sensibilidades juridicas e respeito as diferencas

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  • 237Daniel Simio

    Anurio Antropolgico/2013, Braslia, UnB, 2014, v. 39, n. 2: 237-260

    Sensibilidades jurdicas e respeito s diferenas: cultura, controle e negociao de sentidos em

    prticas judiciais no Brasil e em Timor-Leste

    Daniel S. SimioUnB

    Justia, reconhecimento e igualdade1Pesquisas feitas no Brasil acerca da judicializao de conflitos interpessoais

    tm indicado limites caractersticos de espaos judiciais para o equacionamento adequado da dimenso de reconhecimento que acompanha muitas das situaes levadas a juzo. Mesmo espaos de relativa informalidade, como os juizados es-peciais, deixam reduzido tempo para a elaborao narrativa das histrias por trs das lides, reduzidas a uma lgica alheia a seu contexto original e marcada pelas representaes que juzes e promotores tm acerca dos casos e das pessoas en-volvidas. O mesmo vem ocorrendo em relao a casos de violncia domstica e familiar contra mulheres, em que pesem iniciativas localizadas de ampliao dos espaos de escuta e de contextualizao das expectativas das partes em conflito.

    Em pesquisa recente acerca da implantao da Lei Maria da Penha (11.340/2006) no Distrito Federal, pudemos observar uma experincia-pilo-to de atendimento multidisciplinar a casos de violncia domstica.2 Naqueles atendimentos, por mais que se buscasse construir um espao de escuta prvio s audincias, as representaes sociais que povoavam o olhar dos atendentes filtravam muito do que era dito pelas partes, fazendo com que a equipe multi-disciplinar muitas vezes encapsulasse as mulheres na condio de vtimas e, mais que isso, na condio de incapazes de perceber adequadamente o que se passava com elas prprias (Simio et al., 2013). Em alguns casos, isso significava que a equipe e, posteriormente, o juiz deveriam proteger essa mulher contra sua pr-pria vontade, ou contra a maneira pela qual ela mesma dava sentido s situaes que vivia, em uma espcie de procedimento tutelar bastante conhecido da forma como o direito no Brasil lida com certos grupos sociais. Isso remete, diretamen-te, a um discurso que ouvi frequentemente em Timor-Leste, entre 2009 e 2011, por parte de operadores do direito, acerca da posio de mulheres e crianas, tida como vulnervel, em relao s formas culturalmente usuais de resoluo de conflitos um discurso que problematizo no filme S Mak Sala Tenkeser Selu Sala (Simio, 2012).

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    Em outras ocasies, mostrei que o recurso polcia e ao tribunal , em Ti-mor-Leste, bastante incipiente (Simio, 2005b, 2011). Os muitos conflitos que surgem nas relaes entre moradores de uma aldeia ou de um suku (unidade ad-ministrativa formada por um conjunto de aldeias no interior de um subdistrito) so em geral resolvidos localmente, por mecanismos tidos como tradicionais. A literatura antropolgica sobre essas formas locais de justia tende a caracte-riz-las como muito mais abertas construo de solues consensuais, enrai-zadas na perspectiva e na cosmologia das partes em conflito, tendo, portanto, maior capacidade de lidar efetivamente com a natureza dos conflitos em causa (Soares, 1999; Hohe & Nixon, 2003; Williams-Van Klinken, 2003). Contudo, comum ouvir, por parte dos operados do direito positivo, alm de organizaes de defesa de direitos, crticas ao que seriam os abusos da cultura contra grupos tidos como vulnerveis, sempre acompanhadas da ideia de que esse espao cul-turalmente legitimado para resoluo de conflitos deveria ser de alguma forma controlado pelo Estado (Simio, 2005b, 2011; Silva & Simio, 2012). Isso me fazia (e ainda me faz) pensar em bons paralelos com a viso tutelar observada no Brasil, pela qual se retrata um tipo de sujeito como hipossuficiente e merece-dor da tutela estatal.

    Este artigo pretende explorar os limites dos sentidos de justia e equidade em prticas judicializadas de administrao de conflito que envolvem expecta-tivas de reconhecimento moral, a partir de um olhar cruzado entre uma tradi-o de pesquisa no Brasil e recentes observaes sobre dilemas semelhantes em Timor-Leste. Inspirado pelas reflexes de Lus Roberto Cardoso de Oliveira (2010) sobre o mundo cvico malconformado que vivemos no Brasil, pergunto--me em que medida o tratamento diferencial implica uma negao da dignidade das pessoas.3 Seria o critrio da negao da dignidade um bom critrio para avaliar a justeza ou adequao de uma prtica de resoluo de conflitos? Se sim, como os atores em conflito se sentem em relao ao modo como seu caso tra-tado e como do sentido a isso?

    Para abordar esse tema, trago reflexo a descrio etnogrfica de um caso leste-timorense que nos permite colocar em perspectiva a viso (por vezes ideali-zada na literatura) acerca das formas locais de justia e de sua sensibilidade jurdica (Geertz, 1983) como mais atentas s demandas por reconhecimento e sensveis dimenso moral dos conflitos. Com base na anlise de um caso de resoluo de conflito com desfecho trgico, proponho que no basta o espao de enunciao de histrias para que ocorra o sentimento de justia e reparao. Aponto para o papel central das prticas de compensao timorenses para dar conta da di-menso moral do conflito, estabelecendo, subsidiariamente, comparaes com

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    a sensibilidade jurdica brasileira e buscando caracterizar limites e possibilidades das chamadas formas locais de justia em Timor-Leste, em especial em relao ao mundo cvico que as cerca. Evidencio ainda as diferenas que marcam o modo pelo qual a sensibilidade jurdica dessa forma de justia lida com a dimenso moral dos conflitos, no sem relacion-las a prticas e saberes judiciais locais.

    O casoEm 2013, permaneci dois meses imerso no cotidiano de uma aldeia timo-

    rense, nas montanhas do distrito de Liqui. Minha primeira surpresa, logo que comecei a pesquisa, foi perceber que os moradores da regio consideravam os processos de resoluo de conflitos feitos com intermediao do chefe de aldeia e chefe de suku como um recurso ao Estado. Os moradores entendiam que, quando levavam um caso ao suku ou aldeia, apelavam ao Estado, uma vez que chefe de aldeia e de suku so figuras eleitas, empossadas pelo Estado e vistas como dotadas de abrigo legal para tal.4

    Essa observao importante, pois, na literatura e no campo discursivo de meus interlocutores em Dli, costuma-se opor a justia feita nos tribunais en-tendida como justia promovida pelo Estado s formas de mediao e adjudi-cao feitas nas aldeias, entendidas como tradicionais, costumeiras e promo-vidas pela cultura. Assim, a fronteira entre tradio ou cultura e Estado era subvertida pelas representaes nativas que encontrei no suku.5 Com isso, no quero dizer que tal fronteira no exista, mas que ela toma configuraes muito mais complexas que as de uma simples oposio definida a partir de uma perspectiva externa. O trnsito de prticas de controle e governo entre o mun-do cvico das aldeias e aquele da administrao central (ou estatal) em Timor recorrente desde o tempo colonial portugus (Roque, 2011; Silva & Simio, 2012), e a forma como as pessoas ressignificam tais prticas como prprias do Estado ou da cultura ainda uma grande agenda de pesquisa para etnografias em Timor-Leste.6

    No suku de Lisadila, onde tenho feito pesquisa, os conflitos so variados e frequentes. Em um intervalo de quatro semanas, assisti a quatro casos julgados e resolvidos por recurso a esse mecanismo tradicional, sendo dois na sede de uma aldeia, um na sede do suku e um em nvel familiar. Vou tratar aqui deste ltimo caso, que envolveu um jovem casal de namorados, Arminda e Manoel.

