa do hábito de se coçar” (SOUSA, 2011, p. 240).
7
Portanto, na visão de Rego, Moré era um sujeito extremamente rude, não se
enquadrando no “equilíbrio” proposto pelos “dandys”, devido à utilização da sobrecasaca,
considerada naquela época “fora de moda”, e à sua aparência física, que expunha o
agravamento da varíola e as características estéticas que lembravam a ancestralidade africana.
O poeta não se manifestava somente em relação ao aspecto corporal de Moré, mas
também, em referência ao seu “espírito”. Rego dizia que todo o talento artístico e a
inteligência apresentada por esse cubano, era o seu lado branco, como se observa na
expressão: “grande negro d’alma abençoada e branca”.
Uma questão se coloca: seria anacrônico enquadrar como “racista” essa expressão?
Da “limpieza de sangre” às teorias raciais
Para Stolke (2006: 21, grifo da autora), deve-se tomar cuidado com o uso do termo
“racismo” para o período colonial, quando o preconceito se centrava em critérios de “sangue”
e “nascimento”, ou seja, de descendência, fundamentado pela doutrina teológica da “limpieza
de sangre”, que estruturou a sociedade ibérica dos fins da Idade Média, e que prevaleceu “nas
Américas coloniais portuguesa e espanhola seguramente até o século XIX”. Porém, “seu
sentido simbólico na sociedade colonial começou a mudar radicalmente já no século XVIII”.
Segundo essa doutrina, “a pureza de sangue era entendida como a qualidade de não ter
como ancestral um mouro, um judeu, um herético ou um penitenciado (condenado pela
Inquisição)”. O “sangue impuro” se referia “àquele que carregava a mancha indelével da
descendência dos judeus, que mataram Jesus Cristo, e dos muçulmanos, que se recusaram a
reconhecê-lo como filho de Deus”. Portanto, o sangue era “concebido como um veículo de
pureza da fé, que transmitia vícios e virtudes religioso-morais de uma geração para outra”
(STOLKE, 2006: 21).
No Brasil colonial, “os inquisidores não se davam ao trabalho de investigar
antecedentes de índios e caboclos (descendentes de índios e portugueses), já que eram
consideradas pessoas absolutamente primitivas, frágeis e infantis”, apesar de que na prática a
população indígena e o “significativo grupo intermediário de mestiços na América espanhola
colonial” eram “economicamente desprivilegiados e socialmente discriminados até o fim do
século XVI” (STOLKE, 2006: 27).
8
Por outro lado, a preocupação com o “sangue negro” era intensa. Os africanos trazidos
ao continente americano como escravos, e seus descendentes, “eram vistos como
genuinamente impuros e infectados, por carregarem ‘o peso da horrível mancha do vil
nascimento como zambos, mulatos e outras castas piores, com as quais homens da esfera
intermediária ficam envergonhados de se misturar’”. (STOLKE, 2006: 28-29).
Para Stolke, portanto, é inadequado o uso do termo racismo para determinadas
manifestações preconceituosas da sociedade colonial, pois a categoria moderna de “raça”, só
apareceu no início do século XVIII.
No final do século XIX, as “teorias raciais” que ressaltavam a superioridade da
população branca e a inferioridade dos negros e mestiços, estavam em pleno vigor. Nessa
época, a elite dirigente fomentou a atração de imigrantes europeus para o Brasil, com base
nessas teorias.
O “darwinismo social” era uma dessas teorias. Segundo Schwarcz (1993: 76-77), essa
perspectiva “via de forma pessimista a miscigenação, já que acreditava que ‘não se
transmitiriam caracteres adquiridos’, nem mesmo por meio de um processo de evolução
social”. As consequências disso foram o enaltecimento da “existência de ‘tipos puros’ – e,
portanto, não sujeitos a processos de miscigenação”, e a compreensão da “mestiçagem como
sinônimo de degeneração não só racial como social”.
Para reforçar seus argumentos, os darwinistas sociais davam exemplos a partir de um
recorte da história mundial: a evolução europeia representaria “um caso extremo em que o
apuro racial teria levado a um caminho certo rumo à civilização”; enquanto que o Egito teria
conhecido um período de decadência a partir do século IX a.C., devido à grande miscigenação
racial ocorrida a partir de então” (SCHWARCZ, 1993: 80).
