espaço e nação na propaganda política do "milagre econômico"

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ESPAÇO E NAÇÃO NA PROPAGANDA POLÍTICA DO "MILAGRE ECONÔMICO" * Luis Fernando Cerri ** Alargando o campo da pesquisa no ensino da história Muito de uma sociedade pode ser dito pela forma pela qual ela representa o tempo e transmite essa representação às gerações seguintes. Por isso, a pesquisa sobre o ensino da história, para além de subsidiar o aperfeiçoamento da disciplina escolar, constitui-se como uma fecunda vertente para inquirir sobre a identidade coletiva nas sociedades contemporâneas. Desta forma, este campo de investigação deixou de ser a tentativa de resposta tecnicista à questão de como ensinar um conteúdo dado, e assumiu a tarefa de refletir sobre a consciência histórica dos povos, como por exemplo na célebre obra de Marc Ferro, Comment on raconte l’Histoire aux enfants à travers le monde entier 1 , que tornou-se um modelo de temática de estudos sobre o material didático de história bastante explorado nos anos 80. No Brasil, os estudos sobre a História do ensino de História também avançaram, e via de regra concentraram-se nos aspectos da disciplina inserida na educação formal, abordando e * Este artigo é, com modificações, parte da tese de doutorado do autor, intitulada Ensino de história e nação na propaganda do milagre econômico, defendida na Faculdade de Educação da Unicamp sob a orientação da Profa. Dra. Ernesta Zamboni. Este texto foi debatido em comunicações no XX Simpósio Nacional de História (UFSC, 1999) e na Semana de Geografia (UEPG, 1999), e em outras ocasiões, bem como na banca de defesa da tese, propiciando críticas e sugestões às quais o autor agradece. ** Doutor em Educação (Metodologia do Ensino de História). Professor do DEMET - Universidade Estadual de Ponta Grossa e membro do Grupo Memória – Pesquisa do Ensino da História, da Faculdade de Educação da Unicamp. 1 Traduzida no Brasil sob o título de Manipulações da História na escola e nos meios de comunicação, pela Editora Ibrasa, sendo que o original francês é de 1981.

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Page 1: espaço e nação na propaganda política do "milagre econômico"

ESPAÇO E NAÇÃO NA PROPAGANDA POLÍTICA

DO "MILAGRE ECONÔMICO" *

Luis Fernando Cerri **

Alargando o campo da pesquisa no ensino da história

Muito de uma sociedade pode ser dito pela forma pela qual ela representa o tempo e transmite essa representação às gerações seguintes. Por isso, a pesquisa sobre o ensino da história, para além de subsidiar o aperfeiçoamento da disciplina escolar, constitui-se como uma fecunda vertente para inquirir sobre a identidade coletiva nas sociedades contemporâneas. Desta forma, este campo de investigação deixou de ser a tentativa de resposta tecnicista à questão de como ensinar um conteúdo dado, e assumiu a tarefa de refletir sobre a consciência histórica dos povos, como por exemplo na célebre obra de Marc Ferro, Comment on raconte l’Histoire aux enfants à travers le monde entier1, que tornou-se um modelo de temática de estudos sobre o material didático de história bastante explorado nos anos 80. No Brasil, os estudos sobre a História do ensino de História também avançaram, e via de regra concentraram-se nos aspectos da disciplina inserida na educação formal, abordando e * Este artigo é, com modificações, parte da tese de doutorado do autor, intitulada Ensino de história e nação na propaganda do milagre econômico, defendida na Faculdade de Educação da Unicamp sob a orientação da Profa. Dra. Ernesta Zamboni. Este texto foi debatido em comunicações no XX Simpósio Nacional de História (UFSC, 1999) e na Semana de Geografia (UEPG, 1999), e em outras ocasiões, bem como na banca de defesa da tese, propiciando críticas e sugestões às quais o autor agradece. ** Doutor em Educação (Metodologia do Ensino de História). Professor do DEMET - Universidade Estadual de Ponta Grossa e membro do Grupo Memória – Pesquisa do Ensino da História, da Faculdade de Educação da Unicamp. 1 Traduzida no Brasil sob o título de Manipulações da História na escola e nos meios de comunicação, pela Editora Ibrasa, sendo que o original francês é de 1981.

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consagrando temas como o livro didático, currículos e programas e a prática pedagógica, sempre cruzando-os com os dados sobre as exigências sociais (e suas contradições) na formação dos alunos confiados aos professores da disciplina.

O presente texto é parte de um estudo que tem entre seus objetivos estender este campo de pesquisa específico da Didática da História, de modo a contribuir para a compreensão e para a análise das diversas manifestações da cultura referentes ao ser humano ( e ao grupo ao qual considera pertencer) no tempo como experiências não formais e assistemáticas de ensino de História, e portanto como campo privilegiado destas preocupações de investigação. Tal alargamento é necessário, tanto em termos de melhor compreender a formação da consciência histórica das pessoas, num momento em que os meios de comunicação de massa ultrapassam a escola em abrangência e profundidade desta formação, quanto para melhor subsidiar a metodologia do ensino entendida estritamente, uma vez que o aluno que se coloca diante do professor de história hoje já traz consigo uma formação em história composta por informações, impressões, sensibilidades, conceitos e preconceitos2. É com esta preocupação que este estudo debruça-se sobre a propaganda em revistas do e a favor do regime militar entre os anos de 1969 a 1973, buscando em especial o tema da nação e da identidade nacional ensinadas. Dentro desta preocupação, destacamos o papel educativo da imagem publicitária na formação de uma identidade espacial, fundindo o indivíduo, o grupo e o espaço para criar noções como "o nosso país", "nosso lugar", "pátria", "nação", "território".

