“essa era nossa imagem! – dos cadernos e folhetins

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ISSN 2175-6945 “Essa era nossa imagem!" – Dos cadernos e folhetins criminais aos circuitos da cultura: fotografias que levaram o funk a arte. 1 Rodolfo PAULO 2 Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ Resumo Tendo como eixo motivacional para este artigo um recorte de jornal que expõe retratos de funkeiros ao estilo dos cadernos criminais, visamos discutir a imagem destes cantores na mídia hegemônica. Contrapomos então, esta imagem dos meios de comunicação, a produção de fotógrafas como Dani Darcoso que a partir de seu trabalho autoral oferecem outras abordagens subjetivas ao tema, sendo capazes de alargar fronteiras e engajar outros agentes de fala na constituição do imaginário social do Funk. Por esse viés, são capazes de aproximar o funk do campo da arte (Bourdieu, 1996) gerando outras convergências. Esse processo veio a levantar questões sobre a autenticidade deste ritmo como manifestação cultural brasileira (Sá, 2000), em especial, discutimos a legislação especifica para a "existência" do estilo musical enquanto cultura. Contudo, pensamos as possibilidades de uma representação visual com mais nuances a identidade do negro e sua pluralidade atual. Palavras-Chave: Campo da Arte. Lei Funk é Cultura. Fotografia. Imagem. Funk. Arte. O funk carioca e a tal MPB – Música Popular Brasileira: rápida análise sobre a posição do funk no cenário sociocultural brasileiro a partir da imprensa. A música popular massiva é capaz de pautar discussões às visões de mundo que circulam sobre a ideia de uma identidade nacional brasileira legítima. Recortes de falas de jornais de grande circulação foram ilustrativas à Simone Sá (2000), para assim, se pensar questões ligadas a legitimidade de manifestações culturais subalternizadas. A grosso modo, quando se cita a sigla “MPB”, música popular brasileira, está implícito quem faz parte dela e quem está fora, polarizando em diferentes visões o 1 Trabalho apresentado no GT História da Mídia Impressa integrante do 11º Encontro Nacional de História da Mídia. 2 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da PPGAC/ECO – UFRJ, email: [email protected]

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ISSN 2175-6945

“Essa era nossa imagem!" – Dos cadernos e folhetins criminais aos circuitos da cultura: fotografias que levaram o funk a arte.1

Rodolfo PAULO2

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ

Resumo

Tendo como eixo motivacional para este artigo um recorte de jornal que expõe retratos de funkeiros ao estilo dos cadernos criminais, visamos discutir a imagem destes cantores na mídia hegemônica. Contrapomos então, esta imagem dos meios de comunicação, a produção de fotógrafas como Dani Darcoso que a partir de seu trabalho autoral oferecem outras abordagens subjetivas ao tema, sendo capazes de alargar fronteiras e engajar outros agentes de fala na constituição do imaginário social do Funk. Por esse viés, são capazes de aproximar o funk do campo da arte (Bourdieu, 1996) gerando outras convergências. Esse processo veio a levantar questões sobre a autenticidade deste ritmo como manifestação cultural brasileira (Sá, 2000), em especial, discutimos a legislação especifica para a "existência" do estilo musical enquanto cultura. Contudo, pensamos as possibilidades de uma representação visual com mais nuances a identidade do negro e sua pluralidade atual.

Palavras-Chave: Campo da Arte. Lei Funk é Cultura. Fotografia. Imagem. Funk. Arte.

O funk carioca e a tal MPB – Música Popular Brasileira: rápida análise sobre a

posição do funk no cenário sociocultural brasileiro a partir da imprensa.

A música popular massiva é capaz de pautar discussões às visões de mundo que

circulam sobre a ideia de uma identidade nacional brasileira legítima. Recortes de falas

de jornais de grande circulação foram ilustrativas à Simone Sá (2000), para assim, se

pensar questões ligadas a legitimidade de manifestações culturais subalternizadas.

A grosso modo, quando se cita a sigla “MPB”, música popular brasileira, está

implícito quem faz parte dela e quem está fora, polarizando em diferentes visões o

1 Trabalho apresentado no GT História da Mídia Impressa integrante do 11º Encontro Nacional de História da Mídia. 2 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da PPGAC/ECO – UFRJ, email:

[email protected]

ISSN 2175-6945 assunto. De um lado, ficam os guardiões de uma certa pureza, que preservam o legado

simbólico e cultural legitimado, por exemplo, pelo samba, como parte de uma

identidade nacional e autêntica. Do outro, aqueles que de algum modo profanam

estruturas culturais já cristalizadas sob a forma do “cavaco, pandeiro, tamborim” —

caso da Axé Music, do brega, do arrocha, do pagode, do funk, do forró e outros, como

lembra Simone Sá (2000) com a máxima “não me altere o samba tanto assim”, de

Paulinho da Viola. Deste modo, a autora abre a discussão sobre a questão.

O tema, à época, fora a mácula deixada pelo grupo de Axé Music É o Tchan ao

participar do festival suíço de Jazz de Montreux, na Suiça, na noite reservada ao Brasil.

A polémica não foi gerada pelo público que no festival viu o rebolado de Carla Perez

nos mesmos palcos em que já tocaram Djavan, Caetano Veloso, Gilberto Gil, João

Gilberto e Alceu Valença, mas sim nas páginas dos cadernos de cultura dos jornais

cariocas.

