espinosa - laboratório de sensibilidades · 2019. 5. 13. · franÇois zourabichvili espinosa uma...
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FRAN ÇO IS ZO URABICH VILI
ESPINOSA
UMA FÍSICA DO PENSAMENTO
tradução de Guilherme Ivo (2013)
Título original: Spinoza. Une physique de la pensée (Paris, Presses Universitaires de France, outubro de 2002, pp. 276).
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em memória de Gérard Lebrun
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ÍNDICE GERAL
SOBRE ESTA TRADUÇÃO, 4
ADVERTÊNCIA, 6
INTRODUÇÃO, 8PRIMEIRO CAPÍTULO, 12SEGUNDO CAPÍTULO, 43TERCEIRO CAPÍTULO, 80QUARTO CAPÍTULO, 95QUINTO CAPÍTULO ,127SEXTO CAPÍTULO ,160SÉTIMO CAPÍTULO, 189EPÍLOGO, 225CONCLUSÃO, 231
ÍNDICE DE NOMES PRÓPRIOS, 234BIBLIOGRAFIA, 236
APÊNDICE I: USO DAS OBRAS, 240APÊNDICE II: A LÍNGUA DO ENTENDIMENTO INFINITO, F. ZOURABICHVILI, 250
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SOBRE ESTA TRADUÇÃO
A presente tradução é resultante de um ano de Iniciação Científica na Universidade Estadual de
Campinas, com bolsa cedida pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC)
desta Universidade, pela qual somos grato.
Algumas observações são necessárias ao leitor, referentes a alguns termos:
três deles, que povoam o livro: rapport (conexão), relation (relação), connexion
(concatenação). A tradução não poderia de forma alguma altercá-los, pois a importância de
cada um existe na medida em que se mantêm incólumes, no que se refere a confusões léxicas
e, sendo assim, inevitavelmente conceituais. A recente tradução da grande tese de Deleuze
sobre Espinosa (Espinosa e o problema da expressão, no prelo da Editora 34) divide o mesmo
escrúpulo quanto a estes termos, explicitado em sua seção “Sobre esta tradução”. Parece-nos
imprescindível esta diferença quando se trata da filosofia de Espinosa.
os franceses, em comparação à língua portuguesa, têm um número grande de traduções de
Espinosa. Existem, no entanto, algumas noções espinosanas em que nos colocaríamos em
vantagem relativamente à língua francesa. 1) Espinosa, desde o Tractatus, trata do intellectus,
que simplesmente traduziríamos por intelecto. A tradução tornada clássica, no entanto, entre
os franceses, é entendement, que devemos traduzir por entendimento. Como resultado, a obra
de Espinosa, Tractatus de Intellectus Emendatione, que seria traduzida por nós como Tratado
da emenda do intelecto (ou melhor: da correção do intelecto), precisa ser vertida, quando
partimos do francês, para Tratado da reforma do entendimento. (Tivemos a oportunidade de
esclarecer a distinção entre emendatio e reforma numa nota de tradução ao longo do texto).
2) Outra dessas noções é mens. Traduziríamos sem pestanejar por mente, reservando assim a
palavra espírito para spiritus. Contudo, não houve até hoje francês corajoso o suficiente para
propôr algum neologismo para mens. Nas traduções francesas de Espinosa, mens e spiritus
vão indistinguidos (p. ex., na última tradução francesa do Tratado teológico-político (tr.
Jacqueline Lagrée e Pierre-François Moreau, Paris, PUF, 1999), que é equilibrada, neste
ponto, por ser bilíngue). – Em nossa tradução, tais termos vão traduzidos a partir do francês,
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mas fica a ressalva e o elogio ao português, que pode oferecer soluções melhores ao
vocabulário espinosano.
Ao longo do texto, entre colchetes, inserimos a paginação da edição francesa, de modo a
permitir ao leitor porventura acompanhar quaisquer citações desta obra noutros lugares que as fizerem a
partir do original.
Todas as notas de tradução são anunciadas por números romanos minúsculos, exceto quando
forem tingir as notas do próprio autor, ou quando apenas servirem para traduzir este ou aquele termo
em latim, por exemplo, e para revelar o termo francês de uma tradução que precisaria deste auxílio pela
riqueza da compreensão. Todas elas, sem exceção, vão cerradas por colchetes “[ ]”. O autor, pelo
contrário, quando acrescenta certa informação no interior de algum texto citado, o faz por meio dos
seguintes sinais “< >”.
A tradução conta com dois apêndices. O primeiro é um arrolamento de todas as referências
feitas às obras de Espinosa, de Descartes e de Leibniz ao longo do livro. O segundo é a tradução de um
pequeno texto de F. Zourabichvili “A língua do entendimento infinito”, contemporâneo a este livro,
tocando de forma pertinente alguns de seus pontos.
A tradução vai dedicada a Luiz “Mínimo” Orlandi, a quem devo tudo que me vale em filosofia,
e cuja amizade não precisaria passar de duas linhas para ser vital.
Guilherme Ivo.
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ADVERTÊNCIA
O leitor encontrará, na bibliografia, as referências completas das obras citadas. No corpo do
texto, indicamos apenas o nome do autor, o título, eventualmente a parte ou o capítulo, enfim o
número da página da edição utilizada.
a / Abreviações
Para as obras citadas com maior frequência, usamos as seguintes formas abreviadas:
/ Descartes, Alquié, t. 1, 2 ou 3
para Descartes, Œuvres philosophiques, ed. Alquié, t. 1, 2 ou 3/ Gueroult, t. 1 ou 2
para Martial Gueroult, Spinoza, t. 1: Dieu ou Spinoza, t. 2: L'Âme/ Macherey, vol. 1, 2, 3, 4 ou 5
para Pierre Macherey, Introduction à l'Éthique de Spinoza, respectivamente: La première partie. La nature des choses La seconde partie. La réalité mentale La troisième partie. La vie affective La quatrième partie. La condition humaine La cinquième partie. Les voies de la libération
Para o Tratado da reforma do entendimento, o parágrafo indicado remete ao recorte adotado por Charles Appuhn.
Para a correspondência, quando for conveniente, e para o Tratado teológico-político, sistematicamente, indicamos a página na [8] edição Appuhn, tal como ela está atualmente disponível,
em formato de bolso, acompanhada da referência ao texto latino, se for o caso, na paginação original
reproduzida por Carl Gebhardt.1
Os textos redigidos ordine geometrico são indicados com a ajuda das seguintes abreviações: o número romano remete à parte;
o número árabe à proposição;
“def.” vale para “definição”;
“ax.” para “axioma”;
“post.” para “postulado”;
“dem.” para “demonstração”;
“esc.” para “escólio”;
“cor.” para “corolário”;
“ap.” para “apêndice”;
“def. af.” para “definições dos afetos” (no fim da IIIª parte da Ética).
1 Esta obra já estava acabada quando foi lançada, pela PUF, uma nova tradução do Tratado teológico-político, devida a Pierre-François Moreau e Jacqueline Lagrée.
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b / Traduções
As obras de Espinosa são citadas na tradução de Charles Appuhn, com exceção da Ética (A. Guérinot) e do Tratado político (P.-F. Moreau). Fizemos modificações cada vez que a exatidão o exigia, ou que o comentário necessitava para fazer aparecer a literalidade do texto original. O conjunto das
traduções consultadas figura na bibliografia.
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INTRODUÇÃO
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INTRODUÇÃO
A GRANDE TESE ESPINOSANA da multiplicidade dos atributos permanece, em parte, como se sabe, obscura
e lacunar. Não se compreende perfeitamente como é possível pensar a identidade real do espírito e do
corpo, ou seja: uma conexão tal que seus termos não sejam coisas, mas as diferentes expressões da
mesma coisa. Pergunta-se que consistência tem a afirmação da infinidade dos atributos, pois ela designa,
salvo a extensão e o pensamento, uma quantidade inumerável de objetos de que não temos nem nunca
teremos a menor experiência. Enfim, não se vê bem o que vem a ser, concretamente, o devir da
Natureza concebida sob o atributo do pensamento, na falta de uma teoria análoga ao De natura
corporum, esboçado na segunda parte da Ética.
Se o trabalho da interpretação, sobre os dois primeiros pontos, aparece saturado desde o grande
debate alemão da segunda metade do século XIX e seus mais notórios prolongamentos franceses (Delbos,
Huan, Lachièze-Rey), deixando-nos diante do princípio de uma resposta que descarta a suspeita de
inconsistência, sem com isso esclarecer todas as idas e vindas do paradoxo; em contrapartida, a exegese
continua singularmente silenciosa sobre o terceiro, seja porque julgou o risco vulgar (as [10]
consequências concretas do desdobramento de hipóteses abstratas), seja, mais simplesmente, porque o
ignorou (deixando de levar a sério a radicalidade da tese espinosana).
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“No que diz respeito ao espírito humano, considero também que ele seja uma parte da natureza; admito, de fato, que exista na natureza uma potência infinita de pensar que, enquanto infinita, contém em si, objetivamente, toda a natureza e cujos pensamentos procedem da mesma maneira que a natureza, a qual, seguramente, é seu ideado. Admito, além disso, que o espírito humano é essa mesma potência, não enquanto é infinita e percebe toda a natureza, mas enquanto é finita e percebe somente um corpo humano, de sorte que concebo o espírito humano como uma parte de algum entendimento infinito.”
Carta 32 a Oldenburg.
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INTRODUÇÃO
O risco desta terceira dúvida é, no entanto, claro: está em jogo a independência do pensamento
enquanto atributo, logo a consistência conceitual de uma tese que, enquanto tal, permanece uma
abstração; talvez esteja também em jogo, mais subterraneamente, o que entendemos por teoria filosófica
e por compreensão de uma teoria. Com bastante frequência se esquece que os objetos da filosofia não
existem e nem são “vistos” fora de sua enunciação1. Se a verdade do conceito de atributo for tal que, de
uma infinidade presumida de objetos, somente dois caiam sob o olhar do espírito humano, um deles
por demais obscuramente, os negócios do espinosismo seguramente iriam mal. Para que o devir do
pensamento não se reduza ao decalque ideal do devir dos corpos e para que, assim, a multiplicidade
esteja a salvo, é preciso ao menos produzir índices de autonomia, o esboço de uma formalização
independente: vê-se que as duas mais glosadas dúvidas estão, por um lado, sob a dependência da
terceira.