Representações espaciais da nação

Uma comunidade política, reunida na totalidade dos seus membros, concretamente visível, no desenvolvimento de um ato coletivo, é algo que não se encontra mais na modernidade. Cristian Meier lembra

2 A rigor, se considerarmos que a História é "o inventário das diferenças", a busca da diversidade e da mudança, a reflexão crítica, então o que ensina a família, a igreja e a mídia tendem muito mais para as características da memória (busca da identidade, da permanência, em um procedimento afetivo e governado pela dialética da lembrança e do esquecimento) do que da História. Entretanto, se assim procedermos excluiremos também a escola ensinada na disciplina escolar, cujo sentido histórico tem sido muito mais o de uma "memória histórica" que de um percurso crítico característico da História. Por isso, quando se usa neste texto o termo História referindo-se aos conteúdos e valores ensinados em geral pelas diversas instituições sociais, deve-se levar em conta esta nota.

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que a última delas que tenha sido possível de abarcar inteira com a vista foi provavelmente a polis grega, que o cidadão podia enxergar na totalidade durante uma assembléia ou reunida em armas. A comunidade não precisava ser representada, não precisava ser trazida ou sintetizada em uma imagem, por ser assim imediatamente visível. As nações, entretanto, mesmo as menores, são comunidades políticas impossíveis de se perceber na totalidade: "[...] com exceção, talvez, em grandes partidas de futebol por ocasião do gol, quando os torcedores, em frente do espetáculo televisivo ou no estádio de futebol, irrompem em júbilo"3.

Por menor que seja a nação, dificilmente poderemos ver todos os seus membros reunidos, ou vislumbrar seu território sem que ele se estenda para além do horizonte, e a multidão que se junta nas praças públicas ou nos eventos esportivos é uma pálida referência aos milhões que compõem o grupo; também por isso, a nação precisa ser representada por símbolos que traduzam o grupo todo e seu lugar. Meier indica o hino, a bandeira e os brasões como os símbolos que possibilitam apreender a nação. Seguindo a pista dada por Audigier e outros 4, a imagem do mapa do território sobre o qual o Estado-nação exerce sua soberania é um outro símbolo de representação do grupo e de sua identificação que pretendemos analisar a seguir.

A representação espacial da nação é elemento, para cada indivíduo, na representação de si mesmo. Ela torna-se uma das condições a prior da comunicação entre os cidadãos e os grupos sociais, não suprimindo todas as diferenças, mas relativizando-as e subordinando-as, de forma que a diferença simbólica entre "nós" e os estrangeiros seja a diferença que mais importa e que seja reconhecida como irredutível. É o que se pode chamar de transformação imaginária das fronteiras exteriores do Estado em fronteiras interiores, as primeiras sentidas como projeção e proteção de uma personalidade coletiva interior, que permite a cada um habitar o tempo e o espaço do Estado como um lugar onde sempre se esteve e sempre se estará "consigo"5. Se considerarmos a nação como um tipo especial de massa, a integração com ela se opera por meio de

3 MEIER, Cristian. Sobre o conceito de identidade nacional. História: Questões & Debates. Curitiba, v. 10, n. 18-19, p. 329-347, 1989, p. 338. 4 AUDIGIER, François, et. al. La place des Savoirs scientifiques dans les didactiques de l’histoire et de la géographie. Revue Française de Pédagogie. Paris, n. 106, jan-mar. 1994. 5 BALIBAR, Etienne. La forme nation: histoire et idéologie. In: BALIBAR, Etienne; WALLERSTEIN, Immanuel. Race, nation, classe: les identités ambigües. Paris: La Découverte, 1990, p. 129.

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símbolos, e, quando se completa, o indivíduo "ultrapassa as fronteiras de sua pessoa"6.

O mapa da nação é um instrumento cuja importância na formação cívica dos estudantes e demais indivíduos tem proporções tão grandes quanto a ausência de estudos e consciência sobre essa importância. A história é pródiga em trazer exemplos nos quais o mapa é desenhado ao sabor de interesses geopolíticos e constitui-se como um item essencial na educação de um cidadão disposto a comportamentos desejáveis para o poder, como o famoso "morrer pela pátria". Isto pode ser constatado, por exemplo, nos mapas da Argentina desenhados e autorizados pelo Instituto Cartográfico Militar, que incluem as Malvinas e boa parte da Antártida, ou nos mapas produzidos pelos chineses no período dos conflitos sino-soviéticos, em que os territórios soviéticos reivindicados pelo Estado simplesmente aparecem como integrando o território chinês. Nesse casos, o que está posto é a cartografação do desejo de Estados Nacionais com tendências imperialistas, e a educação desse desejo nos cidadãos, de maneira que o território representado apareça como natural, óbvio, pelo qual quaisquer sacrifícios (inclusive o da própria vida) são admissíveis. Compreensível, entretanto, porque o primeiro passo da definição das fronteiras de um Estado nacional7 é exatamente esse: o da projeção do território que se reivindica. O segundo passo é a obtenção do direito de ocupá-lo, o que pode ocorrer de maneira pacífica, após um processo de colonização, por exemplo, e um acordo entre as partes adversárias, ou através do conflito militar em que a vontade de integrar um pedaço de terra ao território nacional é imposto ao adversário pela força das armas. E o último momento, então, é o processo de demarcação das díades, em que os Estados em questão estabelecem os pontos geográficos por onde passam as linhas que os separam.

