escrita, alteridade e autoria em anÁlise

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Carmen Lcia Hernandes Agustini - Evandra Grigoletto

ESCRITA, ALTERIDADE E AUTORIA EM ANLISE DO DISCURSOCarmen Lcia Hernandes Agustini(UFU)

Evandra Grigoletto(UPF)

RESUMONo presente artigo, buscamos discutir a relao entre os conceitos de escrita, alteridade e autoria no quadro terico da Anlise do Discurso de linha francesa, a fim de mostrar que a relao do sujeito com a escrita pe em relevo questes que transcendem a concepo de que a escrita seja mera forma de representao da oralidade, um meio de mant-la. A escrita espao de memria, meio de subjetivao, de construo identitria e, por isso, traz em si a alteridade constitutiva do sujeito. Nesse espao de produo de um efeito-sujeito, a autoria se d sob o exlio do sujeito, uma vez que h uma decalagem entre aquele que escreve e o sujeito ali produzido como evidncia subjetiva e unidade imaginria. , portanto, partindo dessas iluses de evidncia, unidade e origem do sentido que o sujeito se constitui autor de um texto, (des)construindo memria(s), num constante movimento entre singularidade e alteridade. PALAVRAS-CHAVE: Anlise do Discurso, escrita, alteridade, autoria, sujeito.

Palavras IniciaisNo relatrio do projeto de pesquisa Analyse de discours et lectures darchives (ADELA) de 1983, projeto esse dirigido por Michel Pcheux e que contou com a participao de vrios pesquisadores franceses, h o relato do trabalho realizado, de dezembro de 1982 a maio de 1983, por um grupo consagrado reflexo sobre a leitura e suas relaes com a escrita. Portanto, a preocupao da Anlise do Discurso (AD) tanto com a leitura quanto com a escrita no de hoje. O trabalho desenvol-

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vido por esse grupo desdobrou-se, no Brasil, na produo de diversas pesquisas consagradas leitura e escrita, participando, de modo contundente, na assuno, no espao intelectual brasileiro, dos conceitos que discutimos neste artigo: escrita, alteridade e autoria. Com efeito, desde o incio do empreendimento de Pcheux, notrio o interesse da Anlise do Discurso por essas noes. Para refletir sobre o funcionamento dessas noes em AD, lanamos mo de alguns questionamentos: Como a escrita tomada numa perspectiva discursiva? possvel pensarmos uma noo de autoria sem pensarmos uma noo de escrita? E vice-versa? Como essas noes se articulam noo de alteridade? Ser o efeito-autor uma forma de efeito-sujeito? Antes, porm, de discutirmos as questes apontadas acima, vlido dizer que a AD se inscreve em uma perspectiva dinmica que pe permanentemente a questo da continuidadedescontinuidade entre lngua e discurso (GUILHAUMOU, 2005, p.13). Dessa forma, ao fazer Anlise do Discurso se produz uma mexida em suas redes tericas, como diria Orlandi (1999). Em outros termos, o movimento intelectual de pensamento promove, necessariamente, movimentos tericos.

Do lugar da alteridade na escrita e a questo da autoriaEm uma perspectiva discursiva, segundo Orlandi (2001, p.204) a escrita uma forma de relao social, sendo a letra o trao da entrada do sujeito no simblico. Trao que marca o sujeito enquanto sujeito, em sua possibilidade de autoria, frente escrita (idem). Ainda, conforme Orlandi (2002, p. 233), a escrita especifica a natureza da memria, ou seja, define o estatuto da memria (o saber discursivo que determina a produo dos sentidos e a posio dos sujeitos), definindo assim, pelo menos em parte, os processos de individualizao do sujeito. Ento, pelo processo da escrita que o sujeito se subjetiva, ocupa determinadas posies-sujeito, inclusive a de autor. O sujeito busca, sobretudo na escrita de si, uma maneira de construir sua identidade, atravs da memria e das relaes de identificao com o outro, num constante movimento entre a singularidade e a alteridade. Ou seja, segundo Rickes (2002), a escrita faz trabalhar a falta que constitutiva do sujeito. Mas, ao apagar a falta, o sujeito no faz outra coisa seno revel-la, atravs de um gesto que singular.