    Os dois namoraram por dois anos, tendo chegado a viver juntos por dois meses e fazer planos para se casarem. A me de Manoel, contudo, no concor-dava com o casamento, e fez o possvel para evitar que as negociaes entre as famlias fossem adiante. Em agosto de 2012, as famlias viram que no haveria

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    negociao e decidiram que o casal deveria se separar. Como tambm no havia acordo sobre a melhor maneira de promover a separao, recorreram ao che-fe de aldeia, que convocou ancios, os lia nain, para arbitrarem o conflito. O processo resultou em um acordo por meio do qual a famlia de Manoel deveria pagar uma multa famlia de Arminda (materializada por um conjunto de bens, dos quais falarei adiante), e esta, para receber a multa, deveria dar outro conjun-to de bens famlia de Manoel.

    O acordo foi feito, mas jamais foi implantado, pois a famlia de Manoel nunca se mostrava preparada para pagar o que devia. Cansada de esperar, a famlia de Arminda recorreu ao chefe de suku, que convenceu as partes de que a melhor soluo seria uma mediao entre as prprias famlias, o que enfim ocorreu, no final de janeiro. Para essa mediao feita na famlia, portanto vista, esta sim, como tradicional e no como recurso ao Estado , as famlias chamaram cinco lia nain: Jlio (lia nain da aldeia de Glai, mas tambm da casa de Manoel e, nessa condio, rai nain, o sujeito capaz de comunicar o resultado da media-o ao esprito da terra), Cirilo (lia nain da aldeia), Guido (da casa de Manoel Kailako Maubere), Camilo (da casa de Arminda Beiliko Beikbau) e Estevo, uma espcie de tertius, pois no pertencia quela aldeia nem s casas em questo.

    Seguindo o protocolo dessas formas de mediao, que em geral tomam um dia inteiro, as partes entregaram aos lia nain pores de noz areca e folhas de betel, a serem oferecidas aos ancestrais. Os lia nain ouviram as narrativas das partes, conversaram entre si e, inspirados pelos ancestrais, chegaram a um en-tendimento sobre como o problema deveria ser resolvido. A famlia de Manoel deveria pagar uma multa, entregando famlia de Arminda quatro peas de tais (o tecido tradicional timorense) e quatro porcos. Teria ainda que providenciar 24 dlares, para pagamento aos lia nain, cerveja para a cerimnia de paz e um animal, a ser sacrificado para o esprito da terra durante essa cerimnia. O ani-mal serviria ainda de oferenda aos ancestrais das casas em questo, bem como das casas dos prprios lia nain.

    Contudo, como comum nesses processos, a famlia de Arminda no pode-ria apenas receber. Tinha que dar algo em troca. Justifica-se isso dizendo que, se apenas uma parte condenada a dar, ela pode ficar ressentida, o que impede a manuteno da boa relao entre as casas. Ao mesmo tempo, receber sem dar nada em troca pode ser motivo de vergonha e humilhao para quem recebe. A preocupao com a manuteno dos vnculos, estabelecidos pelo regime da d-diva, central para o bom equacionamento de conflitos em relaes de proximi-dade. Assim, a famlia de Arminda teria que entregar, como contraddiva, um disco dourado (belak mean), alm de providenciar para os lia nain o montante de

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    24 dlares e pagar aos lia nain uma multa de 20 dlares, a ttulo do que se chama mutin ho mean.7 Teria ainda que prover cerveja para a cerimnia de paz e um saco de arroz para ser cozido com a carne do animal sacrificado durante a cerimnia.

    A materializao da pena em bens a serem trocados entre as partes opera uma diferena significativa em relao ao que seria, na lgica do direito positi-vo, uma indenizao por danos morais. Os bens trocados em um processo de reconciliao como o aqui descrito no podem ser comutveis em dinheiro. Os porcos e as peas de tecido da famlia de Manoel que seriam oferecidos como compensao para a famlia de Arminda no tm equivalente monetrio.

    H, ao menos, dois nveis de explicao para isso. De acordo com os lia nain com quem conversei, so tais bens, e no outros, que a cultura manda serem ofertados. Isso porque Manoel est na posio de quem se separa de uma esposa, o que o obrigaria a devolver os bens recebidos durante o casamento e a fam-lia do noivo sempre recebe porcos e tecidos por ocasio do casamento. Assim, o conflito enquadrado pelo idioma das prestaes matrimoniais, altamente prescritivo e mediado por bens com significados especficos.8

    Em um nvel mais profundo, os bens trocados carregam a prpria natureza da relao entre as partes, bem como a posio de cada uma delas. No apenas a troca de bens que representa uma relao, mas a natureza dos bens trocados que indica a natureza da relao em si. Como j dito acerca da Melansia, pes-soas e relaes so, aqui, indissociveis (Strathern, 1991; Wagner, 1991), sendo a prpria pessoa constituda pelas relaes que estabelece com outras. Assim, podemos dizer que as coisas trocadas, mais do que representar, so, de fato, as relaes e, por conseguinte, so tambm as pessoas. No por acaso, dessa regio do mundo que vem o material etnogrfico que permite a Mauss (1974) desen-volver a ideia central em sua teoria da ddiva de que as coisas dadas levam consigo algo de quem as deu, o seu hau. A palavra hau, alis, em vrias lnguas austronsias (como o caso do ttum), significa simplesmente eu. Quero pro-por com isso que a coisa ofertada faz mais do que levar uma substncia de quem a oferta. A coisa a pessoa que a oferta, na medida em que sua natureza mate-rializa a posio de pessoa em jogo em uma relao. A coisa constitui a posio de pessoa; e a troca, ao materializar uma relao, constitui a prpria pessoa (ao menos naquela circunstncia).9

    A troca materializada por bens incomutveis assume, assim, um sentido de reconhecimento (Honneth, 1996; Taylor, 1994) tanto da existncia social da pes-soa (das pessoas, de fato, j que ambas tm algo a dar), por meio de uma relao consubstanciada nos bens trocados, como do tipo de pessoa-relao, eviden-ciado na natureza dos bens. Os bens trocados como compensao em uma

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    cerimnia de reconciliao expressam, pois, muito mais do que o pagamento de uma indenizao a algum ofendido como seria o caso da indenizao por da-nos morais, no direito positivo. Alm disso, ao se dar no contexto de uma troca (para receber os porcos e tecidos, mesmo que a ttulo de compensao, a famlia de Arminda tem que reciprocar com um disco dourado), a compensao pres-supe um ideal de restabelecimento de uma relao entre as partes. As famlias poderiam, depois do ritual, voltar a conviver normalmente.