Pelo menos oficialmente, e malgrado uma velada rivalidade com a Argentina na liderança da América do Sul, o Estado brasileiro sob os militares não manifesta uma política exterior de expansão do território, mas nem por isso é menos válido o significado da representação espacial da nação na educação dos cidadãos, estejam eles na escola ou não. Assimilar o mapa até considerá-lo como uma emanação e um direito natural faz parte essencial do trabalho educativo para a obtenção de um determinado comportamento cívico, conjunturalmente considerado como

6 CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Cia. das Letras, 1995, p. 18. 7 Cf. MAGNOLI, Demétrio. O Corpo da Pátria. Imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). São Paulo: Unesp, 1997.

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imprescindível para a existência e continuidade do grupo enquanto tal8, até porque uma série de questões sobre a garantia da posse do território está posta neste momento.

A compreensão das formas espaciais como produtos históricos, como espaço humanamente produzido, é cara à Geografia contemporânea 9. Entretanto, agindo também sobre a consciência do espaço, a ideologia nacionalista produz o inverso desta compreensão, pondo o espaço ocupado pela nação como um dado natural.

O desenho formado pelo mapa político-administrativo está inscrito na consciência coletiva, é facilmente reconhecido pela ampla maioria das pessoas como indicativo do país, da nação, do povo, do governo. A utilização da imagem deste mapa para fins de incremento da identidade nacional não passa despercebida. Por exemplo, a metonímia que faz a figura do hexágono designar a França, e que é utilizada dentro do discurso nacionalista do período de Charles de Gaulle, é o objeto de estudo de Marie-Claire Robic10, e seu papel na educação do cidadão é comentado por Yveline Fumat11. Sua caracterização como "Lugar de memória" é feita por E. Weber12. Fenômeno recente, em torno da década de 1960, o recrudescimento da representação (e do reconhecimento) da identidade nacional francesa sob a figura do hexágono está ligado a eventos diversos, como o processo de descolonização (que demandava um nacionalismo "para dentro" do território) e a diminuição da importância das fronteiras numa conjuntura em que já se preparavam as bases para a união européia. Na década de 70, o hexágono converte-se plenamente num logotipo, e é assumido pela publicidade tanto estatal quanto privada. Mais que um logotipo ou uma simplificação cartográfica,

8 Para Paulo KNAUSS, estamos diante de uma perversão, que transforma o espaço, que é um fato conceitual, num fato sensível: "A perversão reside na assimilação pelo conhecimento comum da imagem do espaço como dado e não como construção. Procede-se assim, a dissimulação da operação socialmente demarcada. Em sendo imagem do espaço, mapas e plantas são produtos de sua circunstância histórica e complexa". KNAUSS, Paulo. Imagem do espaço, imagem da história. A representação espacial da cidade do Rio de Janeiro. Tempo. Niterói, v. 2, n. 3, p. 135-148, jun. 1997, p. 135. 9 No Brasil pode-se citar, por exemplo, MORAES, Antonio Carlos R. Ideologias geográficas. São Paulo: Hucitec, 1991. 10 ROBIC, Marie Claire. Sur les formes de l’Hexagone. Mappe Monde. Montpellier, v. 4, p. 18-23, out-dez, 1989. 11 FUMAT, Yveline. L’éducation du citoyen à partir de quelques cartes de France. Mappe Monde. Montpellier, v. 4, p. 29-33, out-dez, 1989. 12 WEBER, E. L’Héxagone. In: NORA, Pierre (dir). Les Lieux de Mémoire II. La Nation. Paris, Gallimard, 1986. t. 2, p. 97-116.

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porém, o hexágono, construído lentamente como uma das possibilidades de modelização do mapa político francês pela cartografia, passa a significar uma malha de soberania nacional, passando a significar um "lugar particular de interação espacial com o exterior".

Podemos, sem sombra de dúvida, incluir entre as imagens que se prestam estruturalmente à ideologia nacional, o mapa habitual dos contornos do Brasil, reproduzido e ensinado incansavelmente, inclusive através de um molde plástico vazado do qual todos guardamos alguma lembrança, junto com as memórias de nossa educação primária13. Este desenho é formado a partir de dois critérios: pelo desenho das costas litorâneas e pelo das fronteiras terrestres. O significado de cada um desses critérios não é o mesmo: em tese, as fronteiras terrestres, que só tardiamente consolidam-se14, são criação gradual do Estado brasileiro e dentro delas este estabelece sua soberania. Formam um desenho histórico e "abstrato", na medida em que envolvem a seleção arbitrária de marcos cartográficos e acidentes naturais para representar as díades, ou seja, linhas que delimitam o encontro do território de dois Estados. Só existem nos mapas, nos tratados, na abstração.

Se o critério fosse somente as delimitações históricas de território, deveriam figurar, a partir do 1º de junho de 1971, o contorno das 200 milhas de mar territorial, reivindicadas pelo governo Médici, que originaram um conflito diplomático com os Estados Unidos e outros países, a apreensão de barcos pesqueiros de outras nacionalidades dentro deste território reivindicado. Ou seja, um símbolo poderoso do nacionalismo e da afirmação do poder e da soberania do Estado governado pelo general Médici curiosamente não é utilizado na propaganda do regime, ou melhor, não aparece graficamente representado nos mapas do Brasil usados na propaganda. É claro que referências a esse ato de soberania não deixam de aparecer, como na propaganda da Petrobrás na Figura 1, providencialmente publicada na revista Veja

13 A utilização desta imagem não data deste período. Referindo-se a um outro momento de ditadura, o Estado Novo e a campanha da "Marcha para o Oeste", Alcir LENHARO defende que "Não é meramente casual o recurso de mostrar um visual definitivo da Nação, um desenho geográfico que se repete constantemente nos mapas, uma geografia do Poder que só pode ser apreendida e interiorizada por todos a partir do sentimento de comprometimento e de participação em um só e memorizando espaço territorial nacional". LENHARO, Alcir. A Sacralização da Política. Campinas: Papirus, 1986, p. 57. 14 Cf MAGNOLI, op. cit., cap. VI, em que o autor descreve o processo de definição das fronteiras como estendendo-se até o início do século XX, e a sua demarcação (que é a conclusão da horogênese) ainda em curso em alguns pontos.