A música popular brasileira tem sido instrumento privilegiado da dramatização

da vida social, política e afetiva, dentro de nossa cultura. Da Matta (1994: 61) lembra

que basta mencionar um tema para encontrar uma canção popular que o retrate; pontua

ainda que, em um país com altas taxas de analfabetismo, a música popular é tão

importante quanto a literatura.

Mas não se trata de qualquer popular. Deve-se obedecer a alguns acordos para

que tal música seja incluída em determinados circuitos culturais. Sá (1997) reforça que

o termo “MPB”, “inventado em conjunto” por músicos, empresários do show business,

veículos de comunicação, jornalistas, intelectuais e representantes da cultura oficial, tem

por matriz rítmica a cultura carioca — onde “quem não gosta de samba, bom sujeito não

é”, conforme canção de Paulinho da Viola, ou seja, o Carnaval e seu ritmo

reivindicaram pra si o papel de homogeneizadores da harmonia da cultura brasileira,

afirma a autora em consonância com Barbero (2009). O que aconteceu no Brasil com a música negra, o modo desviado, aberrante, com que ela obteve sua legitimação social e cultural, põe em evidência, os limites tanto da corrente intelectualista quanto do populismo, na hora a trama de contradições e seduções que compõe a relação entre popular e massivo, a emergência do popular urbano. (Barbero, 2009: 242)

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A legitimação dessa autenticidade é fruto da fusão e mesclagem de múltiplas

influências — desde negros analfabetos e bases rítmicas afro-baianas aos compositores

mais letrados e bem relacionados, responsáveis pela sofisticação das músicas e por levá-

las para outros espaços. O projeto de nacionalização do samba foi tão bem-sucedido que

qualquer tentativa de fusão oriunda de outros lugares é “jogada para escanteio” — seja o

frevo, a modinha, o maxixe, o “samba baiano” do É o tchan, todos enquadrados sob o

rótulo menor de “regionais”, isto é, “menos relevantes” para o projeto de Brasil nesse

contexto (SÁ, 2000).

Nesse sentido, qualquer ranhura a tão bem sucedido “projeto” é rejeitado.

Barbero (2009: 243) supõe que o que incomoda seja o atrevimento do gesto negro que

transformou seu ritmo em estratégia ao longo do tempo, por meio de uma manifestação

física que não é o trabalho. Não se trata de sua indecência e seu atrevimento para com o

sexo, mas sim o escandaloso lugar no campo cultural que instaura também crises

políticas.

A partir das questões desenvolvidas acima discorro a seguir sobre o campo de

disputa simbólica onde se encontra o funk.

“É som de preto” – Aspectos da disputa do funk no contexto cultural hegemônico.

Dentro do contexto social das favelas e morros cariocas, novos atores sociais,

com configurações identitárias alheias a do sambista de terno branco e ginga de

malandro, começam a aparecer evidenciando outros frutos da diáspora africana. Estes

reivindicam para si matizes musicais e comportamentais próprias. Sua discursividade

ultrapassa a letra de suas músicas, enfrentam as convenções sociais, rechaçam o “bom

gosto” estabelecendo padrões de registros e lugar de fala, indumentárias, e gestuais

próprios.

Contudo, veio a surgir também, decorrente de outras relações de corporalidades

do negro, um tipo específico de dança, onde a coreografia passa a ser repetida nos bailes

por dezenas de pessoas agrupadas em movimentos que parecem ensaiados. São as festas

ISSN 2175-6945 conhecidas como bailes funk, em que a partir de um certo modo de pertença aquele

lugar há uma aproximação entre discursividade e visualidade.

Isto se evidencia, por exemplo, através da vestimenta importada dos B-Boys e do

hip-hop norte-americano, reapropriada com um visual próximo ao do surf. Ao invés

dos puxadores de samba, ou das “tias” dos antigos casarões do centro do Rio, surgem os

primeiros MCs, uma espécie de “rapper local”. Os MCs improvisavam de forma quase

falada sobre o ritmo mixado nos bailes pelos DJs, que importava uma base musical do

estilo Miame Vice, com dizeres pornográficos ou convocando nomes de favelas. O funk

do início da década de 90 dá novos contornos aos festejos populares das comunidades

cariocas.

Este “novo negro” que surge no cenário carioca configura uma disputa por um

novo lugar simbólico as festividades nas favelas e comunidades, deixando-a, de um

modo geral, mais plural e diversa. O novo estilo musical foi um completo sucesso

popular no Rio de Janeiro na década de 90, o que corrobora para grande adesão massiva

em meios de comunicação, como o rádio.

Um dado curioso nesse contexto é que o funk, em 1989 — quando o DJ

Malboro, que comandava o programa Funk Brasil (mesmo nome do primeiro disco de

sucesso de funk) na emissora de rádio Manchete FM, ocupava o primeiro lugar na

audiência das rádios cariocas (Vianna, 1990). Hoje, leituras recentes do IBOPE3

apontam ainda o mesmo horário de 16h às 18h, na emissora de Rádio FM O Dia, com

programas de funk ocupando a maior audiência no meio rádio.

Nessa época o funk já possuía penetração consolida com as chamadas equipes de

sons em diversas localidades da cidade. Os bailes chegavam a reunir cerca de 10 mil

pessoas sob a completa ingestão do Estado. Teve associação exagerada com a

criminalidade, muito a partir de conteúdos noticiosos distorcidos.

