espaÇo literÁrio queirosiano e camÕes...

10
X SEL – Seminário de Estudos Literários UNESP – Campus de Assis ISSN: 2175-6082 www.assis.unesp.br/sel [email protected] ESPAÇO LITERÁRIO QUEIROSIANO E CAMÕES /CRONOTOPO Rosane Gazolla Alves Feitosa UNESP-Assis /SP RESUMO: Por meio de alguns espaços na cidade de Lisboa, Eça de Queirós consegue mostrar em O Crime do Padre Amaro (CPA) e em O primo Basílio (PB), aspectos intervencionistas dos intelectuais da Geração de 70. Nestas obras, a personagem obsedante, Portugal, é problematizada em seus aspectos sócio-político-culturais, sob a perspectiva das relações espaço-temporais, o cronotopo, teorizado por Bakhtin (1988). PALAVRAS-CHAVE: Eça de Queirós; cidade; espaço literário; cronotopo. De todas as interpretações da realidade nacional da geração de 70 - e acaso do século e de sempre [...] – a mais complexa, a mais obsessiva, ardente, fina e ao fim e ao cabo a mais bem sucedida, por mais adequada transposição mítica, sentido da realidade e criação de imagens e arquétipos ainda de pé, é sem dúvida a de Eça de Queirós. [...] é um Portugal realmente presente que ele interroga e que o interpela. [...] e fá-lo, [...] para descobrir, com mais paixão do que sua ironia de superfície a deixa supor, a face autêntica de uma pátria que talvez ninguém tenha tão amado e detestado. (LOURENÇO, 1991, p. 95). Em Portugal, a interpretação da História feita por Alexandre Herculano, considerando o Portugal da primeira metade do século XIX, que a seu ver estava embrenhado num processo de decadência desde os meados do século XVII, teve bastante importância na formação do espírito da chamada Geração de 70. A partir do projeto geracional das Conferências do Cassino (maio-junho/1871) e de As Farpas (1871-1872), teremos uma crítica virulenta e sarcástica, por parte dos integrantes da chamada Geração de 70 (Antero Quental, Eça de Queirós, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro), que parte da constatação da indiferença geral perante a decadência da nação e que visa, claramente, a uma intervenção.

Upload: nguyenduong

Post on 18-Jan-2019

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

X SEL – Seminário de Estudos Literários

UNESP – Campus de Assis

ISSN: 2175-6082

www.assis.unesp.br/sel

[email protected]

ESPAÇO LITERÁRIO QUEIROSIANO E CAMÕES /CRONOTOPO

Rosane Gazolla Alves Feitosa

UNESP-Assis /SP

RESUMO: Por meio de alguns espaços na cidade de Lisboa, Eça de Queirós consegue mostrar em O Crime do Padre Amaro (CPA) e em O primo Basílio (PB), aspectos intervencionistas dos intelectuais da Geração de 70. Nestas obras, a personagem obsedante, Portugal, é problematizada em seus aspectos sócio-político-culturais, sob a perspectiva das relações espaço-temporais, o cronotopo, teorizado por Bakhtin (1988). PALAVRAS-CHAVE: Eça de Queirós; cidade; espaço literário; cronotopo.

De todas as interpretações da realidade nacional da geração de 70 - e acaso do século e de sempre [...] – a mais complexa, a mais obsessiva, ardente, fina e ao fim e ao cabo a mais bem sucedida, por mais adequada transposição mítica, sentido da realidade e criação de imagens e arquétipos ainda de pé, é sem dúvida a de Eça de Queirós. [...] é um Portugal realmente presente que ele interroga e que o interpela. [...] e fá-lo, [...] para descobrir, com mais paixão do que sua ironia de superfície a deixa supor, a face autêntica de uma pátria que talvez ninguém tenha tão amado e detestado. (LOURENÇO, 1991, p. 95).

Em Portugal, a interpretação da História feita por Alexandre Herculano, considerando o

Portugal da primeira metade do século XIX, que a seu ver estava embrenhado num processo de

decadência desde os meados do século XVII, teve bastante importância na formação do espírito

da chamada Geração de 70.

A partir do projeto geracional das Conferências do Cassino (maio-junho/1871) e de As

Farpas (1871-1872), teremos uma crítica virulenta e sarcástica, por parte dos integrantes da

chamada Geração de 70 (Antero Quental, Eça de Queirós, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão,

Guerra Junqueiro), que parte da constatação da indiferença geral perante a decadência da nação

e que visa, claramente, a uma intervenção.

ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”

2

Essas considerações nos levam às interligações das relações espaço-temporais, o

cronotopo, na ficção queirosiana - O Crime do Padre Amaro (OCPA) e O primo Basílio (PB) - por

meio da qual podemos percorrer um caminho para o conhecimento dos aspectos intervencionistas

dos intelectuais da Geração de 70, em que a personagem obsedante, Portugal, sob o tema do

constitucionalismo e do regime regenerador, é problematizada em seus aspectos sócio-político-

culturais, na cidade de Lisboa. Para Bakhtin (1988:211), “[...] o tempo condensa-se, comprime-se,

torna-se artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo,

do enredo e da história. Os índices do tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de

sentido e é medido com o tempo. Esse cruzamento de séries e a fusão de sinais caracterizam o

cronotopo artístico.”

Consideramos que o cronotopo, teorizado por Bakhtin, contempla o impasse das

articulações entre texto e extratexto, assegurando as questões relativas à estrutura da obra sem

perder de vista a especificidade do literário, ao mesmo tempo, assegurando a concepção de que

dados históricos e pessoais participam do corpo da obra, mas não podem ser atribuídos à ideia

de simples reflexo.

Concordamos com Bakhtin, (1988), quando diz que:

[...] teremos os sinais visíveis, mais complexos, do tempo histórico propriamente dito, as marcas visíveis da atividade criadora do homem, as marcas impressas por sua mão e por seu espírito: cidades, ruas, casas, obras de arte e de técnica, estrutura social, etc. O artista decifra nelas os desígnios mais complexos do homem, das gerações, das épocas, dos povos, dos grupos e das classes sociais. [...]

O domínio da literatura e, mais amplamente, da cultura (da qual não se pode separar a literatura) compõe o contexto indispensável da obra literária e da posição do autor nela, fora da qual não se pode compreender nem a obra nem as intenções do autor nela representadas. A relação do autor com as diferentes manifestações literárias e culturais assume um caráter dialógico, análogo às inter-relações entre os cronotopos do interior da obra. (p. 360).

A recriação do espaço diegético que Eça de Queiroz faz da cidade lisboeta é vivo

reflexo do sentimento decadentista em relação a seu país, que atingiu os mais representativos

escritores portugueses da segunda metade do século XIX – “A obsessão da decadência nacional

dum progressivo e inelutável declínio de todo o País, complexo de morbos, reacções, profecias e

desesperos que podíamos resumir na expressão de miséria portuguesa.” (MEDINA, 1974, p. 33).

Eis o espaço do Portugal queirosiano, do Portugal constitucionalista, regenerador do

Século XIX: da Arcada, situado desde a Praça do Comércio, sede do Governo Monarquista até o

ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”

3

Palácio de São Bento, sede do Constitucionalismo – um resgate do espaço-tempo ficcional e

histórico de Portugal, com descrições do espaço lisboeta, que tipificam os comportamentos

dissolutos e os vícios do Constitucionalismo Monárquico, paradigma da “miséria portuguesa”.

Em um dos espaços diegéticos recorrentes na ficção queirosiana, o Largo Camões, na

Baixa Pombalina, ergue-se um monumento, a estátua de Camões, inaugurado em 1867 (28 de

julho; projetado em 1860 por Vítor Bastos), no mesmo ano da saída de Eça de Queirós da

Faculdade de Direito de Coimbra, da ida de Eça à cidade de Évora, no Alentejo, para dirigir e

editar o jornal, O Distrito de Évora, textos deste publicados mais tarde sob o título Páginas de

Jornalismo.

Este monumento, que representa a figura de Camões, não do poeta de Os Lusíadas,

mas do símbolo maior da Pátria, que cristaliza em torno do seu nome, da sua epopeia e da sua

lenda, as virtualidades regeneradoras de Portugal, esteve sempre presente na ficção

queirosiana, desde O Crime do Padre Amaro (3ª versão, a definitiva, publicada em 1880) e

chega até Os Maias, para ocupar um lugar de destaque, no espaço narrativo dos romances de

Eça de Queiroz.

A importância da figura ideológica de Camões é particularmente significativa, se a

enquadrarmos nos problemas e nas preocupações do seu tempo – segunda metade do século

XIX – momento histórico da Regeneração de Portugal. A estátua de Camões, dentro das

narrativas de Eça, funciona como um símbolo dialético da decadência da Pátria, apesar de

Camões conotar um momento da grandeza de Portugal.

ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”

4

Estátua de Camões no Largo Camões (Bairro do Chiado/Lisboa) (BERRINI,1988, p. 184)

As oito figuras da estátua do pedestal são: os historiadores, João de Barros, Fernão de

Castanheda, Fernão Lopes, Gomes Eanes de Azurara (século XVI); o cosmógrafo, Pedro Nunes;

os poetas do período barroco (século XVII), Vasco Mouzinho de Quevedo, Jerónimo Corte Real

e Francisco Sá de Menezes. Nota-se presença dos cronistas e dos poetas heroicos da pátria

antiga, homens de letras cuja função foi narrar a gesta nacional, desde a consolidação da

nacionalidade operada pelo mestre de Avis até o declínio do Império português do Oriente. Eça

talvez pensasse neste detalhe quando realçou no monumento, sua função de “memória quase

perdida”, de rememoração duma glória passada nacional em todos os seus aspectos.

–– Senão, vejam vossas senhorias isto! Que paz, que animação, que prosperidade!

[...]

ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”

5

–– Vejam – ia dizendo o conde: – vejam toda essa paz, esta prosperidade, este contentamento [...] Meus senhores, não admira realmente que sejamos a inveja da Europa!” (CPA: cap 25, p. 1035).

Ao discurso grandiloquente e oco do conde de Ribamar acerca da realidade

portuguesa, Eça contrapõe o quadro realista do país real - o espaço circundante do Largo de

Camões.

Tipóias vazias rodavam devagar, pares de senhoras passavam, de cuia, cheia e tacão alto, com os movimentos derreados, a palidez clorótica duma degeneração de raça; nalguma magra pileca, ia trotando algum moço de nome histórico, com a face ainda esverdeada da noitada de vinho; pelos bancos da praça gente estirava-se num torpor de vadiagem; um carro de bois, aos solavancos sobre as suas rodas, era como símbolo de agriculturas atrasadas de séculos; fadistas gingavam, de cigarro nos dentes; algum burguês enfastiado lia nos cartazes o anúncio de operetas obsoletas; nas faces enfezadas de operários havia como a personificação das indústrias moribundas [...] E todo este mundo decrépito se movia lentamente, sob um céu lustroso de clima rico, entre garotos apregoando a lotaria e a batota pública, e rapazinho de voz plangente oferecendo o “Jornal das Pequenas Novidades”: e iam, num vagar madraço, entre o largo onde se erguiam duas fachadas tristes de igreja, e o renque comprido das casarias da praça onde brilhavam três tabuletas de casa de penhores, negrejavam quatro entradas de taberna, e desembocavam, com um tom sujo de esgoto aberto, as vielas de todo um bairro de prostituição e de crime. (P.B.: p. 369).

Note-se que as três figuras – Padre Amaro, Cônego Dias e Conde de Ribamar –

conversam “sob o frio olhar de bronze do velho poeta e nobre”, rodeado de heróis, a contrastar

fortemente no seu retrato físico e moral, não apenas com aquele quadro decadente de Lisboa,

mas também com a pequenez dos representantes do meio oficial da Regeneração portuguesa.

ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”

6

Estátua de Camões, no Largo Camões (Bairro do Chiado) - Lisboa http://purl.pt/93/1/iconografia/os_maias/ea126v_ft1_3.jpg

E o homem de Estado, os dois homens de religião, todos três em linha, junto às grades do monumento, gozavam de cabeça alta esta certeza gloriosa da grandeza do seu país, – ali ao pé daquele pedestal, sob o frio olhar de bronze do velho poeta, erecto e nobre, com os seus largos ombros de cavaleiro forte, a epopéia sobre o coração, a espada firme, cercado dos cronistas e dos poetas heróicos da antiga pátria – pátria para sempre passada, memória quase perdida! (O Crime do Padre Amaro: cap.25, p. 1035).

