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ESPAÇOS DE TRANSIÇÃO E RESPIRO: Os Parques das Cores do Escuro de Amélia Toledo
VIDAL, VICTOR RAPHAEL RENTE
Universidade Federal Fluminense. Departamento de Artes e Comunicação Social. Rua Sargento Antonio, 707, A, casa 35, Pavuna - Rio de Janeiro, CEP: 21520-460
RESUMO
O presente trabalho analisa o lugar que os dois Parques das Cores do Escuro encontram dentro da pesquisa artística de Amélia Toledo. Constituído apenas por pedras, os parques proporcionam um ambiente marcado por amplitudes, cores e luz. Almejamos também uma aproximação com Ma (em
kanji 間), noção japonesa que literalmente significa “espaço-entre”. Esta noção opera relações
singulares entre espaço e tempo, valorizando a intermediação, o intervalo e o vazio.
Palavras-chave: Jardim; Amélia Toledo; Japão; Ma.
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
Parque das Cores do Escuro
Realizado em 2002 no Complexo Viário João Saad em São Paulo, o Parque das Cores do
Escuro localiza-se em uma região movimentada próxima a uma série de viadutos onde
diariamente centenas de carros passam por ali. Os viadutos se entrelaçam e podem ser
encarados como uma metáfora para a vida cotidiana na cidade: são caminhos intrincados
que levam para todo o lugar e ao mesmo tempo para lugar nenhum. Esse é um espaço de
deslocamento, carros passam em alta velocidade, sons de buzinas enchem o ar, todos
estão com muita pressa, com os olhos fixos nos compromissos a serem realizados ao longo
do dia. O parque de Amélia e seu filho, Mo Toledo, surge quase como uma manifestação
divina, um respiro, um instante de descanso bem-vindo em meio ao deslocamento
incessante e atordoante da vida na cidade. Passear por entre as pedras do Parque das
Cores do Escuro é como ser transportado para outro espaço e tempo.
No ano seguinte, em 2003, uma segunda versão de o Parque das Cores do Escuro foi
realizada na Vila Maria, também em São Paulo. Os dois parques se configuram com os
mesmo elementos, um grande jardim de pedras coloridas, mas aqui nos centraremos no
original concebido no complexo Viário João Saad, próximo ao Ibirapuera.
Quartzos rosa, branco, marrom e verde; dolomita verde; serpentinito verde e preto; quartzito
azul; granito azul; nefrita roxa; basalto e blocos de mármore. As pedras coloridas se
espalham por toda a extensão do parque, tendo apenas como ordem o agrupamento por
tipos. Um olhar desatento pode não perceber que se trata de um jardim, mas apenas um
terreno onde pedras foram descartadas. Amélia Toledo não infringiu muitas interferências
em suas pedras, apenas um polimento para deixar visível os seus desenhos internos.
A paisagem resultante explora a amplitude e o vazio. Em uma região tão movimentada e
barulhenta, o parque de Amélia Toledo é um convite às centenas de pessoas que
diariamente passam apressadas por ali para experimentar um momento de pausa, para
experimentar o silêncio, o vazio. Ouça o som que as pedras produzem ao serem pisadas
durante a caminhada, perceba as suas diferentes texturas, os desenhos delicados das suas
veias, as tonalidades que elas assumem no decorrer do dia, note como as diversas formas
das pedras produzem sombras igualmente inusitadas. Engana-se aquele que pensa que
pedras se mantêm imutáveis ao longo de toda a sua vida, elas estão em um constante,
porém lento, processo de transformação. Toledo convida o passante a igualar o ritmo de sua
respiração ao lento respirar das próprias pedras. A artista não almeja capturar o público pela
grandiosidade ou por emoções exacerbadas, ela quer justamente o contrário, quer o
mínimo, a discrição, o voltar-se para dentro, a reflexão.