3 IBOPE – Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística, que dentre suas funções, afere a audiência dos veículos de comunicação.

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Por conseguinte, ser o estilo musical mais ouvido ou mais amplamente

midiatizado não significa ser o mais aceito ou articulado, como o samba4 foi. Contudo,

é possível observar a notoriedade dessa espécie de demarcação de lugar nesta

construção de espaço; e, nessa disputa simbólica, é mais importante “quem diz” e de

“onde se diz” do que “o que se diz”. Assim vejamos:

Desde o estudo de Vianna (1990), houve um reconhecimento de que as letras do

funk, por conseguinte, sua imagem, esbarram em questões de legitimidade. Nos dias

atuais, as letras de funk são sempre colocadas em oposição as letras do chamado “funk

antigo”, ou curiosamente apelidadas de “funk de raiz”, em alusão direta ao “samba de

raiz”, quer dizer, aquele que considera certa noção de origem.

Afinal, foi preciso reconhecer que “era só mais um Silva / que a estrela não

brilha, / ele era funkeiro, mas era pai de família” merecia ser inserido, ainda que com

certa ressalva, na sigla MPB. Esta segue sendo uma das letras mais famosas – utilizada

inclusive, na cerimônia de abertura das Olimpíadas 2016 – o funk “Rap do Silva”

(1995), de Bob Rum. O seu reconhecimento se deu porque hoje é considerada como

uma “música consciente” que retratava a realidade social das favelas de maneira

poética.

Em 1996, a dupla Claudinho e Buchecha, conseguiu grande repercussão com a

chancela da gravadora internacional Universal Music, apresentando músicas com

caráter crítico. Além disso, esses cantores/compositores conseguiram obter presença

massiva em diversos programas de televisão. Casos como estes introduziram de forma

expressiva o funk no circuito midiático, permitindo a construção de um “poder

simbólico” (Bourdieu, 2006) criando uma realidade que tende a estabelecer uma ordem,

um sentido imediato do mundo social, oferecendo concordâncias, ou, ao menos,

deixando o funk um pouco mais tolerável.

Com o passar dos anos podemos considerar que a penetração do funk na mídia

foi cada vez mais tolerada. No entanto, esse processo foi marcado por fortes relutâncias

4 O samba teve seu processo de legitimação conturbado no início do século. Seu surgimento era caso de polícia, conseguiu seu processo de legitimação à força. Comumente era confundindo com confusões nos

ISSN 2175-6945 em aceitar as manifestações do funk, fundamentando este rechaço as associações feitas

ente o ritmo e o conteúdo de seu discurso.

Os meios hegemônicos vão relutar em aceitar as manifestações de funk

fundamentando tal rejeição às associações feitas entre o ritmo e o conteúdo de seu

discurso. É fácil encontrar no YouTube, por exemplo, se buscarmos pela música “Nosso

Sonho”, de Claudinho e Buchecha, um número interminável de comentários ratificando

que “isso era funk de verdade” (músicas poéticas) e “o funk de hoje é um lixo” (músicas

lúdicas e sexuais) — argumento apoiado no fato de que o ritmo, atualmente, estaria

impregnado de “putaria” e faria apologia à violência sexual, com letras carregadas de

artificialidade. Ora, seria demasiado depositar apenas no funk o grau de erotização da

sociedade brasileira e apontá-lo como responsável maior pela “pouca-vergonha” dos

dias de hoje.

Retornemos ao caso do É o Tchan, que ludibriava com letras de duplo sentido5, e

de uma mistura de ritmos que incorporava o samba, a salsa, o frevo com o objetivo

apenas de celebrar e brincar, mas não alcançou a mesma legitimação, por exemplo,

conquistada pelas “marchinhas” no Rio de Janeiro ao longo dos anos. As marchinhas,

que por décadas ainda fazem parte do carnaval de rua carioca, também contêm

trocadilhos, superficialidade e conteúdo sexual, mas partem da base rítmica do samba.

Ainda sobre este exemplo, Simone Sá (1997) pontua que o que está em jogo é uma

disputa política, autoritária, excludente e cristalizada que visa, como mencionamos, à

apropriação de uma determinada ideia de autenticidade da cultura nacional que não

poderia, supostamente, ser maculada por letras de tão baixo calão. Neste lugar também

se encontra o funk.

“Me deixa de quatro no ato / Me enche de amor, de amor” (“Lança Perfume”, de

Rita Lee, 1980) e “Perua! Piranha! (...) Me deixa gozar, me deixa gozar (...)” (“Não

Enche!”, de Caetano Veloso, 1997) são letras cujos dizeres não se inserem no mesmo

bairros das adjacências do Centro do Rio, pois eram considerados barulhentos e tumultuados em frente a casa das chamadas “tias”, mães de santo que promovia festas além do culto religioso. 5 Muitas vezes o gestual das coreografias de dança do É O Tchan indicavam o sentido real da palavra cantada com o corpo ou faziam alusões sexuais diretas. Quando diziam: “na dança do põe põe você sabe mexer” os quadris indicavam o que significa a expressão (É o Tchan – Dança do Põe Põe).

ISSN 2175-6945 lugar do funk, ainda que seu linguajar seja de igual teor; pertencem, porém, a um lugar

simbólico distinto.