A ironia, que faz pela repetição da mesma frase do Conde de Ribamar, “__ Que paz,

que animação, que prosperidade!”, “vejam toda essa paz, esta prosperidade, este

contentamento” (CPA: cap. 25, p.1035), frase esta que se repete também na sua estrutura com

os três substantivos, que apenas mudam de lugar, pois o substantivo “paz” inicia os dois blocos

de conteúdo e a palavra “animação” é substituída por “contentamento”. Temos uma

semelhança/mesmice sintática e semântica, para indicar uma mesmice, uma imutabilidade

econômica e política, ao compararmos a cidade de Lisboa/Portugal com o mesmo momento -

maio/junho/1871 - vivido pela cidade de Paris. Logo no começo deste 25º capítulo de O crime do

ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”

7

padre Amaro, aparece a única menção a uma datação de tempo cronológico do romance: “Nos

fins de Maio de 1871 havia grande alvoroço na Casa Havanesa, ao Chiado, em Lisboa.” (CPA,

edição crítica, p. 1019). Em Lisboa, assistia-se, nesse período, às Conferências do Cassino, que

movimentavam um pouco a sociedade portuguesa. Eça ficcionaliza esse momento sócio-político,

a rebelião ocorrida em Paris, conhecida como “Comuna de Paris”, ao colocar em concomitância

temporal e afinidade cultural, as cidades de Lisboa e de Paris, na medida em que os lisboetas se

condoíam com a tomada do Palácio de Versalhes pelos “communards” (comunistas). Eça

resume aquele momento político citando as palavras-chave: “Comunistas! Versailles! Petroleiros!

Thiers! Crime! Internacional!”

Pessoas esbaforidas chegavam, rompiam pelos grupos que atulhavam a porta, e alçando-se em bicos de pés esticavam o pescoço, por entre a massa dos chapéus, para a grade do balcão, onde numa tabuleta suspensa se colavam os telegramas da Agência Havas; sujeitos de faces espantadas saíam consternados, exclamando logo para algum amigo mais pacato que os esperara fora:

__Tudo perdido! Tudo a arder!

Dentro, na multidão de grulhas que se apertava contra o balcão, questionava-se forte; e pelo passeio, no Largo do Loreto, defronte ao pé do estanco, pelo Chiado até ao Magalhães, era, por aquele dia já quente do começo de Verão, toda uma gralhada de vozes impressionada onde as palavras _ Comunistas! Versailles! Petroleiros! Thiers! Crime! Internacional! Voltavam a cada momento, lançadas com furor, entre o ruído das tipóias e os pregões dos garotos gritando suplementos. (CPA: cap.25, p.1019)

Em Lisboa, a estagnação política, cultural, econômica, era estremecida ligeiramente

pelas Conferências do Cassino, em cuja quarta conferência Eça de Queirós reproduz vários

trechos da obra do pensador francês, Pierre-Joseph Proudhon, Du principe de l’art e de sa

destinacion sociale, que foi introduzida nas reuniões do Cenáculo - casa/república de Jaime

Batalha Reis em 1869-1871, onde se reunia a Geração de 70, sob a liderança intelectual de

Antero de Quental

“Num grupo ao pé da Casa Havanesa os questionadores politicavam: pronunciava-se o nome de Proudhon que, por esse tempo, se começava a citar vagamente em Lisboa como um monstro sanguinolento; e as invectivas rompiam contra Proudhon. A maior parte imaginava que era ele que tinha incendiado. Mas o poeta estimado das Flores e ais acudiu dizendo ‘que, à parte as asneiras que Proudhon dizia, era ainda assim um estilista bastante ameno.’ Então o jogador França berrou:

ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”

8

__ Qual estilo, qual cabaça! Se aqui o pilhasse no Chiado rachava-lhe os ossos! (CPA, p. 1021)

A ironia enfática do 25º capítulo, final de O Crime do Padre Amaro (3ª versão) está no

aspecto dialético entre o país da ficção e o país da realidade, diante daquela estátua que

pretende simbolizar a glória da pátria que Eça considera perdida, conservada apenas como

simples “memória” nos arquivos da História.

Lembra Bakhtin (1988, p. 349) que

Em arte e em literatura, todas as definições espaço-temporais são inseparáveis umas das outras e são sempre tingidas de um matiz emocional. [...] salta aos olhos o significado figurativo dos cronotopos. Neles o tempo adquire um caráter sensivelmente concreto [...] graças justamente à condensação e concretização espaciais dos índices do tempo – tempo da vida humana, tempo histórico – em regiões definidas do espaço.