No Brasil, o mito da democracia racial apareceria como tentativa para acomodar essas
teorias. Segundo Costa (2010: 372-373):
Confrontando as teorias que realçaram a superioridade da população branca e a
inferioridade dos mestiços e negros, a elite brasileira – uma minoria de brancos,
alguns dos quais não estavam seguros da ‘pureza’ de seu sangue, cercados por uma
maioria de mestiços – não descobriu melhor solução do que colocar suas
esperanças no processo de ‘branqueamento’. O Brasil superaria seus problemas
raciais, sua inferioridade, através da miscigenação. A população tornar-se-ia
crescentemente branca.
9
Para Schwarcz (1994: 147-148), essa visão determinista gerava o “fortalecimento de
uma interpretação racial para a formação da nação”. Contudo, “levou a um esvaziamento do
debate sobre cidadania e sobre participação do indivíduo”, em contradição com um momento
de “enraizamento de um modelo liberal jurídico na concepção do Estado”, quando da
instituição do regime republicano no Brasil, em 1889. “Teorias formalmente excludentes,
racismo e liberalismo conviveram em finais do século, merecendo locais distintos de
atuação”.
Sobre a exclusão do negro no mercado de trabalho, no final do século XIX, temos a
contribuição de Azevedo, que pesquisou o caso dos cocheiros em São Paulo. Segundo esse
autor, “diferentemente do trabalhador fiscalizado e disciplinado dentro dos limites e dos
horários estabelecidos pelas fábricas, ou ainda sob as vistas de um patrão, os cocheiros e
carroceiros circulavam livremente pela cidade” e, por conseguinte, muitas vezes
ultrapassavam os “limites que separavam os supostos comportamentos de um trabalhador
honesto dos daqueles turbulentos e desordeiros” (AZEVEDO, 2009: 80).
A relação direta entre cocheiro negro e comportamento incivilizado resultou, entre
outras coisas, na exclusão deste trabalhador no processo de formalização do mercado de
trabalho do setor. Segundo Azevedo (2009: 99), “o que se observa é um violento processo de
exclusão”, marcado por um ambiente de trabalho que se “tornou hostil aos negros com a
chegada dos imigrantes, pela preferência dada aos italianos pelos empregadores e, sobretudo,
por uma política pública de Estado que assim o queria”.
No caso do Rio de Janeiro, temos o estudo de Chalhoub. Segundo este autor, “os dados
referentes à estrutura ocupacional da cidade em 1890 mostram uma marginalização
ocupacional dos não-brancos ocorrendo em parte devido à presença dos imigrantes europeus”.
Mais da metade destes últimos economicamente ativos, “trabalhava no comércio, indústria
manufatureira e atividades artísticas”, ou seja, ocupavam os “setores de emprego mais
dinâmicos”. Por outro lado, “48% dos não-brancos economicamente ativos empregavam-se
nos serviços domésticos, 17% na indústria, 16% não tinham profissão declarada e o restante
encontrava-se em atividades extrativas” (CHALHOUB, 2012: 80-81).
Para Chalhoub (2012: 88-112), a transição entre o período imperial e republicano no
Rio de Janeiro, apresentou um traço continuísta fundamental: “a continuação da subordinação
10
social dos brasileiros de cor, ou seja, o negro passou de escravo a trabalhador livre, sem
mudar, contudo, sua posição relativa na estrutura social”. Isso significa dizer que no
“desenrolar das rivalidades nacionais e raciais”, os “brasileiros de cor foram, ou continuaram
a ser, os grandes perdedores”. Nessa situação, muitos negros optaram, “temporária ou
definitivamente”, por desempenharem atividades à margem do mercado de trabalho,
“exercendo atividades autônomas que lhes garantiam a sobrevivência”.
Chalhoub (2012: 113) aponta algumas hipóteses sobre o porquê dessa permanente
subordinação. Primeiramente, “havia uma clara predisposição por parte dos membros das
classes dominantes em pensar o negro como um mau trabalhador e em reconhecer no
imigrante um agente capaz de acelerar a transição para a ordem capitalista”. Esse preconceito
se “combinava na época com a obsessão das elites em promover o ‘progresso’ do país”, que
seria promovido por meio do “branqueamento” da população nacional.
No caso do Rio de Janeiro, havia outro obstáculo para o negro: “além de branco, era
grande a probabilidade de ele ter de se defrontar com um empregador estrangeiro, na maioria
das vezes português”. Este último dominava “grande parte da atividade comercial e de
serviços da cidade”, e mostrava “uma acentuada preferência por seus patrícios quando da
contratação de empregados” (CHALHOUB, 2012: 113).