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comemorativa do 7 de Setembro de 1972, Sesquicentenário da Independência do Brasil, mas o mapa - símbolo não inclui esta porção marítima do território, o que transmite a sensação de que ela não existe na prática, apenas nos tratados e acordos. Este mapa - símbolo é um mapa das terras brasileiras emersas, e não exatamente do território sobre o qual a soberania é exercida.

Figura 1 - Revista Veja n. 209 de 6/09/1972, p. 59.

E o mar territorial, poderoso evocador de um ato político de

soberania, que colocou o governo brasileiro a discutir na mesma estatura com os países desenvolvidos como Japão, França e Estados Unidos, não é incorporado ao mapa que se vê nas escolas, na publicidade, na propaganda ideológica do regime. O mar, um significativo símbolo de massa, como adiante veremos, sem deixar de ser explorado ideologicamente no período, não pode se integrar ao símbolo constituído pelo mapa das terras emersas, exatamente porque, se isso ocorresse, romper-se-ia o aspecto canônico deste símbolo, introduzindo um estranhamento capaz de levar a uma reflexão que, ocorrendo em cada cabeça, dificilmente poderia ter suas conclusões controladas.

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Neste mapa-símbolo, o desenho das costas evoca a idéia de perenidade da nação remetendo ao tempo geológico, ao desenho fixo, ainda que os territórios litorâneos tenham sido palco de disputas durante o período colonial (França Antártica e Equinocial, "Invasão" Holandesa e Confederação dos Tamoios, por exemplo) e o período imperial (notadamente a Confederação do Equador), em que a soberania sobre o conjunto do litoral não estava consolidada. A referência a um desenho esculpido pela natureza é um mecanismo de naturalização na representação nacional, pois, recordemos, o recurso à natureza constrói uma forte legitimidade, já que liga a construção histórica da nação a um desígnio que independe dos partidarismos e interesses particulares da história humana, bem como confere-lhe uma aura de ancestralidade que torna mais sólidas e respeitáveis as tradições inventadas.

Por outro lado, o contorno ocidental do mapa "canônico"15 é o resultado da ação militar, diplomática e geográfica do Estado Nacional. Entretanto, isso não impede a "naturalização" dessas linhas. O expoente desse processo é Jaime Cortesão, citado por Golbery do Couto e Silva 16, que argumenta que boa parte das fronteiras ocidentais resultam de acidentes geográficos "intransponíveis" que já prenunciavam, antes mesmo da presença humana na América, um grande Estado sul-americano, que o surgimento do Brasil concretizou (Figura 2), idéia claramente imune ao fato de que um obstáculo natural, longe de ser uma fronteira pronta, não tem o seu significado histórico dado pela natureza, isto é, a conformação do espaço não decide pelos homens o significado que terá para sua sociedade. Desta maneira, um rio profundo pode significar um obstáculo intransponível, uma possibilidade de desenvolvimento, uma defesa contra o inimigo, etc., dependendo da especificidade do grupo humano que com ele entra em contato.

15 Segundo Elias Thomé SALIBA, no texto As imagens canônicas e o ensino de história, as imagens canônicas são aquelas marcadas pela sua condição de estereótipos e pelo caráter coercitivo, que resulta da sua intensa aparição e repetição: "[...] começamos a perceber como a imagem com a qual nos acostumamos – a imagem canônica – era coercitiva. Coercitiva porque nos impunha uma figura reproduzida infinitamente em série, tão infinitamente repetitiva que não nos provocava mais nenhuma estranheza, bloqueava nossa possibilidade de uma representação alternativa, ou seja, não nos levava mais a distinguir, a comparar – em suma, não nos levava mais a pensar". SALIBA, Elias Thomé. As imagens canônicas e o ensino de história. In: SCHIMIDT, Maria Auxiliadora; CAINELLI, Marlene Rosa (orgs.) III Encontro Perspectivas do Ensino de História. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999, p. 438. 16 COUTO E SILVA, Golbery do. Geopolítica do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967, p. 66.

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Figura 2. Apud Golbery do Couto e SILVA. Geopolítica do Brasil.

Enraizada no imaginário medieval e colonial da Ilha - Brasil, esta compreensão do Estado nacional e de seu território contamina o mapa usual do país e é transmitida juntamente com ele e suas variações.

O mapa do Brasil, exaustivamente visto, copiado e estudado pelos escolares, é também continuamente projetado na retina do conjunto dos brasileiros, e remete à identidade única dos que partilham o mesmo espaço. Esta insistência no desenho compósito das fronteiras "naturais" e históricas termina por naturalizar a construção política da nação. O mapa assim constituído projeta-se no tempo e ganha ares de antigüidade, parecendo ser eterno, resultante de forças geológicas, anterior à sua conformação atual, que data do início do século17.

17 Magnoli esclarece: "Qual é a origem das fronteiras brasileiras? Como vimos, o discurso nacional virtualmente rejeita essa indagação, isentando o corpo da pátria de qualquer condicionamento histórico e fazendo-o emanar da natureza. Esta noção, não importa o quão absurda pareça quando assim posta, encontra-se profundamente enraizada no imaginário geográfico nacional." MAGNOLI, op. cit., p. 139.