    Curiosamente, isso parece levantar obstculos a um dos discursos observa-dos entre operadores do direito em Timor-Leste que busca justamente aproxi-mar as formas de resoluo de conflitos vigentes nas aldeias da prtica patroci-nada pelos tribunais. Para esses atores, as duas formas de justia (a do Estado e a tradicional) tm pontos de contato e devem ser integradas em um nico sistema, ao contrrio da tradio colonial (em especial britnica) de manter uma justia nativa para os nativos e outra para os europeus e assimilados. No documentrio S Mak Sala Tenkeser Selu Sala (Simio, 2012), tal discurso mais evidente nas falas da juza administradora do Tribunal Distrital de Dli e, espe-cialmente, da procuradora-geral da Repblica. Esta menciona explicitamente a indenizao por danos morais como equivalente s compensaes arbitradas nas aldeias. Parece-me, contudo, que os sentidos de reparao em causa no podem ser equiparados, dado o sentido muito particular das coisas trocadas nos rituais locais, bem como sua relao com a prpria concepo de pessoa e de eu (hau) concepo, tambm ela, diferente daquela do indivduo jurisdicionado pela corte estatal.

    Nesse contexto, no de estranhar que a definio sobre a natureza e a quantidade de coisas envolvidas nas trocas que materializam as sanes dependa: 1) da natureza da relao entre as partes (se as famlias tinham uma relao prvia estabelecida por redes de casamento); 2) da natureza do conflito (se era percebido como ofensa mais ou menos grave); e 3) da posio de cada parte em algum dos vrios sistemas de prestgio que operam na aldeia.

    No caso de Arminda, como vimos, a natureza da relao implicava que a famlia de Manoel devolvesse bens usualmente dados pela famlia da noiva em um casamento (porcos e tecidos), e a de Arminda, bens usualmente dados pela famlia do noivo (o disco dourado). Com relao ao sistema de prestgio operan-te, este dizia respeito ao valor das casas. A casa de Arminda (Beilik Beikbau) no era uma casa qualquer, mas a segunda casa real do suku. Havia sido a casa do r-gulo do suku, ainda no tempo da dominao portuguesa. Ainda assim, a natureza do problema no era tida como grave: Arminda no estava grvida, e poderia futuramente se casar com outro homem. Assim, o montante envolvido na multa

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    Anurio Antropolgico/2013, Braslia, UnB, 2014, v. 39, n. 2: 237-260

    no era grande e, principalmente, a carne a ser oferecida aos ancestrais no seria a de um cabrito, como de costume; bastaria um pato.

    Ainda sobre a definio das penas, esse no um processo simplesmente ra-cional, de aplicao de um cdigo invarivel. Os lia nain so acompanhados pela presena invisvel de seus ancestrais e decidem o caso inspirados por eles. Por isso, durante o julgamento e na cerimnia de reconciliao, preciso haver ofe-rendas (areca e betel, bebida, carne e arroz) a serem levadas, posteriormente, s casas sagradas de cada lia nain como ddiva a seus ancestrais. O processo todo marcado pela cosmologia religiosa local. claro que nossos julgamentos, no Brasil, tambm esto marcados por um registro religioso (um crucifixo na sala de audincia, uma Constituio promulgada sob a proteo de Deus e, mais re-centemente, juzes que incluem em suas sentenas referncias diretas a Deus e religio). Contudo, a sensibilidade jurdica timorense assume-se explicitamente como inscrita nessa cosmologia, sendo impossvel fazer um julgamento sem ela.

    Depois de concludo o julgamento, marcou-se, para dali a uma semana, a cerimnia de paz ho dame.10 A cerimnia, como de costume, durou uma tarde inteira. No incio, dois lia nain, incluindo o rai nain, separaram em uma peque-na cesta as folhas de betel, as nozes de areca e a bebida, e, levando a cesta e um pato, partiram para um lugar especfico, sagrado, para comunicar o acordo ao esprito da terra. No local sagrado, as oraes foram feitas, e o pato, sacrifica-do. Aps o retorno, todos os lia nain recapitularam o caso, materializando em palavras todos os movimentos dados at ali, o que consumiu quase uma hora. Enquanto isso, o pato era preparado na cozinha.

    As partes trouxeram os bens que deveriam trocar. Sempre acompanhados de longas narrativas dos lia nain, os bens foram trocados. A cada troca, apertos de mo selavam a paz. Depois de trocados os bens e recolhido o dinheiro, que ficaria com os cinco lia nain, uma nova sequncia de discursos teve lugar. Cada lia nain reforava o sentido das sanes aplicadas, ressaltando a importncia de que aquele tipo de problema no voltasse a ocorrer na aldeia. Eventualmente, al-gum dissenso transpareceu na fala dos pais dos jovens, silenciado pela fala longa, enftica e cheia de autoridade do lia nain da casa de Arminda, senhor Camilo. Desta vez, o chefe de aldeia, senhor Ventura, tambm discursou, reforando os pontos marcados por Camilo. Na sequncia, Arminda entregou a Manoel os poucos objetos pessoais deste que ainda estavam em sua casa. Ao final, um brinde cerimonial, em que as partes bebiam do mesmo copo, selou a paz. Todos se abraaram efusivamente.

    Com o pato preparado, todos comeram. Uma parte da carne foi separada em pequenas cestas, com arroz, areca e betel, para ser levada casa sagrada dos lia

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    nain. O evento terminou por volta das 18h, quando me retirei. s 20h, o pai de Arminda, senhor Valente, acompanhado de um tio da jovem, foi sua casa sagrada para levar as oferendas e fazer as oraes necessrias a selar definitiva-mente a paz. Quando entraram na casa, porm, depararam-se com o corpo de Arminda, inerte, suspenso por uma corda. A jovem havia acabado de se enfor-car, dentro da casa sagrada.

    A polcia, que por sorte estava fazendo ronda em Lisadila naquela noite, foi avisada e isolou a rea. Na manh seguinte, o suku estava em polvorosa. Assim que Manoel chegou ao lugar, o pai de Arminda partiu para cima do jovem, aos gritos, e comeou a agredi-lo, culpando-o pela morte da filha. Se a polcia no estivesse presente para separ-los, teramos ali outra morte. O problema que havia sido pacificado no dia anterior agora se desdobrava em dimenses ainda maiores.