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Assim, a escrita produtora de um lugar de sujeito/autor. necessrio ter em conta que, ao (re)velar a falta que constitui o sujeito, a escrita mostra que a alteridade, a relao com o outro sempre ameaadora (MAIA, 2006, p.39), uma vez que essa relao traz tona traos da singularidade do sujeito que colocam em xeque o efeito elementar de unicidade daquilo que se diz ao escrever e, conseqentemente, do sujeito, abrindo pontos de deriva do dizer. Trata-se de uma relao complexa que advm em trao singular sobre o fio discursivo, inscrevendo e materializando a heterogeneidade constitutiva da enunciao (Cf. FENOGLIO, 2006). A escrita funciona, portanto, como espao de articulao entre lngua e histria, discurso e sujeito. Os pontos de deriva opacificam o que se diz ao escrever, no por uma falha de preciso, mas por permitir o deslocamento de uma instncia de discurso a outra, ou seja, por clivagem; a abertura flagrante da enunciao alngua, irreversivelmente designada, ao mesmo tempo em que barrada. Quando se escreve, a alteridade se impe, inconscientemente, linearidade discursiva instituda. Nesse sentido, se Waly Salomo (1996) est certo ao dizer que escrever se vingar da perda, possvel considerar que a autoria esteja diretamente ligada a um fazer sentido para o/no sujeito1 ; necessrio que sentidos lhe afetem, provocando-lhe uma demanda de escrita, uma (com)pulso a escrever, impelindo-o a subjetivar-se na e pela escrita. Nessa perspectiva, a autoria resultaria de uma transgresso a certa censura psquica2 que as redes de sentido (im)pem ao sujeito, via identificao. Guimares Rosa3 , por exemplo, foi impelido a produzir diferentes narrativas que retornavam sobre algo que o tocava sobremaneira: a instabilidade do estar-no-mundo. Escreve-se de modo diferente sobre o mesmo porque h uma distncia entre o que o move a escrever e o que escreve. Uma espcie de fantasma que a censura repele, em cada narrativa, antes que a aposta em palavras arrisque uma tomada de conscincia, mas que no deixa de estar ali fazendo sentido(s) e transgredindo, portanto. Em outros termos, vingando-se daquilo que a censura lhe legou como falta. Dessa forma, ao ler, a decalagem entre o sujeito e aquilo que escreve faz com que o sujeito no se reconhea plenamente no escrito, o que o torna diferente e estranho, embora mantenha algo de familiar. Lagazzi-Rodrigues (2006, p. 99), ao trabalhar com a noo de autoria no cotidiano das linguagens, afirma que, em nossa sociedade

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letrada, h uma demanda por textualizao. Os efeitos de fecho, de unidade, coeso e coerncia se impem no dia-a-dia, nos mais diversos modos de nos relacionarmos com as linguagens. No entanto, essa injuno textualizao, que representa a relao simblica do sujeito com nossa sociedade, exige responsabilidade do sujeito pelo texto, mas lhe nega a condio de autor. Segundo a autora, estamos sob a injuno da textualizao, mas negados como autores possveis. (idem). Ento, a sociedade, mais do que mover o sujeito a escrever, exige-lhe a escrita como condio de insero social, regulada por determinados mecanismos de controle, mas no lhe d condies para que o seu dizer faa histria. Tambm, nesse sentido, podemos tomar a autoria como uma forma de transgresso ordem estabelecida socialmente. Tal forma de transgresso, contudo, no significa que o sujeito est livre para escrever como bem entende, j que, para se constituir autor, o sujeito se inscreve na ordem do j-dito, do j-estabelecido e, a partir disso, singulariza o seu dizer, (re)significando o sentido estabilizado, questionando o senso comum. E desse processo emerge o efeito-sujeito, que est ligado aos efeitos de responsabilidade, de evidncia e de autonomia do autor. Retomando a reflexo de Orlandi sobre a escrita: preciso pensar a escrita em relao ao real da histria e historicidade do sujeito (e do sentido). Se, no primeiro caso, consideramos a relao da escrita com a Instituio no confronto do simblico com o poltico, no segundo, a relao do homem com o simblico que se apresenta, pondo em jogo a constituio do sujeito em sua relao com a ideologia. (ORLANDI, 2002, p. 235)