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Tão forte é esta noção que não é absolutamente estranho encontrar nos livros didáticos, e mesmo nas questões de vestibular, o contorno que o Brasil adquire no século XX ilustrando o território brasileiro durante o império ou o território colonial português (por exemplo, por trás da linha de Tordesilhas). Este uso reforça a idéia da nação brasileira como destino da comunidade nacional, desígnio da natureza, e o espaço entre o ponto onde estamos e a fronteira ocidental como "espaço vazio" a ser preenchido pela colonização.

Esta utilização do mapa político significando a nação foi largamente utilizada pelos governos militares, por exemplo, nas peças para a televisão produzidas pela Presidência da República nos mandatos de Médici e Geisel. Peças como as sobre o consumo de petróleo e derivados (em desenho animado), os filmes sobre as cidades do interior, os videoclipes com mensagem de final de ano ("Hoje, eu quero paz no meu coração..."), o desenho animado sobre Pindorama ou com o jingle "Este é um país que vai pra frente", e outras, tinham como "assinatura" ao final não um símbolo que evidenciasse a sua origem (o Estado), mas um mapa político do Brasil que se formava após a projeção das cinco pontas de uma estrela, que dirigiam-se às cinco regiões do país, com a estrela posicionando-se na localização da capital, Brasília. O mapa, carregando a idéia de nação, é interposto entre o espectador e a assessoria da Presidência, verdadeira criadora dos filmes; parece que quem fala ao espectador por meio das peças de propaganda é o próprio Brasil representado no mapa: a estrela em Brasília lembra apenas vagamente a idéia de um governo central.

A forma desse desenho usual do território pode recortar outras imagens, conferindo a estas as qualidades e características que se atribui àquele (Figura 17), de forma a identificar coisas, pessoas e idéias com a idéia geral de nação. Essa figura ganha portanto a concretude de um limite que nos circunscreve, e portanto nos une: nesse sentido, o mapa amplifica seu caráter identitário, estabelecendo mais uma vez a ligação entre território - nação - nós. O mapa torna-se o continente, e é como se a imagem que assume a forma dele dissesse ao observador que ela constitui o conteúdo da nação, que o que ali aparece recortado diz, faz e é o Brasil.

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Figura 3 – Veja 104, de 2/09/70, p. 51

O movimento de identificação através do mapa é explícito na Figura 3. Neste anúncio, referente ao Censo Populacional de 1970, financiado por uma série de empresas particulares, podemos observar a identificação da coletividade nacional ao mapa do Brasil, utilizando como reforço a popularíssima frase de canção alusiva à copa mundial de futebol daquele ano. É interessante notar que os quadrinhos (pela própria característica estrutural desse meio de comunicação que pode também ser chamado de arte seqüencial, aparentada do cinema) estabelecem um movimento, uma evolução, que vai do mapa como pequena parte de uma interrogação ao mapa como supressor da dúvida a partir de seu crescimento. Subliminarmente, temos a idéia de que as dúvidas ou resistências ao governo, à capacidade de superação do subdesenvolvimento do Brasil estão se dissipando conforme superam-se os prognósticos negativos e se revelam os dados do "milagre econômico":

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no fim desse caminho, quando o país tornar-se rico e existirem condições para "dividir o bolo", os pontos de interrogação serão irrelevantes, principalmente se levamos em conta que cada brasileiro a ser recenseado é um elo de uma "corrente (símbolo por excelência da união e da ausência de divergências) pra frente". Nessa imagem conjugam-se, portanto, imaginários de identificação coletiva, de representação do espaço nacional e sobre o futuro do Brasil.

Figura 4 - Revista Veja n. 154, de 18/08/1971, p. 8-9.

A Figura 4 atesta a capacidade do mapa usual do território nacional em simbolizar a identidade entre Estado, nação, povo, território e conceitos correlatos, a figura. Nela, o presidente e seu povo são representados pelo mapa, e travam um diálogo imaginário com a empresa Villares, representada por seu logotipo. O mapa passa a equivaler, nesta peça, a um logotipo da nação, a um signo que remete a uma determinada coletividade. Esta imagem contribui ainda para a identificação entre povo e governo como constituintes de uma única entidade, tema caro ao do regime e muito visado pela Aerp18 pelo seu potencial de legitimação da

18 Cf. FICO, Carlos. Reinventando o Otimismo - Ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997, p. 127.

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ordem imposta pelos militares no poder. O governo, mais especificamente o chefe do Executivo, são representados através do mapa como interlocutores legítimos do povo para o diálogo com a empresa; se considerarmos que quem emite essa mensagem é a Villares, temos aí uma indicação importante sobre os pressupostos do relacionamento entre Estado e iniciativa privada neste momento. Não basta, entretanto, que o mapa seja visto. É preciso que ele seja experimentado e vivenciado pela população, e isto se faz através do ritual comemorativo da grande data nacional, o 7 de setembro, amplificado pelo seu Sesquicentenário em 1972. Os festejos incluíram o repatriamento dos restos mortais de D. Pedro I e sua peregrinação cívica por todas as regiões do Brasil. Assim, simbolicamente, o libertador vai ao encontro de toda a nação, e neste movimento colabora com outra idéia muito cara ao imaginário nacional inovado pelos militares, o tema da integração e da unidade nacionais. Na figura 5, podemos acompanhar o mórbido trajeto que traça uma linha de identificação e de unidade, como um fio que costurasse a integração das diversidades nacionais, ou contornasse simbolicamente o perímetro do território, concretizando linhas naturais (o litoral) e "um pouco menos naturais" (as fronteiras com outros países)19.