Ora, se a mais espessa neblina envolve, nos comentários, o devir efetivo do pensamento segundo
Espinosa; se tão frequentemente contenta-se com conjecturas vagas ou bem inconsequentes a propósito
dos “modos infinitos” do atributo Pensamento, como se se tratasse de curiosidades exóticas sem um
verdadeiro risco; não há dúvidas de que se tem por ausente a física espinosana do pensamento. O presente
livro traz, sobre este ponto, um desmentido: essa “física” parece ausente porque não se a procura onde se
deve. Procuram-na instintivamente ao lado de uma mecânica ideal, semelhante à dos corpos – sem levar
em conta que ela se embate com ideias... Assim não se faz jus à amplidão de vista do espinosismo: se as
ideias são de uma outra natureza que a dos corpos, se uma ideia não pode ser “terminada”i por um corpo
nem inversamente, não há razão alguma para que a causalidade só obedeça ao modelo das leis do
choque, e não haveria de se tratar de uma simples transposição metafórica.
É preciso, pois, procurar saber se Espinosa, na verdade, não foi tentado a sobrepassar o obstáculo
do materialismo vulgar, propondo, por meios filosóficos inéditos, o esboço de uma formalização [11]
autônoma da natureza pensante. A entrada é feita, aqui, por uma noção habitualmente negligenciada
que, por ser secundária, não está menos presente em todos os momentos decisivos da construção, e
constitui, a este respeito, um precioso revelador: a forma. Toma-se, normalmente, Leibniz como grande
renovador da noção de forma, em atenção à sua famosa palavra de ordem: “reabilitação das formas
1 Esta questão não se confunde com aquela de seu correlato no mundo.i [Cf. Ética, I, def. 2: At corpus non terminatur cogitatione, nec cogitatio corpore”. A palavra terminatur é traduzida de variados jeitos pelos tradutores]
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INTRODUÇÃO
substanciais”. Mas Espinosa é o primeiro a assimilar a crítica cartesiana para ultrapassá-la, propondo
especificamente, sob o nome de forma, o conceito de individualidade que faltava ao mecanicismo2. Toda
a Ética está preocupada com esta conversão da noção: trata-se de ir do jogo não regrado das formas (Iª
parte) à natureza concebida como elemento da transformação legal (prefácio da IIIª parte), passando por
uma definição original (IIª parte), de onde se destacam igualmente os princípios de uma medicina (IVª
e Vª partes).
Este encaminhamento parece concernir somente ao corpo; a definição da forma está dada
também no De Mente, onde é enquadrada por uma interrogação sobre a “forma do homem” e sobre o
“ser formal do espírito humano”. É preciso, pois, perguntar-se se não há tão-somente homonímia ou
vestígio do uso escolástico. A pesquisa mostra que não é assim e que, pelo contrário, neste ponto, abre-se
o mais estranho terreno especulativo do espinosismo – aquele que conduz, ao preço da elaboração de
uma língua especial, a uma teoria do universo pensante (“entendimento infinito”). As famosas bizarrices
verbais da IIª parte da Ética tomam, então, todo seu sentido: longe de contribuir para uma opacidade do
livro, elas não têm outra vocação senão instaurar um plano inédito de pensamento e elevar até ele o
leitor que consente tal exercício. Também acreditamos, não que seja preciso não traduzir, mas aprender a
falar o espinosano (a famosa tese da mens idea corporis torna-se, então, outra coisa que não uma palavra, e
certas miragens interpretativas se dissipam).
Enfim, essa releitura da IIª parte da Ética esclarece o insistente chamado, nas duas primeiras
partes da obra, da correlação psicofísica, cada vez que se trata da transformação individual (aliam
formam induere, in aliam formam mutare [revestir outra forma, mudar para outra forma]). Não somente
todas as análises espinosanas de [12] fenômenos mentais, do sonho à amnésia, da alucinação à ideia
negativa, devem ser revisitadas do ponto de vista dessa física cogitativa geral, que recusa considerar o
espírito individual, tanto quanto o corpo, “como um Estado no Estado”, e que o recoloca na rede causal
infinita de uma Natureza; mas a questão mesma do estatuto da ideia (noção comum, intuição do
terceiro gênero) reencontra suas condições apropriadas – as de uma questão colocada antes da divisão
abstrata do epistêmico e do ontológico.
Esta obra se propõe, então, a quatro tarefas: 1) expôr a renovação espinosana da noção de forma;
2) ir da individuação corpórea à individuação ideal; 3) destacar os princípios do idioma espinosano que
2 Em outra obra, Le conservatisme paradoxal de Spinoza. Enfance et royauté (PUF, col. “Pratiques théoriques” [), mostramos os riscos ético-políticos dos conceitos de forma e de transformação, abordando especialmente o problema da educação.
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INTRODUÇÃO
dá acesso ao plano do entendimento infinito; 4) reconstituir a grande psicopatologia da Ética.
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CAPÍTULO 1
[13]
PRIMEIRO CAPÍTULOO NOVO CONCEITO DE FORMA
“COMO POR MEIO DESSAS LEIS1, com efeito, a matéria deve tomar necessariamente todas as formas que ela pode receber, caso as considerarmos na ordem, poderemos enfim chegar à forma do mundo presente; assim não
temos que temer erro algum de uma falsa hipótese.”
Com esta frase encerra-se a introdução ao comentário inacabado do livro III dos Princípios da
filosofia de Descartes, que visa justificar o recurso a uma hipótese arbitrária na explicação das coisas.
Passa-se assim, neste livro III, de uma física geral (exposição dos princípios e das leis) a uma física do
singular. E esta passagem é duplamente dedutiva: 1) trata-se de ir dos princípios às “coisas que deles
decorrem”2, 2) dado que uma verdadeira explicação é genética, ou seja: não se contenta em descrever as
coisas “tais quais são”, mas mostra “de que forma nascem”3, deveremos nos apoiar sobre um segundo
tipo de princípios. Porque o pensamento só pode ir das leis às coisas contanto que, ao menos
ficticiamente e, sobre as coisas, diretamente, ele conclua o movimento; porque, em suma, a dedução só
se efetua sob a forma deslocada de uma gênese, os princípios, por sua vez, duplicam-se em leis e
sementes (veremos mais à frente, até mesmo na Ética, a importância desta reduplicação). Ora, o
interesse não incide sobre a origem: descida sem que se volte a subir, o benefício de toda gênese [14] não
é revelar de onde vêm as coisas, mas fazer com que apareçam como produtos, exibir o mundo como
procedimento. O que importa é menos a verdade da premissa que a necessidade do vínculo que a
encadeia à sua consequência; ela pode muito bem ser fictícia, se pelo menos com isso o mundo ganha ao
ser deduzido dela. Além disso, porém, há uma razão positiva, cuja formulação cartesiana4 é tão somente
1 As leis da Natureza.2 Princípios da Filosofia de Descartes, III (Appuhn, t. 1, p. 328).3 Ibid.4 Descartes, Princípios, III, art. 47.
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CAPÍTULO 1
retomada à letra pela frase citada, e tal razão neutraliza e mesmo justifica a escolha indiferente da
hipótese: a matéria, de qualquer maneira, passa por todas as suas formas possíveis, de modo que, seja
qual for seu ponto de partida, a dedução, contida neste princípio de exaustividade, chegará num
momento ou n'outro ao estado atual do mundo.
Este raciocínio se opõe a qualquer idéia de uma pluralidade de mundos possíveis. Quanto a isso
Leibniz não se enganará, ele que jamais perderá uma ocasião de denunciar, neste argumento da
transformação exaustiva, a via, ruinosa para a moral, que leva direto do cartesianismo ao espinosismo5.
Antes dele, com efeito, Espinosa tinha, sem dúvida, meditado longamente as potencialidades da fórmula
materia formas omnes quarum est capax successive assumit [“a matéria, porque é capaz, assume
sucessivamente todas as formas”], que aparece, sob muitos aspectos, como a matriz do necessitarismo
físico da Ética. Quanto mais não seja por sua feição escolástica e seu papel crucial num momento da
crítica do mecanicismo cartesiano, essa frase vale menos por seu sentido literal, obscuro se olhado de
perto, do que pelo tema ainda indeterminado que ela propõe ao espírito aguçado do jovem Espinosa.
Ele atualizará os três salientes traços dela e, para cada vez, proporá um conceito inédito, rompendo
assim, em nome do próprio mecanicismo, com o iniciador: 1) potência da matéria (materia capax), 2)
individuação total ou partitiva (formas), 3) atualização exaustiva, logo necessária, desta potência (formas
omnes succesive assumit). A emergência da concepção espinosana da Natureza é, portanto, solidária da
elaboração de uma doutrina da transformação. Melhor ainda, a elaboração de uma tal doutrina toca em
três pontos capitais da crítica do cartesianismo: transcendência da causa do movimento; inconsistência
da individualidade física; fundação mal assegurada da unicidade e da constância do mundo. Enfim, uma
última linha de pensamento se desenha: a reflexão sobre o método hipotético de Descartes conduz ao
tema da definição genética.
[15]
1. TRANSPORTE SIMULTÂNEO:A INCONSISTÊNCIA DO COMPOSTO CARTESIANO
Geralmente se concorda em reconhecer o estatuto precário da individualidade em Descartes6.
5 Georges Friedmann, Leibniz et Spinoza, p. 153 e sobretudo p. 156-157.6 G. Lewis, que consagrou sua tese ao problema, fala de “aglomerados frágeis” (L'œuvre de Descartes, p. 384 – cf. também L'individualité chez Descartes, p. 65); P. Lachièze-Rey, de “combinação passageira” (Les origines cartésiennes du Dieu de
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CAPÍTULO 1
Duas definições parecem concorrentes, à primeira vista: pelo volume e pelo movimento. Na segunda
parte dos Princípios, Descartes explica que, se de um mesmo corpo pode ser dito que ele passa do estado
de condensação ao de rarefação, é porque a mudança apenas afeta sua figura e não sua extensão: um
aumento de sua extensão implicaria, com efeito, a adição “de uma nova substância, ou então de um
novo corpo”7. O que permanece inalterado, dito de outra maneira, é seu volume, ou sua quantidade de
matéria: modelo da esponja. Essa definição decorre da identidade do corpo e da extensão-matéria: entre
eles, a diferença é tão somente de razão, sendo que o corpo é a substância, ou o sujeito ao qual se atribui
logicamente a extensão.