    Durante o dia, conversei com vrios de meus interlocutores sobre o ocor-rido. Todos comentavam que a jovem se matara por no querer viver sem seu amor, o que, alis, consideravam uma bobagem incompreensvel. Cheguei mes-mo a comentar com alguns que aquilo me parecia um gesto de protesto de Ar-minda contra uma deciso que no contemplou seu desejo. Um ritual marcado por longas narrativas e no qual a palavra tem um lugar central (afinal, lia nain quer dizer, literalmente, o homem das palavras) acabou anulado por um nico e supremo gesto e este, em um minuto, desfez o que mil palavras haviam feito.

    No dia seguinte, fui conversar com os pais de Arminda. Queria ouvir sua in-terpretao do fato. L estava tambm Camilo, que atuara no processo como lia nain da casa da jovem. Comovido, ele falava com lgrimas nos olhos. Disse que haviam errado no procedimento, e por isso o caso tivera um desfecho trgico. O grande erro, segundo Camilo, foi terem acertado que bastaria sacrificar um pato na cerimnia, em lugar do usual cabrito. Aquela no era uma casa qualquer, e o sacrifcio do pato certamente irritara os ancestrais da casa, que, para lavar sua honra, vieram buscar a jovem e no por acaso ela morreu na casa sagrada, a casa dos ancestrais. A interpretao de Camilo surpreendeu-me. Era, contudo, absolutamente lgica, e evidenciava a fora dos saberes locais na produo de uma interpretao razovel para o ocorrido.

    Segundo esse modo de ver as coisas, a agncia no est na pessoa (Arminda), mas nos ancestrais. Temos aqui um enquadramento cosmolgico no qual a ideia de indivduo no opera fortemente na construo da subjetividade. O pai de Arminda, senhor Valente, ainda mais desolado, limitava-se a aquiescer com a cabea. Quando interpelado por mim, reforou a interpretao de Camilo, mas com um comentrio que matizava a no agncia de Arminda. Segundo Valente,

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    a filha havia se sentido humilhada com o fato de seu caso ser resolvido com o sacrifcio de um simples pato. Ela teria comentado isso vrias vezes dentro de casa, ao longo da semana que antecedeu a cerimnia. A vergonha e a humilhao teriam contribudo para que ela perdesse o desejo de viver.

    No mesmo dia, levei essas interpretaes a outro dos lia nain envolvidos no processo, senhor Estevo, meu interlocutor desde 2009. Estevo no concorda-va com a interpretao dada por Camilo. Segundo ele, a definio da carne do sacrifcio atribuio dos lia nain, e no cabe aos ancestrais opinar sobre ela. Tnhamos aqui outra disputa sobre as agncias envolvidas no processo. Afinal, nem tudo estava nas mos dos ancestrais, e haveria limites para o juzo que eles podiam fazer acerca das aes dos vivos. Para Estevo, o processo no fora falho. A mediao no permitia aos lia nain se sobrepor vontade das famlias. Como uma das famlias se mostrava irredutvel pela separao, coube aos ancios de-finir a maneira correta de faz-la. Para Estevo, Arminda havia sim decidido se matar, e o fizera porque no aceitara a obstinao da me de Manoel em separ--los. Separada de seu amor, no via mais sentido na vida.

    A variedade de interpretaes para o fato algo sobre o que pensar. ver-dade que h um enquadramento cosmolgico no qual a ideia de indivduo e a ideologia individualista, no sentido dumontiano, no opera (Dumont, 1985). difcil depreender que tipo de subjetividade esse enquadramento conforma e produz. possvel mesmo que Arminda no tenha propriamente decidido se matar como forma de, enfim, fazer ouvir sua vontade. possvel que se sentisse envergonhada e tenha mesmo ouvido (ou pensado ouvir) algum chamado an-cestral. Socializada em um ambiente em que a agncia sobre a vida e a morte, a sade e a doena, sempre objeto de compartilhamento e negociao entre vivos e mortos, no seria de estranhar que Arminda tenha se deixado levar pe-los ancestrais. O que, realmente, passou pela sua cabea, no saberemos. Nem creio que seja esse o foco de uma interrogao antropolgica, preocupada antes com os discursos e as interpretaes socialmente partilhadas. Quero, contudo, sublinhar o desafio de levar em conta os processos de individuao e construo de subjetividades que me parecem fundamentais para se dar conta do sentido que os atos podem ganhar para um sujeito, o que inclui localiz-los como atitude de insulto ou desconsiderao.

    Ao comentar o caso com uma amiga estrangeira, em Dli, j na vspera de meu retorno ao Brasil, ouvi novamente a crtica inadequao das formas locais de resoluo de conflitos para alcanar solues justas para com mulheres e crianas, acompanhada, como de costume, pela avaliao de que o Estado deve-ria tutelar o direito desses grupos, tidos como vulnerveis. Embora o desfecho

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    trgico do processo me tenha feito concordar, no momento, com as crticas de minha amiga, creio que h mais o que dizer sobre isso. E, para faz-lo, tenho que retomar o incio deste texto. Antes disso, porm, devemos entender melhor o que esteve em jogo nessa tragdia.

    Romeu, Julieta e a dimenso moral do direitoSeja qual for a interpretao que escolhamos para a morte de Arminda, o

    evento parece apontar para algum nvel de demanda de reconhecimento moral. Na interpretao de Estevo e de Valente, trata-se de uma demanda de reconhe-cimento feita pela jovem: seja o reconhecimento de sua vontade de viver com Manoel, seja o reconhecimento do valor de sua casa. Na interpretao de Cami-lo, a demanda feita pelos ancestrais. De qualquer forma, o gesto supremo da jovem comunica aos demais uma reivindicao no atendida e possivelmente sequer percebida como tal at o momento da tragdia. Nesse sentido, parece-me plausvel interpretar essa tragdia como um caso de demanda moral no resolvi-da por um mecanismo de justia tido, na literatura, como capacitado a faz-lo.

    A ateno dada em rituais de reconciliao como o aqui descrito s posi-es das partes, natureza de sua relao e natureza do caso em si aspecto fundamental da sensibilidade jurdica operante nas aldeias e sukus timorenses, prescrito e afirmado como um imperativo. Em tese, isso torna tais modelos mais sensveis a demandas de reconhecimento, que exigem a ateno dos operadores do caso forma como as partes entendem suas trajetrias. Isso tambm con-trasta com a dificuldade observada no sistema jurdico brasileiro (e em geral no modelo civilista, como a justia dos tribunais em Timor-Leste) em incorporar a dimenso moral dos conflitos.