Ento, a escrita no pode ser separada nem da histria nem do sujeito, uma vez que na escrita que se materializam os fios da histria, os quais determinam os modos de individualizao (subjetivao) do sujeito. E esse espao de subjetivao tenso, contraditrio, atravessado pela alteridade. Em outro texto, a autora confirma essa relao. Diz ela, a escrita uma relao do sujeito com a histria (ORLANDI, 2006, p. 24) e, por sua vez, com o simblico. A inscrio do sujeito na letra um gesto simblico-histrico que lhe d unidade, corpo, no corpo social. Em outras palavras, o sujeito se singulariza no gesto da escrita, sendo que os modos de individualizao desse sujeito se do, conforme Orlandi

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(op. cit.), de formas diferentes nas diversas conjunturas histricas. Portanto, o sujeito moderno, capitalista se relaciona de forma diferente com a escrita daquela do sujeito da poca do Cristianismo, por exemplo. E as novas tecnologias, includa a a internet, so uma das formas do sujeito moderno se relacionar com a escrita, singularizando-se por um gesto que mediado pelo simblico. Dessa forma, podemos dizer que a escrita articula-se entre o lingstico, o histrico, o social e o ideolgico, constituindo-se num espao simblico, lugar de interpretao, num trabalho de memria e de construo de identidades (GRIGOLETTO, 2006, p. 207), que velaria pela alteridade constitutiva da relao daquele que escreve com a linguagem que lhe d vida. No h, portanto, uma continuidade linear entre aquele que escreve e aquilo que escreve. H clivagem, h deriva de sentidos, porque a escrita demanda leitura e a leitura implica sempre interpretao, movimento de deduo de um efeito-sujeito. Conforme Rickes (2002, p. 66), o exerccio da escrita:pe em marcha operaes que sustentam e desdobram a prpria constituio do sujeito. A noo de autoria, enquanto um processo sempre renovado de inscrio, interroga afirmaes que queiram situar um indivduo como autor de seu texto, em contraposio a outro que no seria passvel dessa adjetivao. Cada um pode ser visto como estando em um momento singular desta construo, que se caracteriza pela ausncia de cristalizao de categorias inconscientes que ela pe em jogo.

A partir da citao acima, podemos acrescentar mais um elemento na articulao da prtica da escrita - o inconsciente - j que certas marcas do sujeito desejante se inscrevem, de forma singular, no processo de escrita/autoria de um texto. Portanto, a autoria pode ser tomada como possibilidade de construo subjetiva e de exerccio desejante (RICKES, 2002, p. 66), o que no se concretiza seno por meio da escrita. Por isso, a escrita s pode ser construda na medida em que mobiliza experincias que coloquem em movimento as estruturas do inconsciente do sujeito escrevente (Cf. RICKES, 2002) e, como tal, pode ser considerada marca, cicatriz. Laporte (1984), por sua vez, fala em risco corporal ao abordar a questo da escrita. A expresso risco corporal, em portugus, sugere a idia de perigo, um perigo associado escrita. Diz Laporte que

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o risco corporal imediato, pois no h nada que garanta que o golpe do estilo - podemos pensar tambm em estilete, pois esta a origem da palavra estilo - no escorregar do corpo da lngua a minha prpria carne envenenada pela palavra, pela letra ou frase destinadas a um Outro excessivamente familiar. (Laporte, 1984, apud SOUSA, 1999, p.2)