No Pará, o governo local investiu em uma política de atração de imigrantes europeus,
como os espanhóis. Segundo Sarges (2010, p. 202-216), os governadores Lauro Sodré e Paes
de Carvalho assinaram as Leis 223, de 1894, e 583, de 1898, respectivamente, autorizando “a
introdução de estrangeiros de boa conduta e aptos para o trabalho agrícola ou então, dedicar-
se a qualquer indústria útil, contudo a preferência era pelos indivíduos acompanhados de
família”. Além disso, o governo prometia “passagem de Vigo, Barcelona ou outro porto da
Espanha até Belém em ‘rápidos vapores ingleses e italianos’”. Isso resultou, em 1896, na
imigração de 3.168 espanhóis para o Pará, dentre os quais “1.777 partiram para os núcleos
agrícolas e 1.368 ficaram na capital”.
Com a intensificação dos fluxos migratórios, “os trabalhadores negros e mestiços
perderam muito da primazia que desfrutavam no mercado citadino e tiveram suas
experiências marcadas pela convivência com outros segmentos étnicos e sociais”. Por outro
lado, “a identidade dos grupos negros manteve-se acentuadamente, em especial se for levado
11
em conta que esta, de um lado, fundamentava a resistência contra a discriminação racial e, de
outro, estruturava-se a partir da noção de pertencimento” (WISSEMBACH, 1998: 100).
Francisco Moré estava imerso nesse contexto, em que o racismo era um de seus fortes
ingredientes. Em contrapartida, Moré manteve suas características estéticas africanas e a
maneira “imperial” de se vestir, e encantou mesmo pessoas racistas com a sua música. Nesse
sentido, fiquemos com outra expressão utilizada pelo poeta João de Deus Rego no jornal
“Folha do Norte” para qualificar o artista: “esse grande cubano”.
Considerações finais
Com o estudo sobre a experiência de um artista negro em Belém, no final do século
XIX, acredito corroborar para a implementação da lei 10.639/2003 e do Parecer CNE/CP
03/2004, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais que regulamentam tal lei.
Ao apresentarmos casos de racismo e exclusão social em uma perspectiva histórica,
reafirmamos a necessidade de “políticas de reparações, e de reconhecimento e valorização” da
História e Cultura Afro-brasileira e Africana, que venham a contribuir para a “correção de
desigualdades raciais e sociais, orientadas para oferta do tratamento diferenciado com vistas a
corrigir desvantagens e marginalização criadas e mantidas por estrutura social excludente e
discriminatória”, como determina o referido Parecer.
No geral, para o período pesquisado, a imprensa brasileira “costumava representar os
negros de maneira depreciativa nos jornais e não fornecia espaço suficiente para divulgar
eventos promovidos pelas comunidades e associações negras”, como também “para debater
problemas e fazer reivindicações relativas a essa população” (MATTOS, 2016: 188).
Dijk (2015: 97-98) nos explica o posicionamento racista de várias matérias jornalísticas.
Segundo esse autor, “a maioria da elite de poder é branca e seu poder implica acesso
preferencial aos meios de comunicação de massa, aos discursos políticos de tomada de
decisão, aos discursos da burocracia e ao sistema legal”. Além disso, “é o grupo branco como
um todo que tem privilégios especiais de acesso aos recursos sociais, incluindo aí os recursos
simbólicos da comunicação”. Como resultado, “o quadro de pessoal nos jornais é
praticamente todo composto de brancos”, acarretando “sérias consequências na produção de
12
notícias, no estilo de redação, no acesso às fontes e no ponto de vista geral do discurso
jornalístico ou dos programas de televisão”.
Uma das expressões utilizadas pelo colunista do jornal “Folha do Norte”, no final do
século XIX, para qualificar Francisco Moré: “grande negro d’alma abençoada e branca”, é
semelhante à usada atualmente: “negro bom é negro de alma branca”. Em uma pesquisa
realizada em 2004, mais de 50% das pessoas entrevistadas concordavam com esse tipo de
afirmativa. No entanto, somente 10% admitiam ser racistas, o que levou certos autores a
classificar esse tipo de preconceito como “racismo cordial”, surgido em virtude de vários
fatores, dentre eles o “mito da democracia racial” e a “ideologia do branqueamento”. Esse
racismo “se caracteriza por uma polidez superficial que reveste atitudes e comportamentos
discriminatórios, que se expressam ao nível das relações interpessoais através de piadas, ditos
populares e brincadeiras de cunho ‘racial’” (LIMA, VALA, 2004: 407).
Portanto, o racismo permanece historicamente em nossa sociedade. No entanto, houve
vários sujeitos que resistiram a esse preconceito. Os casos mais famosos nesse sentido foram
o de Martin Luther King, Nelson Mandela, Malcom X, entre outros.
Neste trabalho, lembrou-se o caso de Francisco Moré, “esse grande cubano”.
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