    Ao ser judicializado, um caso que envolva pessoas em relao de proximi-dade perde sua natureza original para se tornar, por meio da reduo a termos, uma lide judicial. Vrios autores j chamaram ateno para o fato de esse movi-mento excluir do processo judicial elementos do conflito tidos como centrais para as partes em litgio, tais como o contexto que deu origem ao conflito, bem como os sentimentos das partes em relao ao mesmo (Cardoso de Oliveira, 2002; Kant de Lima, 2008). A distncia entre a forma como o Judicirio v o caso (a lide) e o modo como as partes vivenciam o conflito tende a gerar, entre elas, um sentimento de injustia ou desconsiderao.11

    A forma como se estrutura a sensibilidade jurdica ocidental, moldada por relaes contratuais entre partes e fundada na ideia de produo material de pro-vas, torna o processo judicial impermevel quilo que Cardoso de Oliveira (2002, 2008) define como insulto moral. De difcil materialidade, por envolver uma

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    dimenso subjetiva por parte de quem a sente, a ofensa causada pela percepo de um insulto moral muitas vezes no encontra meios, no Judicirio, para ser adequadamente reparada. No caso das formas locais de justia em Timor-Leste, esperava-se que, ao atentar para a natureza do conflito e disponibilizar meios de materializar (pelas trocas de bens e de palavras) o reconhecimento da ofensa, essa dimenso moral fosse mais facilmente contemplada.

    A questo que se pe, ento, se podemos tomar a morte de Arminda (e os conflitos dela decorrentes) como um exemplo de fracasso desse mecanismo de reparao um alerta sobre os seus limites. Para enfrentar essa questo, proponho mudar o foco do que tem sido percebido como caracterstica prpria desses mecanismos na literatura regional. Parece-me que o que est no centro de tais mecanismos no , como se costuma enfatizar na literatura (em especial a de inspirao estruturalista na regio), o restabelecimento do equilbrio comu-nitrio. O ponto central em jogo nesse processo da a centralidade das trocas de bens no ritual a afirmao de posies de pessoa em relao. O que se estabelece com tais rituais , antes de tudo, a dignidade das pessoas constru-das por meio das trocas em causa.

    Por dignidade devemos entender no a categoria que, no Ocidente, veio a ocupar o lugar da honra na passagem do ancien rgime para a modernidade (Ber-ger, 1983; Taylor, 1994), mas sim o sentido nativo abundantemente usado em Timor-Leste, marcado pelas caractersticas prprias da honra. Ter dignidade, em Timor-Leste, ter sinais de distino e ser tratado de acordo com a posio de pessoa que se conquistou. Assim, durante um processo de mediao ou arbi-tragem, as partes lutam por ver-se inscritas em posies de pessoas tidas como honradas, e o que o ritual faz, menos do que restaurar um ideal de equilbrio social, restaurar a pessoa-relao ou a pessoa fractal, no dizer de Wagner (1991). As trocas, aqui, so o nico meio de reconstruir uma posio de pessoa em uma relao, sem o qu no h pessoa possvel.

    No se trata, assim, de repor um equilbrio abstrato entre grupos, mas de pavimentar um caminho para a identificao das pessoas e de sua dignidade. Isso torna o processo bastante sensvel dimenso moral, para lidar no apenas com a percepo de insultos morais, mas tambm com um grande potencial para produzir tais insultos. O registro da ddiva mostra-se aqui bastante trai-oeiro, uma vez que uma palavra mal colocada ou um bem mal avaliado podem ser to ou mais ofensivos do que a situao que originou o processo. Parece-me que, no caso de Arminda, o modo pelo qual o processo se desenrolou levou percepo, pela jovem, de um grande insulto moral.

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    Seguindo-se a interpretao dada por Valente, pai de Arminda, podemos dizer que a natureza do animal sacrificado teria sido lida pela jovem na chave que rege a interpretao dos bens trocados. A natureza do animal um pato comunicava uma posio pouco prestigiada para a pessoa da jovem. Ao ofere-cer um pato, e no um cabrito, a famlia de Manoel inscrevia Arminda em uma posio de pessoa de menor valor em relao aos demais, de certa forma afetan-do sua dignidade. Nesse sentido, a oferta do pato teria certamente motivado um sentimento de insulto moral no percebido como tal, contudo, pelos lia nain e no verbalizada como tal pelos pais de Arminda durante a cerimnia. O mesmo movimento pode ser observado se seguirmos a interpretao do lia nain Camilo. A diferena que, nesse cenrio, os verdadeiros insultados teriam sido os ancestrais da casa Beilik Beikbau, que teriam vindo buscar Arminda naquela noite para lavar sua honra. O pato inscreveria a casa (e no apenas Arminda) como unidade moral, em uma posio de menor valor relativo.

    Resta, ainda, a interpretao de que Arminda teria se matado por amor at onde pude acompanhar, a mais partilhada no suku, ao menos nos dias que se seguiram ao evento. Nesse sentido, poderamos entender seu enforcamento como um ato de desespero diante do sofrimento gerado por no poder fazer valer sua vontade. A negao de seu desejo teria gerado uma situao insuporta-velmente insultante para ela, mas no suficiente para gerar indignao entre os ho-mens do suku, que consideravam esse tipo de sofrimento uma bobagem incom-preensvel.12 As condies para que o sofrimento de Arminda gerasse compaixo nos demais dependeriam de um enraizamento local do ideal de amor romntico, aparentemente ausente pelas reaes que pude observar.

    Nos eventos pblicos que acompanhei depois da morte de Arminda, era cho-cante ver como os homens do suku (tanto mais velhos quanto mais jovens) riam e faziam piadas com o enforcamento da jovem. Eles achavam incompreensvel que algum se matasse por amor. De fato, os nicos a demonstrar sofrimento e pesar com a morte da jovem eram seus familiares diretos. O gesto da jovem, lido nesse registro, parecia fugir completamente ao que seria uma conduta razovel aos olhos do grupo, ganhando tons de loucura.

    impossvel deixar de fazer aqui um paralelo com Romeu e Julieta, de Shakes-peare, e com as muitas heronas de peras do sculo XIX que, impedidas de vi-ver seus grandes amores, protagonizavam clebres cenas de loucura.13 O amor romntico depende de uma moralidade impregnada pela ideologia individualista sem o qu os leitores de Shakespeare ou o pblico das peras dificilmente se identificariam com o sofrimento dos heris e das heronas dessas tragdias. A loucura de Arminda, por outro lado, despida de qualquer valor virtuoso

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    em Lisadila, sendo vista, por boa parte de seus conterrneos, como risvel e sem sentido.

    Ao se adotar esta ltima interpretao, estaremos, aparentemente, em uma situao na qual diferentes subjetividades implicam uma diferente percepo da ofensa. Elementos da ideologia individualista certamente esto presentes na per-cepo dos moradores do suku acerca do sofrimento de Arminda, do contrrio a interpretao de que algum possa tirar a prpria vida por amor sequer seria levantada. Contudo, tais elementos no so fortes a ponto de tornar o amor romntico um ideal valorizado no grupo. Nessa leitura, por maior que fosse o sofrimento de Arminda, esse sentimento no gozaria de legitimidade social a ponto de gerar, nos atores sua volta, a indignao que a percepo de um insul-to a algum gera em um terceiro que o presencia.