Porém, se a identidade de um corpo consiste na conservação de uma mesma quantidade de
matéria, a constância volumétrica não haveria de fornecer, enquanto tal, uma definição do indivíduo,
pois resta saber o que se entende por quantidade de matéria. Isso é verificado empiricamente: medir a
constância de um volume através das variações de um corpo supõe que se tenha previamente
distinguido, individualizado este último. Dispõe-se então, quando muito, de uma definição nominal:
por corpo, Descartes não entende outra coisa senão uma parte da matéria. É só o início, também, de
uma definição real: “Por um corpo, ou então por uma parte da matéria, entendo tudo o que é
transportado [16] em conjunto, embora ele seja talvez composto de partes que, entretanto, empregam
sua agitação de outros movimentos”8. Pode-se ver nisso uma definição genética no sentido que o
entenderá, depois de Hobbes, Espinosa, pois ela exprime a causa do corpo, que ademais não é fingida:
transporte simultâneo das partes.
Todavia, esta definição suscita, ao seu modo, mais dificuldades do que se as resolvesse. Ela não
contém nenhuma fórmula que singularize a conexão que as partes têm entre si, de tal maneira que essa
Spinoza, p. 57); M. Gueroult, t. 1, p. 543, n. 52, de “junções precárias”. Tais juízos encontram sua primeira célebre expressão em Leibniz, que censura o mecanicismo cartesiano por não pensar sob o termo do corpo a não ser como um agregado sem unidade verdadeira; tanto que o critério de individuação do agregado – transporte simultâneo, cf. logo mais – repousa sobre toda uma concepção relativista do movimento, que não permite atribuir a este último um sujeito. Em suma, o corpo tem tanto menos realidade quanto não a tem o movimento, que entra em sua definição. O conceito de força deve remediar essa dupla carência. Cf. Remarques sur la seconde partie des Principes de Descartes [Observações sobre a segunda parte dos Princípios de Descartes].
7 Princípios, II, art. 5-7.8 Princípios, III, art. 25. O cap. III do Mundo já dava uma definição parecida, embora expressa em termos menos rigorosos: “Notai, de passagem, que tomo aqui, e que mais adiante sempre tomarei, por uma única parte tudo aquilo que é pôsto em conjunto, e que não está em ação para se separar; embora aquelas, que tão pouca espessura têm, possam ser facilmente divididas em muitas outras, e mais pequenas: assim, um grão de areia, uma pedra, uma rocha e mesmo a Terra toda poderá, mais adiante, ser tomada por uma única parte, enquanto que a ela só consideremos um movimento meramente simples e meramente igual” (Alquié, t. 1, p. 329).
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CAPÍTULO 1
conexão possa subsistir e o indivíduo guardar sua identidade, malgrado a mudança ou a renovação das
partes. O princípio de individuação não está em nenhum lugar a não ser nas próprias partes, enquanto
estas são transportadas juntas. A permanência do corpo depende da permanência de suas partes, o que já
era uma consequência implícita do raciocínio sobre o volume, ou da identificação do corpo individual a
uma parte da matéria: “É evidente que não se poderia tirar nenhuma parte de uma tal grandeza, ou de
uma tal extensão, sem que se fosse retirado, deste modo, o mesmo tanto da coisa.”9 De modo ao corpo
não ser, no fundo, nada mais do que um arranjo acidental: “O corpo humano, enquanto difere dos
outros corpos, é formado e composto apenas de uma certa configuração de membros e outros acidentes
semelhantes.”10 Paradoxalmente, aliás, quando mais se sobe a escala dos seres, mais a individuação
devém incerta: o corpo organizado, que não pára de trocar partes com o entorno (alimentação), é assim
quase desprovido de identidade11. “Quando falamos de um corpo em geral [17] (e, junto a isso, da
quantidade de que o universo é composto), entendemos uma parte da matéria, de sorte que não
poderíamos tirar, mesmo que seja um pouco, dessa quantidade, se não julgarmos incontinênti que o
corpo está menor e que ele não está mais inteiro; nem mudar partícula nenhuma desta matéria, se
pensarmos, depois, que o corpo não é mais totalmente o mesmo, ou idem numero [de mesmo
número].”12 O corpo, portanto, se vê recusando explicitamente o estatuto da substância, ainda que ele
tenha em Descartes o próprio nome de susbtância extensa, o suporte lógico-ontológico da extensão. A
partir de então, se o corpo particular não é uma substância, o único suporte possível é o “corpo tomado
em geral”13, cujos corpos particulares não são mais que modos. À pluralidade das coisas pensantes,
simples por natureza, corresponde logicamente uma única coisa extensa.
Aproximamo-nos, assim, daquilo que será a concepção de Espinosa, mas sob a reserva de que a 9 Princípios, II, art. 8.10 Abrégé des méditations [Resumo das Meditações] (Alquié, t. 2, p. 401).11 Notemos que a organicidade enquanto tal, em Descartes, não poderia de forma alguma valer por um critério de individuação, pois a finalidade atribuída à máquina não tem realidade do ponto de vista da natureza. Como escreve Gueroult, o relógio que estraga “não pode estar em falta relativamente à sua própria natureza, pois ele não tem uma” (Descartes selon l'ordre des raisons, t. 2, p. 173). O que, em Descartes, vale para o relógio, vale a fortiori para não importa qual animal. E Gueroult mostra como a redução da “minha natureza” a uma máquina, portanto a um simples modo da extensão, permite que se desculpe Deus, no caso de uma doença. Descartes, todavia, não pode ficar com essa solução, que repousa sobre a inaceitável assimilação do corpo humano ao corpo animal, negando assim a união substancial da alma e do corpo, previamente estabelecida (ibid., p. 171-175).
12 Carta a Mesland, 9 de fevereiro de 1645 (Alquié, t. 3, p. 547). G. Lewis cita também a carta a Mersenne de 9 de fevereiro de 1639: “A matéria sutil jamais pára num corpo idem numero, mas é ele que nela entra de novo, continuamente, o tanto que sai” (op. cit., p. 59).
13 Abrégé des méditations, ibid. – não confundiremos o “corpo tomado em geral”, no qual reconhecemos, com Gueroult, uma substância única, e “corpo em geral” da carta a Mesland, que significa somente um corpo qualquer.
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CAPÍTULO 1
extensão não é atribuída a Deus, o qual não poderia ter modos: conceber, com Descartes, o modo
somente no plural, marca de diversidade e de mudança, prejudicaria tanto a simplicidade quanto a
imutabilidade divinas14 (ao contrário, Espinosa introduzirá a noção de “modo eterno e infinito”). De
um lado, a extensão cartesiana, elevada ao posto de substância única, permanece, apesar de tudo, um
contínuo divisível e dividido; de outro, ela é privada de potência, desta potência que lhe chegará, em
Espinosa, de sua própria essência (causa seu ratio). Este último aspecto indica a via de um reatamento do
modo ao essencial, de uma reintrodução de um princípio interno [18] no reino do partes extra partes,
salvando assim o princípio de individuação.
Ora pois, é a segunda carência da definição do indivíduo pelo transporte mútuo das partes: uma
conexão de simples contiguidade e, finalmente, de indiferença entre as partes, elas que não têm outra
força de coesão a não ser o repouso de umas em relação às outras. O texto do Mundo é revelador: a
união é toda negativa; ela reside naquilo de que a junção “não está em ação para se separar”. Quanto ao
“movimento meramente simples e meramente igual”, ele só tem realidade se for exterior, relativamente
aos corpos vizinhos. De uma certa maneira, Espinosa inverterá a conexão: ele invocará uma coesão pela
pressão exterior dos vizinhos, mas sobretudo uma comunicação interna dos movimentos, um concurso –
a produção comum de um mesmo efeito. Mas somente de uma certa maneira, pois este concurso
positivo das partes, ele próprio aparecerá como um fator de coesão. O modo, desprovido de qualquer
interioridade, só tem finalmente realidade, em Descartes, a título de objeto para o espírito: não a tem
para si e, com isso, não se pode dizer que ele existe; o composto como tal, ou o todo, averigua-se
inconsistente15. Neste sentido, por mais que ele dure, que se mantenha num certo tempo (constância de
seu volume), não ficará menos estruturalmente acidental, exterior a si próprio, e nunca que a unidade de
movimento é suficiente para integrar a irredutível pluralidade que o constitui. E como sua realidade não
é diferente daquela de suas partes, parece mesmo que o problema da realidade nos empurra numa
regressão ao infinito.
A ambiguidade já se trai na definição do corpo individual, onde o termo a ser definido também
aparece, contra toda regra, no definidor: uma parte são partes que se deslocam juntas. Tem-se razão em 14 Princípios, I, art. 56.15 “Sem dúvida Descartes disse que o corpo, por sua organização, forma um todo e uma unidade que servem de intermediário para que a alma se una a ele. Desta organização enquanto tal, porém, ele não admite expressão ideal específica, e continua fiel, em suma, às exigências do mecanicismo, que vai das partes ao todo sem dar ao todo um valor próprio de unificação. Pelo contrário, em Espinosa, o todo no indivíduo se impõe, em certa medida, nas partes de que ele é a união; ele tem sua lei própria de existência e de desenvolvimento” (Delbos, Le spinozisme, p. 89).
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CAPÍTULO 1
lembrar que a diversidade procede unicamente do movimento16. Mas o movimento também é o que
compõe [19] e, por conseguinte, produz a operação inversa da fragmentação inicial do contínuo: daí a
variabilidade dessa diversidade, o recorte indefinidamente remanejável das entidades discretas. Não
insistamos no caráter logicamente circular, e bem conhecido, da gênese do diverso em Descartes17; antes
consideremos um texto onde o problema da divisibilidade é, ao menos nos termos, associado ao da
individuação.