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Esse é também um parque diferente por não oferecer bancos para se sentar. Escolha uma
pedra com a cor e o formato da sua preferência e se sente; descubra desse modo uma nova
maneira de observar o espaço ao seu redor. A experiência proposta por Amélia Toledo em
ambos os Parques das Cores do Escuro é definitivamente uma experiência sinestésica,
onde diferentes sentidos são estimulados em busca de uma percepção espacial distinta
daquela oferecida por uma cidade movimentada e cheia de informações como São Paulo.
Ao mesmo tempo em que essa obra evoca a materialidade, a concretude, dos seus
elementos, as diferenças entre as pedras, suas texturas e luminosidades; ela também evoca
algo que está para além dela mesma ao enfatizar a imaginação, o silêncio e o vazio. Aqui,
como disse certa vez outra artista, Mira Schendel, que por acaso foi grande amiga de
Amélia Toledo, "O vazio não é o símbolo vicário do não-ser” (SCHENDEL apud. MARQUES,
2001, p. 29). É possibilidade, disponibilidade, potencialidade.
Os parques parecem se situar em um tempo pré-histórico, um tempo onde as tecnologias
são rudimentares e a experiência metafísica é a única experiência possível. Amélia e Mo
Toledo trazem para a superfície aquelas cores que estão guardadas em um nível
subterrâneo, no escuro da Terra:
“Pedaços da crosta da Terra, que viveram por muito tempo na escuridão, emergem na praça, convidando as pessoas a se relacionar com suas cores, brilhos e transparências. O Parque das Cores do Escuro está também no bairro da Vila Maria, em uma praça pública, e pode surgir a qualquer momento em algum lugar do planeta” (TOLEDO apud. FARIAS, 2004, p. 44).
Curiosamente a inspiração de Amélia Toledo para a realização do parque aconteceu após o
diagnóstico de que viria a ficar cega, algo que felizmente não ocorreu. É importante ressaltar
que cor é também luz, o que torna interessante o fato da artista ter executado um parque
cujas cores são provenientes do interior da Terra, onde não há luz.
Além da construção do parque próximo ao Ibirapuera, Amélia e Mo Toledo também
realizaram uma intervenção nos viadutos que atravessam o parque, pintando-os com as
cores magenta, dourado e verde, em uma busca por suavizar e dar sensibilidade às
construções brutas de concreto e ferro. Assim como acontece com as pedras no Parque das
Cores do Escuro, devido as diferentes incidências luminosas, as cores dos viadutos se
alteram, deixando-as menos sólidas. Toledo se valeu de uma tinta de alta resistência com
adição de pigmentos de reflexo, dando uma característica metálica a pintura.
Proposta semelhante ao Parque das Cores do Escuro pode ser encontrada na Estação
Cardeal Arcoverde do Metrô do Rio de Janeiro. A artista participou do planejamento da
estação ao lado do arquiteto João Batista Martinez e idealizou novamente junto ao seu filho
o projeto artístico. Amélia considera essa a sua obra pública mais completa. O espaço da
plataforma de embarque e desembarque destoa das demais estações de Metrô do Rio de
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Janeiro. Chamada de Paisagem Subterrânea (1998), o espaço lembra o interior de uma
caverna, não há uma cobertura nas paredes ou teto que artificialize o ambiente e faça
aqueles que transitam por ali esquecer que não se encontram mais na superfície da Terra.
Devido às cores escuras das pedras, o espaço parece mergulhado em uma penumbra, o
que aumenta a aparência cavernosa do lugar.
Ao deixar as plataformas de embarque e desembarque, é preciso atravessar longos túneis
que dão acesso às portas de saída. Os túneis possuem uma forma oval que mantêm a
aparência cavernosa, mas o destaque são as cores escolhidas pela artista para integrar o
espaço. É uma verdadeira gradação de cores, onde as mesmas vão variando os seus tons e
se transformando ao longo do percurso do túnel. As pessoas se sentem imersas nesses
espaços coloridos, a cor torna-se um elemento concreto e palpável, similar às propostas de
Hélio Oiticica ao realizar os Penetráveis e o Grande Núcleo. “A estação Arcoverde é um
percurso de cor e matéria, uma pintura/escultura de passar por dentro, por dentro de terra”
(TOLEDO apud. FARIAS, 2004, p. 231). Amélia Toledo almeja com essa obra integrar arte,
arquitetura e o espaço da cidade, tornar a experiência artística uma experiência cotidiana,
desmistificada e democratizada.