, portanto, no movimento entre singularidade e alteridade que o sujeito se inscreve na prtica da escrita e se constitui autor, j que o sujeito tambm alteridade, carrega em si o outro, o estranho, que o transforma e transformado por ele (CORACINI, 2007, p. 17). Dessa forma, a escrita tanto pressupe a singularidade do sujeito quanto a determinao do outro4 - o(s) sujeito(s) a quem se dirige, o lugar que ele prprio ocupa socialmente, mas tambm o lugar que o seu leitor ocupa, as condies de produo da sua escrita etc. Produz, assim, um efeito ideolgico. Conforme afirma Schons (2005), ao escrever, nunca se acaba de esboar e de se esboar, de escrever e reescrever, nunca se esgota de se inscrever, j que, assim como a linguagem, os sujeitos so permanentemente incompletos e inacabados. A escrita , pois, uma forma de o sujeito buscar uma completude, embora saibamos que ela sempre ilusria. pela/na iluso de completude, de unicidade que o sujeito se constitui autor, produzindo o que Pcheux (1975) chamou de unicidade imaginria do sujeito, a qual se produz pela identificao do sujeito do discurso com a forma-sujeito da Formao Discursiva que o afeta, e que resulta no efeito-sujeito. Nesse processo, a singularidade est determinada, no se constitui seno em funo da alteridade. No caso da escrita na escola, observamos que, apesar de recorrente as queixas em relao a conseguir ou no escrever5 , seja em lngua estrangeira, seja em lngua materna, h variveis que particularizam a relao de cada um com a escrita. E nisso justamente que consiste a singularidade que sempre posta em jogo na prtica da escrita, j que essa prtica sempre uma forma de o sujeito subjetivarse. Nesse sentido, o processo de homogeneizao caracterstico das prticas escolares pode configurar-se como causa de resistncia a uma escrita escolarizada, imposta como tarefa a cumprir e que, muitas vezes, no toca o sujeito. Essa resistncia pode promover uma autoria, via transgresso escrita escolarizada ou pode at mesmo inibir o processo de escrita.

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J, no caso da escrita virtual, essa queixa d lugar a uma aparente liberdade de escrita. Assim, podemos pensar na escrita virtual situando-se no entremeio do discurso da oralidade e do discurso da escrita6 , o que significa contemplar nesse processo as contradies inerentes tanto a um quanto a outro, o que significa, por sua vez, trabalhar no intervalo entre esses dois discursos, no valorizando um em detrimento do outro, mas dando legitimidade aos dois. Significa, ainda, considerar os lapsos, as falhas, ou os chamados erros da escrita virtual, os silenciamentos, os sinais grficos, as imagens como elementos que constituem a materialidade da escrita virtual. A relao do sujeito com a escrita, portanto, traz tona uma outra tenso, sempre presente, entre lngua materna e lngua nacional; sendo a lngua materna, de acordo com C. Revuz (1998), a lngua da constituio psquica do sujeito. J a lngua nacional uma lngua forjada por eleio de um modelo de correo. Assim sendo, a escrita joga, no sujeito, uma relao entre o que da lngua lhe familiar e, ao mesmo tempo, estranho. Trata-se, portanto, de uma relao da ordem do singular, embora seus mecanismos de funcionamento sejam os mesmos. Essa tenso mostra-se rgida no espao escolar, mas tambm est presente no espao de uma escrita virtual. A nosso ver, essa tenso constitutiva da relao do sujeito com a escrita, determinando-a. Retomando a questo da injuno textualizao, pontuada acima, e pensando no ambiente virtual, que tambm uma prtica cotidiana de linguagem, o sujeito tambm est ali sob a injuno da textualizao, mas uma textualizao que no regulada pelos mecanismos de controle das instituies tradicionais. Uma textualizao na qual a costura se estabelece, ao contrrio do texto escolar, ou dos diferentes gneros que circulam cotidianamente na nossa sociedade, pelos ns, pelas lacunas, pelas interrupes, pelas contradies, pelas ausncias que remetem a outros textos, a imagens, a sites, a outros leitores e outros autores, em que o efeito que se produz no do fecho, mas o de disperso, de incompletude, de provisoriedade. O hipertexto pode ser tomado, ento, como lugar intervalar, no qual o leitor navega, produz sentido, se (re)significa, constitui-se autor, penetrando nos diferentes labirintos colocados sua disposio na textualizao desse gnero. E a internet legitima essa forma de escrita outra, cheia de lapsos, atos falhos, silenciamentos, ausncias, produzida pelo internauta que busca, na escrita virtual, uma forma no s de