“Pois, somente por eu considerar as duas metades de uma parte de matéria, tão pequena quanto possa ser,
como duas substâncias completas, e quarum ideæ non redduntur a me inadequatæ per abstractionem intellectus
[“porque as idéias não voltam inadequadas a mim por abstração do intelecto”], certamente concluo que elas são
realmente divisíveis. E se me fôr dito que eu, não obstante as possa conceber, não sei, por conta disso, se Deus as
uniu ou as pôs juntas por um vínculo tão estreito que não seriam inteiramente inseparáveis e, assim, que não
tenho razão em negá-lo; eu responderia que, qualquer que fôsse o vínculo com que ele as possa ter juntado, estou
seguro de que ele pode, também, desjuntá-las de maneira que, absolutamente falando, tenho razão em nomeá-las
divisíveis, pois ele me deu a faculdade de concebê-las como tais” (carta a Gibieuf, 19 de janeiro de 1642).
A natureza da objeção imaginada por Descartes sugere que a divisibilidade só é pensável em
referência a uma divisão originária, que Deus remedia por junturas ou, dito de outro modo, por
composições: “juntar” e “desjuntar” caracterizam um indivíduo que se faz ou se desfaz18. O divisível é o
que pode ser disjuntado, pois primitivamente juntado: ele não remete mais ao contínuo, mas a uma
partição que interdita que se considere a divisão atual como se ela separasse termos simples. A
divisibilidade tem, portanto, o composto por correlato, ou o “juntado”, ou seja, o que é transportado
em conjunto: a própria definição da parte de [20] matéria implica sua divisão atual, o que induz um
16 “Reconduzindo a matéria à extensão matemática homogênea, ele certamente parecia excluir da matéria qualquer princípio essencial de individuação; ele devia sustentar que a matéria, primitivamente privada de qualquer distinção e de qualquer especificação de partes, recebe apenas do movimento a diversidade das coisas que ela manifesta; essa diversidade é pois modal, não substancial; a substância extensa, em seu fundo, deve ser una. É por aí que Descartes prestava às teses próprias a Espinosa” (Delbos, Le spinozisme, p. 32-33).
17 G. Lewis cita, a esse respeito, o De ipse natura [Sobre a própria Natureza] de Leibniz: “Pois nenhuma figura, ou limite e distinção, de partes diversas tem nascimento numa massa perfeitamente homogênea, indiferenciada e plena, a não ser pelo próprio movimento. Logo, se o movimento não contém nenhuma marca de distinção, tampouco ele dará alguma à figura” (L'individualité selon Descartes, p. 52).
18 Cf. “tudo o que é pôsto em conjunto”, na definição do Mundo, citada mais acima. [Na n. 8. Em francês, “tout ce qui est joint ensemble”, poderia, em português, ser entendido também como “tudo aquilo que foi juntado”, ou “tudo que está juntado”, “que está junto”.]
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CAPÍTULO 1
deslocamento equivocado entre as noções de divisão e de divisibilidade; com efeito, a divisão vai, a
princípio, do contínuo ao discreto, enquanto que a divisibilidade vai, atualmente, do composto à sua
decomposição possível e devém, desde então, sinônimo de separável (a isso parece se opôr, é verdade, a
tese cartesiana segundo a qual a divisão não é necessariamente efetuada até o fim; mas esta é uma tensão,
deveras uma contradição provavelmente irredutível no sistema).
Verifica-se, assim, que a própria tese da divisibilidade se repousa na noção de composto: ela
desmoronaria caso tal noção se revelasse inconsistente. E, sem dúvida, Descartes sabe produzir seu
conceito (transporte simultâneo); todavia, estávamos vendo, não somente sua identidade através do
tempo é precária, mas a realidade de sua unidade pode ser posta em dúvida. Assim, a individualidade, a
composição, são elas outra coisa que um recorte do entendimento? Se a noção de substância parece estar
salva, ao menos em seu sentido lógico, talvez o perpétuo remanejamento, ao qual está submetida a
divisão atual, comprometa mesmo a possibilidade de uma predicação: um corpo se levanta, senta, dá de
ombros, toma um objeto com a mão, mas qual corpo? qual mão? As figuras e movimentos que se atribui
ao corpo parecem flutuar sem suporte, enquanto este não é, ele próprio, fixável a não ser em termos de
figura e movimento. Qual será, então, o sujeito da divisibilidade?
Quão estranha é a própria noção de divisibilidade. Ela deveria forçosamente parecer obscura a
Espinosa, para quem toda potência é em ato; de um lado, ele descartaria a divisibilidade, de outro,
pronunciaria uma divisão modal ao infinito, opondo-se duplamente a Descartes, que afirmava uma
matéria realmente divisível, mas não indefinidamente dividida. O que seria da divisibilidade, com
efeito, sem uma divisão em ato que não prejulgasse a separação efetiva das partes? Como não crer que
haja aí alguma duplicidade conceitual? Diríamos que Descartes joga com um equívoco, como se
postulasse implicitamente uma divisão real atual ao infinito, ao mesmo tempo em que compreende a
divisão num outro sentido, a ordem movente das composições-decomposições, onde o dividido,
pensado como “desjuntado”, possa novamente se juntar – do mesmo modo que ele se apresenta na
natureza, tão logo dissermos que temos de nos haver com corpos. Mas será preciso que essa divisão ao
infinito seja real? O caráter factício dos compostos não seria acentuado? [21] Pode-se mesmo afirmar que
Descartes sustentou tal tese? A potencialidade deve ao mesmo tempo ser fundada no ser, ter uma
consistência positiva, sem por isso confundir-se com a passagem ao ato, que a anula; ela supõe, então, ao
mesmo tempo uma divisão originária ao infinito (que Descartes, no entanto, jamais enunciou) e uma
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CAPÍTULO 1
composição real que a anule ou a compense, substituindo-lhe uma divisão da matéria em compostos.
Noutros termos, nada indica que Descartes tenha refletido sobre uma partição real da matéria: quando
define a parte da matéria, ele entende expressamente um composto e, quando designa que mesmo uma
parte, tornada por Deus “tão pequena que não estaria no poder de nenhuma criatura dividi-la”, seria
entretanto divisível, nisso ele ainda vê um composto. A questão não é tanto saber se a divisão
supostamente real torna irreal toda individualidade, mas se a divisão modal ao infinito, que é, sob a
divisibilidade infinita e a divisão não necessariamente infinita, sua tese tendencial, repousa sobre uma
suficiente consistência do composto.
Ora, se a realidade deste repousa sobre a das partes, e se esta por sua vez sobre a de suas partes,
etc., parece que toda realidade discreta esvanece no infinitamente pequeno, e que nem mesmo a divisão
possa mais se efetuar logicamente, já que seus termos não mais apresentam tanta unidade. Ela seria salva
apenas pelo pensamento de uma verdadeira consistência de unidades compósitas que não se resolvem
imediatamente em suas partes. O transporte simultâneo, porém, não procura de modo algum esse
ponto de apoio, pois, não sendo outra coisa exceto a imediatez de uma conexão qualquer entre as partes
(condições de uma predicação possível: o movimento e, portanto, a figura podem mudar, contanto que
as partes permaneçam solidárias), ele deixa que a individualidade repouse sobre a identidade numérica
destas últimas. Se é portanto verdadeiro que a tese da divisibilidade não se assenta sobre uma definição
suficiente da individualidade, é preciso conceber a refundação espinosana do princípio de individuação
como que salvando a divisibilidade ao infinito da matéria modal.
Que a parte seja sempre um composto, é isso enfim o que confirma o enunciado da definição do
indivíduo, proposta pelo Mundo: “... assim um grão de areia, uma pedra, uma rocha, e mesmo a Terra
toda poderá, mais adiante, ser tomada por uma única parte, enquanto que a ela só consideremos um
movimento meramente simples e meramente [22] igual.”19 A individualidade se reduz a um ato de
síntese que só tem realidade no entendimento. Este, sem dúvida, não recorta arbitrariamente a matéria,
como por outro lado pode fingir que o faz20. Uma consequência, porém, ainda mais grave que a
corruptibilidade extrema do composto, decorre do caráter acidental da composição extensiva: a unidade
produzida, puramente exterior, não tem realidade no ser, nem consistência ontológica, tampouco 19 Fomos nós que sublinhamos.20 Princípios, II. art. 23: “Pois, ainda que pudéssemos, do pensamento, fingir divisões nessa matéria, entretanto é constante que nosso pensamento não tem o poder de mudar nada dela, e que toda diversidade das formas que se encontram nela depende do movimento local.”
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CAPÍTULO 1
essência. Adicionemos ainda um terceiro traço, opressivo: o corpo, definido como “tudo o que é
transportado em conjunto”, tem distinção somente negativa, ou extrínseca – com outras palavras, que
diga respeito aos corpos vizinhos considerados como em repouso; a relatividade do movimento, segundo
Descartes, tanto desencadeia a do corpo que ele é obrigado a individuar. A substância se esvanece, ou
antes se espedaça entre seu esvanecimento na pura modalidade e sua obstinada persistência como
suporte do ponto de vista do senso comum. Caberá a Espinosa absorver tal desvio, remanejando com
um só gesto a noção de modo e o conceito de indivíduo.
2. O PEDAÇO DE CERA:QUANTIDADE DE MATÉRIA E IDENTIDADE
É verdade que a noção de substância parece, de um outro ponto de vista, conservar toda sua
validade. O critério da solidariedade cinética, dizíamos, em si mesmo não confere nenhuma
singularidade ao composto. Não se distingue porém, o pedaço de cera das Meditações, justamente por
um “invariante numérico”21? Ressaltamos, mais acima, que a constância quantitativa de um corpo
certamente não poderia valer para o princípio cartesiano da [23] individuação, dado que ela deixa em
aberto a questão de saber o que é uma quantidade (ou parte) de matéria e, por conseguinte, repousa
sobre a definição real, ocasionada pela ideia de transporte simultâneo de uma pluralidade de partes. Ora,
essa ideia deixa ao mesmo tempo indeterminadas tanto a natureza do transporte (velocidade, direção),
quanto o comportamento recíproco das partes (contanto que possam ser consideradas em repouso, em
relação a uma vizinhança imediata). É sobre uma delimitação puramente extrínseca que repousa a noção
de quantidade de matéria: pretendendo-se que sua permanência baste para identificar um corpo, é
preciso acrescentar que essa permanência é ela própria relativa somente ao seu entorno. É dessa
perspectiva que devemos reconsiderar as transformações sofridas pela cera, sobre as quais um ato do
entendimento nos assegura que são relativas à mesma quantidade de matéria. A partir daí,
compreendemos que essa identidade é tão somente relativa (diagnóstico que, por outro lado, não retira
21 “É o invariante numérico constitutivo da substância cera que faz com que possamos pensá-la claramente e distintamente, à parte dos outros modos da extensão, e que, dando conta de todas as modalidades geométricas que ela pode comportar, permite-me compreendê-las e, ao mesmo tempo, compreender – portanto conhecer – a cera de que dependem e que permanece imutável sob suas transformações” (Gueroult, Descartes selon l'ordre des raisons, t. 1, p. 108).