Esta peregrinação também tem um outro signiticado complementar, que é o de unificar as múltiplas histórias e possibilidades de história sob o manto de uma só narrativa, a da história nacional tal como se define na perspectiva oficial. Assim, o ato central da biografia da nação, a Independência, é experimentado de alguma forma por todas as histórias pessoais, familiares e regionais que ate então não tinham nenhum contato direto com aquele momento histórico, exceto pela história ensinada nos livros didáticos e cerimônias cívicas. D. Pedro I e a Independência são incorporados por exemplo ao Acre, que ainda não participava do território nacional em 1822, ou ao Nordeste, que em parte formou a Confederação do Equador como uma alternativa de Independência mais popular que a proclamada pelo Imperador. A similaridade com o imaginário cristão, com a idéia de relíquia, com a

19 A "volta ao mapa" é um recurso bastante usado como prática de nacionalização simbólica de movimentos, como a afirmar, pelo ritual em si, que o movimento ou comemoração é relativo a todos, e não apenas às pessoas e regiões que o organizaram. Ao percorrer aproximadamente as "fronteiras exteriores", busca participar das "fronteiras interiores" às pessoas que participam da nação. No Brasil, outros dois casos em que essa "volta ao mapa" ocorre é durante a série de comícios da campanha das Diretas Já, e a planejada volta da chama do descobrimento, nas comemorações do "Brasil 500", organizada pela Rede Globo de Televisão.

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idéia de peregrinação, são patentes, evidenciando mais um exemplo que confirma a tese de que o nacionalismo ocupa os espaços de exercício da identidade do grupo deixado pela religião durante a modernidade, como uma religião pagã do Estado nacional20.

O desenho do mapa político-administrativo, enquanto símbolo - expressão da nação, remete a um imaginário de grandeza construído desde o império21, onde a monarquia é associada à manutenção da unidade territorial e à criação de um país continental22 vista como um valor em si. Grandeza que se associa à riqueza e à condição de terra prometida, que destaca o Brasil das demais nações do mundo, que é o fator de orgulho da história nacional, tal como a vê o grupo de intelectuais ligado à Revista do Brasil, iniciativa da família Mesquita (O Estado de São Paulo) depois encampada por Monteiro Lobato. O estudo de Tânia de Luca coloca em cena alguns dos nomes desse grupo, para os quais "não parecia suficiente exaltar as dimensões do país, eles achavam necessário torná-lo o maior do mundo."23. Esta autora estuda a maneira pela qual a integridade e o gigantismo do território nacional tornaram-se uma referência obrigatória no processo de educação dos cidadãos, pela sua potencialidade de erigir uma perspectiva positiva em relação à nacionalidade, sua história e seu espaço. E dessa maneira essas considerações integraram-se no projeto pedagógico das elites para as massas, que se efetivou progressivamente, conforme novos estratos da população chegavam à escola.

20 BALIBAR Etienne; WALLERSTEIN, Immanuel. Race, nation, classe: les identités ambigües. Paris: La Découverte, 1990, p. 130. HOBSBAWN, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780 - programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 108. 21 Ou, para maior rigor, desde a colônia, período em que portugueses e espanhóis inoculam suas expectativas de encontrar o Jardim do Éden, evocado pela exuberante natureza americana, cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. 22 MAGNOLI, op. cit., p. 85 23 LUCA, Tania Regina de. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Unesp, 1999, p. 87.

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Figura 5 - Box em reportagem da revista Veja n. 190, de 26/4/1972, p. 23.

O mar e a floresta: símbolos da massa nacional

Se pensamos o regime militar como o momento em que a educação praticamente se generaliza para a população, tanto no sistema escolar quanto através dos meios de comunicação de massa, é possível afirmar que as falas desse período sobre o gigantismo e as virtudes do espaço ocupado pela nação tiveram um papel bastante relevante na constituição dos padrões de identidade nacional que perduram até hoje. Já se mencionou uma das linhas dessas falas, que é a questão do mar territorial. Outra, com um apelo igualmente poderoso, é a fala que se refere à Amazônia e sua integração.

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Assim, não só nos discurso e na propaganda política, mas também nos grandes planejamentos e na ação governamental cotidiana, a ditadura do período em estudo ataca a temática do componente espacial da identidade nacional: o mapa é vivenciado e internalizado pelo noticiário que coloca em foco, dia a dia, as ações em torno do mar territorial de 200 milhas e do desbravamento da Amazônia, posta como grande desafio, como última fronteira a ser integrada à nação. Não por acaso, o mar e a floresta são dois importantes símbolos de massa. Ambos são compostos por pequenas unidades que, sozinhas, pouco significam, mas reunidas às suas semelhantes, formam massas gigantescas, na exata dimensão do gigantismo que se propõe para o sujeito coletivo da identidade brasileira.

Canetti tem uma belíssima imagem que destaca o imenso abismo que há entre a importância da gota, débil, frágil e a imponência do mar, que entretanto só existe da união de todas as gotas:

Mergulhe-se a mão na água, erga-se a mão novamente e contemplem-se as gotas escorrendo isoladas e débeis por ela. A compaixão que se sente é como se elas fossem pessoas desesperadamente sós. As gotas só contam quando não se pode mais contá-las, quando se dissolvem totalmente no todo.24

O mar é o modelo de toda massa, e a força desse símbolo está presente no significado propagandístico do estímulo à pesca e ao ato de ampliação do mar territorial: a coesão das ondas do mar expressa a sensação de condescendência com os outros quando se está reunido na massa: uma sensação de que todos compõem um, como se não existissem mais individualmente, como se todas as coisas que separam um do outro se desfizessem, compondo uma dependência mútua da qual emana uma sensação formidável de força. Despertar essa sensação e mantê-la sob controle é uma situação bastante interessante para qualquer poder, principalmente para um Estado autoritário que sustenta-se em grande parte na restrição e manipulação dos canais de participação efetiva no poder.