    Com isso, parece-me impossvel compreender a localizao de um ato como insulto ou desconsiderao sem levar em conta os complexos jogos de individu-ao e construo de subjetividades nos quais sujeitos concretos esto inseridos. Os processos de subjetivao (a maneira pela qual um sujeito entende a si mesmo no mundo sua volta) operantes no local parecem-me cruciais para definir o sentido que os atos podem ganhar para um sujeito. Isso torna tambm difcil en-tender o que pode ou no ser percebido como afronta dignidade de um sujeito em contextos particulares.

    Lida na tica de qualquer das trs interpretaes acima, a tragdia de Ar-minda parece mostrar que, para o equacionamento justo de demandas morais, no basta um sistema capaz de ouvir ou incorporar sentimentos e moralidades. A sensibilidade jurdica local estava aberta a isso. Contudo, justamente por co-locar o regime da ddiva em posio central (com seus delicados mecanismos de avaliao de bens e palavras na constituio de pessoas), o ritual de reparao mostrou-se igualmente capaz de produzir o insulto. Ao mesmo tempo (e para complicar a equao), esse processo acionado em um contexto no qual dife-rentes processos de subjetivao operam na construo dos sentimentos. No estamos falando de uma aldeia alheia a processos de modernizao, mas de um universo que convive com valores como o do amor romntico ao lado do res-peito agncia dos ancestrais e de suas casas.14 Isso torna difcil a construo de uma base compartilhada para a interpretao dos sentimentos individuais.

    ConclusesPara concluir, voltemos ao incio deste texto, em que se colocava a questo

    da justeza ou equidade na resoluo de conflitos a partir da tutela de direitos, tal como observado nos casos de violncia domstica no Distrito Federal. Assim

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    como Arminda pode ter incorporado um modo de ver e sentir o mundo pelo qual o pato representa maior ofensa do que a separao em si,15 vemos, no Dis-trito Federal, vrios casos de mulheres que incorporam como natural uma roti-na de xingamentos e agresses do marido, tomando como ofensivos outros com-portamentos (a agresso a um filho, por exemplo). Casos como esse preocupam os profissionais do atendimento e levam a atitudes tutelares que desconsideram as demandas originais das mulheres (Simio et al., 2013).

    A ideia de que a persecuo criminal, sob certas circunstncias, est acima da vontade individual da mulher consagrada na interpretao da lei brasileira de combate violncia contra a mulher (Lei Maria da Penha, 11.340/2006), que considera casos de leso corporal como objeto de ao pblica incondicionada. Isso acaba por retirar das mos da mulher um mecanismo de presso e controle sobre a conduta do parceiro antes usual a de ameaar com uma denncia, mas manter nas prprias mos a possibilidade de retir-la. Pasinato (2004) e Amorim (2007) j indicavam, h alguns anos, o sentido desempoderador dessa interpretao para muitas mulheres. Esse esvaziamento da agncia individual (da mulher) em favor de um agente abstrato (o Estado, via Ministrio Pblico) jus-tifica-se, no histrico de elaborao e interpretao da Lei Maria da Penha, pela pressuposio de um universal de dignidade a ser preservado por meio da tutela estatal, nem sempre conhecido ou compreendido pelas mulheres que recorrem justia, mas tomado como dado pelas organizaes de defesa de direitos.

    Sob essa tica, poderamos dizer que Arminda no fora adequadamente protegida pelos responsveis pela reconciliao no teve resguardada sua dignidade, seja no sentido timorense, de honra, seja no ocidental , e isso re-sultou em uma tragdia. Os casos do Distrito Federal indicam, por outro lado, que tal proteo tambm pode significar a desconsiderao dos sentimentos e desejos das mulheres que recorrem autoridade judicial. Retomamos assim o desafio analtico com o qual comecei este artigo. Em que medida uma proteo mandatria representaria o atendimento a demandas morais dessas mulheres ou, ao contrrio, um ataque sua dignidade?

    A discusso dessa questo passa pelo entendimento de um universo compar-tilhado de normas e valores relativos a direitos internalizados pelas partes em conflito um mundo cvico mais bem ou mais mal conformado, como diria Cardoso de Oliveira (2010). Parece que, nas aldeias em que pesquisei, temos no um, mas ao menos dois mundos cvicos sobrepostos: um governado pelas obrigaes com as casas e seus ancestrais, e outro marcado pela presena do Estado e pelo universo dos direitos individuais, embora lidos de maneira muito particular. A controvrsia acerca do significado da morte de Arminda sugere

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    que, no mundo cvico governado pelos ancestrais e pelas obrigaes entre as casas, as normas no so to consensuais e claras quanto a literatura etnogrfica predominante na regio parece indicar o que torna complicado definir o que pode ou no ser tomado como afronta dignidade de uma casa ou de uma pes-soa. Na definio do pato como animal sacrificial, no ocorreu aos lia nain que isso pudesse ser tomado, pelos ancestrais, como ofensivo.16 Da mesma forma, no lhes pareceu que a separao do casal pudesse gerar um sofrimento insupor-tvel jovem.

    Por outro lado, o simples sequestro dos casos desse universo de normas para o universo do mundo cvico regido pelos cdigos do Estado dificilmente respon-deria adequadamente s demandas e aos sentimentos vividos por essas pessoas. Em outro texto (Simio, 2011), j observei que a reduo dos conflitos cons-trudos sob lgicas e valores vigentes no universo das aldeias para a lgica dos cdigos e valores judiciais pode trazer ainda mais prejuzos s mulheres envolvi-das em tais processos.17 Em um contexto no qual operam diferentes formas de subjetivao, torna-se difcil avaliar o que poderia ser tomado como um critrio de justia aos olhos das partes envolvidas. Nessas condies, submeter tais su-jeitos a uma sentena que lhes alheia, sem um esforo argumentativo capaz de convenc-los da validade da mesma, no deixa de ser outra forma de violncia estatal, no caso.18

    Tendo a crer que essa sobreposio de formas de subjetivao no exclusi-vidade timorense. A levar a srio a ideia de um mundo cvico malconformado, vemos que no Brasil tambm operam distintos registros para o que seria social-mente aceitvel em termos de expresso de condutas e sentimentos respeita-dores da equidade no espao pblico. No h por que no supor que tais regis-tros produzam diferentes formas de subjetivao. No caso da violncia contra a mulher, alis, parcela significativa dos movimentos feministas e de mulheres busca, desde as ltimas dcadas do sculo XX, difundir entre diferentes setores da sociedade no sem grandes dificuldades19 uma subjetividade espec-fica, pautada pela noo de indivduo como valor central. O problema emerge quando essa subjetividade ideal se cristaliza em uma ao legal, atravessada pelas prticas judiciais brasileiras cartoriais e inquisitoriais, como as etnografias da rea indicam. Nesse contexto, a reduo de sentimentos, desejos e socialidades lgica de um nico universo valorativo ao qual se associa um conjunto limitado de demandas morais legtimas (uma mulher pode expressar insatisfao com seu companheiro, mas no o desejo de continuar em uma relao marcada por uma sociabilidade lida, de fora, como violenta) pode resultar na percepo de graves injustias pelas prprias mulheres, seja em Timor-Leste, seja no Brasil.