O que é bastante evidente se pensarmos que a figura Caetano Veloso retém

muita mobilidade dentro do campo cultural brasileiro, que suas estratégias, enquanto

indiscutível posição privilegiada na “MPB”, são coerentes as características que

sistematizam sua circulação por diversas camadas sociais, ou seja, seu – “habitus”

(Bourdieu, 2006). O que lhe permite utilizar de qualquer vocabulário sob o refinado

pretexto da “licença poética”.

Já a cantora Valesca do Santos, ou Valesca Popozuda (nome em alusivo aos seus

quadris), que iniciou sua carreira junto com um grupo de mulheres como vocalista

(Gaiola das Popozudas), com cerca de 20 anos, nos anos 2000, diz abertamente em

shows atuais que canta funk de favela, pois esta é sua origem. Suas músicas foram

popularizadas principalmente por outros meios devido ao excesso de conteúdo erótico e

direto. Somente depois de um longo período de trabalho, em 2013, um clipe de baixo

orçamento (Beijinho no Ombro) ganhou o Brasil, permitindo mais fluidez entre os

veículos de comunicação (Caetano, 2015:13).

Valesca não impõe restrições às suas letras em seus shows; no entanto, “Eu

lavava e passava, mas você não dava valor / e agora que eu sou puta você que quer falar

de amor!” (“Agora Virei Puta”, 2008) é alvo de uma certa “higienização” no termo

despudorado quando transposta para espaços midiáticos, como a Rádio FM O Dia:

“puta” vira “absoluta”. A letra de música que é direta em seu show, precisa de uma

versão “para tocar na rádio” a partir de outras rimas e substituições de palavras. O que

denota certa ressalva, especificamente, a este tipo de gênero e não a outros, como o que

pertencente Caetano Veloso.

Importante destacar que Valesca é uma mulher da periferia, com pouco estudo,

cantora e empresaria, produz ativismo feminista, tema recorrente na academia e é

observada por problematizar seu lugar de fala e representa um certo espaço na luta

feminista a posição que ocupa.

Ao passo que a representação da mulher no funk quando ganha contornos

midiáticos, em uma novela, por exemplo sua aparência se distancia, em muito, da

ISSN 2175-6945 imagem de Valesca. Aqui emergem algumas das ressalvas e “poréns” para passar a

outros espaços — caso do funk de Tati Quebra Barraco6, tema musical da personagem

Raíssa, menina loira, de classe média, interpretada pela atriz Mariana Ximenes na

novela “América” (2005), da TV Globo.

Em outras palavras, as letras de funk ganham certa roupagem para circular em

outros espaços – é um processo de higienização –, desde uma readequação vocabular até

sua própria visualidade. Ou seja, há uma reelaboração estética em diversos níveis que

ocorre para o funk se fazer socialmente fluído e esquivar de parecer tão negro e

favelado, logo, pouco aceito.

As letras e demais elementos do funk — transgressão da ordem vigente, voz do

negro nas comunidades, reforço do estereótipo machista, inclusive por mulheres, e, ao

mesmo tempo, lugar da resposta da mulher a esse lugar erótico em que é colocada —

vêm se somar ao contexto midiático atual, às grandes gravadoras que passam a

administrar a carreira dos artistas, à tomada de espaço nos meios de comunicação de

massa. No caso da Rádio FM O Dia, atualmente, além da programação exclusiva de

funk em um horário específico, por 2 horas, também há músicas de diversos cantores e

cantoras ao longo da programação diária. Logo, essa conjuntura, como qualquer

fenômeno cultural, se revela em um paradoxo radical, ora a questionar padrões, ora a

reforçá-los, a partir da necessidade fluida de obedecer às regras de consumo.

Posto esse breve panorama do funk no cenário cultural e musical brasileiro, adiante

será visto de que maneira essa disputa por legitimação se deu no Estado de direito, no

que tange a gestão específica de legislação a área da cultura. E, de que modo, também, a

apropriação midiática converteu-se em narrativas pejorativas e marginalizou a imagem

da figura do MC, dando a ver estigmas sociais.

“Essa era nossa imagem!" – A ofensiva contra o escárnio: sobre o retrato policial

nos jornais.

6 Outra importante cantora do mesmo tipo de funk de Valesca Popozuda, mulher negra e de favela.

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No dia 22 de setembro de 2009, um movimento de mais de 600 pessoas, em

geral negras, dentre eles DJs do funk, dançarinas, algumas travestis e drag queens além

da forte presença de pessoas oriundas de diversas comunidades, militantes de esquerda e

acadêmicos (como o caso de Adriana Facina7 e outros intelectuais) amontoavam-se

dentro da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) e testemunharam a

aprovação da Lei 5.544/09, conhecida como “Funk é cultura”. Segundo Lopes (2010, p.

101), o texto da lei foi uma produção coletiva mediada pela APAFunk (Associação de

Profissionais e Amigos do Funk). Dividido em seis parágrafos muito simples,

destacando-se dois deles: "Art. 1º Fica definido que o funk é um movimento cultural e

musical de caráter popular."; e “Art. 3º Os assuntos relativos ao funk deverão,

prioritariamente, ser tratados pelos órgãos do Estado relacionados à cultura.”

Entre as teses e dissertações acadêmicas, quando mencionada, é praticamente

um consenso de que a criação da lei foi necessária para salvaguardar os funkeiros em

geral dos atos de arbitrariedade do Estado como o caso das incursões policiais violentas

nos bailes. A tentativa é localizar o funk em outro lugar social, ou, como indagou

Marcelo Freixo, deputado estadual na ocasião, na 5º Conferência/Museu de Arte do Rio

(2016), “não é o microfone do MC que deve ser criminalizado”.