Essa vontade atingiria ponto máximo no projeto Sete Ondas – Uma Escultura Planetária
(1994), onde a artista intencionava instalar em inúmeros pontos do globo terrestre luminosas
esculturas convexas de aço inox. "O projeto é uma proposta ambiciosa. Minha ideia é a de
espalhar através do mundo 12 conjuntos de Sete Ondas [o número foi escolhido devido a
uma alusão à criação do mundo em sete dias], formando uma escultura planetária feita de
laços, elos, ligações, como se fosse um abraço no Planeta Terra" (TOLEDO apud.
COMODO, 1994, p.5). De acordo com a artista, a forma da onda encontra-se no limite da
matéria, tanto no princípio do som quanto no princípio da luz. Sua intenção é ligar as
pessoas, os povos, as culturas e as artes. O protótipo do projeto foi inaugurado no Centro
Cultural São Paulo.
Os dois Parques das Cores do Escuro agrupam os principais elementos que caracterizam a
poética da artista: o apresso por pedras, as explorações cromáticas, a atenção ao mínimo, o
chamado à participação, o engajamento tanto científico quanto metafísico e a
transitoriedade da matéria. Toledo nunca se vinculou a uma vanguarda ou tendência, mas
afirma existir uma orientação construtiva em seus trabalhos. Nas palavras da artista: “Nunca
tive grupo. Faço uma pesquisa, um trabalho que tem a ver com o meu tempo” (TOLEDO
apud. FARIAS, 2004, p.270). A orientação construtiva declarada por Amélia Toledo remonta
a afirmação do holandês Theo van Doesburg1 e a arte do construtivismo russo. A arte deixa
1 “Pintura concreta e não abstrata, porque nada é mais concreto, mais real, que uma linha, uma cor,
uma superfície. Uma mulher, uma árvore ou uma vaca são, numa tela, elementos concretos? Não –
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de ser representação do mundo fenomênico para se tornar construção do real no espaço
real. A arte não representa mais nada além dela mesma, não copia o mundo, está no
mundo, ocupa o mundo. Amélia se insere no desenvolvimento da arte contemporânea
brasileira que vê na quebra da moldura, na desestruturação do quadro, oportunidade à
concepção de um espaço vivo, aberto a participação do público e integrado a vida.
No trabalho Situação → ∞ (1971), encontramos um objeto composto por um cubo de acrílico
(19 x 19 x 19 cm) cujo interior guarda oito cubos também de acrílico, mas de dimensões
reduzidas. No interior desses oito cubos menores há outros oito cubos e dentro desses há
mais oito. Com esse trabalho, a artista convida o público à manipulação, a abrir esses
cubos, explorar o seu interior, compor e recompor com as peças. Nesse sentido o título do
trabalho é autoexplicativo, uma vez que ele apresenta infinitas possibilidades de situações
que o público pode chegar manipulando as peças transparentes. É uma obra aberta, ou
seja, sua proposição se obre a presença do público, se abre a experiência do público, cada
pessoa realiza uma contribuição diferente à experiência proposta pela artista. A obra está
em constante estado de alteração.
As peças de Situação → ∞ podem ser desmontadas e espalhadas da maneira que melhor
convir ao visitante, e a estabilidade e a exatidão que a forma geométrica aparentemente
proporciona deixam de ser a norma aqui. Se antes o cubo oferecia uma visada certa e
objetiva, agora já não é mais o caso. A obra proporciona uma tensão entre características
contrastantes, mas que aqui não se anulam, se complementam, como: cheio e vazio, visível
e invisível, parte e todo, mínimo e infinito.