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    A questo norteadora deste texto (em que medida uma proteo manda-tria representaria o atendimento a demandas morais dessas mulheres ou, ao contrrio, um ataque sua dignidade) poderia receber uma resposta bem ti-morense: conforme.20 Menos do que o respeito a um valor externo absoluto, o atendimento a expectativas de justia dessas mulheres passaria pela percepo adequada dos sentidos de dignidade em causa e do grau de compartilhamento dos mecanismos de subjetivao operantes na socialidade entre as partes.21 Nes-se sentido, a prpria judicializao dos conflitos em relaes persistentes e de proximidade mostra-se limitada para alcanar solues percebidas como justas ou equnimes.22 Em que medida, porm, a judicializao pode ter um potencial pedaggico para a transformao de condutas tidas como aceitas em tais rela-es uma questo em aberto.

    De qualquer forma, creio que, quando tratamos de sentimentos, estamos em um terreno para o qual a antropologia precisa aprimorar seus instrumentos de pesquisa. No creio que se possa fazer uma anlise adequada do que seria perce-bido como ofensa ou indignidade por algum sem levar em conta as condies de individuao e subjetivao da experincia pela qual esse algum passou. Relem-brando Mauss (1974), no estamos falando apenas do direito, nem tampouco do melansio de tal ou qual ilha. Estamos falando do modo pelo qual esse me-lansio (ou essa austronsia, no caso, Arminda) inventou a si mesmo, negociando seu pertencimento a diferentes universos normativos e procurando inscrever sua vontade e seus sentimentos dentro (ou para alm) dessas normatividades.

    Recebido em: 05 de julho de 2014Aceito em: 25 de agosto de 2014

    Daniel Schroeter Simio doutor em Antropologia Social pela Universi-dade de Braslia e mestre em Antropologia Social pela UNICAMP, atualmente professor adjunto do Departamento de Antropologia da Universidade de Braslia (UnB), onde atua na graduao em cincias sociais e no Programa de Ps-Gra-duao em Antropologia Social. Realiza pesquisas nas reas de antropologia ur-bana, gnero, antrpologia do direito e da poltica, possuindo diversos artigos publicados nas reas, uma coletnea organizada, alm de diversos captulos de livros no Brasil e no exterior. Integra o Instituto de Estudos Comparados em Administrao Institucional de Conflitos (INCT/InEAC) e mantm colaborao com o Ncleo de Estudos de Populaes Tradicionais e Quilombolas (NuQ) da Universidade Federal de Minas Gerais.

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    Notas

    1. O artigo resulta de pesquisa apoiada pelo CNPq por meio do projeto Gnero, Justia e Violncia: dilemas de cidadania em perspectiva comparada (Edital Universal 14/2013). Registre-se a fundamental contribuio do INCT-InEAC Instituto de Estudos Comparados em Administrao Institucional de Conflitos, por meio de apoio financeiro e de espao de constante interlocuo.

    2. A experincia, iniciativa do juiz titular daquele juizado, envolve um atendimento prvio audincia judicial feito por uma equipe multidisciplinar, com o objetivo de cons-truir uma escuta adequada das demandas e narrativas envolvidas no conflito, levando, em muitos casos, a solues mediadas de problemas subjacentes agresso em si (Simio et al., 2013).

    3. Para Cardoso de Oliveira, o mundo cvico espao prprio do tratamento igua-litrio no Brasil no conformado ao ponto de deixar claros aos cidados os limites de demandas de tratamento diferenciado socialmente aceitas, que no sejam vistas como privilgio indevido ou abuso de prerrogativas. No teramos aqui parmetros universal-mente compartilhados para avaliar em que circunstncias a regra universal poderia ser le-gitimamente flexibilizada, o que geraria conflitos constantes entre atores que interpretam diferentemente a atitude de um ou outro.

    4. As autoridades locais gostavam de citar o artigo 72 da Constituio timorense, que fala sobre o poder local. Embora no d substancialmente poder a essas figuras, o artigo usado por elas para legitimar o que fazem, em conjunto com o artigo 2 da Constituio, que diz, em seu inciso IV: o Estado reconhece e valoriza as normas e os usos costumeiros de Timor-Leste que no contrariem a Constituio e a legislao que trate especialmente do direito costumeiro. Vale dizer que tal legislao ainda no existe. De fato, o que abriga legalmente a autoridade dos chefes de suku e de aldeia o Decreto-Lei n 5/2004, que defi-ne as atribuies e os poderes das chamadas autoridades comunitrias. O decreto prev, entre as competncias dos chefes de suku, favorecer a criao de estruturas de base para a resoluo e composio de pequenos conflitos que envolvam duas ou mais aldeias do suku (artigo 3, alnea d). J para os chefes de aldeia, prev-se, entre outras competncias, fa-vorecer a criao de estruturas de base para composio e resoluo de pequenos conflitos que surjam no seio da aldeia (artigo 8, alnea d).

    5. A primeira coisa que o chefe de suku fazia, ao iniciar um evento destes, era apontar para um exemplar do Cdigo Penal e da Constituio, vista de todos, e dizer que se estava a iniciar um evento oficial, sendo aquele um espao do Estado, a ser regido por tais cdigos legais embora na prtica nunca o fosse, at porque nenhum dos presentes se-quer havia lido o Cdigo Penal, includos a os responsveis por propor deliberaes sobre

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    o conflito (os lia nain). A presena dos cdigos estatais tinha uma funo mais indxica do que referencial: eles simbolizavam a presena do Estado.

    6. A abundncia de aspas neste pargrafo se justifica pelo fato de me referir ao Estado e cultura no como categorias analticas das cincias sociais, mas como categorias nativas, utilizadas por atores sociais (na aldeia e nos rgos estatais) ciosos por delimitar e defender seus espaos de ao sobre outros. Para melhor compreenso dos elementos que operam na construo dessa perspectiva, ver Silva e Simio (2012).

    7. Mutin ho Mean (literalmente, branco e vermelho) faz referncia aos discos de prata (belak mutin) e de ouro (belak mean) que, no passado, deviam ser oferecidos aos lianain pelas partes em litgio. Tem, atualmente, o sentido de penalidade s partes por terem quebrado alguma regra de conduta da aldeia. Atualmente os discos foram permutados em dinhei-ro, valendo USD 12.00 um disco de ouro e USD 8.00 um disco de prata. Um mutin ho mean, portanto, significa uma penalidade no valor de vinte dlares. A depender do caso, comum que uma parte tenha que pagar de trs a cinco mutin ho mean aos lia nain (em mediaes familiares) ou aldeia ou suku (em julgamentos feitos sob os auspcios do chefe de aldeia ou de suku).