Contudo, o funk vem apresentando à cultura popular na cidade do Rio de Janeiro

novos contornos e significados, colaborando numa produção de imaginário sobre o

negro além do samba. De maneira conturbada na década de 1990, com a associação do

funk à violência, como o caso dos arrastões nomeação dada pela mídia aos “jovens

saqueadores” nas praias, o ritmo detém em si o mais evidente escárnio do racismo

brasileiro disfarçado sob a forma de bom gosto. A narrativa midiática também é fluida e

raras foram as dissidências ao longo dessas duas décadas. Em geral, os jornais criavam

cartografias muito específicas sobre quem é esse funkeiro através da tríade simbólica –

“preto, favelado e bandido” (LOPES, 2010, p. 28).

7 É professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/UFRJ. Tem experiência nas áreas de Antropologia e História, com ênfase em Antropologia Urbana e História Cultural. Desenvolveu pesquisa de pós-doutoramento sobre música e lazer popular no Rio de Janeiro, com ênfase no funk. Atualmente pesquisa a produção cultural em favelas cariocas.

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Esta capa do jornal (Figura 1) estampa em forma de folhetim policial 12 retratos

de diversos MCs cantores de proibidão8. Dentre eles, Menor do Chapa, da imagem

acima. Emocionado, eloquente e trêmulo, no mesmo evento no Museu do Arte do Rio

(MAR), compartilhou a mesa com Freixo e outros agentes de fala que se relacionaram

com o funk, como alguns fotógrafos, cerca de dez anos depois (2016) da publicação. Figura 1. Recorte do Capa do Jornal "O Dia" de 30 de setembro de 2005

Fonte: O DIA, Jornal. Capa. Editorial. 2005

Menor, como é chamado, exclama – “essa era a nossa imagem antes desses

caras! Essa era a minha imagem.” e aponta para o telão onde o mesmo estava projetado.

8 Funk proibidão é uma espécie de subgênero do funk, em geral, acusado pelo Estado de fazer apologia ao crime. Suas narrativas sobre o universo da criminalidade, tangenciam o cotidiano e as sociabilidades ligadas à noção de bandido (Novaes, 2016: 11). Os noticiários da época, 2005, tomam tal premissa para justificar manchetes excessivamente pejorativas ao tema. Não é nosso objetivo discutir a legitimidade do subgênero proibidão, posta em cheque na matéria, mas sim a ausência de nuances na representação imagética dos cantores. Importante não confundir com o funk putaria, outro subgênero com letras eróticas explicitas.

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Quando Menor do Chapa se refere a “esses caras” ele está de mãos dadas a Dani

Darcoso, e ao lado, Vincent Rosenblatt e Maria Puppim Buzanovsky. Três fotógrafos

que passaram a reivindicar no campo da arte (Bourdie, 1996) outras possibilidades de

imagem aos mesmos funkeiros dos retratos policiais. Imagem não só no sentido moral e

estético, mas sob novas produções de imaginários.

Sobre o campo artístico Bourdieu (1996: 244) pontua que agentes e instituições

atuam em espaços de relações de forças de acordo com seu capital. Capital, neste caso,

em Bourdieu representa um poder sobre um campo. Então, as espécies de capital são

poderes que definem as probabilidades de ganho num campo determinado. Os artistas

apresentados acima, de algum modo, possuem um volume de capital cultural que

determina as probabilidades agregadas de ganho em todos os jogos em que o capital

cultural é eficiente, contribuindo, deste modo, para determinar uma posição estratégica

no espaço social – isto é, o Illusion. Em outras palavras, é o entendimento da condição e

do funcionamento deste campo específico que possibilitou arquitetar posições

estratégicas para a circulação dessas imagens.

Logo, a partir das fotografias, outras narrativas foram e são possíveis, até os dias

atuais. O engajamento destes artistas com a temática funk, como: a produção de ensaios,

séries, circulação de exposições e projeções em muros dos bailes e favelas promoveu

outra narrativa visual a questão.

As imagens do trabalho autoral, poético e político que esses três fotógrafos

criaram, ainda que em menor proporção, oferecem aos folhetins, chances de novos

contortos a identidade oriunda das classes subalternizadas da cultura brasileira. De

alguma forma, as fotografias propõem uma oposição aos muitos recortes de jornais que

estigmatizaram especificamente a imagem do negro funkeiro, mesmo quando passou a

ser economicamente conveniente pautá-lo nos programas de televisão.

O recorte visa ilustrar a discussão junto aos diversos agentes de fala que foram

vetores de força na criação da Lei “Funk é cultura”. Oficialmente, com ela, tornou-se

indecente aos jornais seguir produzindo tais narrativas. Deste modo, o Estado produziu

um anteparo à marginalização que institucionalizou alguma legitimação cultural, daí

ISSN 2175-6945 então, pareceu existir um acordo tácito em realocar os funkeiros dos cadernos policiais

para os cadernos de cultura.

A Lei surgiu como uma espécie de medida última para garantir o exercício das

funções dos produtores culturais de funk. Em geral as equipes de som, como são

chamadas, ou DJs quando tinham a iminência de qualquer incursão policial, ora,

sofriam “a dura” (truculência policial), ora, ofereciam subornos. A discriminação

sofrida por estas equipes levava a tratamentos violentos, sendo muito comum encontrar

na fala dos MCs relatos sobre equipamentos danificados, CDs jogados em valas,

agressões físicas, fios das caixas de som cortados e queimados pela polícia. Nesse

sentido, a lei surgiu como um instrumento de legitimação das atividades dos

profissionais do Funk de forma a limitar a ação violenta e arbitrária da polícia.