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subjetivar-se, mas tambm uma tentativa de preencher a falta, de satisfazer o seu desejo pelo outro que o constitui irremediavelmente. Estamos diante, portanto, no apenas de uma (re)inveno da escrita, mas tambm de uma nova forma de escritura da sociedade, com paradigmas mveis e informaes transitrias. Ou seja, o modo como a escrita se inscreve na sociedade atual produz uma nova forma de escritura dessa sociedade, em que os sujeitos esto submetidos s novas tecnologias, as quais exercem sobre eles relaes de poder, determinando o modo como o sujeito moderno se relaciona com a escrita. Orlandi (2002, p. 233) afirma que a escrita lugar de constituio de relaes sociais, isto , de relaes que do configurao especfica formao social e seus membros. A forma da sociedade est assim diretamente relacionada com a existncia ou a ausncia da escrita. E nunca vivemos um momento scio-histrico em que a escrita esteve to presente como agora, com a presena diria da internet em nossas vidas. Por isso, podemos dizer que estamos construindo uma nova forma de escritura para a sociedade, a qual passa pela legitimao da internet como um espao institucional, onde a escrita elemento estruturante. No h, no ciberespao, um lugar fixo nem para o autor nem para o leitor, tampouco para o texto que possui a caracterstica de uma escrita interminvel, de uma materialidade cheia de lacunas, de diferentes ns, de ausncias, que remetem, constantemente, tanto o leitor quanto o autor a outros textos, outras materialidades, a diferentes links. Assim, autor e leitor so posies, nem sempre distintas, mas complementares, de um mesmo processo - a escrita virtual. E a alteridade constitui, irremediavelmente, esse processo. Em relao autoria, podemos dizer que se trata de uma autoria que se produz por diferentes sujeitos, em que o processo de textualizao marcado por constantes interrupes, que remetem a links, fotos, outros textos, etc., os quais funcionam como pontos de deriva do texto eletrnico, mas no o isentam do efeito ideolgico produzido pelo social. Ou seja, no processo da escrita virtual, a responsabilidade pelo dizer de todos e de ningum ao mesmo tempo, ficando, muitas vezes, difcil de identificar marcas prprias de autoria. Portanto, seja na escrita virtual, seja na escrita escolar, ou na escrita do cotidiano, o sujeito carrega as caractersticas da contradio e da incompletude, movimentando-se num espao tenso, que o da

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subjetividade na linguagem. Espao da transgresso, da falta, do qual deriva uma relao dinmica entre identidade e alteridade. Enfim, parafraseando Pcheux (1997), porque h o outro nas sociedades e na histria, que h identificao e, por sua vez, o trabalho da interpretao.

Consideraes FinaisA discusso empreendida nos mostra que a relao daquele que escreve com a escrita e aquilo que diz ao escrever uma relao complexa, movimentada pela alteridade constitutiva do sujeito e por uma demanda que o impele a escrever, como uma forma de suplantar uma falta sempre presente e relativa censura psquica que funda o sujeito. Em relao autoria, possvel dizer que se trata de uma noo marcada por um trao comum subjacente: a singularidade enquanto um efeito da relao, sempre nica e mpar, do sujeito com a escrita ou com a oralidade, sendo posta em evidncia, ou pelo percurso histrico dos sentidos possveis que constituem o sujeito, ou pela falha, o inesperado, o surpreendente da formulao; aquilo que escapa ou que se mostra como diferente, singular. Nesse sentido, a Anlise do Discurso de linha francesa considera a escrita uma forma de relao social; no entanto, antes de se constituir como uma forma de relao social, a escrita uma relao do sujeito com a censura psquica que o funda, via processo de simbolizao; , ainda, uma relao do sujeito com redes de memria, uma vez que, para escrever algo, necessrio que o sentido j habite o sujeito, embora, ao torn-lo escrita, a falha se d incisiva e inalienavelmente. Parece, portanto, impossvel poder pensar a noo de autoria sem pensar uma noo de escrita, principalmente porque, em perspectiva discursiva, a escrita no mero instrumento de representao da oralidade. Tanto assim que h diferentes formas de escrita e elas no esto em relao de transparncia umas com as outras; h espessura semntica; h a necessidade de os sentidos significarem por vias distintas. Finalmente, em relao ao efeito-sujeito, h a questo de que o sujeito um efeito da relao entre lngua, histria e aquele que enuncia, constituindo-se como unidade e fonte daquilo que diz. Se pensarmos na originalidade, enquanto um aspecto da autoria relativo ao inusitado, possvel compreender o autor como uma forma de efeitosujeito, que, ao transgredir via escrita a ordem instituda, (se) corporifica (n)a escrita, fazendo-se singular.