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CAPÍTULO 1
de modo algum sua validade no juízo: não é menos clara e distinta a idéia, seja ela relativa ou não, que
temos da identidade da cera). Para dizer tudo, ela não é a identidade de nada: um quadro vazio para
uma individuação de encontro, uma composição arriscada de movimentos indiferentes uns aos outros. E
é esse nada que é dito persistir através das perturbações sofridas por tal quantidade. Então, se o
entendimento pode julgar que “a mesma cera permanece” sob sua mudança de figura, primeiramente é
porque o transporte simultâneo das partes é indiferente à configuração que elas formam, sob a condição
de ficarem solidárias relativamente aos corpos vizinhos.
Não veria nisso Espinosa, ao contrário, uma transformação, no sentido estrito que ele dará a essa
palavra22, entendamos: a substituição de um indivíduo a outro? Por ser inútil às partes ficarem solidárias,
elas não contraem, entre si, sob efeito do reaquecimento, uma nova conexão de repouso e de
movimento? Assim, o corpo do poeta amnésico, tendo sofrido uma alteração grave ligada à doença,
enceta novas relações entre suas partes, que definem um corpo inédito, inatribuível a tal poeta23. Sem
dúvida, no caso do corpo vivo, uma troca contínua de partes torna, para Descartes, a identidade
inassinalável (se [24] ao menos nos abstivermos, por enquanto, de levar em conta a solução pessoal que
ele traz ao problema). Mas não é isso que está em causa e podemos até supôr que a mudança se efetue
no instante, entre as mesmas partes, numericamente falando (como de resto faz Espinosa)24. Passamos,
assim, pelo movimento, de uma determinação relativa a uma determinação absoluta do composto; não
que o movimento seja concebido como um absoluto, mas daqui em diante ele é considerado como uma
conexão constante interna ao composto, e não mais como uma conexão constante entre as partes, então
componentes, e o entorno.
Enfim, ressaltemos que a identidade do pedaço de cera não se resume à permanência de uma mesma
quantidade de matéria: o pedaço se conserva, ademais, enquanto cera (permanência específica) – com
isso há um risco, para Espinosa, de tornar difícil uma interpretação em termos de transformação estrita.
A dificuldade é que ele não deixa de ser um pedaço, daí a aparência de um duplo critério, de uma
identidade equívoca, exprimida pela expressão “a mesma cera”: é sempre cera, e na mesma quantidade25.
22 Ou seja, de uma mudança de essência, de identidade, de sujeito: in aliam formam mutare. Para uma definição da transformação, cf. Pensamentos metafísicos, II, cap. 4.
23 Ética, IV, 39, esc.24 “... entendo que o corpo vá de encontro à morte quando suas partes estão dispostas de maneira a sustentarem entre si uma outra conexão de movimento e de repouso” (ibid.).
25 Geneviève Lewis (L'individualité de Descartes, p. 58) sublinhou essa dificuldade, contrariamente a Gueroult, ele que se esquiva dela quando se limita a sublinhar separadamente os dois aspectos (Descartes selon l'ordre des raisons, t. 1, p. 113:
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CAPÍTULO 1
De fato, é a permanência de uma quantidade de cera, não de uma quantidade de matéria em geral. Ora,
supõe-se que a “forma” da cera seja explicada por uma certa configuração elementar, oriunda do
movimento. Então, é somente por abstração que se separará a cera de sua quantidade, ou que se
considerará a matéria nua, inqualificada26. Seria inútil perguntar-se, aqui, se é uma configuração das
partes tomadas separadamente ou do conjunto que ela compõe: sendo toda parte resolvida em várias
(transporte simultâneo), sua figura constituinte é constituída pelo agenciamento de suas partes. De
maneira que, a menos que se introduza a equivocidade na palavra figura, o que Descartes nunca faz
expressamente, devemos concluir que a figura é aquilo mesmo que individua ou especifica, com uma
diferença somente de [25] nível27. Se a cera mudasse de figura, não permaneceria cera. Ora, um pedaço
de cera é o transporte em conjunto, tendo em conta uma vizinhança considerada em repouso, de partes
elas próprias definidas pelo transporte em conjunto de partes que, por isso mesmo, constituem a figura
ou o composto ceroso: partículas de partículas (ainda que Descartes nunca o afirme; mas, como já
vimos, o inacabamento da divisão implica que as últimas partículas, divisíveis porém não divididas,
escapem à definição da parte de matéria). É, portanto, bem verdadeiro: 1) que a individuação não
poderia se satisfazer com um movimento qualquer, 2) que as diferentes figuras ou os diferentes estados
pelos quais passa o pedaço de cera dão margem a tantas outras individuações distintas. Ou fica-se com a
definição da individualidade (transporte simultâneo), que concorda com a permanência supostamente
individual do pedaço de cera, mas então deve-se concluir pela equivocidade do conceito de figura; ou
então, deve-se contestar a definição e reinterpretar a experiência, parando de confundir os níveis (não é
o pedaço de cera que se conserva, mas é, como diz Descartes, aliás, embora sem desenvolver as
consequências, a cera, isto é, as partículas de cera, de figura idêntica, cujos movimentos recíprocos
porém mudam, desencadeando uma mudança da configuração de conjunto).
É provável que Espinosa tenha meditado profundamente esse problema, ele que propõe, a título de
física, uma teoria geral da transformação (o que, de resto, já era a proposta do Pitágoras de Ovídio,
“A espécie cera permanece no universo” – já não se trata mais de um pedaço).26 Lembremos da crítica cartesiana da “matéria primeira” dos Escolásticos: Le monde, cap. VI (Alquié, t. 1, p. 345).27 Objetar-se-á que a especificação se faz, às vezes, por grandeza e movimento, sem referência à figura: isto só parece ser o caso dos três elementos na hipótese do Mundo, cap. V. Precisamente, porém, tais elementos não poderiam mudar de movimento sem deixarem de ser o que são: é o que faz a corruptibilidade da chama, contrariamente ao elemento Fogo. O contato dos elementos heterogêneos incorruptíveis dá margem às formas dos “corpos misturados”, entre o número dos quais deve-se contar a cera, que pode passar por vários estados sem se destruir, o que reclama um terceiro critério: a configuração elementar.
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CAPÍTULO 1
quando introduz a imagem da cera28), e que suscitará, acerca da amnésia do poeta espanhol, a questão
de uma transformação sob a aparência de uma continuidade identitária. Isto será uma completa
reviravolta da perspectiva cartesiana: a mudança contínua das partes, longe de ameaçar a identidade do
corpo, será seu auxiliar indispensável; e o juízo pelo qual o entendimento pronuncia a permanência
identitária, sob a [26] mudança de “formas” (para retomar a palavra de Descartes, de extensão muito
mais ampla que a palavra figura), averiguar-se-á ilusório. Assim como a cera não tem necessidade de se
decompor, enquanto cera, para mudar de “formas”, não tem o corpo humano necessidade de ser
reduzido ao estado de cadáver para mudar sua forma contra uma outra. A espécie permanece, não o
indivíduo.
3.O INDIVÍDUO E A ESPÉCIE EM ESPINOSA
A dificuldade é, evidentemente, que o indivíduo enquanto tal não parece formar, por sua vez, uma
espécie, de modo que a equivocidade, pelo que consta, de alguma maneira sempre subsiste (outra
dificuldade é que o corpo humano não é formado de uma só espécie material, mas de partes duras,
moles e fluidas: ela é somente aparente). Mas quem nos diz isso? Quando identificamos especificamente
dois pedaços de cera, será que não mudamos de nível e que a aparência que sugere ao entendimento o
juízo vem do fato dela remeter a um nível de individuação inferior, que só concerne às partes
constituintes? Objetar-se-á que não é assim com o homem, pois aqui a espécie procede tanto da
organização global das partes quanto de sua natureza particular (ou da organização própria a cada um).
É precisamente isso, como acreditamos, que permite colocar exatamente o problema da espécie em
Espinosa: se a humanidade consiste num certo agenciamento de partes, a definição tem o mérito de
levar em conta o organismo, mas, por um lado, ela joga a natureza das partes novamente na indiferença
(posto que um fígado de macaco não é um fígado humano) e, por outro lado, já não vemos como a
conexão das partes haveria de variar e constituir um critério de distinção individual; se, em
contrapartida, à pertença à espécie humana se decide no nível das próprias partes, a conexão que estas
entretêm mutuamente é deixada livre pela definição da individualidade, o que não quer dizer que tal
conexão devenha indiferente – pois concebe-se muito bem que as partes, dada sua natureza, só podem
28 Ovídio, Metamorfoses, livro XV.
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CAPÍTULO 1
encetar um certo tipo de conexão –, mas somente que sua margem de determinação é relativamente
estreita, de sorte que os indivíduos não são idênticos, porém assemelham-se. Só a identidade das partes
(dos tecidos, por exemplo) assegura, pois, a comunidade específica [27] (aqui é preciso, sem dúvida,
descer para baixo dos órgãos, que são eles próprios compostos, ou organizados, quer dizer, compostos de
indivíduos de natureza diferente)29. A partir de então não há objeção, como nos parece, ao se dizer que
toda individuação é uma especificação, ou que a forma é individuação de uma espécie individual.