No entanto, a “Ofensiva contra os gritos de guerra do crime”, como noticia a

violência simbólica da manchete, é parte de uma visibilidade da tríade do “negro, pobre,

favelado” anterior a legislação.

Para atender o debate de modo plural, mais uma vez, vale sublinhar alguns

agentes de fala, bem como seus contextos, que tomaram para si de maneira pública a

questão criando outras tensões.

Deste modo, a figura do artista que produz um trabalho autoral sobre funk, assim

como o deputado Freixo, ambos surgem como mais agentes de fala importantes no

processo. Ao produzir discursos visuais, os fotógrafos formulam importante vetor de

força no debate criando dissidências ao imaginário hegemônico, logo, faz sentido

localizar suas fala no processo de inserção do funk no campo da arte.

São os casos específico dos fotógrafos Vincent Rosenblatt (2005 – 2014), Dani

Dacorso (1998 – 2008) e Maria Buzanovsky (2013 – 2015) que, como conhecedores do

jogo, ou meandros artísticos, fazem transitar imagens de outra ordem, produzindo

efeitos estéticos e políticos por meio de fotografias.9

A produção de imagens autorais dos fotógrafos em questão levará em questão o

contexto do funk em embates políticos presente no tema. Contudo, passa-se a

9 Iremos nos ater em seguida mais as imagens e relatos de Dacorso.

ISSN 2175-6945 importância de expor a atuação desses artistas nas esferas simbólicas pontuadas até

aqui, de modo a intervir em suas estruturas.

Campo de disputas simbólicas e suas refrações – fotografias que propõe a retirada

do funkeiro dos cadernos policiais

Com a finalidade de tangibilizar a discussão a partir das imagens, nesse sentido

as fotografias apresentam de maneira bastante palpável o campo em disputa. Contudo,

para dar corpo a essas inferências críticas, foi realizado com Dani Dacorso uma

entrevista com o objetivo de criar registro a partir da fala dos fotógrafos que buscaram

produzir imagens dissidentes sobre a temática funk (Entrevista, 2016/08).

Importante salientar a relevância do fotógrafo ser aceito em uma favela. Ambos

os fotógrafos, tanto de Dacorso quanto de Rosenblatt, tiveram êxito em suas

negociações, uma vez que, o porte de câmeras nas comunidades do Rio por

desconhecidos era imediatamente associado a figura do X9 (delator), ou seja, do

característico repórter com equipamento robusto atrás do furo de reportagem. Logo, era

proibida pelos chefes do tráfico.

No caso dos fotógrafos em questão, toda a negociação carrega bastante

particularidade e preocupação em reconhecer e respeitar os espaços. Dacorso e

Rosenblatt, de alguma maneira, criaram uma relação de confiança e maturação com o

tempo.

Ao longo dos anos 1998 a 2008, a artista frequentou bailes da baixada

fluminense e reuniu em uma série de exposições o registro de cerca de 20 imagens da

cena funk carioca. A exposição Totoma!, termo que se refere ao efeito sonoro do DJ ao

mixar a voz do MC, foi exibida na Bienal de Fotografia de Nice e no Maison Folie de

Moulins, em Lilie, ambas na França em 2005. As imagens também participaram da

coletiva Estética da Periferia, no Centro Cultural dos Correios, no Ateliê da Imagem,

além da Galeria 535 localizada na sede do Observatório de Favelas em 2011.

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Todo o registro é em preto e branco, de caráter ficcional com a presença do

cômico, do festejo, do trabalho local, não trata apenas a imagem enquanto documento,

mas de um mise-en-scène delicadamente criado e com sentido semântico variado.

No morro do Borel, durante a desmontagem de um soundsystem (parede de

caixas de som) a fotógrafa se aproximou e clicou algumas pessoas que trabalham no

local. Dacorso explica que quando revelou a imagem (Figura 3) percebeu que o retrato

era muito próximo a uma fotografia de Cartier-Bresson e escolheu assumir a releitura

batizando-a de O Menino de Bresson. Figura 2. (esquerda) - Rue Mouffetard, Paris, Portrait. Henri Cartier-Bresson, (1954).

Figura 3. (direita) - O Menino de Bresson, Borel, RJ, Portrait, Dani Dacorso. (1998 - 2008).

FONTE: Acervo Dani Dacorso (1998 – 2008)

Durante a entrevista foi perguntado a Dacorso (Entrevista, 2016) se o tema já

havia sofrido alguma restrição ou ressalva já que suas imagens são de forte teor erótico

e cômico com relação a ideia de crime, por exemplo. Ela explica que a procura pelos

seus registros sempre foi grande por parte da imprensa. Devido a seu vínculo era

possível trânsito livre por meio de suas relações amistosas com as comunidades e com

ISSN 2175-6945 os cantores, Mr. Catra, Menor do Chapa (os mesmos dos retratos policiais do jornal O

Dia) e outros. Porém, esses veículos de comunicação, jornais ou revistas, visavam

imagens que sempre versavam sobre os extremos do tema, nunca sobre as nuances. Não

se tratava de uma abordagem autoral, mas de um recorte temático buscando alguma

fotografia, no todo do trabalho, que era ilustrativa do funk. Tal abordagem da mídia

brasileira gerou uma interlocução tensa, nos diz a fotógrafa, uma vez que, os jornalistas

tendiam a conduzir as aspas com algo já bem determinado e pré-concebido. Explica que

o contato com a mídia brasileira sempre fora muito complicado.