O símbolo de massa do mar passa a participar mais intensamente da propaganda política do regime, e, mesmo não sendo representado no mapa usual do território nacional, confere um sentido novo ao desenho das costas litorâneas, envolvendo-as com um sentido de união, de força, de pertencimento, de integração, transferidos do significado do mar

24 CANETTI, op. cit., p. 80.

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enquanto um símbolo da massa que é a nação. "O Brasil começa no mar", afirma o anúncio da Petrobrás, atribuindo esse sentido de uma fronteira dinâmica e integrada ao sentimento de um espaço que "nos" pertence, que faz parte do que somos enquanto coletividade; conquistar e manter esse espaço é dignificar o conjunto, e especialmente a classe dirigente, tradutora e executora firme e competente dos anseios do grupo, tanto no aspecto moral, quanto econômico, e também no identitário, unindo o mar simbólico da massa nacional ao mar físico que lhe pertence.

No outro extremo do território que se entende como corpo da nação, as fronteiras são em sua maior parte "preenchidas" pela presença de uma floresta densa e desafiadora, que é outro símbolo de massa, que cumpre costurar definitivamente ao conjunto formado pela nação, para que dele não se dissocie. A floresta amazônica adensa o significado da fronteira oeste, mas aparece não como algo a ser passivamente incluído, mas como um desafio a ser vencido e subjugado, e para isso é necessário que esse símbolo de massa seja reduzido a algo familiar e dominável. Esse é o sentido de "civilizar" a Amazônia, tomando-a às feras, aos índios, às doenças, à mata fechada.

Antes de mais nada, é preciso torná-la aparente para a nação, para que esta se conscientize de sua existência e significado. A decisão governamental de cortar a região com uma rede de estradas, bem como tomar uma série de medidas civilizadoras/colonizadoras, naturalmente acaba atraindo a atenção da sociedade civil, e a representação da floresta vai tomando forma na propaganda.

Para Canetti, a floresta pode aparecer como um símbolo da devoção, já que é o modelo do templo que envolve a pessoa com as suas colunas e convida a olhar para cima e louvar a proteção que se estabelece, ou então como o símbolo do exército, o conjunto de unidades que não cede terreno, que não pode ser movido, que para derrotar é preciso ceifar suas unidades uma a uma. Ninguém foge, ninguém cede terreno, só é possível destruir, e não é possível fazer recuar. A floresta sombria, desconhecida e ameaçadora é um exército adversário a ser vencido, e isso é feito pelas estradas que rompem a unidade maciça das florestas e semeiam vilas de colonização, queimadas e pastagens. A preocupação preservacionista não se faz presente, porque não estava colocada na agenda da época25, em que a natureza ainda aparecia como recurso

25 Segundo o noticiário de então, a obra começa com uma cerimônia em 9 de outubro de 1970, em que uma castanheira árvore de 50 metros de altura é derrubada, perante presença do presidente e de todo o ministério, sob os aplausos da população e de vários meios de

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inesgotável, pelo menos no imaginário brasileiro, mas também porque a floresta, apesar de significar a riqueza, não era aliada, mas obstáculo a vencer, igualar à identidade do restante do país, abrir clareiras nas planícies para que a luz pudesse invadir tudo e permitir ao homem civilizado o exercício do seu trabalho, como nas outras regiões, enfim, em uma palavra (muito cara à propaganda da época): integrar.

Figura 6 - revista Veja n. 213, de 4/10/72, p. 45-6

Cumpre recordar que essa temática da ocupação dos "espaços vazios" não é original, embora o seja o toque dado pelo governo Médici. Já no Estado Novo, a identidade nacional era trabalhada em conjunto com um projeto geopolítico, que teve na "Marcha para o Oeste" o seu grande lema e em Cassiano Ricardo o seu maior ideólogo. Já neste momento, o mapa das fronteiras e da costa aparece como um símbolo de caráter educacional26.

Tratava-se, nos dizeres da propaganda da Figura 6, de aumentar o Brasil, tomando espaço à floresta, que aparece derrotada, tombada, com o chão nu predominando as tímidas árvores que margeiam o tema central da foto. "Mais Brasil para o homem ocupar" é uma frase que trai o pensamento de seus elaboradores, no qual os índios e sertanejos que

comunicação de massa, ainda que sob as críticas da oposição parlamentar e de alguns empresários. 26 LENHARO, op. cit., principalmente o Capítulo 2: A Nação em marcha.

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vivem embrenhados nas entranhas do inimigo (a floresta) não são homens, ou pelo menos não são homens "como nós", no mesmo patamar de humanidade. Por outro lado, a foto recorta, em primeiro plano, a estrada; logo a seguir, um grupo de pessoas que são caracterizadas pelas suas roupas como humildes, gente do povo, e por fim os remanescentes da floresta, como uma moldura da composição. A mensagem conotativa aí é a de que os principais beneficiários da construção da Transamazônica seriam as pessoas de renda mais baixa, o que está em consonância com a apresentação que o governo Médici fazia da obra, evocando seu aspecto social de distribuição de terras, e consequentemente de diminuição do problema da superpopulação das grandes cidades e dos seus problemas correlatos.