De acordo com Agnaldo Farias (2004, p.52), o apreço ao mínimo remonta a adolescência da
artista quando esta trabalhava no laboratório de patologia do pai e passava horas com o
olho no microscópio. Não apenas o apreço ao mínimo está presente na poética de Amélia
Toledo, mas também o desvelar que só a contemplação comprometida e atenta pode
oferecer. Aprendemos com as suas obras que mesmo nos mínimos elementos podemos
encontrar grandes aspirações. As peças de Situação → ∞ rementem a materiais utilizados
em laboratório, mas aqui a imaginação e a possibilidade são elementos caros e essenciais.
Outra obra que se abre a manipulação é Medusa (1969). Formado por tubos flexíveis de
PVC e com um líquido colorido em seu interior, a obra recebe esse nome devido a
semelhança ao cabelo emaranhado da figura mitológica grega. O público é convidado pela
artista a tocar os tubos, tentar desemaranha-los, misturar as cores no líquido que corre de
um lado para o outro conforme a manipulação, sentir o seu peso. A relação entre cor e
uma mulher, uma árvore, uma vaca são concretos em estado natural, mas em estado de pintura são mais abstratos, mais ilusórios, mais vagos, mais especulativos que um plano ou uma linha” (DOESBURG apud. GULLAR, 1985, p. 212).
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matéria é grande, tem-se realmente a impressão de estar tocando a própria cor. O líquido
colorido é formado pela combinação de água, óleo e corante, permitindo que as intensas
cores não se misturem. Assim como em Situação → ∞, a manipulação permite que o
trabalho assuma diferentes aparências, que nunca se acomode.
Quando Medusa foi apresentada à cena artística de São Paulo no final da década de
sessenta, a obra foi tida como bastante original por apresentar líquido em sua composição.
Os anos sessenta no Brasil ficaram marcados como o período de desenvolvimento da arte
participativa. Também se valendo de água, óleo e corantes, em A Onda ou A Piscina
Refrescante Pode Ser um Abismo (1969), o público é incitado a pegar o cilindro de PVC e
fazer com que as duas cores, o azul e o verde, se misturem. Aqui o azul é como céu e o
verde como um campo gramado. A relação cor e matéria é também evidente nessa obra.
Durante a década de 1950, além de obras de arte, Amélia Toledo também se dedicou a
confecção de joias, produzindo com intensidade na década seguinte. As joias não destoam
da sua produção artística, muitos elementos que perpassam a sua obra podem ser
encontrados aqui, como a orientação construtiva, a ênfase ao mínimo, o apreço por pedras
e as combinações cromáticas.
Ao trazer próximo dos olhos o Anel de Sinete (1973), por exemplo, é possível observar as
marcas das digitais da própria artista na prata fundida. Já com o Colar Cinético (1966),
encontramos uma estrutura de dobras e cortes toda baseada no raciocínio geométrico,
buscando a sua razão na relação entre peso e equilíbrio. O elemento decorativo, assim
como na arquitetura moderna, é estrutural, ele aparece na disposição das formas, nos
cortes, nas dobras, nos nós; não é algo externo adicionado a um suporte independente.
Colar Cinético é formado por um esquema de encaixes e articulações que facilmente
poderia funcionar como escultura. O efeito de equilíbrio é digno de um Alexander Calder. De
uma forma geral, podemos dizer que a produção de joias da artista se caracteriza por uma
orientação abstrata, pelo uso de pedras, metais e estruturas lógicas e geométricas. As joias
de Amélia Toledo não são meramente um acessório, um simples adorno de vestiário, eles
transformam o corpo. Nas palavras de Mário Pedrosa, as joias de Amélia Toledo são como
"esculturas do corpo".
Sua produção de joias deixa mais aparente algo que já se ressaltava em seus outros
trabalhos: a intimidade e a compreensão do material que se está sendo trabalhado. Amélia
quer conhecer intimamente as propriedades do corpo do material com que está lidando,
quer descobrir quais latitudes tais corpos podem alcançar conforme experimentados. E essa
experiência deve também ser a experiência do público ao entrar em contato com a sua obra.