Certamente, tal interpretação esbarra nos textos sobre a definição30. Mas não seria preciso tomar o
problema num outro sentido? Parece que a definição, concebida a partir da geometria, à primeira vista
só pode assentar-se sobre naturezas específicas, feita a exceção de Deus, cuja existência envolve a
essência. Ressaltar-se-á: 1) que Espinosa raciocina aqui em função de uma conexão espécie-indivíduos,
com que ele concorda de saída, pois seu problema está alhures (a distinção da substância e de suas
modificações), e que ele não pretende chocar-se inutilmente contra o senso comum; 2) que “a definição
do triângulo nada exprime além da natureza do triângulo, mas não de algum número determinado de
triângulos” [Ética, I, 8, esc. 2], enquanto que se pode muito bem definir tal triângulo, não somente
como sub-espécie (isósceles, etc.), o que ainda é insuficiente, mas como indivíduo, pelo comprimento
de seus lados e o valor de seus ângulos; 3) que se a figura geométrica, em diferença a Deus, é tão
somente um ser de razão, em contrapartida todo o risco do novo conceito de indivíduo será,
precisamente, tornar esse indivíduo definível, ao menos em direito, por meio de uma proporção
assinalável. Ademais, olhemos bem qual problema Espinosa levanta: uma definição jamais envolve
número. Será uma objeção contra a idéia de natureza individual, ou de uma definição a assentar-se sobre
o próprio indivíduo? Simplesmente, nada garante que nisso não possa haver vários indivíduos idênticos:
a definição do indivíduo Espinosa – uma certa proporção constante de movimento e repouso, como o
veremos – não envolve o número 1 tampouco o número 20. Volta-se a dizer com isso que, no caso de
uma coisa finita, deve-se distinguir entre sua essência e sua existência. Para que Espinosa só exista uma
vez, será preciso uma razão de outra ordem, metafísica: a causa seu ratio, Deus produzindo as coisas [28]
assim como ele deduz as propriedades de sua essência (não há necessidade alguma de que a mesma
propriedade seja deduzida várias vezes).
29 Poder-se-á pensar, aqui, nas possibilidades modernas de transfusão e de enxerto.30 Carta 34, a Hudde; Ética, I, 8, esc. 2. Esses textos mostram que a definição não implica número algum e que a essência de uma coisa só se divide numericamente na existência (se entretanto esta não estiver incluída na essência).
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CAPÍTULO 1
Tudo que se pode dizer, por consequência, é que tal construção fica afastada da embriologia, ou seja,
parece ir das partes ao todo e não do todo às partes, deixando à sombra a razão que lhes dá tal natureza
em vez daquel'outra. A gênese solidária das partes do organismo é um problema sobre o qual Espinosa
não se pronunciou31.
Essa interpretação deve, no entanto, fazer face a uma grave objeção. Ainda mesmo que suas partes
fossem específicas, o homem propriamente dito só aparece no agenciamento delas e não poderia ser
comparado ao pedaço de cera, como se ele detivesse sua natureza comum por conta da especificação de
suas partes. A partir de então, somente a sociedade se mostra comparável ao pedaço de cera, como
composto da mesma configuração repetida. Não é por acaso que o mesmo conceito de transformação,
em Espinosa, aparece no caso individual do amnésico e na situação coletiva de um povo em revolução.
O mesmo povo permanece? Sim, mas porque a revolução fracassa e reconduz a antiga forma sob o
disfarce de outra (inversamente, é sim um novo indivíduo que avança sob a máscara de um poeta
espanhol renomeado)32. Sendo a forma política esse conjunto de leis e de costumes que dão consistência
ao quase-corpo político, sua mudança efetiva apenas faz com que advenha um novo corpo, um novo
povo. Então é que podemos dizer que o mesmo povo permanece, no sentido em que “a mesma cera
permanece”: é sempre do homem, ou da cera, como bem o sabem os déspotas; é o homem como
componente político qualquer. Mas aí está: um corpo político não é um homem, mesmo que seja
composto tão somente de homens; é um indivíduo, ou um quase-indivíduo de uma outra ordem – o
estado ou as “formas” que um certo pedaço de homem toma, sob certas condições. E se é verdade que a
“natureza não cria nações mas indivíduos”33, é talvez porque os homens não convenham em natureza a
não ser enquanto conduzidos pela razão. Se os homens nascessem adultos, ou se todos fôssemos
“primeiros homens”, [29] a teoria política poderia fazer a economia do veluti e devir uma parte da
física34.
Assim, surge o problema da comunidade de natureza. Havíamos suposto uma similitude, não uma
31 É verdade que Espinosa, morto precocemente, não pertence à mesma geração intelectual que Malebranche e Leibniz. Certos elementos, no cap. IV, todavia nos permitirão aprofundar um pouco esse problema.
32 Tratado teológico-político, XVIII.33 Tratado teológico-político, XVII.34 A assimilação do corpo político a um indivíduo, no Tratado político, é com muita frequência nuançada pelo advérbio veluti (“como”, “por assim dizer”): cf., por exemplo, III, 2. Sobre o uso político dos conceitos de forma e de transformação cf., a título de exemplos, Tratado teológico-político, XVIII, último §, e TP, VI, 2 (tratamos esse aspecto, assim como o problema do “primeiro homem”, no Le conservatisme paradoxal de Spinoza..., op. cit.).
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CAPÍTULO 1
identidade; formas (no sentido espinosano do termo) aparentadas ao nível de suas partes ou de suas sub-
partes, não uma única e mesma forma para todos os indivíduos; e a hipótese levava direto da IIª
Meditação ao escólio sobre a morte sem decomposição. Se o homem, porém, é o homólogo lógico da
cera e se, por consequência, um homem vale para uma partícula de cera, desembocamos então sobre
uma outra linha de pensamento na Ética: a que deve fundar a idéia de uma “natureza humana”, sem o
que a própria empreitada de Espinosa não teria sentido. No espírito de Espinosa, essa idéia não poderia
significar somente uma similitude de composição e uma identidade das partes componentes. Um certo
número de textos parece pleitear uma identidade de natureza. Certamente, a unicidade da verdade
pesou: é preciso que a “ordem do entendimento” seja a mesma em todos os homens35. Isso não leva,
contudo, à identidade de natureza, exceto que se defina o homem pela razão, de uma maneira
totalmente finalista: o homem é somente este ser cujo corpo é por demais complexo para que lhe
corresponda um espírito capaz de se deixar guiar pela razão, ou seja, de aceder a uma ordem para o
entendimento, ou ao automatismo espiritual36. Se ele se descobre, nesse momento, como sendo o único,
nada permite afirmar que a Natureza não produza um ser ainda mais complexo, igualmente apto à
razão, e que um dia se manifestará na duração. A ilusão de um finalismo – a menos que isso não seja
devido, ao contrário, a um traço remanescente – se dá por não poder existir logicamente nada superior à
razão; pode-se somente imaginar seres que chegariam melhor que nós ao terceiro gênero de
conhecimento, ou que nele se instalariam com facilidade. É por isso que Espinosa chega a se perguntar
se Cristo é mesmo um homem, conquanto ele deva sê-lo, levando-se em conta a impossibilidade, para
um [30] casal de uma espécie dada, de engendrar um ser de uma outra espécie; não que ele possa ser um
deus, ou o filho de Deus, mas suas extraordinárias aptidões mentais, inacessíveis a todos os outros
homens que viveram até este dia, fazem com que lhe atribuemos uma espécie diferente da nossa37.
Um certo número de textos, portanto, invoca a individualidade, não como única realidade discreta
da Natureza, participando de uma ordem de integrações sucessivas, que remonta até à facies totius
universi [“figura do universo inteiro”], sem jamais encontrar espécie nem gênero, mas inversamente
como a divisão ou o número de uma espécie. Ressaltar-se-á principalmente que esses textos nada
provam. A conveniência essencial, inferida do princípio de que “aquilo que é causado difere de sua causa
35 Ética, II, 18, esc.36 Ética, II, 13, esc.; V, 39, esc.37 Tratado teológico-político, cap. I, § 13.
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CAPÍTULO 1
precisamente no que tem de comum a ela”ii e da constatação de que um homem pode ser causa apenas
da existência de um outro, aprecia-se sobretudo por contraste à essência infinita. No entanto, tomada
positivamente, ela pode ser interpretada como um critério de especificação, pois bem parece que tenha
por condição a existência de um vínculo causal entre os indivíduos (sem isso, combinaríamos
exatamente, quanto à essência, com a mosca ou o elefante – o que é verdade, porém sobre um plano
muito geral e muito abstrato, o das noções comuns a todas as coisas, tais como as leis do choque). Mas a
sequência do texto é curiosa: a conveniência essencial não exclui a distinção das essências ou, dito de
outro modo, suas individualizações. Como essa distinção é atribuída apenas à existência, ela parece ser
somente numérica, como se a mesma essência, atualizando-se, se duplicasse em um número infinito de
exemplares. Já um outro texto ia nesse sentido38. E mesmo nele, a tese da essência, dividindo-se
numericamente na existência, era ordenada na diferença entre o infinito e o finito, entre a existência
necessária e a existência condicional: “Por consequência... a causa pela qual esses 20 homens existem e,
consequentemente, pela qual cada um existe, deve ser necessariamente dada fora de cada um, e é por
isso que é preciso concluir absolutamente que, para tudo aquilo cuja natureza é tal que diversos
indivíduos podem existir, deve-se necessariamente haver uma causa exterior pela qual existem.” Aqui, o
senso comum parece coincidir com o esforço filosófico de fundar a incomensurabilidade do infinito e
do finito, pois, no fim das contas, não é [31] a indiferença da definição por número que explica a
exposição da essência à sua eventual dispersão atual (pois nada impede que a ordem natural dê margem
apenas à produção de um indivíduo correspondente à essência dada); é mais profundamente a exclusão
da existência para fora da definição que torna pensável a reprodutibilidade da essência atual em tantos
indivíduos quantos serão determinados pela ordem das existências finitas. Quer dizer: a existência
necessária, somente ela sendo única, e até mesmo indiferente ao número (pois é posta ao mesmo tempo
que a essência), se tal condição fôr eliminada, a essência não mais estará ao abrigo de uma divisão
numérica. Estamos num contexto, por um lado, polêmico e, por outro, onde o risco, no momento, não
é o da existência concreta. Quando fôr o caso (IIª parte da Ética), Espinosa partirá do indivíduo, e as
coisas, veremos, se apresentarão de outra maneira.