O Largo Camões, em que se encontra o monumento a Camões, está estrategicamente

situado em um local de que se permite ter uma visão panorâmica da cidade de Lisboa e do rio

Tejo. Temos ainda um outro aspecto a ser levado em conta – a localização do monumento – ,o

caráter dialógico do espaço memorial, sua intertextualidade, para reforçar o contraste acima

referido, enfatizando a decadência do país. Ao mesmo tempo que deste local se pode avistar o

rio e oceano Atlântico de onde partiram as caravelas que deram grandeza à Portugal, deste local

também se podem ver as ruas que desembocam junto à estátua, nas quais se movem uma raça

degradada e doente – “a palidez clorótica duma degeneração de raça”; range “um carro de bois

[...] como símbolo de agriculturas atrasadas de séculos”, introduzindo, em um quadro citadino a

nota de uma estrutura sócio-econômica arcaica, tudo isso sendo observado, do alto, pelos olhos

da estátua de Camões - “frio olhar de bronze do velho poeta” - representação da pátria antiga,

virtuosa, poderosa, que acompanha o momento presente com certeza de ser uma “ pátria para

sempre passada, memória quase perdida!” (p. 1035).

Recuperando a teorização de Bakhtin (1988, p. 361-362) acerca do cronotopo, ele

explicita que:

[...] qualquer fenômeno, nós, de alguma forma, o interpretamos, ou seja, o incluímos não só na esfera da existência espaço-temporal, mas também na esfera semântica. [...] esses significados, quaisquer que eles sejam, devem receber uma expressão espaço-temporal qualquer, ou seja, uma forma significa audível e visível por nós (um hieróglifo, uma fórmula matemática, uma expressão verbal e lingüística, um desenho, etc.). Sem esta expressão espaço temporal é impossível até mesmo a reflexão mais abstrata. Conseqüentemente,

ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”

9

qualquer intervenção na esfera dos significados só se realiza através da porta dos cronotopos.

A presença deste espaço-tempo coletivo reafirma a ideia da decadência do país, da

miséria portuguesa, herdadas da Geração de 70, em particular das obras de seu amigo Oliveira

Martins – História de Portugal (1879) e Portugal Contemporâneo (1881). Este considera como

“Catástrofe” (título de um capítulo) o período da dinastia de Avis, entre os de 1500 e 1580 e

como “Decomposição” (título de outro capítulo) o período do domínio espanhol e da dinastia de

Bragança. No capítulo “A Catástrofe”, depois de descrever a derrocada do reino após a batalha

de Alcácer-Quibir, comenta: “Acabavam ao mesmo tempo, com a pátria portuguesa, os dois

homens – Camões, D. Sebastião – que nas agonias dela tinham encarnado em si e numa

quimera, o plano da ressurreição.

Nesse túmulo que encerrava, com os cadáveres do poeta e do rei, o da nação, havia

dois epitáfios: um foi o sonho sebastianista; o outro foi, é, o poema dos Lusíadas. A pátria fugira

da Terra para a região aérea da poesia e dos mitos” (p. 69).

Provavelmente, sugestionado pela visão trágica e catastrófica de Oliveira Martins,

Antero de Quental (1923, p. 309) escreveu: “Há nações para as quais a Epopéia é ao mesmo

tempo o epitáfio”.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora

Fornoni Bernadini e outros. São Paulo: FUNDUNESP; HUCITEC, 1988.

______. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 3. ed. São Paulo:

Martins Fontes, 2000.

BERRINI, Beatriz. Eça de Queiroz: palavra e imagem. Lisboa: Inapa, 1988. p.184. il.

LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade: psicanálise mítica do destino português. 4. ed.

Lisboa: Dom Quixote, 1991.

ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”

10

MARTINS, Oliveira. História de Portugal. 10. ed. Lisboa; Parceria Antonio Maria Pereira, 1920.

2v.

______. Portugal contemporâneo. Lisboa: Edições Salamandra, 1998.

MATOS, A. Campos (Org. e Coord.). Dicionário de Eça de Queiroz. 2. ed. rev. e aument. Lisboa:

Caminho, 1993.

MEDINA, João. Eça político. Lisboa: Seara Nova, 1974.

QUEIRÓS, Eça de. O primo Basílio. Porto: Lello & Irmão, [1979a]. v.1. (Obras de Eça de

Queiroz).

______. Uma Campanha Alegre. Porto: Lello & Irmão, 1979b. v. 3 (Obras de Eça de Queiroz).

______. O crime do padre Amaro. Edição de Carlos Reis e Maria do Rosário Cunha. Lisboa:

Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000. (Edição crítica das obras de Eça de Queirós)

QUENTAL, Antero. Prosas. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1923. 2v.

http://purl.pt/93/1/iconografia/os_maias/ea126v_ft1_3.jpg