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Ana Maria de Moraes Belluzzo (1999, p.12) utiliza a imagem do caleidoscópio para falar do
trabalho de Amélia Toledo. O caleidoscópio é um instrumento cilíndrico cujo fundo de vidro
colorido fragmentado possibilita infinitas combinações de cores e imagens. Em sua obra,
Toledo apresenta trabalhos variados combinando técnicas e suportes diferentes em busca
de uma linguagem inédita:
"(...) Amélia entra em conflito consigo mesma, conflito não de tomada de consciência, antes de 'perda' da consciência, mas certamente de tomadas sensoriais da chamada realidade que, afinal, surge como problemática de sua atividade. E o conflito tão do nosso cotidiano urbano entre o ver e o sentir, o divisar e o tocar. A esfera maciça resinosa e por vezes ampulheta não só do tempo mas do espaço, ou com suas emulsões e espumas deixa-se entrever, mas não penetrar (...). Amélia não se conforma. A necessidade ou a curiosidade terrível de conhecer para criar novas relações de forma e de espaço interno a impele a violar a intangibilidade da esfera, a abri-la em cavidades onde o conhecimento há de se fazer pela pressão, pelo tato, os olhos por um momento em licença (...). A esfera torna-se um objeto do seu mundo experimental, por fora e por dentro, ora onde é o fora que ela quer ver de dentro, ora o dentro que ela quer ver de fora" (PEDROSA, 1969, p.23).
Amélia Toledo almeja uma produção artística sem rótulos, que se utiliza disso e daquilo para
produzir uma experiência singular. Sua poética é guiada por uma inquietação, a artista
mescla procedimentos artesanais à alta tecnologia, torna a experiência cientifica sensível e
subjetiva. Toledo equilibra rigor formal e construtivo com força sensitiva e intuitiva em uma
busca por reconfigurar o ato de olhar e renovar a forma como se encara o mundo, como se
experimenta o mundo. Convida a olhar novamente algo que já se tem como óbvio, mas por
um novo viés, um novo caminho. Observe essa pedra, toque, perceba a sua textura, suas
veias, o modo como ela muda de cor sobre diferentes incidências luminosas. Os trabalhos
de Amélia Toledo lançam uma ponte entre ciência e metafísica, entre o palpável e o
impalpável, o visível e o invisível, atrelando objeto, arquitetura e espaço urbano.
Ma (間)
De uma forma geral, podemos dizer que existe na obra de Amélia Toledo um apresso por
estruturas em transição, pela transformação dos seus elementos constitutivos. É uma obra
que não se encerra em uma única forma.
Ao nos atentarmos para os espaços entre coisas estamos na verdade valorizando aquilo
que promove a relação, o encontro e o diálogo. Esse sentido é encontrado na noção de
espaço-tempo da cultura japonesa. O cotidiano nipônico é percebido e organizado por um
elemento que valoriza estruturas em transição, que valoriza o intervalo, o inacabado, o
vazio. A palavra japonesa que incorpora essas e outras semânticas chama-se Ma, em
japonês 間. Sua conceituação é difícil e não encontra concordância entre pesquisadores.
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Por não possuir plena definição ou completude, Ma existe enquanto possibilidade, enquanto
algo em vias de ser. É próprio desta noção a não permissividade a assumir uma única
“aparência”, metamorfoseando a cada contexto espaço-temporal. “Ma não possui explicação
lógica e que ele é Ma justamente porque não possui essa lógica. E quando ela é forçada, o
Ma distancia-se da sua essência” (KAWAGUCHI apud. OKANO, 2012, p. 14). Podemos
dizer que existe uma complexidade relacional em Ma e que sua existência se encontra em
uma região anterior ao do objeto, da concretude, do fenômeno.