Certamente encontraremos, em aparência, a mesma dualidade entre a essência como natureza
comum ou espécie (“Ora, como diversos homens podem existir...”, quando Espinosa se pergunta em
ii [Ética, I, 17, esc.]38 Ética, I, 8, esc. 2.
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CAPÍTULO 1
que consiste a essentia hominis)39 e o que poderemos ainda supôr como sendo apenas sua divisão
numérica, ainda mesmo quando a definição do indivíduo terá sido dada no entretempo (a essência do
corpo de Pedro)40. Justamente, porém, arguir a pluralidade empírica dos homens para negar a
substancialidade do homem, chamando à cena a impossibilidade de se colocar duas substâncias de
mesma natureza, torna tanto mais urgente a determinação do nome de homem. Do ponto de vista
metodológico, Espinosa procederá em dois tempos: primeiro, sublinhará o fracasso das definições do
homem fundadas sobre uma “noção universal”; depois, proporá o conceito de “noção comum”. Diante
de nossa incapacidade para deduzir o homem a partir da essência de Deus, devemos supôr que a essentia
hominis se induza experimentalmente. Ora, é aqui que tudo muda: se pudéssemos deduzir, iríamos
talvez da idéia adequada de certos atributos de Deus àquela do homem em geral, mas talvez
descobriríamos que a dedução nos leva diretamente a essências individuais (nada interdiz pensarmos que
a Natureza um dia chegará a produzir seres finitos capazes de aceder a essa dedução e, por consequência,
de resolver um problema de interpretação cuja [32] solução escapava talvez ao próprio Espinosa: “Não
pretendo ter encontrado a melhor filosofia, mas sei que tenho conhecimento da verdadeira”41); mas só
temos a possibilidade de proceder por noções comuns, a ponto de construirmos um conceito de homem
que será ele próprio uma noção comum (simultaneamente, veremos, Espinosa produzirá, sob o nome de
conexão constante de repouso e de movimento, um outro tipo de lei, pronta para tornar os próprios
indivíduos inteligíveis e, vindo em apoio à scientia intuitiva, pretensamente impotente, talvez para nos
reconciliar com a dedução – de modo que devemos reexaminar as relações do segundo e do terceiro
gêneros de conhecimento42). É verdade que isso mesmo que percebemos pelo viés de noções comuns, o
exemplo – mesmo que não o seja – da quarta proporcional parece indicar que podemos, em seguida,
aprender a tomá-lo uno intuituiii, na unidade indivisível da própria coisa. Além de que a identidade de
conexão entre os termos, tomados dois a dois, parece sugerir – mas a isso retornaremos – uma
diversidade individual, sob a permanência específica de uma mesma conexão entre uma variável de
movimento e uma variável de repouso. Todavia, tomemos as coisas como Espinosa as apresenta
explicitamente para nós: descobrimos empiricamente, através das afecções forçosamente adequadas, 39 Ética, II, 10, esc.40 Ética, II, 17, esc.41 Carta 76, a Burgh.42 Cf., infra, cap. VI. A definição dos três gêneros de conhecimento está dada na Ética, II, 40, esc. 2.iii [Ética, II, 40, esc. 2. Segundo a tradução de Tomaz Tadeu, “de um só golpe de vista” (Belo Horizonte, Autêntica, 2007, p. 135), ou seja, de acordo com o terceiro gênero.]
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CAPÍTULO 1
propriedades comuns ao nosso corpo e ao dos outros homens. Daí formamos uma idéia adequada da
humanidade, que nada é senão o produto de uma série de intersecções, que define um círculo de
conveniências, vale dizer, as fronteiras de uma “natureza” comum. Os indivíduos convergirão
naturalmente para o nível daquilo que eles têm em comum, divergirão quanto àquilo que os separa.
Ponhamos que a razão é comum aos homens: ela os aproxima não somente enquanto, dando-se à razão,
os homens se assemelham, mas também enquanto este exercício lhes faz tomar consciência de suas
similitudes. Ponhamos que uma certa estrutura afetiva, determinável por leis, lhes seja comum: elas
regem o jogo das divergências deles. Será dito globalmente que os homens convergem enquanto são eles
próprios, ou seja: vivem ex ductu rationis [“da condução da razão”]; ao passo que divergem enquanto se
deixam determinar [33] por causas exteriores. Mas o que isso prova? Será a razão o fundo de sua
natureza, de tal sorte que cada um, na medida em que afirma sua própria essência, coincide cada vez
mais com os outros? Não seria, antes, que o desenvolvimento de sua potência própria lhes faria
participar de uma ordem única, impessoal e que nada tem de propriamente humano? Espinosa não
invoca uma conveniência total ou uma identidade de natureza; ele tem essa fórmula bizarra: “Aquilo que
é mais útil ao homem, é o que mais convém (maxime convenit) à sua natureza..., ou seja... o homem.”43
Ou é uma tautologia – mas, sendo que muitos são os enunciados espinosanos que dão essa impressão,
devemos desconfiar –, ou então a frase se deixa compreender dinamicamente, quase à maneira de uma
definição genética: aquilo que produz o humano, que não é outra coisa senão uma conexão de
similitude entre indivíduos, é a conveniência máxima de dois indivíduos, o que faz com que se
identifiquem mutualmente, simultaneamente (sendo o humano, como toda denominação de espécie,
apenas o nome de uma conexão) como dois “homens”44. O homem [34] único não existe, ele só é o que 43 Ética, IV, 35, cor. 1. Cf. agora IV, 31, cor., onde a conveniência é tratada em termos relativos, de mais e de menos.44 Naturalmente, isso vale para qualquer espécie animal, assim como atesta o escólio III, 57: poder nomear uma libido equina supõe um reconhecimento, pelo cavalo, de seu semelhante enquanto objeto de gozo. Mas é claro – como, além disso, traz à tona o adjetivo irrationalia, desde o início do texto – que o cavalo não desprende noções comuns como tais, quer dizer, ele não forma a idéia daquilo que tem de comum com seu semelhante. O cavalo não tem a idéia adequada do cavalo: somos nós que, eventualmente, a temos. Objetar-se-á que falamos correntemente – por exemplo, aqui mesmo – do cavalo em função de uma simples “noção universal” que depende do conhecimento do primeiro gênero (II, 40, esc. 1): poder-se-ia, portanto, perguntar se o próprio cavalo não forma noções desse gênero. É complicado responder no lugar de Espinosa, mas podemos ao menos indicar com precisão que princípio teria sido o de sua resposta: tudo depende da complexidade do corpo e do espírito do cavalo (de acordo com o escólio II, 13, “quanto mais um corpo estiver apto, em relação aos outros, a agir e a padecer de muitas outras maneiras ao mesmo tempo, mais seu espírito estará apto, em relação aos outros, a perceber mais coisas ao mesmo tempo, simul”). Com efeito, a formação de uma “noção universal” certamente não é racional, mas supõe uma aptidão para imaginar simultaneamente um grande número de imagens, de sorte que a imaginação, encontrando-se como que ultrapassada por sua própria potência, só pode selecionar características comuns (que somente corresponde à maneira idêntica pela qual diversos objetos afetam o corpo de um
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é enquanto indivíduo, ou pelo menos deve esperar seu semelhante para identificar, não sua própria
essência, mas um conjunto de propriedades comuns que farão com que atribua a si e a outro o nome de
homem: “... o homem, tendo encontrado a mulher na natureza, que convinha inteiramente (prorsus
conveniebat) com sua natureza, reconheceu que nada poderia ter sido dado na Natureza, que lhe pudesse
ser mais útil que ela.”45 Mesmo que a expressão prorsus convenire, presente já no escólio de I, 17, forneça
provas à opção da divisão numérica da essência, sua reaparição, num estado avançado da Ética, que na
passagem é de um forte teor irônico, senão humorístico, lhe dá uma ressonância completamente
diferente. E de início, não parece abusivo, mesmo que Espinosa nada tenha dito (e aqui, mais uma vez,
a fim de não se desviar de seu objeto essencial, para cuja elucidação a determinação da diferença sexual é
perfeitamente inútil), supôr que a mulher tenha conexões de movimento e de repouso desconhecidas ao
homem46. Trata-se de isolar um nó comum, libido humana47; e em segundo lugar, [35] pode ser pensado,
a aptidão para a razão. Espinosa, porém, havia principalmente advertido, desde a Iª parte da Ética, que
“mesmo que os corpos humanos convenham em muitos pontos (in multis conveniant), diferem,
entretanto, sob muitos mais (in plurimis tamen discrepant)”48. Ele confirma e torna isso preciso, na IVª
parte, quando anuncia que “os homens podem diferir em natureza (natura discrepare), enquanto são
afligidos (conflictantur) por afetos que são paixões”, de modo a diferirem primeiro consigo49. A expressão
natura discrepare, muito forte, parece se explicar mal, à primeira vista, pela demonstração que se segue, a
indivíduo: o espírito é, então, atingido por uma semelhança, que não basta para formar objetivamente o conceito de uma espécie: cf., sobre esse tema, Breve tratado, II, cap. 3, § 2, o exemplo do camponês que, não tendo nunca visto carneiros marroquinos, atribui ao carneiro em geral a característica comum de “calda curta”). Nada permite que se exclua, a partir do texto espinosano, que os cavalos, cujos corpos são já de uma grande complexidade, possam formam “noções universais”, ao menos elementares – mas não sabemos como o próprio Espinosa teria determinado esta zona delicada.
45 Ética, IV, 68, esc.46 No cap. XI do Tratado político, tomando apoio na experiência, Espinosa acredita que possa concluir por uma desigualdade de natureza entre as mulheres e os homens, de modo que a conveniência dos sexos, longe de ser espontânea, tenha por condição a autoridade dos segundos sobre as primeiras. Trata-se, com certeza, de uma conveniência de segundo grau, ou paz civil, pois ela é primeiramente afetiva (libido).