Trata-se do desafio do século, para a peça reproduzida na Figura 7, que necessita de coragem (como qualquer batalha) e de capital (idem). Em ambas as imagens, o papel da estrada é central: ela quebra a monotonia das árvores entrelaçadas, rompe o seu denso tecido, e faz presente a ação do coletivo nacional sobre a floresta inimiga, como um adversário que é cortado de feridas por onde esvai a sua força, o que permite subjugá-lo. Para esse imaginário, a floresta amazônica não tem serventia como está: só presta pelas suas riquezas, e para fazê-las vir à tona é preciso destruir – ou ao menos subjugar – a imponente arrogância e indiferença com a qual a floresta nos olha.

Por quê a propaganda do e a favor do governo do general Médici dá atenção a estas questões? Primeiramente, porque são postas na ordem do dia pelas próprias políticas governamentais relativas ao espaço, e isso se dá como um capítulo da utilização de um momento da ideologia em seu aspecto geográfico ( cristalizada no "Brasil Grande" e na "integração nacional"). Trata-se de fazer saber – ou então lembrar - às consciências dos nacionais, que o território, embora gigantesco e com todas as virtudes costumeiramente assinaladas, está ainda em construção, e portanto sob virtual ameaça de esfacelamento. Ora, entre outros autores, Moraes já afirmou o caráter significativo desta idéia de território em construção para a finalidade de obter elementos para o controle social e a legitimação de políticas que atendem aos interesses da classe dominante, no geral ou de partes dela:

A imagem de país em construção, com uma formação territorial ainda inconclusa, estimula em muito os expedientes de controle social. Historicamente, sempre que a população aparece como empecilho à acumulação, a solução implementada se dá pela eliminação do elemento de atrito. [...] Assim, vai sedimentando-se uma ótica, ao nível das

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classes dominantes, de claro conteúdo anti-humano, onde o país é identificado com o seu espaço, sendo a população um atributo dos lugares.27

A defesa intransigente da ‘integridade territorial’ do país ilustra bem esta concepção. Garantir o espaço é objeto aglutinador dos interesses, e a manutenção do território geralmente se fazendo contra o povo. Claramente, o interesse de classe identificado com o bem comum nacional centrado na terra, e não na população28.

Chamar a atenção dos brasileiros para o Oceano Atlântico ("O Brasil começa no mar") e para a floresta amazônica, é momento essencial, portanto, da composição dos argumentos para o controle do Estado ocupado pelos militares e seus apoiadores sobre o restante da sociedade, a partir do convencimento da necessidade suprema, prioritária, de garantir a unidade e a integração nacionais. A partir da premissa inicial que se considera comum a todos os brasileiros (é preciso garantir a existência e a continuidade da nação), avança-se com o argumento que propõe o que é preciso fazer para garantir essa premissa (declarar o mar territorial de 200 milhas e vigiá-lo, ocupá-lo com a exploração de petróleo, pesca, etc. / ocupar a Amazônia) e as vantagens decorrentes destes atos. No que se refere à Amazônia, a propaganda da Figura 6 informa que as estradas são o "traço de união entre os brasileiros e o Brasil do futuro", e para a da Figura 7, investir na Amazônia significa participar da história (ou seja, a história vai aonde a iniciativa governamental está). Para além dessas peças, a Transamazônica aparecia na propaganda governamental como uma alternativa capaz de, de uma só tacada, resolver o problema da distribuição de terras do país, do inchaço das grandes cidades e da migração da região Nordeste para a região Sudeste. Os colonos abandonados no meio da floresta e isolados por uma estrada intransitável na época das chuvas foram a imagem que rapidamente erodiu este grande e coordenado ato de propaganda governamental. A conseqüência prática, dada a "comprovação" da incapacidade do pequeno proprietário em dar conta da colonização da Amazônia, foi a rápida ocupação da mesma por latifúndios de empresas agropecuárias ligados a grandes grupos nacionais e multinacionais.

27 MORAES. op. cit., p. 98. 28 Ibid., p. 98-9.

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Fig.7 - Revista Veja n. 165, de 3/11/71, p. 16-17

Por fim, o uso das ideologias geográficas do regime militar, bem como o seu nacionalismo em geral, pode ser compreendido também como ferramenta de ajustamento social, pois reforça o sentimento de pertencer a uma nação no sentido de "estar no seu lugar". Assim, a pessoa que deixa o campo e vem para a cidade, ou que saem das pequenas e vão para as grandes cidades, ou para os que participam dos projetos de colonização como na Transamazônica, ou para os que vêem suas cidades se tornarem irreconhecíveis pela ação do progresso, tudo isso é amenizado pela sensação de que não se saiu do próprio lugar, porque esse lugar não é onde se nasceu ou cresceu, mas é, genericamente, o Brasil. O mesmo vale para aqueles que ficam de fora deste crescimento e têm seus direitos subtraídos. Sua compensação imaginária é pertencer a um Estado- nação do qual nada – ou quase nada – se recebe enquanto direito...

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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RESUMO

ESPAÇO E NAÇÃO NA PROPAGANDA POLÍTICA DO "MILAGRE ECONÔMICO"

Este texto discute a publicidade como fonte para a pesquisa do ensino de História e da consciência histórica, a partir do caso dos anúncios referentes à nação brasileira e seu espaço durante o "Milagre Econômico" (1969 – 73).

Palavras–chave: Ensino de história; publicidade; consciência histórica; regime militar; milagre econômico.

ABSTRACT

SPACE AND NATION IN THE POLITICAL PROPAGANDA DURING THE "MILAGRE ECONÔMICO"

This paper discusses the advertisement as source for the history teaching and historical consciousness research, from the case of the annoucements that were related to the Brazilian nation and its space during the "Milagre Econômico" (1969 – 73).

Key-words: History teaching; propaganda; historical consciousness; brazilian military regime; economic miracle.

Revista de História Regional 5(2): 113-135. Inverno 2000.

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