Ma se apresenta para a cultura japonesa como um modus operandi vivo, um elemento tão
presente e arraigado em suas manifestações culturais, que os japoneses encontram
dificuldades em expressar um significado claro e que abarque toda a sua dimensão . Vive-se
Ma cotidianamente, nas pequenas e nas grandes coisas; na arquitetura, na arte, na
literatura, no vestuário, na culinária, na fala, nos gestos, no andar, caracterizando o ser e o
estar dos japoneses.
Seu termo teria sido usado pelos japoneses desde o século XII (durante a Era Kamakura,
1185 – 1334), porém, a sua noção é muito antiga e está relacionada à demarcação de um
espaço vazio para aparição divina. Esta é a noção primordial de Ma; a existência de um
espaço vazio à espera de uma manifestação divina que ocorrerá a qualquer momento e
instaurará um complexo relacional entre natureza, homens e deuses (OOSTERLING, 2005,
p. 77). Essa área vazia e demarcada é encarada como um espaço de potencialidade e
possibilidade, um intervalo espacial para espera, um entre que ata o vazio à ocupação
divina em sua gloriosa aparição, que pode ou não acontecer. Esta divindade está ligada ao
xintoísmo, mas também relacionada ao budismo na medida em que valoriza o vazio
potencial, a espera e a não ação. Devido a este procedimento, um espaço visualmente vazio
é encarado como uma área sagrada (MUSÉE DES ARTS DÉCORATIFS, 1978, p. 23).
É importante ressaltar que a noção e o termo Ma estiveram restritos ao território japonês até
1978, quando foi realizada uma exposição em Paris, Ma: Espace-Temps du Japon, sobre o
tema e o “mundo ocidental” tomou conhecimento de sua existência.
Mesmo o ideograma de Ma (間) não apresenta uma definição objetiva do termo. Seu
ideograma é formado por outros dois: um ideograma referente ao sol entre outro referente à
porta. Porta denota passagem, caminho e transição, afinal, é por meio dela que
conseguimos ir de um lugar para o outro; é um espaço fronteiriço que liga dois ambientes.
Podemos dizer que o ideograma de Ma valoriza o entre, o intervalo, a fronteira, ao apontar o
sol, a iluminação, como aquilo que você encontra nesse espaço-entre.
Se o espaço ocidental é marcado pela dominação e ordenação empreendida pela
perspectiva, o espaço japonês, por sua vez, é marcado pelo Ma, engendrando outras
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possibilidades que aquelas promovidas pela perspectiva. É uma espacialidade marcada pelo
vazio, entendendo tal vazio como mediador entre corpos, um espaço que favorece o
movimento, a relação, a interconexão. Essa mediação, aproximação, pode aparecer como
intervalo, passagem, pausa, não ação, silêncio. Ao mesmo tempo em que a espacialidade
Ma pensa a divisão, afinal, existem dois elementos entre o vazio, entre o intervalo; pensa
também a relação e a conexão. “(…) espacialidade Ma pode ser entendida como fronteira,
algo que separa e ata os dois elementos que intermedeia, criando uma zona de
coexistência, tradução e diálogo” (OKANO, 2012, p. 27).
Günter Nitschke aborda a noção Ma menos como algo físico, objetivo, e mais como algo
subjetivo, imaginativo. Aponta Ma como uma consciência do espaço, uma consciência do
espaço que ele se refere como "place making", um lugar que ainda encontra-se em
processo de ocorrência. Por essa via, os símbolos externos de Ma, a manifestação física de
Ma, podem aparecer de qualquer tamanho ou forma.