A fotógrafa conta que houve uma ocasião em que o cônsul brasileiro em uma

exposição na Holanda sugeriu a retirada de uma de suas imagens (Figura 4). Afirmava

não ser representativa do Brasil (grifo meu), na ocasião, o curador da exposição não

cedeu à exigência e manteve a imagem a contragosto do cônsul.

Figura 4. – "De Brinquedo" – Série “Totomá!”

FONTE: Acervo Dani Dacorso (1998 – 2008)

Dacorso relatou que algumas abordagens internacionais produziam um certo

exotismo, no entanto havia mais reconhecimento, respeito e menos determinismos.

ISSN 2175-6945 Diferente de outras exposições no país onde foi sugerida a retirada de algumas

fotografias de uma de suas séries por seguir um recorte por faixa-etária.

Mas nem sempre a circulação por diferentes espaços se reservou a experiências

desgastantes. Na ocasião da Holanda (Netherlands Fotomuseum, Rotterdam), o curador

da mostra sugeriu que as imagens ganhariam força se acompanhadas de áudio. Sugeriu

que a musicalidade pudesse alargar os sentidos de quem estava distante do contexto das

fotografias, o que foi visto de forma muito positiva pela artista.

Figura 5. - SlideShow das Imagens de Roosemblatt. Dona Marta. Arvore Seca. Campo da Ordem,

Complexo da Penha. (2009)10

FONTE: Acervo Vincent Rosenblatt (2005 – 2014)

As disputas, exemplificadas nos relatos de Dacorso (Entrevista, 2016: agosto),

estão sob um contexto de criação de novos imaginários sobre a periferia brasileira, em

especial no Rio, que demarcam estrategicamente um certo lugar em crescente ebulição e

anseios por outros enquadramentos.

Como dito anteriormente, percebeu-se que a década de 90 foi marcada por uma

quebra de hegemonia na representação dos favelados tornando suas visibilidades mais

plurais. De certa maneira, outros sentidos passaram a ser reivindicados justamente no

mesmo local de origem de onde fora o “berço do samba”.

A imagem do sambista não é ameaçadora, pois não fere os paradigmas de

comportamento sexual da mesma maneira que o funk faz. Dacorso se diz incomodada

10 Também, para além de espaços expositivos, Rosenblatt frequentemente leva projeções (Figura 5.) do "Rio Baile Funk" ao Morro do São João, na Vila Cruzeiro, no Santa Marta e na Boca do Mato.

ISSN 2175-6945 pela constante acusação e rejeição que vê e ouve acerca da sexualidade que circunda

funk. O excesso de rejeição ao corpo do funkeiro é algo que “dá nas vistas” de maneira

repugnante, principalmente quando certas imagens convocam um olhar ao que é tomado

como estranho.

Ela explica que certa vez uma de suas fotografias (Figura 6.) foi solicitada para

ilustrar uma capa de um livro sobre funk, de autoria do jornalista Silvio Essinger

(2005). A editora produziu intervenções bruscas transformando a imagem em uma

espécie de ilustração ao estilo pop-art, além da retirada das mãos que compõem um teor

erótico na cena. Figura 6. Direita: Imagem original "Monstro de Mil Mãos". Série "Totomá". Esquerda: Capa do Livro.

FONTE: Acervo Dani Dacorso (1998 – 2008)

A fotografia foi reapropriada de forma moral, higienizando seu contexto de

maneira a favorecer uma imagem “menos agressiva” e escandalizante. Dacorso tem

como característica nomear as obras criando extensões de sentido, no caso do “Monstro

de Mil Mãos” a alteração provoca uma leitura deslocada de sua ideia original, o que

evidentemente não era o desejo da autora da fotografia.

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Como estes, há muitos vetores de força que deixam claro que o funk é algo que

beira o insuportável uma vez que promove rupturas num projeto “ideal de Brasil”. Uma

série de estigmas podem são criados, como fica evidente no canal do Youtube chamado

Mamilos Molengas, criado em 2010, onde o youtuber do canal de heavy metal cria

paródias emitindo juízos de valor em torno de gêneros da música popular massiva –

caso do funk. Logo, é a partir destas concepções que certos estigmas são ativados. Ao elogiar a paródia ou discutir com seus detratores, os antifãs de funk utilizam de forma recorrente estigmas que marcam o funk desde a sua consolidação no Brasil, tais quais a associação com a pobreza e a criminalidade, como elementos que reforçariam processos de distinção em relação àqueles que não gostam do gênero. Preconceitos de classe, raça e gênero aparecem nos discursos de modo a legitimar o caráter superior do heavy metal, representado aqui como um gênero mais “intelectualizado”. Tais colocações ecoam um paradigma elitista sobre a cultura popular periférica como manifestação necessariamente inferior devido à falta de acesso dos mais pobres à educação, ignorando que os fãs de outros gêneros musicais, como o próprio heavy metal, são constituídos por uma diversidade de classes sociais. Tais discursos remetem aos apontamentos de Martín-Barbero (2009) sobre processos classificatórios que classificam a cultura popular não pelo que ela é, mas pelo que lhe falta. Nesse sentido, destacamos ainda a argumentação pautada pelo ideal iluminista da cultura como fator de desenvolvimento de uma nação. De acordo com os críticos do funk, o sucesso do gênero seria um atestado de subdesenvolvimento para o país – o gênero, aqui, aparece diretamente relacionado a processos de alienação da população brasileira. (Holzbach et al. 2015: 144)