47 Ética, III, 57, esc. (cf. também, acima, a n. 44). Ressaltaremos o equívoco com que Espinosa parece estar lidando, especialmente quando se lê a proposição e a demonstração que precedem esse escólio. Gira-se em torno da questão sobre a discordância afetiva ligada à diferença de essência entre um indivíduo e outro (quantum essentia unius ab essentia alterius differt [“tanto quanto a essência de um difere da essência de outro”]). No contexto, não pode ser outra, a diferença tratada, que não entre os seres humanos. É a ocasião para Espinosa sublinhar, na demonstração, que ele toma o conatus por um princípio de individuação: “Mas o desejo é a própria natureza ou essência de cada um (cf. a definição no escólio da proposição 9); portanto, o desejo de cada indivíduo difere do desejo de outro, tanto quanto a natureza ou a essência de um difere da essência do outro.” Ora, no escólio que se segue, ele passa para diferenças de desejo entre espécies (o cavalo e o homem, etc.). As últimas palavras vão por uma diferença entre o bêbado e o filósofo, e se compreendem, desde então, de outra maneira do que uma simples facécia...
48 Ética, I, apêndice.49 Ética, IV, 33.
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qual pode dar o sentimento, se for lida rápido demais, que a divergência afetiva se explica sobretudo
pela diferença dos objetos e pelo caráter aleatório de seus efeitos sobre um corpo tão complexo quanto o
corpo humano50. Mas essa demonstração também faz lembrar que os afetos passionais se explicam pela
essência atual das coisas exteriores comparadas à nossa, as quais intervêm portanto igualmente. O
conjunto parece poder ser compreendido assim: a diferença de essência entre dois homens só pode se
manifestar na vida passional, dado que essas mesmas essências, enquanto são a causa adequada daquilo
que afeta os dois homens, só podem convergir na partilha da razão. Enfim, ressaltemos que esse léxico –
convenire, discrepare – se encontra não somente na IVª parte, a propósito da vida social, mas também na
carta 32, a Oldenburg, a propósito dos diferentes componentes do sangue, os quais, como veremos mais
adiante, podem ser considerados, sob uma primeira conexão, como partes de um todo (representantes
quaisquer de uma mesma espécie) e, sob uma segunda conexão, como todos formados eles próprios de
partes (indivíduos de espécie diferente).
Retomemos. Espinosa opõe as noções comuns às noções universais51. Ele recusa a noção universal de
homem, oriunda de uma abstração cujo critério é a imaginação distinta “daquilo mesmo a que todos
convêm, enquanto o corpo é afetado por eles”, de modo que tal noção seja forçosamente relativa ao
indivíduo que a forma, e variável de um indivíduo a outro (um [36] será mais afetado pela aptidão dos
homens para rir, outro pela aptidão racional, etc.). Produzir, ao contrário, uma noção comum de
homem, que por convenção poderemos nomear essentia hominis, ou ainda natura humana, é também,
sem dúvida, ser afetado pelos outros homens, mas não acidentalmente, selecionando deles um traço
arbitrário, relativamente à constituição singular de um corpo e de uma imaginação. Assim, libera-se uma
idéia adequada daquilo que os homens têm de comum entre si, ideia que define sua natureza específica,
sem por isso alcançar a própria coisa, cujo estatuto está em suspenso: o homem, em sua essência
numericamente dividida na existência, mas formalmente una e específica? O homem, em sua
singularidade irredutivelmente individual?
Uma vez mais, um único argumento parece igualmente nos impedir de pender em favor da segunda
opção: a idéia segundo a qual a razão, idêntica em todos os homens, constitui também a essência de
cada homem. Espinosa, porém, não tem de forma alguma a razão pela diferença específica do homem, e
acabamos de ver que a definição escolástica do homem como animal rationale dependia, para ele, da
50 De acordo com a demonstração da prop. III, 51, à qual remete a demonstração da prop. IV, 33.51 Ética, II, 40, esc. 1 e 2.
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imaginação e, justamente, não da razão – mesmo que ele chegue a rejeitar aos limites do humano tudo
aquilo que é privado de razão (essa rejeição desumaniza, todavia, a criança, o que certamente não
haveria de chocar a época, mas talvez traia a complexidade do pensamento espinosano: 1) todo salto
trans-específico está proscrito, não somente à geração52, mas durante a existência53; 2) é natural ao
homem nascer criança54). Quanto às três definições do homem que encontramos na Ética, elas não
produzem, contrariamente à definição de Deus, nenhuma essência propriamente dita: o homem é corpo
e espírito55; o homem é desejo, enquanto procura se conservar e enquanto uma afecção o determina a
fazer alguma coisa56; o homem é virtude, enquanto tem o poder de agir57. A primeira fórmula lembra
que o homem é um ser modal e não substancial, e que, assim dito, ele não é senão uma parte da
Natureza (ela [37] não diz em que o homem se distingue no seio dessa Natureza); a segunda especifica,
sobretudo, aquilo que precisa ser entendido por essência, e onde é preciso, por consequência, procurá-la,
a saber, assim como para qualquer parte da Natureza, num certo quantum de esforço (ela não determina
esse quantum, mas abre a questão de saber se ele é específico ou individual); a terceira, enfim, parece a
mais próxima de uma verdadeira definição, na medida em que o homem, na Natureza, é certamente,
neste momento, o único ser que pode devir ativo (com efeito, esse processo, num contexto de finitude,
só pode depender de uma aptidão especial do espírito). Veremos, num instante, o que é preciso que seja
pensado dessa determinação. Constatemos de saída que o corpo, na Ética, tem definição apenas
individual, não somente porque uma definição do corpo é proposta sob o nome do indivíduo, o que é
evidente a qualquer filósofo e deixa pairando a possibilidade de que o critério de distinção individual só
tenha significação específica (uma mesma conexão de repouso e de movimento para todos os corpos
individuais de uma espécie dada), mas porque o escólio sobre a morte como transformação58 sublinha
sem ambiguidade o caráter propriamente individuante da conexão que, assim, passa a definir, não uma
espécie de indivíduo, mas uma identidade individual. Constatemos, além disso, autorizando-nos de uma
antecipação, que o quantum de esforço se prende logicamente à dita conexão, por conta disso tomando
igualmente um sentido individuante, como o confirma especialmente a carta 78, a Oldenburg, que
52 Ética, I, 8, esc. 2.53 Ética, IV, prefácio.54 Ética, V, 6, esc.55 Ética, II, 10, cor.; 13, cor.56 Ética, III, def. af., 1.57 Ética, IV, def. 8.58 Ética, IV, 39, esc.
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apóia uma tese ética sobre o postulado da desigualdade das essências. Assim nos encontramos, para
encerrar, diante do problema da razão.
Em definitivo, parece mesmo que a conveniência de natureza se efetua pelo viés de uma
participação a uma ordem que não nos é própria, a Razão, e que poderia da mesmíssima maneira
permitir com que nos puséssemos de acordo com uma outra espécie igualmente racional, mesmo que as
divergências de natureza implicassem que formaríamos, apesar de tudo, comunidades diferentes: de um
lado, por causa de uma estruturação afetiva diferente (libido), ligada à fabrica do corpo, que manteria a
intra-especificidade das uniões e comandaria, também, à razão um acesso e uma conexão afetiva
completamente diferentes; de outro lado, no caso de uma diferença de complexidade, por causa da
desigualdade por demais flagrante das aptidões (concretamente: a impossibilidade em que estaríamos de
nos [38] adaptar aos ritmos e aos estilos intelectuais de uma espécie racional superior à nossa).
Portanto, estamos face a duas linhas de pensamento divergentes, que correspondem, cada uma, a
um risco problemático distinto. A ordem na qual elas aparecem, assim como a orientação geral do
espinosismo, parece pleitear em favor da segunda; não temos, no entanto, nenhuma certeza de que as
duas linhas não tenham coexistido até o fim, como sobre planos diferentes que Espinosa jamais teria
julgado útil fundir num só. A urgência ética, de que, com efeito, seu trabalho constantemente é
testemunha, o conduz, seja o que disserem, a negligenciar, bem amiúde, como supérflua a integração de
todos os seus pensamentos na coesão global de um sistema.
4.COMUNIDADE QUÍMICA E POLÍTICA
Citemos, portanto, um último texto, que nos leva à nossa segunda deriva espinosista, a partir do
pedaço de cera, e ao problema da univocidade do conceito de figura:
“Com efeito, se, por exemplo, dois indivíduos de natureza inteiramente igual juntam-se um ao outro, eles
compõem um indivíduo duas vezes mais potente que cada um deles em particular. Ao homem, nada há de mais
útil que o homem; os homens, digo, nada podem optar de superior para conservar seu ser que não seja convir,
todos em todas as coisas, de modo a que os espíritos e os corpos de todos componham, por assim dizer, um só
espírito e um só corpo...” (Ética, IV, 18, esc.).
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CAPÍTULO 1
Vemos que a possibilidade de formar um corpo político, ou um pedaço de homem, depende da
capacidade concreta dos homens conseguirem convir-se mutuamente, coisa que não é adquirida de uma
só vez, pois cada um, sendo titular de seu corpo e de seu espírito, deve selecionar e cultivar em si o que
tem de comum com os outros. Este elemento comum, certamente não é o quantum de potência que
define sua essência atual, o qual está preso à proporção constitutiva de seu corpo, sempre particular: ele
pode ser mais potente, menos potente e, apesar disso, sendo a ordem de complexidade de seu corpo a
mesma do corpo dos outros, seu espírito é apto, como o dos outros, se bem que um pouco mais ou um
pouco menos, para cultivar a razão. Os homens podem, assim, identificar-se uns aos outros sob [39] essa
conexão e, então, dar lugar a uma espécie física de ordem superior. É então que, no texto seguinte, o
leitor acredita, primeiro, que a espécie humana é dada, depois percebe que ela depende do acesso de
cada um à razão: “Nada pode convir melhor com a natureza de uma coisa do que os outros indivíduos
de mesma espécie (speciei); e, por consequência, ... nada de mais útil é dado ao homem, para que
conserve seu ser e desfrute de uma vida racional, do que o homem que pela razão é conduzido.”59 E,
como se ele quisesse sublinhar que a comunidade dos homens racionais não forma, mais que o homem,
professores de virtude, um império dentro de um império, Espinosa termina sua resolução enunciando
que uma verdadeira educação levaria os homens a viverem ex proprio rationis imperio [“sob o próprio
império da razão”], expressão que, além disso, no contexto, não está desprovida de ressonâncias
políticas.
Este último problema é o do tecido. Era fatal que Espinosa fôsse a ele confrontado, pois se
retivermos a hipótese de uma ess