A pesquisadora Michiko Okano apresenta uma lista de situações em que o “modo” Ma está
“operando”. A lista foi tirada do dicionário Kôjen e é extensa, apresentando uma pluralidade
de ocorrências. Ora Ma aparece com implicações objetivas (como unidade de medida de
dois tatames, espaço linear entre dois pilares, um recinto dentro de uma casa separado por
biombos ou portas de correr, ancoradouro de navio), ora aparece com implicações
subjetivas (como um silêncio dentro da fala, como um tempo apropriado, um bom ou mau
momento para que certo fenômeno ocorra, “o estado de um certo lugar, de um certo
ambiente”). Ma pode tanto se apresentar como uma consciência do lugar como uma postura
ética dentro da sociedade japonesa. Durante a Era Edo (1603 – 1867), o vocábulo foi
utilizado como técnica nas artes marciais, o samurai roubava o Ma do seu adversário,
roubava essa pausa, esse descuido, esse intervalo entre um movimento e outro, e assim
conseguia atingi-lo com um golpe de espada. No cotidiano japonês, quem faz mal uso do
Ma é mal quisto pela sociedade. Ou seja, uma pessoa que não sabe fazer a pausas corretas
nos momentos apropriados, uma pessoa que não sabe a hora certa para falar ou ficar
quieta.
Na acepção japonesa, tempo e espaço estão emaranhados e possuem uma
interdependência que não ocorre na noção de tempo e espaço Ocidental. No Ocidente,
tempo e espaço são absolutos, homogêneos e infinitos, enquanto no Japão os dois
elementos se relacionam e são indissociáveis. O tempo é percebido a partir da
movimentação por um determinado espaço, enquanto o espaço é reconhecido por sua
relação com o fluir do tempo. Espaço e tempo estão atrelados também à noção de “aqui” e
“agora”. Essa noção teria se desenvolvido graças aos períodos isolacionistas pelo qual o
país enfrentou, fechando suas portas para o resto do mundo durante as eras Heian (794 –
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897) e Edo (1603-1867). Ao fechar suas portas, a atenção se centraria no aqui e no agora
do seu próprio território.
Como vimos, a espacialidade ocidental estruturada pela perspectiva oferece uma
visualidade estática do seu espaço. No Japão, devido ao entrelaçamento do tempo e do
espaço, sendo impossível compreender um sem o outro, e a presença de espaços vazios, a
visualidade japonesa apresenta-se marcada por movimento, por transitoriedades.
Para chegar à casa da cerimônia do chá é preciso atravessar uma passarela de pedras
conhecida pelos nomes jardim-ruela ou jardim-passarela (roji-niwa). O visitante salta de
pedra em pedra até chegar à entrada da casa. A distância entre uma pedra e outra é
considerada um Ma, uma vez que é essa distância que determina o tempo que se leva
atravessando a passarela, são as pedras que estabelecem o ritmo da caminhada. A
trajetória pela passarela de pedras compreende uma apreensão daquele espaço como algo
que proporciona uma experiência, uma vivência. Segundo Okano, é recomendável criar um
Jardim-ruela com apenas seis pedras para que a caminhada seja lenta e a pessoa possa
experimentar o espaço ao redor e se relacionar com ele de uma maneira individual.
Ao atravessar a passarela de pedras, ouve-se o canto dos pássaros, o som da água e
aquele dos seus pés batendo na pedra, sente-se o aroma das flores, das plantas, das
árvores, observa-se tudo com muito cuidado. Cruza-se o jardim-ruela fazendo algumas
pausas e assim permitindo que cada pessoa tenha diferentes visões do jardim, das árvores,
da casa. O singelo andar em um jardim une diferentes experiências e percepções em um
único ato, experiência sonora, tátil, visual. O ambiente ao redor, o jardim, a passarela de
pedras, deixa de ser um espaço físico para se tornar também um espaço perceptível,
sensorial. Essa experiência permite encarar o espaço não como um elemento estático e
imutável, mas como um complexo em constante movimentação, relacionável, que se
apresentará de diversas maneiras a cada vez que for acessado.