No entanto, com destrezas que podem ser semelhante as do samba, o funk parece

ser socialmente tão fluido quanto. Estrategicamente, provocou fusões. Quando

conveniente, passa a ocupar as frestas em que é posto, ou, se coloca. Logo, o funk foi

alastrado e pulverizado, sendo lógico e indiscutível, que o efeito em grande parte advém

das relações mercadológicas que o permeiam. Mesmo não sendo o objetivo do trabalho,

não é possível passar por essa discussão sem alertar os extremos que a indústria

fonográfica vive. Desde um MC que faz cerca de 3 a 5 shows em favelas diferentes

ganhando em média 100 reais por show, conforme afirma Lopes (2010: 96), até

megashows impregnados de índices do pop americano como trocas de figurinos e

cenários, corpo de bailarinos, ventiladores para cabelos esvoaçantes, bandas de

músicos.11

11 Nos dias atuais, foi facultado a mim a função de repórter fotográfico. Exercendo essa função fui contratado pela equipe do Dennis DJ a produção e coberturas de diversos shows no final de 2015, início

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Quando, em uma entrevista, MC Smith12 foi retrucado sobre o que seria o auge

de sua carreira, já que o mesmo não reconhece que esse momento tenha chegado, ele

responde de imediato – “ser convidado para cantar no Rock In Rio”. Curioso que todos

os cantores de funk por alguma razão retiram o termo MC da frente do nome quando

alcançam certa notoriedade nacional. Gesto simbólico que parece significar um

afastamento de qualquer possibilidade de precariedade, como pouco figurino, equipe

reduzida, baixo cachê e outros, tão comuns entre os MCs de produções menos robustas.

De certo modo, entre um MC e o Rock in Rio há vetores de forças que produzem um

brusco processo de homogeneização de identidade.

Nesse sentido, as imagens dos fotógrafos escapolem de produzir uma representação

sujeita a essas expectativas, preservando, assim, possibilidade de narrativas dissidentes

que se contrapõem as apropriações midiáticas tão corriqueiras às temáticas de

complexidade social.

Considerações finais: teria o fotógrafo um papel no funk?

A experiência de violência física e moral de maneira tão forte, parece marcar os

MCs de um modo muito profundo em seus espaços afetivo-sociais. Durante a entrevista

pedi a Dacorso que sanasse uma curiosidade, expliquei que houvera sido marcante o

momento em que no MAR (Museu de Arte do Rio) ela estava de mãos dadas de

maneira veemente ao Menor do Chapa, enquanto Rosenblatt exibia o recorte de jornal

com sua imagem como criminoso. Ela explicou que se tratava de um período em que o

tema era bastante presente em seu dia à dia e à época Menor do Chapa descortinou sua

comunidade a ela, a levou em sua casa, a apresentou à sua mãe, sua laje e o fotografou

em diversos shows e ocasiões, respondendo assim à proximidade.

de 2016. O DJ é um dos mais bem remunerados do segmento. Há eventos desde um Bar Mitzvá no Parque Lage, como também formaturas de medicinas e diferentes cidades e estados do país. Esses acessos, que escolho entendê-los como fontes de meu trabalho, denunciam a dimensão e proporção que o funk angariou por meio de diversos vetores de força econômica e social. 12 Editorial Fotográfico produzido e fotografado por mim para o site da Rádio FM O Dia.In: http://www.fmodia.com.br/novidades/2014/09/19/mc-smith-tudo-que-e-proibido-o-povo-se-amarra/ acessado em: 07/08/2016

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Por fim, questionei se nos espaços em que circulou ela sentiu que seu trabalho

oferecia alguma militância diante da enxurrada de estigmas visuais? Disse-me que de

algum modo sim, mas uma militância do corpo feminino uma vez que o corte de classe

daquelas mulheres em seus espaços de entretenimento passaram a ser visíveis. Ter uma

existência.

Dacorso também contou que em alguns ambientes teve que defender o funk

quando fazia alguma exposição oral mesmo sabendo que não iria dar conta das

contradições do gênero. Afirmou que sempre foi difícil encontrar lugar para essas falas,

que as visões sempre foram polarizadas. Protestou afirmando que “ignorar os contornos

é retirar a gênese do funk de alguma maneira.”

Sendo assim, foi possível discutir o papel do fotógrafo diante de realidades

sociais tão plurais na representação de uma cultura de origem subalterna. A

complexidade de legitimação do funk tanto legal, quanto subjetiva, encontrou poucos

engajamentos éticos no que tange a sua ethos pelos outros meios de produção

hegemônicos. Nesse sentido, o campo da arte pode de algum modo produzir

dissidências no registro imagético da diversidade cultural do negro no Brasil.

E, ainda, ao oferecer contornos mais densos às nuances que configuram aspectos

da identidade brasileira forjados nos processos históricos, sociais e econômicos, cada

vez mais complexos e pulverizados, que também se pode confiar a arte um lugar

importante na produção de imaginários contra-hegemônicos.

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