    8. Os casamentos estabelecem, em Timor-Leste, uma relao muito particular entre as casas do noivo e da noiva, que deve perdurar por geraes. O grupo tomador de mulher (identificado como manefoum) assume uma srie de obrigaes para com o grupo doador de mulher (identificado como umane). A relao umane-manefoum estabelece uma gramtica a ser usada em inmeras circunstncias para prescrever as trocas de bens entre os grupos. Em situaes de resoluo de disputa, ela quase sempre central. Para mais detalhes sobre tal relao e as disputas de significado por ela engendrados, ver Silva (2010).

    9. A nfase no sentido dos bens trocados como constitutivo das pessoas bem traba-lhada por Kelly Silva, a quem devo muitas das observaes sobre o tema, feitas em comu-nicao pessoal, incluindo a observao nada trivial acerca da homonmia entre o hau de Mauss e o eu em ttum.

    10. Tais cerimnias de reconciliao so usualmente referidas como paz ho dame, lite-ralmente paz e paz. A repetio da palavra em um par (paz, do portugus, e dame, do ttum) expressa a importncia do paralelismo semntico na regio, como j apontado por Fox (1988), acrescida da grande habilidade timorense em incorporar palavras e modelos estrangeiros em uma lgica local.

    11. Exemplos etnogrficos desse tipo de situao so abundantes. Para alguns, envol-vendo conflitos em relaes de vizinhana, e mesmo em litgios com o Estado, ver Olivei-ra (2005) e Simio et al. (2010).

    12. Refiro-me aqui a insulto e indignao como sentimentos interligados, tal como elaborado por Cardoso de Oliveira (2002). Em diversas situaes, a observao de algum

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    sendo submetido a um insulto moral gera, em quem observa de fora o evento e compartilha seus elemento simblicos, o sentimento de indignao.

    13. Devo observao perspicaz de Marco Martnez, em comunicao pessoal, a rela-o com as heronas de peras romnticas. Para mais detalhes de como o amor romntico se constituiu em sentimento legtimo na construo da modernidade europeia, ver Gid-dens (1993) e Viveiros de Castro e Arajo (1977).

    14. Sobre a fora de processos de individuao patrocinados pelo Estado e por organis-mos internacionais em Timor-Leste, ver Simio (2005a).

    15. Digo isso por levar a srio os relatos do pai da jovem acerca de sua queixa constante sobre a escolha do pato durante a semana que antecedeu a cerimnia de reconciliao.

    16. Como no presenciei o processo que definiu as multas no caso de Arminda, no sei at que ponto houve divergncia entre os cinco lia nain em relao escolha do animal a ser sacrificado. possvel que essa no tenha sido uma deciso consensual, o que reforaria a observao acerca da inexistncia de um universo plenamente compartilhado de normas no mundo cvico da aldeia.

    17. Refiro-me aqui ao caso apresentado no texto de 2011, em que a jovem I., vtima de estupro em uma aldeia, tem seu caso levado ao tribunal distrital de Dli. Ao final do pro-cesso, embora os acusados tenham sido presos, a jovem acaba expulsa de sua aldeia, tendo que buscar abrigo em uma organizao de apoio a meninas vtimas de violncia sexual em Dli (Simio, 2011).

    18. Nesse sentido, a experincia que temos observado no Distrito Federal (Simio et al., 2013) interessante por abrir um espao prvio audincia judicial. Nesse espao, possvel a argumentao e a busca do convencimento das mulheres acerca dos riscos envolvidos em seu relacionamento, tais como percebidos pela tica dos profissionais do atendimento.

    19. Ver, por exemplo, a descrio do SOS Mulher, de So Paulo, ao longo dos anos 1980, nos trabalhos de Pontes (1986) e Gregori (1993).

    20. Quando perguntamos a nossos interlocutores o sentido de uma ao ou regra em Timor-Leste, comum ouvir como resposta a frase Nee, konforme, senhor (isso depende, senhor).

    21. Entendo que, em qualquer sociedade (e em Timor-Leste no seria diferente), cate-gorias de gnero no operam sozinhas nem de modo homogneo na construo de subjeti-vidades. Certamente h, em Timor-Leste, mulheres para quem sua dignidade independe das estruturas de casa ou dos valores predominantes no mundo cvico da aldeia. Lembro--me de tia Rosa, senhora de seus 40 anos que trabalhava em nossa casa, em Dli, originria de Oecussi, o distrito mais isolado de Timor-Leste. Tia Rosa decidira migrar para a capital sozinha, aps a morte do marido, por no concordar com o modo como passaria a ser tra-tada em sua aldeia como viva. Certamente tia Rosa no um caso isolado, e parece-me

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    um bom exemplo de que vrios processos de subjetivao operam na construo de desejos e atitudes das mulheres timorenses.

    22. A respeito dos limites da judicializao para o enfrentamento da violncia doms-tica, ver Azevedo (2008) e Rifiotis (2008).

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    Resumo

    O artigo discute os limites da judicializa-o de conflitos interpessoais para solu-es que atendam a diferentes expecta-tivas de reconhecimento, questionando em que medida a proteo mandatria de direitos de segmentos tidos como vulne-rveis representaria o atendimento a de-mandas morais desses sujeitos. Para isso, toma-se como referncia a discusso so-bre formas locais de resoluo de confli-tos em Timor-Leste, como contraponto s formas judicializadas, em que h pou-co ou nenhum espao de escuta e me-canismos de reparao moral s partes. Com base em um caso de resoluo de conflito com desfecho trgico, prope--se que no basta o espao de enunciao de histrias para que ocorra o sentimen-to de justia e reparao. Aponta-se ain-da para o papel central das prticas de compensao timorenses para dar conta da dimenso moral do conflito, estabe-lecendo, subsidiariamente, comparaes com a sensibilidade jurdica brasileira e buscando caracterizar limites e possibili-dades de formas de justia de base comu-nitria e sua tenso com mecanismos de proteo de direito orientados por uma ideologia individualista.

    Palavras-chave: Antropologia do di-reito; gnero; justia; ddiva; Timor--Leste

    Abstract

    The article discusses the limits of the judicialization of interpersonal conflicts facing different expectations for recog-nition. It questions if a mandatory pro-tection of groups perceived as vulner-able would represent an adequate way of achieving moral demands of the subjects in conflict. It elaborates on the discus-sion about local forms of dispute reso-lution in East Timor, which are seen as opposed to formal legal processes and more receptive to moral compensation practices. Analyzing an ethnographic case with tragic consequences, the ar-ticle proposes that mechanisms for hear-ing and repairing are not enough to en-sure moral recognition. It points to the central role of compensation practices in East-Timorese forms of justice, estab-lishing a comparative approach to the Brazilian legal sensibility and seeking to understand the limits and possibilities of community-based forms of justice.

    Keywords: Anthropology of law; gen-der; justice; gift; East Timor