Para chegar ao Santuário Ise é preciso percorrer um caminho cheio de muros e jardins
labirínticos, a peregrinação até o templo, cheio de surpresas e descobertas, torna-se tão
importante quanto chegar ao local. É o caminho que marca a passagem entre o sagrado e o
profano, é um espaço de preparação para o encontro com o divino. Os muros e o trajeto
tortuoso impedem uma visão geral do santuário, que se mostrará aos poucos conforme o
desenvolvimento do percurso. É como formar um quebra cabeça, entre dois arbustos é
possível enxergar um pedaço do santuário aqui, sob a copa de uma árvore observamos
outro pedaço do santuário ali. A entrada no santuário não é permita, sendo assim, sua
experiência ocorre visualmente, e não corporalmente. A trajetória até o santuário permite
uma apreensão individual, diferindo de pessoa para pessoa.
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A arquitetura matizada por Ma é marcada pelo movimento, pelo deslocamento, pela ação. O
homem não é pensado como um elemento estático em seu interior, mas em movimento. É
esta a razão para encontrarmos a existência de tantos elementos móveis, transparentes,
efêmeros na arquitetura japonesa, empreendendo relação similar ao jardim-ruela ao amarrar
experiências e percepções diferentes. Sendo assim, podemos dizer que a arquitetura
tradicional japonesa é um Ma por habitar esse “entre” onde diversos elementos se
encontram criando um ambiente heterogêneo e polissensorial. A arquitetura tradicional
japonesa também se caracteriza por seu amor e comunhão à natureza. Os exemplos
encontram-se naquelas construções onde os cômodos não possuem um uso específico; no
chão há apenas tatamis podendo ser utilizado de inúmeras formas. Ao trazer uma mesa
dobrável para o ambiente, ele torna-se um espaço para refeições, ou jogos de carta e
tabuleiro. As vedações móveis da casa ampliam ou diminuem o espaço conforme o seu
interesse. O biombo tem uso similar ao fragmentar o espaço. Outros exemplos de Ma na
arquitetura: cortinas de tecido ou bambu; painéis de correr de papel translúcido ou opaco;
grandes janelas de vidro trazendo o exterior para o interior; o engawa, que separa e ao
mesmo tempo une ambientes internos e externos da casa, gerando um espaço híbrido; o
genkan, hall de entrada que media espaços públicos e privados.
Devido ao seu aspecto dinâmico, o arquiteto e pesquisador Fred Thompson afirmou que a
melhor maneira de descrever Ma é usando o gerúndio, e que Ma não é exatamente um
nome. Segundo ele, Ma está melhor representado pela palavra “espacializando” (spacing),
uma vez que essa palavra consegue dimensionar tempo e espaço, consegue se referir a um
elemento que está em processo de ocorrência.
“O mecanismo trajetivo das relações entre homem, arquitetura, natureza e cultura propicia a apreensão da espacialidade no tempo e faz da mediação um fator primordial para a compreensão da espacialidade Ma. A espacialidade Ma, portanto, mostra-se como representação de uma relação trajetiva, tradução espacial gerada pela interação do homem com o fûdo e, dessa forma, sempre comunicativa” (OKANO, 2012, p. 80).
O olhar nipônico enxerga a necessidade de pausas e intervalos em suas interações
cotidianas, é por esse motivo que o vazio é um elemento tão valorizado na cultura japonesa.
Entende-se o espaço vazio não como perda, falta ou nada, mas como potencialidade,
possibilidade e transformação. O Parque das Cores do Escuro de Amélia Toledo funciona
como um Ma na medida em que opera um espaço intervalar na região do Ibirapuera de São
Paulo. Em um ambiente marcado pelo deslocamento e pela velocidade, o parque de Toledo
permite que se estabeleça uma pausa entre um lugar e outro. Essa pausa funciona tanto
visualmente quanto fisicamente, uma vez que o parque de pedras contrasta com os
viadutos, as vias de concreto e os carros passando velozes. É um espaço que organiza a
movimentação de um ambiente para o outro, um espaço para acomodação, preparação e
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
adaptação gradual desse corpo em movimento. Faz-se a experiência da espacialidade Ma
com o corpo, por meio dos sentidos que são igualmente estimulados. Corpo e lugar se
relacionam e, dessa relação, se constrói uma comunicabilidade, sendo ela não somente
visual, mas polissensível.
Referências
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