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ABSTRACTThis article aims at discussing the relation between the concepts of writing, alterity and authorship according to the theoretical perspective of French Discourse Analysis. It is considered that the relation between subject and writing emphasizes questions that exceed the idea that writing is a mere form of representation of orality, i.e., a way of preserving it. Writing is a space of memory, a means of subjectivation and identity construction. Therefore, writing brings in itself the constituent alterity of subject. In this space of production of a subject-effect, authorship occurs under the exile of the subject, in view of the fact that there is an asymmetry between the writer and the subject produced as subjective evidence and imaginary unit. This way, based on illusions, namely those of sense evidence, sense unity and sense origin, the subject constitutes itself as an author of a text, (des)constructing memory(ies) in a constant movement between singularity and alterity. KEY WORDS: French Discourse Analysis; writing; alterity; authorship; subject.

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NOTAS

1 O fazer sentido para o/no sujeito da ordem de uma relao inconsciente, relativa ao processo de recalcamento que funda o sujeito, segundo uma perspectiva psicanaltica. Em Anlise do Discurso, por sua vez, esse processo no deixa de ter relaes com o processo de constituio histrica dos sentidos e, por conseguinte, do sujeito. Errncia dos sentidos, errncia do sujeito. 2 Em perspectiva psicanaltica, no processo de censura, o censurador e o censurado habitam o mesmo corpo. Ela um meio de defesa que visa a evitar conflitos psquicos, eliminando da conscincia idias intolerveis ao sujeito. Evitar um conflito no resolv-lo. As idias censuradas persistem, esforam-se para

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retornar conscincia. Mant-las distncia implica um gasto de energia e a incapacidade de o sujeito dispor livremente de seus recursos. Essa censura se exerce, principalmente, de dois modos: 1. pelo recalcamento, operao inconsciente que repousa as idias indesejveis no inconsciente onde se tornam restos; 2. pela represso, operao consciente ou pr-consciente que desloca essas idias ao pr-consciente de onde elas podem retornar, sem muita dificuldade, ao consciente. Essa questo da censura psquica se coaduna concepo de sujeito da AD. 3 Renomado autor da literatura brasileira. Nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, a 27 de junho de 1908 e faleceu em 19 de novembro de 1967 em Copacabana, Rio de Janeiro. 4 necessrio dizer que esse outro no se confunde ao Outro constitutivo do sujeito e que, tambm, no se confunde a pessoa imediata e emprica a que, por ventura, o sujeito possa se dirigir. Trata-se, com efeito, de uma representao que o sujeito faz do outro, seu interlocutor, seja este real ou virtual. 5 Sousa (1999) diz que Laporte pensa a inibio escrita como conseqncia de uma impossibilidade de instaurar para o sujeito um lugar de exlio; a nosso ver, um lugar de exlio, compreendido como refgio, implica para o sujeito, via identificao, que algo faa sentido para e no sujeito, promovendo a (com)pulso a escrever. 6 Conforme Gallo (1992), o discurso da oralidade aquele que produz um sentido ambguo e inacabado, enquanto o discurso da escrita produz um sentido nico e desambigizado, sendo legitimado institucionalmente. Logo, o discurso da escrita o que aceito e valorizado pela escola, no entanto, a escola no ensina esse discurso, exatamente porque esse discurso tem um lugar prprio para existir, e um lugar sempre institucional, que no a Escola (GALLO, 1992, p. 59). Esse lugar institucional a mdia, representada pelo jornal, pela televiso, pela publicidade e, agora, tambm pela internet que no s legitima o discurso da escrita, mas tambm o discurso da oralidade. A escola a principal mantenedora do discurso escrito, mas no uma instituio produtora desse discurso.

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